carta dirigida aos meus amigos brancos que não veem onde está o problema Virginie Despentes Tradução Márcia Bechara
Paris, 3 de junho de 2020 Na França, nós não somos racistas, mas não me lembro de jamais ter visto um ministro negro sequer. No entanto, já tenho 50 anos, e pude ver desfilarem governos. Na França, não somos racistas, mas na população prisional os negros e os árabes estão super-representados. Na França não somos racistas, mas nos últimos 25 anos em que venho publicando livros, respondi às perguntas de um jornalista negro uma única vez. Fui fotografada apenas uma vez por uma mulher de origem argelina. Na França, não somos racistas, mas a última vez que se recusaram a me servir num restaurante, eu estava com um árabe. A última vez que me pediram meus documentos, eu estava com um árabe. A última vez que a pessoa que eu esperava quase perdeu o trem porque foi parada pela polícia na estação, ela era negra. Na França não somos racistas, mas durante a quarentena as mães que vimos sendo perseguidas pela polícia com o argumento de que não tinham o pequeno documento [certificado de deslocamento derrogatório] através do qual nos permitíamos sair eram mulheres ‘racializadas’, em bairros populares. Nós, as mulheres brancas, enquanto isso, fomos vistas fazendo jogging ou compras no sétimo distrito. Na França, não somos racistas, mas quando anunciaram que a taxa de mortalidade [por Covid] em Seine Saint Denis [na periferia de Paris] era 60 vezes maior que a média nacional, não apenas não demos a mínima, como nos permitimos dizer, entre nós, que era porque “eles se isolam mal”.
Já posso ouvir o clamor dos tuiteiros de plantão, ofendendo-se agressivamente, como sempre, quando falamos algo que não corresponde à propaganda oficial: “que horror, mas por que tanta violência?” Como se a violência não dissesse respeito ao que aconteceu em 19 de julho de 2016. Como se a violência não fosse os irmãos de Assa Traoré presos. Nesta terça-feira, estive pela primeira vez na minha vida em um comício político de mais de 80.000 pessoas, organizado por um coletivo não-branco. Essa multidão não é violenta. Neste 2 de junho de 2020, para mim, Assa Traoré é Antígona. Mas esta Antígona não se deixa enterrar viva depois de ter ousado dizer não. Antígona não está mais sozinha. Ela criou um exército. A multidão canta: Justiça para Adama. Esses jovens sabem o que estão dizendo quando dizem que se você é negro ou árabe, a polícia sempre dá medo: eles estão dizendo a verdade. Eles dizem a verdade e exigem justiça. Assa Traoré pega o microfone e diz para aqueles que vieram “o nome de vocês entrou para a história”. E a multidão não a aclama por ela ser carismática ou fotogênica. A multidão aplaude porque a causa é justa. Justiça para Adama. Justiça também para aqueles que não são brancos. E nós os brancos gritamos o mesmo slogan e sabemos que não ter vergonha de ter que gritar isso novamente em 2020 seria ignominioso. Vergonha, neste caso, é apenas o mínimo.
Eu sou branca. Saio de casa todos os dias sem levar meus documentos. Pessoas como eu, é o cartão de crédito que subimos para buscar, quando o esquecemos. A cidade me diz que estou em casa. Uma mulher branca como eu, fora da pandemia, circula nesta cidade sem nem mesmo perceber onde a polícia está. E eu sei que se houver três deles sentados nas minhas costas até me sufocar — só porque tentei me esquivar de uma verificação de rotina — , as pessoas farão um escândalo. Nasci branca como outros nasceram homens. O problema não é apontar “mas eu nunca matei ninguém”, como se costuma dizer, “mas eu não sou estuprador”. Porque o privilégio é ter a opção de pensar sobre isso, ou não. Não posso esquecer que eu sou uma mulher. Mas posso esquecer que sou branca. Isso é ser branco. Lembrar disso ou não, dependendo do humor. Na França, não somos racistas, mas não conheço uma única pessoa negra ou árabe que tenha essa escolha. Tradução: Márcia Bechara Virginie Despentes nasceu em Lyon, França. Publicou seu primeiro romance Baise-moi [Me fode] aos 24 anos. Antes disso, no entanto, trabalhou numa loja de discos, numa de revelação fotográfica rápida, e depois como baby-sitter, prostituta e resenhista de filmes pornô. Sua vivência no submundo punk-rock e da prostituição a dotou de um olhar agudo para as hipocrisias da contemporaneidade. Desde então, com seu estilo cru e irônico, têm se
firmado como uma das escritoras feministas mais polêmicas e relevantes da França. Viveu alguns anos em Barcelona junto com Paul B. Preciado, de quem foi companheira, tendo regressado a Paris em meados da década de 2010. Entre suas obras estão, Les Chiennes savantes [Cadelas eruditas], 1995; Les jolies choses [As belas coisas], 1998; Teen spirit [Espírito adolescente], 2002; Trois étoiles [Três estrelas], 2002; Bye Bye Blondie [Até logo, Blondie], 2004; Apocalypse bébé [Bebê apocalipse], 2010; e a trilogia iniciada em 2015, Vernon Subutex.