Pandemia Crítica 079 - O vírus nas favelas de São Paulo

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o vírus nas favelas de São Paulo Ferréz


No extremo sul da zona sul de São Paulo existem centenas de bairros periféricos. Eles não se conversam, ou seja, os ônibus não são circulares, saem geralmente de uma região central. O que todo morador tem que fazer é pegar o seu carro ou seu meio de transporte, seja ônibus ou bicicleta, moto, para poder circular entre os bairros. Só isso já aumenta muito a probabilidade de contágio. Passando pelos bairros do Jangadeiro, Jardim Aracati, Parque Independência, São Bento Velho e outros, milhares de pessoas moram quase todas juntas. Nesses bairros, que têm uma média muito alta de gente por metro quadrado, dá pra perceber que as pessoas começaram a transitar antes do tempo. Sivirologia Uma famosa palavra que diz por aqui a maioria dos moradores é que se faz “Sivirologia”, ou seja, acaba se virando de várias formas. Bares abertos, algumas quitandas, e um alto número de pessoas transitando pelas ruas. Essa coisa de poder parar, fazer de fato a quarentena, é bem diferente da classe média alta. Periféricos não têm escolha, eles não têm estoque de alimentos, então eles têm que sair muito mais para comprar comida. Todo morador de quebrada sai para comprar a sua alimentação quase diária. A maioria trabalha de prestar serviços, então acaba ganhando pouco, o que não deixa fazer uma compra completa para todos os meses. Chego na casa de um amigo, o número de moradores dentro de uma mesma casa é impressionante, enquanto escrevo esse texto,


conto oito pessoas num barraco de 4 metros quadrados. Por exemplo, como congelar muita carne para eles nessas semanas? Uma geladeira só e a geladeira às vezes de um compartimento pequeno de congelador. Ficar dentro do barraco de madeira? O certo seria desde o começo o governo orientar de forma diferente as periferias, ter algumas medidas especiais nessas comunidades para poder transitar. As medidas comuns adotadas se reportam sempre à classe média, classe alta, e não fazem jus à realidade vivida nas quebradas. Entre ruas estreitas e vielas, as pessoas precisam sair de casa principalmente pra ir trabalhar. E se tem um número de pessoas que pode ficar em quarentena no Brasil, a grande população, a população trabalhadora desse país não pode. O que ela faz? Organiza, limpa, passa e faz a comida da elite. As dificuldades aumentam quando você vai aos bairros mais precários, onde estão os córregos abertos, onde não tem tratamento de esgosto, onde não tem geralmente água todos os dias e muitas vezes falta luz. Como você vai falar com a família para ficar dentro do barraco de madeira se tem cinco a seis pessoas, como falar pra elas cumprirem a quarentena ali? As informações desencontradas também prejudicam, o número de fake news e o próprio fato de desacreditar da potência do vírus, isso tudo junto com o descrédito da mídia tradicional, faz um grande caos, os hospitais


periféricos são escassos, geralmente tem posto de saúde que não tem nenhuma base pra poder tratar as pessoas. Toda a medicina é feita distante das periferias, a maioria dos médicos não quer estar perto das favelas, então isso torna um peso muito grande. O periférico que fica doente tem que ser transportado para um hospital mais central ou pra uma especialidade mais central. Só em um bairro desses que citei, são cerca de 100 mil pessoas espremidas em casas e barracos ligados por vielas. Procurando uma máscara para meu pai Ai você vai perguntar o que um cara informado, que lê jornal, que assiste tudo sobre o vírus, está fazendo ao andar nas favelas numa pandemia? Estava procurando uma máscara para meu pai, e álcool em gel, e andei por dezenas de farmácias, não encontrei nada. Em uma delas um rapaz até deixou meio no ar que tinha, mas se fosse quase 10 vezes o preço normal; fingi que não ouvi e sai indignado, meu pai com 73 anos não teria mascara nem álcool naqueles dias. Sem posto de saúde por perto, sem hospitais e sem ninguém pra explicar pra ele como era perigoso sair na rua, ir ao banco, já que o próprio governo para dar o auxilio emergencial fez todos eles irem às agências e ficarem em filas gigantescas. Saí da casa do meu amigo, eu era o único que estava de máscara, tentei explicar que tanta gente dividindo pouco espaço forma uma condição que facilita a disseminação do vírus.


Presidentes de rua É difícil fazer isolamento social assim. Mas temos exemplos positivos também, uma das comunidades se organizou, para tentar saber com rapidez quem tem sintomas da doença, quem precisa de ajuda, qual a situação na casa de cada família que mora no local. Em várias outras periferias temos medidas comuns de doação de cestas básicas, de distribuição de máscaras, mas essa em especial foi um grande exemplo dessa luta das periferias, que acabam se virando por si próprias, não contando com apoio do governo nem dos órgãos oficiais. A comunidade se organizou, fez várias reuniões logo no começo da pandemia, e transformou 420 moradores em presidentes de rua. Cada um é responsável por monitorar umas 50 casas. Fazendo assim uma ação coletiva onde todos podem fortalecer a luta da favela contra o Covid-19. Quando eles identificam um caso suspeito, passam a monitorar essa família, dar orientação. E com uma conversa explicando tudo que pode acontecer, conseguem orientar e fazer a situação ficar sob controle. Esse presidente de rua, orientado corretamente, vira um potencial divulgador de informação correta, ele é responsável por garantir que essa pessoa fique em casa, fazendo assim o vírus não proliferar por ali. A própria comunidade tem três ambulâncias e se um dos moradores estiver passando mal, a ambulância vai ser acionada. O mentor por trás disso é o líder comunitário de Paraisópolis, Gilson Rodrigues.


Enquanto escrevo esse texto, a comunidade já registrou centenas de casos confirmados de Covid-19 e dezenas de mortes suspeitas, imagina se essas ações não fossem feitas? Aqui perto de onde moro no hospital M.Boi Mirim, que é um ponto referencial de tratamento, num dia só chegaram 30 casos suspeitos. Como as comunidades em volta não têm esse trabalho, imagina como isso pode se espalhar? Ajuda mútua Outro fator, que deixa as famílias de favela desesperadas, é como vão sobreviver, como vão se alimentar, numa época em que não podem exercer seu trabalho. Então a rede dos presidentes de rua também identificou quais são os moradores que perderam a renda por causa da pandemia e estão mais necessitados e para esses moradores, alguns voluntários preparam marmitas todos os dias. Neste sábado, foram duas mil refeições, lembrando que gente de fora da comunidade e até de outras classes ajudam nessas marmitas. A população dessas favelas presta serviços, ela não tem como fazer o home office porque são diaristas, cozinheiras, entregadores, pessoas que trabalham no serviço de manutenção, a grande maioria está exposta ao vírus, justamente para poder dar conforto a quem está fazendo a quarentena. Em algumas favelas cresce a confecção de máscaras artesanais e a doação dessas máscaras. Um caso exemplar é de Ana Ferreira. Ana chega a confeccionar 20 máscaras por dia, ela entrega em Ongs e em espaços comunitários que estão


distribuindo cestas básicas e marmitas para a população em vulnerabilidade social. Ela é confeiteira, fazia bolos numa famosa padaria mas foi demitida há seis meses. Em vez de ficar magoada, usou toda sua energia e tempo livre para pedir retalhos de tecidos nas oficinas que agora estão fechadas, e foi fazer esse grande ato humanitário. João Gordo é um famoso cantor de uma das maiores bandas punks do Brasil, ele é um conhecido vegano, que tem programa no youtube, além de um restaurante pequeno onde também vende ítens da sua banda, Ratos de Porão. Há algumas semanas ele e sua esposa Vivi Torrico começaram o projeto chamado Solidariedade Vegan. Segundo ele “Nossas marmitas são veganas pois acreditamos que além de um alimento acolhedor e saudável, queremos semear a energia de vida e o respeito/sinergia com todos os seres do planeta.” João e a esposa pretendem doar 100 refeições diárias, três mil refeições a cada mês. Voltando de outra favela, fui levar uma cesta básica para um senhor, que fica na esquina pedindo dinheiro, ele usa muletas e não conseguiu se aposentar. Quando entreguei a cesta, automaticamente começou a separar alguns itens, eu perguntei o porquê, ele disse que tem um menino que apareceu na esquina esses dias, e que também não tem nada para comer, então ele vai dividir a cesta básica de alimentos. Resistência Enquanto escrevo esse texto, o número de mortes passou de 1.300 por dia, em todo o Brasil. Parece que o vírus aqui nas favelas também encontrou um forte combatente além do escasso


álcool em gel e das sumidas máscaras: a união de um povo, que tem uma estrada de sofrimento gigantesca, mas que sabe que o sofrimento também é uma grande escola. Comerciantes que tinham no seu comércio o único modo de sustento, olhando para a porta fechada todos os dias, senhoras empregadas domésticas, que demoram duas horas de ônibus para chegar no emprego, cobradores de ônibus que não conseguiram acesso às máscaras, ambulantes que precisam entregar as balas na mão dos clientes nos semáforos, meninos com suas pipas guardadas, doidos para ver o céu azul mais uma vez. A periferia é um aglomerado de carros, motos, fios cheios de emendas, córregos, tijolos, casas de madeira, comércios pequenos, sacos de lixo nas esquinas, barracas de pastel nas sextas-feiras, feijoada nos sábados, futebol no campo de barro, e principalmente entre cada metro quadrado, sonhos de uma vida melhor. Periferia resiste. Ferréz é escritor e correspondente da TV 247


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