Pandemia Crítica 080 - A revolução consiste no ato pelo qual a humanidade puxa o freio de emergência

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A revolu¢ão consiste no ato pelo qual a humanidade puxa o freio de urgência para parar o trem suicida da civiliza¢ão capitalista industrial moderna Michael Löwy

Perguntas elaboradas por Caio Souto e Fernando Gimbo


CS e FG: Para um pensamento político que acredita em uma mudança estrutural da ordem do mundo, a imaginação do porvir e a experiência do futuro enquanto um dos modos do tempo são absolutamente decisivas. Contudo, nos últimos trinta anos tudo se passa como se nosso horizonte de expectativas fosse paulatinamente diminuindo, junto a uma perda da compreensão do futuro enquanto tempo próprio de um processo emancipatório. De certa forma, as imagens de futuro se tornaram cada vez mais distópicas e sombrias, como se o acúmulo da barbárie que se vê na marcha do progresso agora se revelasse como o fim último desse processo mesmo. A ponto de, hoje em dia, ser próprio dos novos movimentos totalitários da extrema direita mundial uma compreensão “revolucionária” e “aceleracionista” do tempo, sustentando uma promessa radical de futuro que realizaria por fim, sem qualquer tipo de consciência moral, uma história de injustiça humana e destruição da natureza. Perante tal quadro, parece impossível não lembrar a injunção política maior de Walter Benjamin, de “puxar o freio de mão”, como uma urgência maior de nosso tempo: se o futuro não é mais o que um dia acreditamos ser, será preciso parar a máquina que segue rumo ao abismo. Nesse caso, a questão que se impõe é: como compreender hoje a imbricada relação entre experiência do tempo histórico e a orientação das lutas políticas? ML: A distopia, sob a forma de catástrofe ecológica sem precedentes na história humana, é uma possibilidade bastante real. Para isso não seria necessário haver grandes mudanças, golpes de estado ou regimes neofascistas. Basta que se permita, por mais uma ou duas dezenas de anos, o business as usual do sistema capitalista, isto é, a continuação do processo habitual de expansão


e acumulação do capital e dos lucros, seguindo a dinâmica incontrolável do produtivismo e do consumismo, da mercantilização geral do universo e da vida e da destruição irreversível da natureza. A revolução consiste, portanto, como Walter Benjamin havia apontado, no ato pelo qual a humanidade puxa o freio de urgência para parar o trem suicida da civilização capitalista industrial moderna – que caminha, a uma velocidade crescente, em direção ao abismo da mudança climática. Somente graças a esse ato redentor é que poderá se abrir o caminho para uma alternativa utópica radical, que eu costumo designar com o termo ecossocialismo. Tal revolução e utopia só serão possíveis a partir das lutas sociais e políticas que estão se dando aqui e agora, lutas socioecológicas das comunidades indígenas, das mulheres, da juventude. A palavra de ordem dessas lutas é: “mudemos o sistema, não o clima”. Uma jovem de 16 anos, Greta Thunberg, aponta o caminho para este combate antissistêmico contra poderosos adversários. Nada garante sua vitória, mas como dizia, com muita sabedoria, Bertolt Brecht: “quem luta pode perder, quem não luta já perdeu”. FG: Em um de seus livros – Revolta e melancolia – você mostra como o romantismo carrega em seu núcleo uma potência revolucionária que se diz na crítica à civilização industrial-capitalista e no vislumbre estético de outra forma de vida subjetiva e social. Sobre isso, um dos traços maiores do romantismo é uma relação nova com a natureza, relação essa que recusa a compreensão instrumentalizada própria da modernidade. Contemporaneamente, o problema da natureza nos parece de grande interesse: com a crise climática e o iminente esgotamento dos recursos primários do planeta, aliados a um processo de extinção da biodiversidade nunca antes visto, há também um


aprofundamento da consciência do quão inviável é o atual modelo de produção e consumo. Tal quadro faz recolocar a relação entre natureza, política e sociedade a partir de um novo arranjo. Como o senhor vê esse problema e qual a sua relação com um conjunto de problemas próprios do romantismo revolucionário? ML: Encontramos na cultura romântica, desde Jean-Jacques Rousseau até hoje, uma crítica da destruição capitalista da natureza, assim como uma relação profunda, espiritual, estética e intelectual com o universo natural. Com meu amigo Robert Sayre, acabamos de publicar um livro que se chama Romantic Anti Capitalism and Nature. The Enchanted Garden ((Londres, Routledge, 2019), que provavelmente será traduzido no Brasil pela editora da Unesp. Estudamos alguns exemplos desta crítica romântica, desde escritores e artistas do século 19 até William Morris, Walter Benjamin e Naomi Klein. Sem dúvida a crise ecológica atual é muitíssimo mais grave do que em qualquer momento do passado, desde a Revolução Industrial, que iniciou essa destruição e que estabeleceu o vínculo indissolúvel entre o capitalismo e as energias fósseis (carvão e petróleo) que dura até hoje. Com o processo de mudança climática, o sistema capitalista ameaça a própria existência da vida humana neste planeta. Necessitamos de alternativas radicais, antissistêmicas, anticapitalistas, como o ecossocialismo, se queremos salvar a Mãe Terra e a própria humanidade. O romantismo revolucionário é uma das fontes de inspiração do projeto ecossocialista. CS e FG: O senhor foi responsável pela publicação de excertos de Walter Benjamin que denominou O capitalismo como religião. Mais recentemente, um filósofo bastante influente – Buyng-Chul Han –


defendeu a ideia de que o capitalismo não é uma religião, alegando que vivemos num tempo em que há o desaparecimento dos rituais e um culto ao ego, o que seria o fim da ideia de comunidade. No entanto, parece-nos que era justamente esse diagnóstico que Benjamin tinha em mente no conjunto de excertos referidos. Nesse sentido, e levando em conta o que ocorreu na Europa e nos EUA depois da crise de 2008, com a opção por um acirramento profundo da economia neoliberal com seus efeitos deletérios sobre grande parte do mundo, o que se comprova não é justamente o caráter místico e fetichista do capitalismo? ML: Podemos estar de acordo com o filósofo Han de que o capitalismo não é uma religião como as outras, e que se trata de um sistema que nega qualquer relação comunitária. Mas Benjamin sugere que o capitalismo é uma religião de tipo especial, baseado no culto fetichista do ídolo dinheiro e na culpabilização dos pobres, levando a humanidade à “casa do desespero”. A globalização neoliberal não é senão uma forma particularmente perversa deste culto fanático e intolerante. CS e FG: Uma das pensadoras que estão em seu horizonte filosófico e político é Rosa Luxemburgo. Ela foi uma das primeiras marxistas a rejeitar o economicismo e a abordar a necessidade de superação do capitalismo, e do expansionismo imperialista que lhe é intrínseco, de uma perspectiva da organização das lutas populares. Inclusive, um dos debates que sua obra suscita envolve a própria concepção de partido político e de dirigismo partidário. Pensando especificamente no Brasil, tivemos recentemente a experiência do Partido dos Trabalhadores por mais de uma década no poder. Essa experiência foi interrompida por uma ruptura institucional, a que se seguiu a eleição de um grupo político da extrema-direita com forte


adesão popular mesmo em setores subalternizados da população. Embora tal apoio venha diminuindo, ele ainda existe. Alguns críticos veem a forma como foi conduzida a experiência política do Partido dos Trabalhadores à frente do governo como um dos fatores que impulsionaram essa guinada. Como o senhor vê esse ponto? ML: Como moro em Paris, não sou a pessoa mais indicada para responder a essa pergunta. Rosa Luxemburgo sempre combateu a burocratização, tanto no Partido Social-Democrata Alemão, ao qual ela pertenceu até 1914, quanto nos sindicatos. Essa crítica vale para outras experiências de tipo social-democrata, como foi o caso dos governos do PT. Em sua origem, o Partido dos Trabalhadores era um partido de luta de classes, com uma orientação anticapitalista. Se lemos o documento de 1990, “O socialismo petista”, temos uma proposta bastante radical de transformação socialista da sociedade brasileira. Infelizmente, a partir da “Carta aos Brasileiros”, do candidato Lula, o PT toma uma orientação de conciliação de classes e de adaptação aos interesses do capital. Nos 12 anos seguintes, vai seguir uma orientação “socialliberal”, que pode se resumir com a seguinte fórmula: fazer todo o possível pelos pobres, com a condição de não mexer nos privilégios dos ricos. Essa orientação levou o PT a abandonar o trabalho de conscientização e politização das classes populares; se acrescentamos a isso a decepção suscitada por seu envolvimento em casos de corrupção, temos algumas das condições que permitiram o surpreendente giro à extrema direita. Mas seria simplista atribuir aos erros políticos do PT a responsabilidade por este fenômeno de teratologia política chamado bolsonarismo. Outros fatores entraram em jogo, que não posso aqui detalhar.


CS e FG: Ainda sobre o Brasil, as Jornadas de Junho de 2013 foram um dos acontecimentos políticos mais relevantes das últimas décadas. Muitas pautas difusas foram levantadas durante aquele movimento que se iniciou espontaneamente, e que derivou na ascensão da chamada “Nova Direita”. Na sua visão, faltou às forças políticas de esquerda uma estratégia que estivesse à altura daqueles acontecimentos? ML: Volto a assinalar que em 2013 eu estava em Paris... Mas sim, sem dúvida faltou ao PT uma compreensão do potencial de contestação que representavam as primeiras mobilizações, as Jornadas de Junho. Alguns dirigentes do PT achavam que tudo isso era uma conspiração imperialista contra o governo petista, devido a sua política externa... Entretanto, essa cegueira do PT não é suficiente para explicar como, rapidamente, a direita e a extrema direita conseguiram hegemonizar o protesto e canalizá-lo na luta contra o governo Dilma, facilitando assim o golpe “parlamentar” do ano seguinte. De qualquer forma, o que está na ordem do dia agora é a unidade de toda a esquerda contra o neofascismo bolsonarista. No contexto desta luta contra o inimigo comum, será importante reforçar o polo anticapitalista, na esperança de que ele possa se tornar hegemônico. Michael Löwy é filósofo. Caio Souto é professor de Filosofia na UEAP, Mestre e Doutor em Filosofia pela UFSCar. Fernando Gimbo é professor de Filosofia na UFCA, Mestre e Doutorando em Filosofia pela UFSCar.


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