"Corpos que (não) importam" enchem o lago de sangue. E ele está ali com seu jet ski. João Marcelo de O. Cezar
Quando vi ele andando de jet ski, logo pensei que fosse em um lago de sangue! Mas, as perguntas que ficam são: de quem é esse sangue? Quem são essas pessoas que morrem aos montes e por quem nem ao menos podemos ficar de luto? Foi seu pai, leitor e/ou leitora? Foi sua mãe? Sua tia talvez? Avó? Não sei. Mas poderia ter sido, não é? Eu acho que sim. Caso fosse, saiba: ele ainda teria andado de jet ski. Escrevo essas reflexões e angústias no sábado, dia 16 de maio de 2020, diretamente da casa da minha mãe, Célia. Aqui, ela, meu irmão (Samuel) e eu, estamos passando a quarentena juntos, em uma cidade chamada Pirapozinho, interior de São Paulo. É com eles, meus demais familiares e amigas/os, com quem mais me preocupo. O sentimento de medo se mescla com o de absoluta incerteza. Embora me preocupe primeiramente com os meus, seria uma falta extrema de empatia e solidariedade se eu não me preocupasse com o que vem acontecendo ao meu redor. Para ser mais preciso, com muitas das pessoas que vivem no mesmo país que eu. Seria tapar os olhos perante as muitas mortes, ao caos na saúde e a política brasileira. Silenciar frente a determinados acontecimentos é coadunar com eles. Não existe isenção frente às mortes; ou você é contra elas, e assim quer vê-las cessar, ou não se importa. Há pouco tempo, o presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, estava passeando de jet ski em Brasília. Isso, queridas e queridos, poderia ser algo absolutamente comum e normal... se estivesse tudo bem; mas não está. O povo brasileiro está morrendo, e dia após dia batemos recordes de mortes pelo novo coronavírus. Nesse mesmo dia do passeio, que, não contei a vocês, mas foi meu aniversário, o Brasil somava 10.627 mortes. Vejam bem, são mais de 10.000 mortes, e o presidente do
país não prestava condolências e não estava de luto, ele estava passeando de jet ski. Mas era fim de semana! Não é porque ele é presidente que precisa trabalhar integralmente! Não tem que entrar em luto por cada brasileiro morto! Minha resposta para cada uma das afirmações é: 27 de janeiro de 2013. Nessa data ocorreu o incêndio na Boate Kiss, na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul, tragédia que matou 242 pessoas. E, no mesmo dia, a presidenta de então, Dilma Rousseff, que estava em Santiago do Chile participando das atividades da “1ª Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) - União Europeia”, antes de vir imediatamente ao Brasil se juntar às famílias das vítimas e prestar condolências, deu uma entrevista sobre o ocorrido. Enquanto falava, Dilma se emocionava, demonstrando luto, carinho e cuidado para com as famílias e os seus (população brasileira, que até então se comovia com as mortes). Isso é o que eu espero de um presidente. Não uma voltinha de jet ski ou churrasco, como a imprensa havia anunciado, dias antes do passeio, que Bolsonaro faria. E se você não consegue perceber o quanto essa atitude do presidente é problemática, sinto muito por você, pois, no fim é isso que o poder quer, mas... que poder? Calma... ainda vou explicar. Qual o motivo de ele estar passeando de jet ski? Por que ele não estava em luto? Por que ele não estava em seu gabinete trabalhando a fim de buscar uma solução? Estamos morrendo e ele é nosso presidente. Sim, estamos morrendo; mas e eles? Eles estão morrendo? Na mesma quantidade que a gente? Sofrem o mesmo risco que nós? Com “eles” e com “nós”, a quem me refiro? Michel Foucault, filósofo francês que morreu em 1984, é bastante estudado e debatido até hoje. Lendo algumas de suas obras, como Microfísica do Poder, Vigiar e punir e Os Anormais, podemos notar
que o poder perpassa todas as instâncias sociais, políticas, culturais e econômicas. O poder são os saberes, os discursos e os princípios que temos como verdadeiros. Embora o poder não pertença a uma classe e/ou grupo, é através da manutenção da ordem, das normas e princípios vigentes, que determinadas classes e/ou grupos se mantêm privilegiadas e dominantes. Não podemos fingir, ocultar e tapar nossos olhos para a seguinte verdade: existem princípios sociais que afirmam que certas vidas são mais valiosas do que outras, e até mesmo que elas são mais reconhecidas como vidas do que outras. Em Os Anormais Foucault apresenta a ideia de que, historicamente, o poder construiu, através de diversas de suas instituições e técnicas, sujeitos considerados “anormais”, sujeitos tidos como “monstruosos”, que cometiam crimes contra as leis humanas e/ou divinas, e assim, rompiam o pacto social, ao se colocarem contra toda a sociedade. Um exemplo desses eram os homossexuais que, ao saciarem seus desejos individuais, rompiam leis “da própria natureza”, devendo assim ser punidos, corrigidos e vigiados. A ideia do “normal”, “natural”, “correto”, só existe porque o poder cria e propaga o discurso da “anormalidade”. A função da categoria anormal e abjeto é demarcar o normal, o natural, e assim o legitimar socialmente. Exemplo: quando eu era criança e sofria diariamente na escola por ser um menino afeminado e não seguir as normas de gênero, o que estava acontecendo ali era uma reafirmação do anormal e do abjeto, para que todos aqueles tidos como “normais” se mantivessem longe, não demonstrassem semelhanças em relação a mim e continuassem dentro da fronteira para não sofrer como eu. Eu era o exemplo negativo, minha relevância consistia em mostrar pra eles que eles eram corpos importantes e eu não, e que eles deviam se manter ali, como importantes.
Corpos importantes? Sim. Ideia desenvolvida por Judith Butler em várias de suas obras, como Corpos que Importam, Desfazer o Gênero, Vida Precária e Quadros de Guerra. A ideia é que determinados corpos importam mais do que outros e devem ser protegidos em relação a outros. Ao pensar que vivemos em uma sociedade estruturalmente racista, machista, LGBTfóbica e xenofóbica, é essencial entendermos que mulheres, LGBTQI+, negros, pobres, ou sujeitos de etnicidades inferiorizadas, são corpos menos importantes do que outros (masculinos, brancos, cis, ricos...). São corpos, inclusive, que perdem sua humanidade, que deixam de ser considerados vidas. Esses corpos desimportantes e essas vidas que nem chegam a ser consideradas vidas, vêm morrendo o tempo todo. Os índices de feminicídio, de assassinatos de travestis e transexuais, de homofobia, das mortes da população negra, são alarmantes; batem recordes no Brasil. Somos corpos que já vinham morrendo antes mesmo da pandemia, antes mesmo desse novo coronavírus. Corpos que (não) importam para o poder, corpos substituíveis. E em meio a essa pandemia, quem corre mais risco? O rico ou pobre? Sim, o vírus não escolhe quem vai infectar, mas uma coisa é certa, e vem sendo defendida por diversos profissionais da saúde e cientistas: o novo coronavírus tem um risco muito maior para os mais pobres, para os negros, para populações de extrema vulnerabilidade social, como as antes citadas. Muitos que estão expostos ao vírus e não têm a possibilidade do isolamento por terem que trabalhar, não têm as condições financeiras, de saúde ou prevenção adequadas. Quem tem acesso a água? Quem tem acesso a higiene? A alimentação adequada para uma boa resistência? A hospitais bons? A possibilidade do isolamento? As condições nas favelas são as mesmas dos condomínios fechados? Te respondo: não, não são.
Os corpos que não importam morrerão ainda mais. E quem entrará em luto por eles? Butler, em seus trabalhos, também aborda a questão do luto; afirma que algumas mortes não são passíveis de luto, enquanto por outras se entra em luto. O exemplo que ela dá é o quanto a mídia, nacional e internacional, entrou em luto pelas vidas que foram eliminadas no atendado de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos. Elas deveriam ficar enlutadas? Sim. Mas por que ninguém entra em luto pelas mortes diárias causadas pelos atentados contra os palestinos? Crianças, idosos, entre outros... aos montes. Mortes pelas quais não se fica de luto e que não são noticiadas. Vidas desimportantes; como as dos negros mortos nas favelas por policiais ou como as das travestis mortas nas madrugadas brasileiras. Quando um presidente homenageia em seu Twitter um agressor de mulheres, mas não entra em luto em meio às mais de 15.000 mortes que já somamos no dia de hoje; quando uma secretária da cultura fala que estamos “desenterrando mortos” e precisamos ser leves, creio que é possível saber a que tipo de corpos eles dão importância. Como disse no início do texto: nós estamos morrendo. E eles? O sujeito vai à Europa, contrai o vírus, recebe tratamentos em um bom hospital, e se cura; a empregada desse sujeito contrai o vírus dele e morre. Precisamos parar de lutar entre nós. Precisamos parar de expulsar outros a chutes de dentro de ônibus. Pois todos nós, que estamos nos ônibus, somos corpos colocados na desimportância. O poder irá fazer algo por nós? Somos substituíveis. Precisamos nos apoiar. Espero que possamos lutar, juntos e juntas mais essa luta, resistir, viver e, depois de tudo isso, continuar lutando. Pois o poder ainda nos deixará vulneráveis e ainda sim viveremos próximos da morte. Que reivindiquemos um outro lugar, por favor!
João Marcelo de Oliveira Cezar cursa História pela Unesp, em Assis-SP. Foi um dos idealizadores e coordenadores do núcleo UNEafro-Assis. Parte de uma rede de articulação e formação de jovens e adultos moradores de regiões periféricas do Brasil que estão organizados em torno de núcleos que agregam militantes da causa negra, da luta antirracista, da causa das mulheres e da diversidade sexual. Lutam por uma Educação Popular e Libertária, e pela disseminação do protagonismo comunitário. Possui formação complementar em Antropologia, Sociologia e Filosofia pela Universidade Nacional de Cuyo (UNCUYO) Argentina, e desenvolve pesquisas com ênfase em Teoria/Filosofia da História; Gênero/Sexualidade e Teoria Queer. Sua pesquisa atual, fomentada pela FAPESP, e sob orientação de Hélio Rebello Cardoso Júnior, se intitula: “A punição do anormal: uma problematização genealógica das violências cometidas contra os corpos que (não) importam, e caminhos para resistências, através da interface entre Michel Foucault e Judith Butler”.