a morte Andreza Jorge
Entre “cordéis de caixões” e “cemitério nas costas” temos a coletividade como prática colonial. Tenho como minha lembrança de contato com a morte um fato que pra mim sempre pareceu peculiar... Eu perdi meu pai quando tinha 3 anos de idade, mas estaria mentindo se dissesse que esse foi meu primeiro contato consciente com o tema, pois não tenho quase memória sobre esse momento da minha vida, no entanto lembro-me bem de quando tive o que considero ser meu primeiro contato com o tema morte porque me atravessou e ficou marcado na minha mente até hoje, como uma lembrança profunda, que fica lá bem no fundo das nossas memórias e às vezes até se confundem, entre real e não real. Essa lembrança veio à tona de forma intensa e eu diria até mesmo incontrolável, nesses dias em que estamos falando, vendo, ouvindo, lidando com morte diariamente, exaustivamente e escancaradamente de forma global é claro, enquanto moradora há 32 dois anos do Complexo da Maré, conjunto de favelas que no último ano registrou 49 mortes devido à violência armada. Eu sei o que é ouvir e sentir mortes, mais do que algumas pessoas, eu imagino. Mas, essa minha primeira lembrança, como eu disse, considero muito peculiar. Foi no ano de 2000, eu tinha uns 12 anos, morava com minha mãe e meu irmão na Nova Holanda (uma das 16 favelas da Maré) e como minha mãe trabalhava fora de casa, desde o falecimento do meu pai, minha tia veio com sua família (meu tio e minha prima) morar com a gente pra ajudar nos cuidados comigo e com meu irmão e durante a maior parte da minha vida minha avó materna morava com a gente dando todo o suporte que minha mãe precisava e me dando a chance pela
qual eu agradeço todos os dias de ser criada por ela também. Porém no ano de 2000 minha avó, a Vó Tina, não estava morando conosco, ela tinha ido passar um tempo na casa de sua mãe, minha bisavó, que chamávamos de vó Bibi, e que pela idade demandava cuidados, então minha avó Tina foi morar no Parque União (outra favela da Maré) cuidando da Vó Bibi que no ano de 2000, faleceu. Morreu. Dormindo. Em casa. Com 97 anos de idade. Todo mundo da família sabia que a Vó Bibi iria morrer em breve, embora a mesma não tivesse nenhum problema grave de saúde, além das questões de saúde mental comum à idade, que embora seja um problema muito sério nos rendeu e rende até hoje lembranças familiares muito engraçadas. Ela morreu com 97 anos, 97...De onde viemos, como ter chegado a essa idade??!! Era algo mesmo para se ter orgulho e então minha família encarou esse “evento” de uma forma que me confundiu muito e conflitou com tudo que eu já tinha visto na tv ou pensado sobre a morte. Ninguém pareceu desesperado, havia uma tristeza, mas tinha um alívio, um respeito, um carinho pelo momento. E então minha tia Regina que morava comigo e cuidava de mim resolveu ir na casa da Vó Bibi com a gente para dar um último adeus, meus outros tios tiveram a mesma atitude. Fomos na casa da Vó Bibi. E ao chegar lá me deparei com ela deitada. Na caminha dela. Como se estivesse dormindo, mas morta, mortinha. Minha cabeça de 12 anos na hora pirou. Lembro de me sentir inquieta, acelerada, quase todos meus outros priminhos estavam lá. Minha Vó Tina propôs que nós nos despedíssemos do corpo, dando um beijinho na testa. Todos fizeram. Eu também. Mas confesso que esperava outro clima para o momento, choros, medos...E não. Não foi assim, todo mundo deu beijinho na testa e disse “tchau” pra Vó Bibi, depois continuamos a brincar, os
adultos se abraçavam, mas era um clima de carinho e leveza que fez com que o meu primeiro contato com a morte pusesse em xeque todas as minhas pré concepções sobre o morrer e sobre o luto. Tenho conversado com muitos amigos e familiares sobre esse momento que estamos vivendo, isolamento, quarentena, doença e morte. Muita morte. O tempo todo nos noticiários na tv, rolando uma “time line” nas redes sociais, cada hora uma notícia, uma informação da morte de alguém, seja com identidade, seja em números. E o desespero é sempre o mesmo. Medo da morte. Medo de perder alguém ou a própria vida. Ninguém tá aguentando mais falar sobre isso e muitos precisam além de falar, vivenciar a morte de muitas pessoas de forma tão intensa que não há espaço para pensar sobre essas mortes, imagina sobre a morte filosoficamente. Existem muitas maneiras de ler e sentir o mundo, temos o infortúnio de viver opressivamente sob uma ótica universalizante inerente à colonialidade à qual nossos corpos são sistematicamente submetidos e pensar sobre morte a partir de um único formato é um dos reflexos que a visão colonial da existência nos impõe, nos manipulando e nos prendendo em categorias em que nunca coubemos. Foi possivel pra mim ter acesso ao conhecimento e assim entender que não só a morte, mas muitos outros eventos sociais podem ter outros significados e sentidos, a partir de outras leituras de mundo, outras possibilidades de existir. Não vou aqui filosofar sobre a morte em si, nem sobre as colonialidades que nos tornam inexistentes ao determinar qual tipo de visão de mundo decide quem vive e quem deve morrer (fisicamente, epistemologicamente, socialmente, culturalmente), mas ao me lembrar da morte de minha bisavó e de como eu e minha família experienciamos esse momento, sinto uma fissura,
uma rasura na forma conceitual e epistemológica colonial na qual estamos inseridos. Vivemos e experimentamos a morte com rituais alicerçados nas nossas reinvenções possíveis, na manutenção de uma existência de família racializada, pobre, favelada falando sobre o corpo morto de uma mulher atravessada por uma vida de dor e sofrimento (quase que inerentes a este contexto social e aos seus traços identitários): Bença Vó. Toda essa relação entre morte, rasuras e epistemicídio, como bem conceituou a filósofa Sueli Carneiro sobre a morte e invisibilidade de episteme construída por povos que foram (e ainda são vistos/entendidos/tratados) como subalternizados, me levou a pensar sobre outro conceito social instituído e forjado a partir dos parâmetros de visão de mundo eurocêntrico/ colonial: o conceito de coletividade. Ao refletir sobre coletividade, logo de primeira já começo a me sentir “expert” no assunto, afinal de contas como já falei anteriormente, sou favelada de nascimento, venho de família pobre e ainda sou “engajada”e “milituda” desde os 14 anos. Tenho legitimidade para falar de coletividade comprovada no meu lattes (risos), trabalhei a vida toda em organizações sociais, em projetos sociais e na maioria comunitários, sei que pra existir dentro dessa minha biografia é preciso sentir e compreender muito o que é coletividade. Mas a real é que ao longo da vida refleti muito pouco sobre isso. A colonialidade, mesmo calcada na lógica de considerar a individualidade fundamental para o desenvolvimento humano, segregou e definiu quem teria o direito de ser humano e agir de forma individualizada, se preocupando em primeira instância com o próprio bem estar. O primeiro erro que eu cometi ao utilizar e experimentar o conceito de coletividade foi imaginar a
individualidade como o oposto de coletividade, sem questionar que a individualidade nunca foi uma possibilidade para todos os indivíduos. Eu, Andreza Jorge, sempre pensei em coletividade a partir de pressupostos e paradigmas que NUNCA me consideraram dentro deste coletivo, porque nunca nem sequer me consideraram como indivíduo, como ser humano. Sou resultado da experiência coletiva de homens e mulheres que nunca tiveram suas individualidades consideradas como existência, como vida, quem dirá enquanto coletividade. E é justamente por isso que hoje faço essa reflexão totalmente alimentada pelos pensamentos e reflexões de intelectuais que ainda não tiveram a chance de serem vistos como indivíduos e nunca serão considerados nessas lógicas coloniais de coletivo. Eu preciso aprender a pensar sobre o conceito de coletividade a partir de outras fontes, de outras visões de mundo, de outras formas de existência, tentar encontrar aquelas práticas sociais/culturais que me foram tiradas, encontrar ainda que nas rasuras e ressignificações da colonialidade refletidas num “Bença Vó”, para tentar entender algumas das muitas lacunas que por mais que eu seja engajada, “milituda”, ativista, “desconstruidona”, nunca desaparecem Eu comecei esse texto falando de morte e seguirei falando sobre isso porque falar sobre morte é também provocar reflexões sobre vida. Tá desesperador ter que lidar com a morte e infelizmente ao afirmar isso não estou me referindo somente a este momento de pandemia, eu digo que está desesperador, porque quando eu falo de morte eu tô tentando chamar atenção para um tipo de morte específica que está presente na minha vida de maneira tão contundente que me fez durante anos não lembrar da morte doce da minha Vó Bibi como referência para a continuidade
da vida (Sim, há muitas formas de pensar a morte como continuidade da vida), porque é uma morte que está o tempo todo “armada e apontada” especificamente para indivíduos que nunca foram considerados como indivíduos e que por isso a morte mesmo sendo coletiva (em quantidade e em sentido) não gera nada além de ações “coletivas” calcadas no seu próprio extermínio epistemológico. Há caminhos de discutir sobre individualidades e consequentemente sobre coletividades sem fundamentar-se nas epistemologias coloniais. Há outros conceitos filosóficos que nos ensinam que sem um entendimento pleno de que você precisa ser feliz e estar bem impedirá que seus pares também estejam e sejam felizes, porque é justamente o bem estar individual (onde todos são vistos como indivíduos) que produz o bem estar coletivo sem desigualdades. UBUNTU. Já ouviu falar de forma mais aprofundada sobre este conceito? É necessário pensar sobre coletividade a partir de outros olhares, outras visões e avaliar se a coletividade que você vê por aí está realmente disposta a considerar (ou se realmente considera) todos os indivíduos como indivíduos e se respeita a expressão dessas individualidades. Falar sobre morte pra mim continua sendo falar sobre vida, mas sinceramente, sobre qual vida estamos falando? Já parou pra pensar??? Fui atravessada pelo assassinato de mais um jovem negro essas semanas e depois mais outro e depois mais outro, e depois mais outros, todos morreram assassinados. Não foi doce, não foi nem amargo, não senti nenhum gosto porque não consigo engolir. E então o que temos??? Campanhas e post nas redes sociais com a frase “Parem de nos matar”. Não. Não vão parar e é por isso que nem me dou ao trabalho de pedir, principalmente sem refletir para quem estamos pedindo.
E é justamente esse pensar colonial sobre coletividade que nos leva a atitudes como essa, achando que estamos fazendo algo super coletivo, mas na verdade, muitas vezes estamos expondo nosso desejo de “mostrar” nas redes sociais “as pautas” que defendemos, ou o quão “militudo que nós somos” e isso tudo só demonstra o nosso entendimento de individualidade também colonial e muitas vezes leviano e perigoso. Sei bem como é, me senti assim muitas vezes. Mas dessa vez não, dessa vez precisei parar, pensar sobre como eu queria que agíssemos enquanto coletivo, enquanto sociedade, enquanto povo preto, povo favelado, enquanto militudos, enquanto ativistas e a única coisa que vinha a minha mente sem parar foi a morte da minha Bisavó e a forma como ela morreu e estava morta ainda recebendo carinho com 97 anos de idade. E então a frase slogan mudou na minha mente e se tornou: Para de se matar! A gente enquanto povo preto favelado precisa exercitar essa nossa individualidade a partir de outros referenciais, é urgente. Eu preciso parar de sentir culpa e parar de sentir que falhei quando não consigo cuidar de tudo, eu preciso parar de sentir culpa por achar que não sou boa o suficiente para receber amor e gentileza de alguém, eu preciso parar de achar que tenho que ficar provando mil vezes que mereço meu trabalho, eu preciso parar de achar que se eu não fizer tudo muito certinho em favor da minha saúde física e mental eu vou estar fracassando, eu preciso parar de achar que se eu não conseguir ser a militante perfeita coerente e assertiva eu estarei colocando tudo que construí a perder, eu preciso parar de pensar que é culpa minha e que não fui gentil o suficiente com o atendente de loja ou com o médico que me tratou mal, eu preciso parar de sentir culpa em fazer algo que me faz bem e então voltar minha atenção e
investimento para o que me faz sentir forte o suficiente para buscar e construir autonomia com meus pares, disseminando estratégias concretas e efetivas para que esse extermínio da população negra não seja mais admissível e consentido socialmente e pra isso acontecer eu preciso estar bem, saudável, criativa,feliz, alimentada e só assim estarei criando condições reais para oferecer o mesmo para os meus pares. Estamos vivenciando a morte mais uma vez de forma muito desigual, vista como coletiva sob a ótica colonial, dividindo entre os que são considerados indivíduos e os que não são, por conta desse momento de pandemia mundial, mas a gente precisa aprender a se cuidar individualmente, com outros parâmetros de individualidade, para que esse cuidado se reflita coletivamente e possamos imaginar uma sociedade sem ou pelo menos sem tantas assimetrias sociais. É uma responsabilidade nossa. E aí eu pergunto: O que você, que é desconsiderado enquanto indivíduo nesse sistema colonial, tá fazendo para se proteger? Vamos entre nós conversar sobre isso? Fazer algo em relação a isso? Inspirar as pessoas próximas da gente para os cuidados a partir dessa reflexão? Eu tô tentando porque quero talvez um dia ter uma morte como a da Vó Bibi, aos 97 anos recebendo beijinho na testa. Preciso todos os dias fazer essa campanha: Andreza pare de se matar! Andreza Jorge, cria do Complexo da Maré, mãe da Alice Odara, é também licenciada em Dança pela UFRJ, Mestre em Relações Etnico-Raciais pelo CEFET-RJ, Doutoranda em Artes da Cena pela ECO/ UFRJ, docente do departamento de artes corporais da UFRJ, coordenadora da Casa das Mulheres da Maré e uma das idealizadoras do Mulheres ao Vento.