Pandemia Crítica 085 - A comunidade dos abandonados: uma resposta para Agamben e Nancy

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A comunidade dos abandonados: uma resposta para Agamben e Nancy Divya Dwivedi e Shaj Mohan

Tradução Paula Chieffi e Wanderley M. dos Santos


Há muito que a Índia está repleta de povos “excepcionais”, o que torna sem sentido a noção de “estado de exceção” ou sua abrangência. Os Brahmins são excepcionais, pois só eles podem comandar os rituais que regem a ordem social e não podem ser tocados (muito menos desejados) pelas pessoas das castas inferiores, por medo da poluição ritualística. Nos tempos modernos isso envolve, em alguns casos, banheiros públicos separados para eles. Os Dalits, pessoas pertencentes às castas mais baixas, também não podem ser tocados nem desejados pelas castas superiores, pois são considerados os mais “poluidores”. Como se vê, a exceção dos Brahmins é diferente da exclusão dos Dalits. Uma das castas Dalit chamada “Pariah” foi transformada em um “paradigma” por Arendt, o que infelizmente deu visibilidade à realidade de seu sofrimento. Em 1896, quando a peste bubônica entrou em Bombaim, a administração colonial britânica tentou combater a propagação da doença utilizando a Lei das Doenças Epidemiológicas de 1897. Contudo, as barreiras de castas, incluindo a exigência das castas superiores de terem hospitais separados assim como sua recusa em receber assistência médica de pessoas de castas inferiores que compõem as equipes médicas, somaram-se às causas da morte de mais de dez milhões de pessoas na Índia. A propagação do coronavírus [1], que já infectou quase 200.000 pessoas segundo os números oficiais [atualizados], revela o que hoje nos perguntamos sobre nós mesmos - vale nos pouparmos, e a que custo? Por um lado, estão as teorias da conspiração que evocam as “armas biológicas” e um projeto global para reduzir a migração. Por outro, há mal-entendidos problemáticos, incluindo a crença de que a COVID-19 é propagada pela “cerveja corona”, além dos comentários racistas sobre o povo chinês. Mas uma preocupação ainda


maior é que, nesta conjuntura e conjunção entre a morte de deus e o nascimento de um deus mecânico, persiste uma crise sobre o “valor” do homem. Isso é visível nas respostas às crises climáticas, à “exuberância” tecnológica e ao coronavírus. Outrora, o homem ganhara seu valor através de várias teo-tecnologias. Por exemplo, podiase imaginar que o criador e a criatura eram as determinações de algo anterior, digamos o “ser”, onde o primeiro era infinito e o segundo finito. Em tal divisão é possível pensar em deus como o homem infinito e no homem como o deus finito. Em nome do homem infinito, os deuses finitos atribuiram fins a si mesmos. Hoje, confiamos à máquina a determinação dos fins para que o seu domínio possa ser chamado de tecno-teologia. É nesta conjuntura peculiar que se deve considerar a recente observação de Giorgio Agamben de que as medidas de contenção contra a COVID-19 estão sendo utilizadas como uma “exceção” para permitir uma expansão extraordinária dos poderes governamentais de imposição de restrições extraordinárias às nossas liberdades. Ou seja, as medidas tomadas com um atraso considerável pela maioria dos países para evitar a propagação de um vírus que pode potencialmente matar ao menos 1% da população humana, poderiam significar o nível seguinte da implementação da “exceção”. Agamben pede-nos para escolher entre “a exceção” e a regra, enquanto a sua preocupação é com a regularização da exceção[2]. Desde então, JeanLuc Nancy respondeu a esta objeção observando que hoje em dia só existem exceções, ou seja, tudo o que uma vez consideramos como regra está estilhaçado[3]. Deleuze se refere em seu último texto àquilo que se destaca ao fim de todos os jogos entre regularidades e exceções como “uma vida”[4], ou seja, uma pessoa é tomada pela responsabilidade ao ser confrontada com


uma vida individual frente à morte. Morte e responsabilidade andam juntas. Então vamos atentar para a não-excepcionalidade das exceções. Até o final do século XIX, as gestantes internadas em hospitais tendiam a morrer em grande número após o parto devido à febre puerperal ou a infecções pós-parto. Em certo momento, um médico austríaco chamado Ignaz Semmelweis percebeu que isso acontecia devido às mãos dos profissionais que levavam patógenos de uma autópsia para a próxima paciente, ou do útero de uma mulher para a próxima, causando infecções e morte. A solução proposta por Semmelweis era lavar as mãos após cada contato. Por causa disso ele foi tratado como uma exceção e banido pela comunidade médica. Ele morreu de septicemia em um manicômio, provavelmente em decorrência dos espancamentos realizados pelos guardas. De fato, há intermináveis sentidos para exceções. No caso de Semmelweis, a própria técnica para combater a infecção foi a exceção. Na Política, Aristóteles discutiu o caso do homem excepcional, por exemplo aquele que poderia cantar melhor que o coral, e que seria ostracizado por ser um deus entre os homens. Não existe um único paradigma para a exceção. O caminho de uma patologia microbiana é diferente do caminho de outra. Por exemplo, os estafilococos vivem dentro do corpo humano sem causar dificuldades, embora desencadeiem infecções quando a resposta do nosso sistema imunológico é “excessiva”. No extremo das relações não patológicas, os cloroplastos nas células vegetais e as mitocôndrias nas células do nosso corpo são coabitações antigas e bem estabelecidas entre diferentes espécies. Acima de tudo, vírus e bactérias não “pretendem” matar seu hospedeiro, pois nem sempre é do seu “interesse”[5] destruir aquilo sem o qual não poderiam sobreviver. No longo prazo - milhões de anos no tempo da natureza “todos a conviver uns com os outros”,


ou, pelo menos, a obter equilíbrio entre si por períodos longos. Este é o sentido biológico da temporalidade da natureza. Nos últimos anos, devido em parte às práticas agrícolas, os micro-organismos que viviam separados se uniram e começaram a trocar material genético, às vezes apenas fragmentos de DNA e RNA. Quando esses organismos “saltam” para o ser humano, às vezes começam os desastres para nós. Nosso sistema imunológico acha chocante esses novos participantes e depois tende a exagerar seus próprios recursos, desenvolvendo inflamações e febres que, muitas vezes, nos matam juntamente com os micro-organismos. Etimologicamente “vírus”[6] se relaciona a veneno. É veneno no sentido de que quando um novo vírus conseguir entrar em acordo com animais humanos, nós já estaremos longe. Ou seja, tudo pode ser pensado no modelo “phármakon” (tanto o veneno como a cura) se considerarmos o tempo da natureza. Entretanto, a distinção entre medicina e veneno, na maioria das vezes, diz respeito ao tempo dos seres humanos, o animal infamiliar. O que é chamado de “biopolítica” tem por pressuposto a temporalidade da natureza, negligenciando, assim, o que é desastre do ponto de vista do nosso interesse - nossa responsabilidade - por “uma vida”, ou seja, a vida de todos que correm o risco de morrer ao contrair o vírus. Aqui reside o cerne do problema: fomos capazes de determinar os “interesses” do nosso sistema imunológico, constituindo exceções na natureza, inclusive através do método Semmelweis de lavagem de mãos e vacinações. Nosso tipo de animal não tem épocas biológicas à sua disposição para aperfeiçoar cada intervenção. Assim, nós também, como a natureza, cometemos erros de codificação e mutações na natureza, respondendo da melhor forma possível a todas e (a) cada uma das nossas exigências. Como observou Nancy, o homem como este


criador de exceções técnicas, que é infamiliar para si mesmo, foi pensado desde muito cedo por Sófocles, em sua ode ao homem. De maneira correspondente, ao contrário do tempo da natureza, o homem está preocupado com este momento, que deve ser levado ao momento seguinte com a sensação de que nós somos os abandonados: aqueles que são condenados a perguntar pelo “por que” do seu ser, mas sem ter os meios para fazê-lo. Ou, como Nancy o qualificou em uma correspondência pessoal, “abandonados por nada”. O poder deste “abandono” é diferente dos abandonos constituídos pela ausência de coisas particulares de uns em relação aos outros. Este abandono exige, tal como descobrimos com Deleuze, que atentemos para cada vida como preciosa, sabendo ao mesmo tempo que nas comunidades dos abandonados é possível experimentar o apelo da vida individual abandonada, à qual só nós podemos responder. Em outro texto, chamamos a experiência deste apelo do abandonado e à possível emergência da sua comunidade a partir da metafísica e da hiperfísica, de “anástasis”.[7] [1] Coincidentemente, o nome do vírus ‘corona’ significa ‘coroa’, a metonímia da soberania. [2] Que, claro, tem sido percebido como uma não escolha pela maioria dos governos desde 2001, com o objetivo de securitizar todas as relações sociais em nome do combate ao terrorismo. A tendência notável nestes casos é que a securitização do Estado é proporcional à corporativização de quase todas as funções do Estado. [3] Ver Jean-Luc Nancy, L’Intrus. Paris: Galilée, 2000. [4] Ver Gilles Deleuze, “L’immanence: une vie”, in Philosophie 47 (1995). [Gilles Deleuze, “A imanência: uma vida”, in Dois regimes de loucos, David Lapoujade (org), trad. Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2016.


[5] É ridículo atribuir um interesse a um microorganismo, e os esclarecimentos poderiam ocupar muito mais espaço do que esta nota permite. Ao mesmo tempo, hoje é impossível determinar o “interesse do homem”. [6] Devemos observar que o “vírus” existe na linha crítica entre (o) vivo e (o) não-vivo. [7] Em Shaj Mohan e Divya Dwivedi, “Gandhi e Filosofia”, in Theological Anti-Politics, prefácio de Jean-Luc Nancy. Londres: Bloomsbury Academic, 2019.

Anástasis pode ser traduzido por ressurreição Publicado pelo site “Antinomie” (https:// antinomie.it/), em 08/03/2020 Divya Dwivedi e Shaj Mohan são filósofos e residem no subcontinente indiano.


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