Pandemia Crítica 087 - O trem que não partiu

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o trem que não partiu Henry Burnett


Uma das consequências da Pandemia que o mundo inteiro enfrenta é a disseminação das chamadas lives, que começaram tímidas, com músicos munidos apenas de seus celulares transmitindo shows caseiros de modo quase precário, depois foi ganhando corpo e se profissionalizando com a entrada de instituições de peso, e logo grandes corporações industriais foram levando as transmissões para outro patamar, hiperprofissional. A maioria pode ser vista ao vivo e depois revista, pois ficam arquivadas nos portais de transmissão. Há shows para todos os gostos. Como os espectadores já devem ter notado, algumas foram gravadas, logo não são ao vivo, a rigor não são lives. Geralmente estas previamente editadas estão mais bem cuidadas tecnicamente, reunindo músicos e cantores que estão confinados e, graças ao trabalho de edição, tudo soa em perfeita sincronia, postados com apuro de som e imagem. Entre as dezenas de lives disponíveis, uma ganhou um sentido que parece extrapolar a propaganda corporativa ou, pelo menos, sendo também corporativa, conseguiu ir além. Trata-se do vídeo “Osesp apresenta: ‘O Trenzinho do Caipira’, de Heitor Villa-Lobos” (disponível aqui: https:// youtu.be/KTKVgaY56NI). Faz parte daquelas que foram pré-gravadas, afinal estamos falando de uma orquestra e seria impossível o registro não fossem as possibilidades de edição, a cargo de Fábio Furtado. O diretor artístico da OSESP, Arthur Nestrovski, revelou em uma live no canal Arte 1 que o áudio que se ouve é pré-gravado, pertence a um registro anterior, e que os músicos dublam a si mesmos no vídeo. Isso garantiu, certamente, a excelência do áudio que ouvimos. As primeiras tomadas aéreas mostram o entorno da Sala São Paulo, alternam imagens de uma Estação da Luz quase abandonada, e logo as cadeiras da


plateia da sala surgem assustadoramente vazias. Uma tomada aberta do palco finaliza a introdução com um blackout de pouco mais de um segundo – uma cena importante para o conjunto do vídeo, como veremos. Neste momento somos tomados por um primeiro lance de tristeza, uma escuridão que guarda uma sinonimia com nossos dias obtusos; mas a sensação dura pouco. Logo as primeiras maracas soam, seguidas por um reco-reco de bambu, um pandeiro artesanal e as primeiras madeiras. O trem de Villa-Lobos inicia então sua viagem, que dura incríveis pouco mais de 5 minutos, o tempo de algumas canções. Brevíssimo para quem está acostumado com a forma sinfônica. A música famosa, na verdade um movimento de uma obra maior, foi popularizada sobretudo depois da gravação de Edu Lobo, já com a letra de Ferreira Gullar. Chama-se Bachiana nº 2. É o 4º movimento das Bachianas brasileiras, nomeada “O trenzinho do caipira”. Gullar contou a história sobre a origem do poema, parte do conhecido escrito de exílio “Poema sujo”, em um texto para a Folha de 2009 (disponível aqui: https://www1. folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0612200923.htm). A Osesp optou pelo registro original, sem letra, com regência de Thierry Fischer, cujos movimentos emotivos na fria regência remota chamam atenção pela leveza e emotividade. Se o poema de Gullar evoca uma memória de infância, o registro orquestral nos lança para dentro de outra esfera, e emociona, ao mesmo tempo que dá o que pensar, sobretudo pelo que a peça de Villa-Lobos significa para o Brasil quando ouvida hoje, em meio à catástrofe. O tema se inscreve no ambiente modernista brasileiro, sobretudo em torno do paradigma de 1922, embora as Bachianas tenham sido compostas a partir de 1930. Villa, no entanto, nunca


levou adiante um programa duro de ruptura, e as Bachianas são uma boa mostra do trânsito entre os universos erudito e popular, que fariam dele uma influência que atravessaria obras que vão de Tom Jobim a Egberto Gismonti, cujo arranjo do mesmo movimento, registrado num álbum inteiramente dedicado a Villa-Lobos, é antológico (Trem caipira, 1985, EMI-Odeon). Os músicos, que entram em cena gradativamente na mesma ordem do fluxo da partitura, agregam uma esperança de união e soma de forças que pode levar os mais suscetíveis às lágrimas. Pensar que esta peça sugeria uma modernização calcada em nosso imaginário primitivo, que o trem não deveria massacrar o homem simples, que Villa-Lobos acreditava que modernidade e simplicidade seriam nossa contribuição máxima, soam hoje, menos de 100 anos depois, como a descrição de outro país, que em nada lembra o que estamos vendo. Houve um apagamento de tudo o que esse trem do caipira significava simbolicamente. Talvez seja isso que sentimos quando assistimos o vídeo, um misto de assombro e melancolia diante da imensa distância que nos separa daquele país afirmativo e sonhador, tal como o compositor o imaginava. Já nem é preciso pensar nas tensões, na ligação do programa musical de Villa-Lobos com o Estado Novo, nada dessas discussões teóricas importa aqui. Só a música faz sentido agora, e precisamos dela como nunca. Até mesmo a ideia de modernização parece agora um embuste nacional sobre o qual é desnecessário pensar, pois nos resignamos com nossa disparidade social terceiro-mundista. Quando Theodor Adorno, no prefácio ao livro Filosofia da nova música, de 1947, precisa defendê-lo de acusações, ou seja, precisa explicar porque escrever sobre música, e não sobre as vítimas dos campos de


concentração, é assim que ele o faz: “Parece realmente cínico que, depois do que ocorreu na Europa e o que ainda ameaça ocorrer, dedique tempo e energia intelectual a decifrar os problemas esotéricos da moderna técnica de composição” (p. 10-11 da edição brasileira, ed. Perspectiva, 2002, 3ª ed.). Ao que ele próprio responde: “Trata-se apenas de música. Como poderá estar constituído um mundo em que até os problemas do contraponto são testemunhos de conflitos inconciliáveis?” (p. 11). É exatamente o que “O trenzinho do caipira” da Osesp produz hoje quando nos deixamos trespassar por ele. A música, que poderia nos ajudar a dissimular a dor, a morte, as perdas, nos fazer evadir e fugir momentaneamente da realidade avassaladora, acaba por nos lançar para dentro dela com percepção aguçada. A música de VillaLobos não redime, antes nos ajudar a descortinar o último véu. O que Adorno escreveu no começo da década de 1950, ainda à sombra da catástrofe da guerra, nos serve como atualidade e prognóstico, porque estamos diante do mesmo perigo totalitário contra o qual sua obra se colocou corajosamente. Novamente, o fascismo retorna em manifestações sombrias, irracionais e obscuras, levadas à rua pelas hordas bolsonaristas sob o riso sarcástico do líder. Estamos no lugar do atraso, da violência bruta, do medo, da irrevogável implosão de todo e qualquer resto de caipirice gentil, designação que ultrapassa os limites culturais dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e sobretudo Minas Gerais. O trem que sobrevive, o trem vencedor, o mais moderno que conseguimos produzir, é o que transporta minério de ferro 24 horas por dia. O caipira está literalmente soterrado sob toneladas de lama. Adorno respondeu aos ataques assim: “(...) talvez este começo excêntrico lance alguma luz


sobre uma situação cujas conhecidas manifestações somente servem para mascará-la e cujo protesto só adquire voz quando a conivência oficial e pública assume uma simples atitude de não-participação” (p. 11). Sua resposta se junta a um dado muito nosso. Haverá um Brasil e um mundo do antes e um do depois da Covid-19. Isso não significa que podemos fazer prognósticos alvissareiros sobre a conduta humana. Todavia, no nosso caso, o vírus é um símbolo tardio, ou uma conflagração de algo anterior. Como explicar isso sem causar confusão e desrespeito às vítimas reais? A Pandemia integrou-se ao nosso tirano da vez com adequação total. Foi como se a morte ostensiva fosse o único caminho para que grande parte dos brasileiros notasse que estamos sob o jugo do terror desde antes da posse de Jair Bolsonaro. A gentileza já tinha ido pras cucuias bem antes do primeiro infectado, e com ela o resto de nossa civilidade. Por isso hoje não separamos nossa miséria política de nossa desgraça humana, elas se complementam. A morte, desde o início do governo, não era um mote? A mão em forma de arma, afinal, não foi o símbolo da campanha vitoriosa? Não vimos muitos dos nossos amigos e parentes reproduzindo o gesto com sorrisos natalinos no rosto? O Brasil elegeu um governo que pregava a morte, tudo que estamos experimentando como sociedade se resume a isso. Quando se sai do Brasil para a Europa, não raro a primeira coisa que chama a atenção são os trens. Eles são, quase sempre, o sinônimo da modernização que tanto ansiávamos. Andar de trem é ser moderno para a maioria dos brasileiros que podem conhecer a Europa. Logo, como não admitir que o nosso trenzinho do caipira estagnou antes de se modernizar? Que essa ideia de uma modernização inescapável que a Era Vargas sugeria a Villa hoje não passa de um escárnio. Mas como negar que isso


está anunciado há décadas sem que nos déssemos conta? Nosso fracasso é congênito, é só o que parece ser possível admitir dentro de nossa vergonha coletiva. Mas então clicamos novamente no link para assistir ainda uma vez ao espetáculo magistral da Osesp. O arranjo, as pessoas, e a música acima de todos, têm a capacidade de nos colocar em sobressalto. Será que o passeio imagético que fazemos ouvindo “O trenzinho do caipira”, um passeio para dentro do Brasil, precisa ser resguardado de alguma forma dentro de nossos pensamentos amargos? A força plástica da peça é tão grande que é impossível não ver o percurso da viagem ou deixar de pensar nele. Egberto Gismonti chegou a colocar sons de aboios de vaqueiros em seu registro, sinos no pescoço do gado são ouvidos, transgredindo a partitura, duvidando talvez, e não sem razão, da capacidade dos ouvintes em formar as imagens através da música. O recurso ajuda a perceber um detalhe: o trem de Villa-Lobos, o trem da nossa promessa de modernidade, não viaja nas metrópoles, nem sequer se dirige a elas. Ele já era um trem de passeio, um trem turístico, como os que restaram sucateados e se tornaram diversão de domingo, um trem animado por palhaços para a alegria das famílias de classe média. O trem do projeto modernista já era um trem ultrapassado, e o governo que lhe espelhava um primeiro passo, quase tímido se comparado ao atual, de nossa violência; basta ler Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, o “processo” contra o escritor também é fruto do Estado Novo. O trenzinho do caipira sobe a serra com dificuldade, a orquestra desacelera quase ao ponto de parar, o avanço é lento, cadenciado, em rubato, mas é justamente nesse trecho que ouvimos o Brasil, seus silêncios, suas


aves, seu ritmo dissoluto. Um país impossível de ser ouvido hoje. Ao aproximar-se da estação final as máquinas são desligadas, o comboio se contrai e uma última nota é executada num ataque seco, estranho, deixando uma impressão de não pertencimento. Imediatamente depois a mesma Sala São Paulo acende suas luzes, invertendo a ordem das coisas. Será que a luz que ilumina gradativamente o palco na última cena antes dos créditos quer nos dizer isso? A música é a luz avessa à escuridão? Haverá luz no fim? Henry Burnett é compositor e professor livredocente da EFLCH/UNIFESP


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