Pandemia Crítica 088 - Revolta e suicídio na necropolítica atual

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revolta e suicídio na necropolítica atual Para transformar o momento suicidário em momento revoltoso Camila Jourdan


Punhos cerrados pra não serrar o pulso, nego Eu distribuo um instinto coletivo, avulso no espaço 1 Djonga

Todos os dias somos confrontados com um número gigantesco de mortes diretas e indiretas. Não só com a morte, mas com a indignidade diante dela. O ser humano é o único animal que sabe que morrerá inevitavelmente. Diante da finitude, nossa existência ganha uma dimensão muito própria que consiste em precisar dar sentido à vida, o que em grande medida se realiza por significar a morte. Saber que se vai morrer nos levou a ritualizar o falecimento, dotá-lo de uma sacralidade, em todas as culturas, os ritos fúnebres, o destino dados aos corpos, a maneira como se constitui a memória e a passagem daqueles que nos deixam possui uma importância fundamental na compreensão do próprio valor dado à vida. Um dos aspectos mais terríveis da atual política de morte consiste na maneira como as pessoas estão morrendo: sem atendimento; sozinhas; em agonia; sem poderem ser veladas por aqueles que as amam. Esta indignidade diante da morte, este espetáculo fúnebre de covas coletivas constituem uma banalização do genocídio que só pode ser expressa como uma desvalorização da vida que aponta para condutas suicidárias. Talvez a mais popular expressão recente do que aqui afirmamos seja aquela que naturaliza a tortura, pois, afinal em todos os tempos ela sempre existiu. Quando as mortes são legitimadas, chega-se enfim ao suicídio coletivo, no qual a autodestruição não parece ser nada para aqueles que se preparam para a morte-espetáculo. O 1 Djonga; Filipe RET. Deus e o diabo na terra do sol. Belo Horizonte: Ceia, 2019.


fundamental para estes, como no nazismo, é que não se morra sozinho, mas que se possa levar consigo o máximo possível de pessoas. Camus afirmou de modo contundente: só existe uma questão filosófica relevante e ela diz respeito ao suicídio.2 Segundo o autor, a questão fundamental da filosofia, a única questão verdadeiramente séria, seria saber se vale a pena viver diante da constatação do absurdo, do exílio do mundo, da falta de sentido e da injustiça que se torna a vida nessas condições. E, sem dúvida, o absurdo nos é cotidiano. É preciso saber se existe algo que justifique a continuação da vida assim, pois, se não houver, se nada fizer sentido, poder se matar é apenas mais uma faceta do poder matar ou deixar morrer o outro. Aquele que se mata, se mata ainda para afirmar um valor maior, que ultrapassa a continuação da sua existência. Pelo que vale a pena morrer é o que poderia valorizar, enfim, a vida, dar um sentido a ela, ainda que em um último ato de desespero. É nessa medida que o suicídio aparece como uma dimensão da necropolítica. Se matar como vingança da morte generalizada, diante de um poder soberano que se exerce pela exceção enquanto senhor da vida e da morte, tomar as rédeas do seu próprio morrer e dizer: quem decide pela minha morte sou eu e não o soberano. Assim, pelo autossacrifício, o corpo se transformaria em uma arma que escaparia metaforicamente ao estado de sítio generalizado. As análises finais de Mbembe sobre a política da morte terminam justamente no papel cumprido pelo autossacrifício, enquanto derradeira tentativa de afirmar a potência da vida ainda que diante da morte.3 Quando a vida concreta é já estabelecida como morte, se matar aparece como um tentador 2 CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Tradução: Urbano Tavares Rodrigues e Ana de Freitas. Lisboa, Livros do Brasil. s/d 3 MBEMBE, A. Necropolítica. Tradução Renata Santini. São Paulo: N-1, 2019.


autoengano, pois é próprio ao necropoder borrar as fronteiras entre resistência e sacrifício. Neste ponto, Mbembe segue Bataille e associa o suicídio a uma comédia, gênero literário pelo qual o sujeito mente para si, buscando deslocar-se de si mesmo. Tentar morrer consciente, olhando a própria morte plenamente vivo, identificando-se com a arma que se ergue contra si em sua derradeira escolha, como em uma redenção, ser ao mesmo tempo sujeito e objeto da ação. Quase como em um escape, ao aniquilarse o sujeito encontraria a própria liberdade. Mas por que Bataille afirma que é uma comédia, enquanto ‘arte de se iludir voluntariamente’? Quando uma pessoa engana outra, o enganador é o sujeito e o enganado é o objeto, é preciso que o primeiro saiba que está mentindo e que o segundo, por sua vez, ignore a farsa. Assim, ‘enganar’, em seu sentido cotidiano, supõe necessariamente sujeito e objeto distintos. No processo de autoengano, este sentido é alterado, o sujeito é também o paciente da ação, de tal modo que, se ele é de fato enganado, não resta aí mais nenhum enganador, ou, então, a ação não se completaria. Ao completar-se, ela se torna uma nãoação. E o sujeito torna-se totalmente objeto. Também no suicídio não resta nenhuma consciência, nenhuma subjetividade. Por meio do suicídio a política de morte se completa, não resta mais nenhuma liberdade quando o corpo é finalmente aniquilado. Não há dúvida de que, nesse caso, o sacrifício consiste na espetacular submissão de si à morte, no devir sua própria vítima (sacrifício de si). O autossacrificado procede a fim de tomar posse de sua própria morte e de encará-la firmemente. Esse poder pode derivar da convicção de que a destruição do corpo não afeta a continuidade do ser. O ser é pensado como existindo fora de nós.4 4 Idem, pp. 67-68.


Ao apresentar a política como o trabalho da morte, Mbembe se volta também para a soberania exercida no direito de matar. É necessário a figura de um inimigo interno para que se estabeleça a exceção, para que a morte seja aceitável. Nada melhor do que um vírus para que a velha dicotomia do biopoder se estabeleça a partir da divisão entre os que morrem e os que vivem, em um contexto controlado pelo poder soberano. A população encontra-se hoje tão dividida em categorias que nos são apresentadas duas curvas, a das classes médias e altas e a dos matáveis, aqueles que precisam continuar trabalhando, que precisam ficar horas na fila do banco para receber um auxílio emergencial, aqueles e aquelas que já não contribuem pra previdência, os idosos, os dispensáveis, os que não podem ficar em casa. O mercado fica calmo quando os que morrem são os que devem morrer. Então, se a segunda curva ainda cresce, não precisamos temer que a economia vá quebrar, afinal há uma grande reserva de mão de obra excedente esperando. Sempre haverão aqueles cujas vidas não valem mais do que os salários que ganham, sem os quais morrerão de qualquer modo. Sempre haverão aqueles que aceitarão arriscar suas vidas para a manutenção do capital. Quando se vive sem sentido, se morre também sem sentido. E é neste ponto que o suicídio parece ser uma resposta aceitável ao absurdo. Quando tantos aceitam morrer pelo capitalismo, quando é mesmo naturalizado que sem trabalhar já se está morto de fato, pedir licença do mundo pode aparecer ao menos como uma atitude estética. O modo de vida no qual vivemos diz diariamente pra milhares de pessoas que suas vidas não valem nada, a partir da demarcação entre os que devem morrer para que outros vivam, ele produz e legitima o abandono e a indiferença institucionalizada, espalha tanta morte a ponto de se matar aparecer paradoxalmente como um engajamento consciente na luta contra a naturalização da morte.


E é por tudo isso que é preciso então, mais do que nunca, transformar o suicídio em revolta. Passar da comédia à vivência do trágico enquanto transvaloração do absurdo. Foi ainda Camus quem afirmou: só há uma alternativa possível ao suicídio e ela é a revolta. Afirmar o intolerável, sem aniquilar a própria vida.5 Recusar o absurdo sem renunciar ao mundo. Na revolta, a vida que vale a pena viver também está em questão e muitas vezes inclui ainda um colocar-se em risco de morte. Mas nela o fazemos por um valor imanente à existência, sem renunciar ao mundo, e não por uma transcendência. E só assim é possível haver outro mundo, só assim é possível cuidar das próximas gerações. Não nos resta apenas o suicídio ou a esperança, deve ser possível retirar do absurdo algo que o ultrapasse. A conclusão última do raciocínio absurdo é, na verdade, a rejeição do suicídio e a manutenção desse confronto desesperado entre a interrogação humana e o silêncio do mundo. O suicídio significaria o fim desse confronto, e o raciocínio absurdo considera que ele não pode endossá-lo sem negar suas premissas. Tal conclusão, segundo ele, seria fuga ou liberação. Mas fica claro que, ao mesmo tempo, esse raciocínio admite a vida como único bem necessário porque permite justamente este confronto, sem o qual a aposta absurda não encontraria respaldo.6

Neste trecho, Camus retoma aquele que talvez seja o ponto central de sua Filosofia: a experiência do mundo como estranho ao ser humano, a falta de sentido da vida que a morte atesta tão bem, mas que não se reduz a ela. A experiência do 5 CAMUS, A. O Homem Revoltado. Tradução Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1999. 6 Idem, p.16.


absurdo é ontológica, uma fratura, um abismo entre consciência e objeto da consciência. O mundo não responde positivamente às expectativas, há uma alienação primeira diante da qual nos constituímos mesmo como pessoas. Buscar sentido diante disso, eis a condição humana. O absurdo pode nos esbofetear em qualquer esquina7, em um acontecimento cotidiano que subitamente nos aparece como estranho. Entretanto, certo é que em alguns momentos históricos a vivência do absurdo se torna coletiva, são momentos de guerras; holocausto; pandemias; etc… Momentos nos quais se aceita morrer por nada e a familiaridade aparente do mundo não pode ser sequer concebida. Mas a certeza do absurdo não pode nos conduzir ao suicídio, sem que o próprio absurdo seja negado. Suprimir a vida é mais uma tentativa de suprimir a experiência originária do absurdo, portanto. Daí o desafio de não tentar suprimir o abismo, nem dizer que por causa dele a vida não vale a pena. Ao fazer isso, encontra-se finalmente um valor, um valor que é da própria vida, ainda que absurda. Não um valor maior que a vida, que viesse a justificá-la suprimindo a falta de sentido, mas um valor que se mantém na própria falta de sentido, sendo assim, uma afirmação da vida finalmente recusa sem renunciar ao absurdo. Revoltar-se é uma atitude afirmativa, quem se revolta não tem esperança de que tudo vai passar, mas não se desespera e conclui que então melhor é nem viver. Entre a esperança e o desespero, há a experiência da revolta: uma espécie de manutenção da tensão diante da existência que não é nem niilista nem otimista. Revoltar-se significa ir contra tudo aquilo capaz de deteriorar, rebaixar, ou seja, diminuir a condição humana, seja a miséria, a morte naturalizada ou a mediocridade. Ir contra isso é dizer ‘não’, mas o ‘não’ da 7 CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Tradução: Urbano Tavares Rodrigues e Ana de Freitas. Lisboa, Livros do Brasil. s/d.


revolta é um não que afirma, que recusa por algo que vale mais na própria vida e que é criado pela própria ação de revoltar-se. Não é o sujeito, portanto, quem se revolta, na revolta, o sujeito encontra-se necessariamente coletivizado, para além de seus limites próprios. Talvez por isso Foucault tenha aproximado a revolta tão fortemente da mística. Essa prática pela qual o homem é deslocado, transformado, transtornado até a renúncia da sua própria individualidade, da sua própria posição de sujeito. Não mais ser sujeito como se foi até agora, sujeito em relação a um poder político, mas sujeito de um saber, sujeito de uma experiência, sujeito de uma crença. Para mim, essa possibilidade de se insurgir si mesmo a partir da posição do sujeito que lhe foi fixado por um poder político, um poder religioso, um dogma, uma crença, um hábito, uma estrutura social, é a espiritualidade, isto é, tornar-se outro do que se é, outro do que si mesmo.8

Qual a relação então entre revolta e suicídio? Ambas são possibilidades abertas diante do absurdo da existência. Mas apenas a primeira se mantém fiel à experiência absurda. Camus nos diz: o homem revoltado é aquele que é capaz de se lançar ao “tudo ou nada”, ou seja, corre-se o risco conscientemente de morrer, mas somente porque há ainda na afirmação disjuntiva a possibilidade de um ‘tudo’, um tudo que ultrapassa o si mesmo. Assim como no suicídio, a subjetividade é perdida em um para além de si mesmo, mas não por um autoengano que nos conduz de volta à condição de objeto, senão que no encontro com um nós. O ‘tudo’ do ‘tudo ou nada’ não pode ser uma subjetividade, mas é a constatação dos limites do sujeito em uma 8 FOUCAULT, M. O enigma da revolta. Tradução Lorena Balbino. São Paulo: N-1, 2018, p. 21.


existência já-com-o-outro. O risco de morte na revolta não é a escolha pela aniquilação, senão que a afirmação de um valor que nos ultrapassa, mas não está fora da vida. No momento em que um povo se revolta e diz coletivamente ‘prefiro arriscar morrer à miséria’, há uma afirmação de valores aí que não é totalmente explicada pela miséria. Há na revolta um arriscar não ser si mesmo que a aproxima do sacrifício, sem que, por meio dela, se renuncie ao mundo. É uma recusa ao estatuo do sujeito histórico e também, nessa medida, a revolta se diferencia de um projeto racional de revolução, por exemplo, que se desenrolaria no tempo. E talvez também por isso Furio Jesi tenha caracterizado a revolta como um corte na temporalidade histórica: O que mais distingue a revolta da revolução é uma diversa experiência do tempo. Se, com base no significado das duas palavras, a revolta é um repentino foco insurrecional que pode ser inserido dentro de um desenho estratégico, mas que por si só não implica uma estratégia de longo prazo, e a revolução é, por sua vez, um complexo estratégico de movimentos insurrecionais coordenados e orientados relativamente a longo prazo em direção a objetivos finais, seria possível dizer que a revolta suspende o tempo histórico e instaura repentinamente um tempo em que tudo isso que se realiza vale por si só, independentemente de suas consequências e de suas relações com o complexo de transitoriedade ou de perenidade no qual consiste a história.9

Estabelecer algo com valor em si, dizer o que é intolerável. E, ao dizer o que é intolerável, a miséria, o absurdo, afirmar também o que é 9 JESI, F. Spartakus: Simbologia da Revolta. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. São Paulo: N-1, 2018, p. 63.


necessário, para além do si mesmo atomizado. Isso, que ganha um estatuto de necessidade, o faz precisamente pela força da recusa em questão. É nessa medida que um ‘não’ pode ser afirmativo. Dizer ‘não’ mas sem se retirar do mundo, ainda que arriscando a própria identidade subjetiva por um valor que é tomado como necessariamente coletivo, eis a coletivização da experiência. Transformar o momento suicidário em momento revoltoso, ou seja, em que a morte de todos parasse de ser naturalizada pela coletivização dos suicídios porque nada tem valor nenhum para que na afirmação do valor em si da vida, nenhuma morte se tornasse tolerável desde que a nossa existência nos aparecesse como necessariamente coletiva. Na conduta suicidária, a morte de alguns é legítima porque a morte de todos é naturalizada. Quando a morte de alguns é justificada acaba-se que nenhuma vida tem valor em si. Na revolta, por outro lado, nenhuma morte pode ser aceitável porque o valor da existência é já um ser-com-o-outro necessário, e não algo que esperaria ser justificado externamente para valer. Nada, nem a economia, nem a religião, nem o poder, nem o aparente Deus-dinheiro, nem mesmo a revolução, entendida como objetivo de um processo histórico, pode valer mais do a existência no agora. Se isso ficar claro, podemos ver o que é realmente necessário e o que é dispensável. Camila Jourdan é professora associada do Departamento de Filosofia da UERJ, militante anarquista e autora do livro: 2013 – Memórias e Resistências. Rio de Janeiro: Circuito, 2018.


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