A comunidade das sobreviventes contra a sobrevivência dos heróis Bru Pereira
Sobreviventes indignas Depois de se lançarem numa investigaçãocompanheira sobre o que as mulheres fizeram ao pensamento, Isabelle Stengers e Vinciane Despret terminam seu livro — Women Who Make a Fuss1 — se perguntando como melhor responder às situações que nos solicitam “assegurar que todo mundo mantenha com dignidade o percurso em direção a um futuro que já não tem um futuro” (p.164). O questionamento reativa a tradição feminista especulativa de se perguntar “e se...”: “E se a estabilidade deste percurso exigir esta dignidade triste e antecipada?”. E se a diferença provocada por uma aposta hipotética no comportamento escandaloso e indigno for desconhecida da situação? Não seria essa uma possível dádiva do gênero marcado [feminino] para todos, homens e mulheres, marcados para a zumbificação? Aprender a fazer escândalo, pegar o bastão dos escândalos que outras provocam não é uma proposição dirigida apenas às mulheres, ainda que a dignidade corajosa daqueles que sabem a importância de não se fazer isso pertença às virtudes masculinas. A questão das mulheres que fazem escândalo é dirigida a todas as mulheres e a todos os homens, assim como a questão de um mundo habitável: um mundo um pouco melhor, não o mundo em que o bem, por mais definido que seja, teria triunfado sobre mal. (p. 164-5)
Ao propor o escândalo das mulheres no lugar da submissão digna dos homens, Stengers e Despret não estão afirmando que fazer baderna necessariamente lhes permitirá resistir ao que há de devastador 1 DESPRET, Vinciane; STENGERS, Isabelle. 2014. Women Who Make a Fuss. Minneapolis: Univocal Publishing.
em nosso mundo. Antes elas apostam em que talvez “seria melhor fazer isso do que corajosamente se submeter, com dignidade, ao que é apresentado como inescapável” (p. 165). Nesse ponto elas se lembram de Georgette Thomas, que acusada pelo assassinado da sogra, junto a seu marido, foi condenada, em 1887, à guilhotina e teve de ser carregada pelo executor até o lugar da execução, pois lhe faltava a coragem necessária “que cria a grandeza dos homens que sobem o cadafalso — uma coragem que também torna a posição do executor tolerável” (p.166). Após essa execução, nos contam as autoras, o executor-chefe pediu ao Presidente da República que desse clemência automática a todas as mulheres, o que aconteceu até 19412. As mulheres persistiram — em 1947, Lucienne Fournier, que jogou o marido de uma ponte no Marne, na noite do casamento, teve que ser arrastada da cela para o cadafalso. Ela urinou de medo e gritou: “Eu não fiz nada”. Ela foi a penúltima [a ser executada na guilhotina na França]. As mulheres, decididamente, não mereciam a punição suprema, eram incapazes de “pagar suas dívidas à sociedade”. Que seus exemplos nos dêem força para não nos submetermos com dignidade. (p.166)
Esta é de fato uma poderosa sabedoria: que não nos submetamos com dignidade àquilo que nos elimina. Hoje, enquanto escrevo, o Brasil assumiu a liderança do ranking de número de mortes diárias por Covid-19. Uma estimativa recente projeta que até o final de junho podemos ter de encarar mais de 2 Stengers e Despret comentam: “Élisabeth Ducourneau, guilhotinada em 1941, pensara que seu pedido de clemência fora aceito por Pétain, como era a tradição. Quando eles anunciaram a ela que havia chegado o momento de pagar sua dívida com a sociedade, ela teria respondido: ‘Mas certamente, senhor, eu tenho algum dinheiro guardado com o Escrituário...’ A execução foi muito dolorosa.” (p.166)
80 mil mortes devido a doença. Outras estimativas ditas otimistas apontam que o país pode ter um total de 1 milhão de mortos até passar a pandemia. E é nesse contexto lúgubre, em que o otimismo coabita com a imagem da perda de 1 milhão de vidas, que senti a necessidade de escrever sobre a sobrevivência, escrever sobre o “depois que a pandemia passar”. Mas é uma tentativa de escrever sobre a sobrevivência sem deixá-la ser capturada pelas narrativas que tornam os sobreviventes heróis dignificados; ou ainda, sem deixar a sobrevivência ser dotada da capacidade de conferir àqueles que sobrevivem o status de heróis. É claro que as mulheres que herdaram a clemência por conta do escândalo feito por Georgette Thomas não sobreviveram do mesmo modo que a sobrevivência tende a se constituir para aqueles que vivem uma pandemia. Mas a impossibilidade de imaginar as mulheres que fazem uma baderna escandalosa como heróis — pois heróis são aqueles que se submetem com dignidade, mesmo à morte — é o que é importante para mim aqui: é contra a imagem do sobrevivente heroico que eu escrevo. Pois eu sinto que ela diz pouco sobre como lidar com o fato de que teremos que aprender a constituir uma comunidade de sobreviventes. “Heroísmo é botulismo” Ursula K. Le Guin3 não nos permitiu esquecer da intenção de Virginia Woolf em recriar os significados das palavras inglesas buscando inventar uma nova expressividade. Em suas anotações, diz Le Guin, Woolf propõe definir heroism as botulism, enquanto a hero is a bottle. O jogo sonoro entre botulism e bottle que permite 3 LE GUIN, Ursula K. 1996. “The Carrier Bag Theory of Fiction”. In: The Ecocriticism Reader. Cheryll Glotfelty, Harold Fromm, eds. Londres: The University of Georgia Press.
a sua associação conjunta com o par heroism/ hero é difícil de traduzir ao português, já que a tradução mais convencional de bottle é garrafa, o que a faz perder a proximidade sonora com a palavra em português botulismo. Uma tradução menos convencional para a palavra que talvez permita manter, mesmo que parcialmente, as associações em jogo seria botelha: heroísmo é botulismo e um herói é uma botelha. Contudo, meu intuito aqui não é um exercício de tradução das novas definições de Virginia Woolf. O que me interessa é a expressividade possível que ela inaugura. Sou inspirada pela insistência de Donna Haraway — aprendida com Marilyn Strathern — sobre a importância de pensar quais palavras palavreiam outras palavras, pois “palavras carregam coisas” (p.153). Que fábulas podemos contar quando um herói é uma botelha e o heroísmo não é nada mais nem nada menos que botulismo? Para Ursula K. Le Guin, imaginar que o heroísmo é botulismo lhe permitiu construir o que ela nomeou como uma teoria bolseira da ficção científica. Ela estava tentando reativar a capacidade de contarmos histórias da vida, capacidade que foi contaminada pela toxidade botulínica do heroísmo e suas histórias mortíferas. E ao mesmo tempo, ela tentava dar conta do fato de que as longas e intermináveis histórias heroicas de como “o mamute caiu sobre Boob e como Caim caiu sobre Abel e como a bomba caiu sobre Nagasaki e como a gelatina incendiária4 caiu sobre o vilarejo e como os mísseis irão cair sobre o Império do Mal, e todas as outras paradas na Ascensão do Homem” (p.151) não a faziam se sentir humana. Todas essas histórias eram contadas por humanos tornados demasiado humanos pela sua capacidade de bater, de cutucar, de perfurar, de meter, de penetrar, de empurrar, de matar... 4 Aqui a autora se refere ao napalm, um conjunto de líquidos inflamáveis feito à base de gasolina gelificada.
A teoria bolseira da ficção científica adapta a teoria bolseira da evolução humana de Elizabeth Fisher, que propunha que o primeiro artefato humano tinha sido algum tipo de recipiente que permitiu que as pessoas carregassem coisas como frutas, pequenos animais, objetos que considerassem valiosos e até bebês. Sem algo para carregar, até uma coisa tão sem graça e indefesa como uma aveia, conta Le Guin, escaparia da gente. E os romances, os livros, as histórias são formas de carregar coisas com as palavras: e, às vezes, elas carregam até os heróis. Mas heróis, dentro das histórias, tem o mal hábito de querer tomar posse delas, pois o que é claro é que “o Herói não fica bem dentro deste saco. Ele precisa de um palco ou de um pedestal ou de um pináculo. Você coloca ele dentro de um saco e ele se parece com um coelho, ou com uma batata” (p.153). As bolsas, os sacos, os recipientes feitos com cabaças e até aquelas cuias bastante singelas feitas pelas crianças de folhas curvadas para beberem água na margem dos rios são o antídoto leguiniano contra a lança empunhada pelos heróis, estes sempre guerreiros, que lançadas, progridem inevitavelmente em direção ao futuro, em direção ao seu alvo. O progresso é imaginado como lança, assim como o Tempo, o tempo das histórias botulínicas dos heróis, é uma flecha. As histórias de heróis são sempre triunfantes e, por isso mesmo, são sempre trágicas: o herói persiste apesar da destruição, ele é aquele que sobrevive à destruição. E é exatamente o fato de ter sobrevivido que o constitui como herói e seus atos como heroísmo. Do mesmo modo que o botulismo, o herói é uma figura mortificante.
A irresponsável sobrevivência dos heróis Contar uma história interessante da sobrevivência requer recusar transformar os sobreviventes em heróis, por mais difícil que isso seja, já que estamos há muito acostumadas a celebrar com medalhas penduradas no pescoço os bravos feitos do heroísmo. E às vezes, a medalha do herói é sua congratulação pela evidência de que sua sobrevivência reside em sua superioridade. Durante uma entrevista, quando perguntado sobre se estava preocupado com um possível contágio pelo coranavírus, Bolsonaro respondeu que não, por ele ter um “histórico de atleta”. Essa conjunção um tanto fascista entre corpo atlético e corpo resistente, superior, despreocupado com os riscos, torna a sua sobrevivência uma questão de superioridade. Na reencenação de um argumento bastante próximo do darwinismo social, a sobrevivência se torna uma narrativa sobre o triunfo dos mais fortes. O herói faz parte do seleto grupo dos que têm histórico de atleta. Numa reunião ministerial, Bolsonaro também retornou de outro modo a associação entre sobrevivência e o triunfo dos mais fortes ao comentar sobre a morte de um patrulheiro da polícia rodoviária, dizendo que numa ligação com o Diretor-Chefe dessa instituição descobriu que o falecido tinha “comorbidades”. A comorbidade é o que excluiu esse patrulheiro de ascender ao pódio dos heróis com histórico de atleta, cujos corpos combatem de modo eficaz o perigo do antagonista atual, o vírus-vilão. A noção de comorbidade, associada a um uso ruim do conceito de grupos de risco, opera como um modo de, nas palavras do presidente eleito, diminuir o medo dos que se percebem fora da vulnerabilidade, isto é, que conseguem se imaginar como pertencentes ao exército dos heróis
que sobreviveram. E a própria figura do herói é bastante persuasiva. Essa é uma das metáforas mais utilizadas politicamente ou, pelo menos, é uma das que mais circulam entre as pessoas como forma de atribuir valor. O herói é fundamentalmente aquele que tem um destino e que não se desmobiliza por nada. Ele pode ter dúvidas, ele pode inicialmente recusar a própria jornada, mas o herói, ou o bom herói é aquele que persiste na sua aventura. O herói é um obcecado. E é do tipo de obcecado que requer que os destinos de todos os outros se tornem pontos de apoio para o seu destino. Como disse Le Guin, o herói faz de qualquer história o seu palco, sendo capaz de se apoderar do destino de qualquer um enquanto um meio de expressão do seu próprio. Desse modo, o herói é um grande privatizador de histórias e no ato de fazer tudo convergir em uma narrativa épica, ele se constitui enquanto uma grande máquina de produzir ressonâncias. A constante mobilização que o herói considera ser impossível de romper, afinal de contas o destino dele é o destino de todos, é experimentada por ele e por aqueles que o seguem enquanto a forma mais pura de liberdade e também como desculpa para se furtar à responsabilidade. A tal ponto que qualquer incitação para um exercício de responsabilidade é sentido como restrição de liberdade: “O que esses filha de uma égua quer, ô Weintraub, é a nossa liberdade.” Quando convocado a praticar responsabilidade, a resposta do herói acaba quase sempre sendo de repetir a ladainha do refrão de seu canto épico, que lembra pra todos a necessidade dele continuar na sua missão, seguir no seu destino. Sem interrupções ou desvios. Sem, sob hipótese alguma, hesitar. Porque hesitação é sinal de fraqueza. Seu destino tem que se realizar sem que seja confrontado com as consequências de
sua jornada, sem que tenha que por em prática a responsabilidade. Possivelmente um dos fascínios das histórias de heróis resida exatamente não só na separação entre liberdade e responsabilidade, mas na sua oposição. Talvez, quando um desses caçadores pré-históricos de mamute retornava de sua jornada— escreve Ursula K. Le Guin —, contando como ele matou uma fera gigante enquanto seus companheiros de aventura sucumbiam um a um; todas e todos que permaneceram ali cuidando de bebês, coletando frutas, pescando, fazendo fogueiras, se protegendo do frio, ficavam fascinadas com a possibilidade de exercer uma liberdade desconectada da responsabilidade com o outro e diante de tal fascínio talvez nada tinham a dizer. Afinal de contas, qualquer questionamento sobre a necessidade da aventura diante das vítimas causadas por ela, retornaria na fala do herói como evidência de seu próprio destino: é porque ele sobrevivera a despeito dos demais, que ele sabia que aquele era seu destino se realizando. E esse destino, por sua vez só se realizou, porque ele foi capaz de ser livre, de romper com as amarras impostas pela responsabilidade com o outro. Ou ainda, porque ele tinha um histórico de atleta. Corpos em risco Num texto de 1985, em meio a epidemia de HIV/ AIDS, Isabelle Stengers e Didier Gille5 fazem uma descrição interessante sobre a noção de “grupos de risco” como “batedores avançados” (uma posição no beisebol), “os primeiros a serem atingidos pelo perigo que ameaça a todos, mas também aqueles que podem relatá-lo e alertar os outros sobre ele” (p.236). A recolocação dos grupos de riscos como testemunhas “que nos contam e nos lembram o que 5 STENGERS, Isabelle; GILLE, Didier. 1997. “Body Fluids”. In: Power and Invention. Isabelle Stengers. Minneapolis: University of Minnesota Press.
nós somos [...] seres vivos, correndo riscos de viver” (p.237), veio como uma resposta a atitude de certas pessoas que enquadravam grupos de risco como grupos que nos põem em risco. No contexto atual, na pandemia de COVID-19, a atitude em relação aos grupos de risco é um tanto quanto diferente daquela dispensada aos grupos de risco de infecção com HIV em meados da década de 1980. A composição desses dois grupos certamente tem grande influência nessa diferença. Contudo, acredito que a descrição de Stengers e Gille dos grupos de risco como testemunhas, como aqueles que nos lembram do perigo que nos ameaça a todas, ainda nos ajuda a superar o sentimento de imunidade que parece acometer alguns corpos que, diante da noção de grupo de risco, se sentem protegidos por não pertencerem a ela. Inspirado pelas palavras irresponsáveis de gente-comhistórico-de-atleta, como Bolsonaro, um rebanho de pessoas faz eco à ideia de que o perigo só existe para aqueles que fazem parte dos grupos de risco. Eles recusam a lição transmitida por esses grupos: temos um corpo que corre riscos ao viver. E mais, os grupos de risco ainda nos ensinam que o corpo que temos participa, através de uma rede de fluídos, dos corpos dos outros. A constante produção de fluídos corporais nos conecta e uma pandemia nos revela como vivemos nossas vidas através das vidas dos outros. “Viver a vida através da vida dos outros” é uma das definições de Marshall Sahlins6 sobre o parentesco, sendo que é essa constante conectividade fluídica o que nos torna vulneráveis. Poderíamos, então, pensar que o que os heróiscom-histórico-de-atleta recusam, para além do ensinamento de um corpo que corre risco, é um modo de estar relacionado em redes de parentesco. Eles recusam a “mutualidade do ser”, como diz Sahlins. 6 SAHLINS, Marshall. 2013. What kinship is – and is not. Chicago The University of Chicago Press,
Tornando-se assim uma gente perigosa, pois como nos lembram muitos coletivos ameríndios, pessoas sem parentes podem não ser mesmo pessoas, afinal de contas, gente-sem-parentes são os mortos. Terror anal Os heróis, ao recusarem o reconhecimento da vulnerabilidade da vida que é vivida através dos outros, isto é, a vulnerabilidade própria envolvida nas relações de cuidado, de vizinhança, do trabalho reprodutivo, da intra e interconectividade ecológica, não recusam totalmente a vulnerabilidade, mas a recolocam em outro lugar; digamos, talvez, em suas hemorroidas: “Que os caras querem é a nossa hemorroida! É a nossa liberdade!” — disse Bolsonaro na reunião ministerial. É notável a conjunção feita entre a masculinidade e a liberdade através de uma interdição anal, ou de uma “analização da vulnerabilidade”, isto é, da localização da vulnerabilidade do corpo masculino no ânus. Paul Preciado chamou de “terror anal”7, não o medo de tornar-se um corpo-penetrável, pois o que assusta a cis-hétero-masculinidade não é a penetração, mas o medo da igualdade radical que o ânus pode oferecer enquanto uma nova ficção somatopolítica no lugar das ficções patriarcais da diferença sexual genitalizada. Igualdade radical é o outro nome possível para vulnerabilidade, para essa vulnerabilidade que aprendemos ao entre-viver, e que é insistentemente recusada pelos heróis. No homem heterossexual, o ânus, entendido unicamente como orifício excretor, não é um órgão. É a cicatriz que a castração deixa no corpo. O ânus fechado é o preço que o corpo 7 PRECIADO, Paul. 2009. “Terror Anal”. In: El Deseo Homosexual. Guy Hocquenghem. Espanha: Editorial Melusina.
paga ao regime heterossexual pelo privilégio de sua masculinidade. Tiveram que substituir o dano por uma ideologia de superioridade de modo que só lembram de seu ânus ao defecar: como fantoches se creem melhores, mais importantes, mais fortes… Esqueceram que sua hegemonia se assenta sobre sua castração anal. O ânus castrado é o armário do heterossexual. Com a castração do ânus, surgiu […] o pênis como significante despótico. O falo apareceu como mega-$-pornô-fetiche-acessível da nova Disneyhétero-lândia. (p. 136-7)
Seria tentador imaginar que os portões da Disneyhétero-lândia estariam fechados em respeito às medidas de isolamento social e que a moeda corrente no cis-hétero-patriarcado finalmente caiu em desuso. Mas não. Muitas de nós estamos nos dando conta de que o espaço da casa — há muito negligenciado pelas políticas de retomada da esquerda — tem se tornado um polo de experimento barroco de condensação de diferentes regimes de dominação e de exploração que capturam, sobretudo, corpos femininos, pretos, pobres. Porém, gostaria de me permitir, mesmo que brevemente, um exercício de esperança, ensinada por Jota Mombaça8 como sendo uma arte de des-esperar. Pois não me engano, escrevo em profundo e escandaloso desespero. Talvez agora, se formos capazes de resistir ao heroísmo, e podermos incitar que os heróis — quase sempre muito masculinos — experimentem com a igualdade radical, com o reconhecimento da vida como entre-viver, com a lembrança que o vírus nos traz da permeabilidade e porosidade dos corpos, a intrusão do acontecimento Covid-19 se torna uma possibilidade de imaginar a queda do cishétero-patriarcado e suas violentas imposições de fronteiras: o muro da diferença sexual pode 8 MOMBAÇA, Jota. 2016. “lauren olamina e eu nos portões do fim do mundo”. Caderno Octavia Butler da Oficina de Imaginação Política. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/caderno_oip_6_digital
finalmente ser posto abaixo. Mas não só. Como nos ensina Preciado, “é preciso desejar a liberdade sexual”. Portanto, não basta que o muro caia, as pessoas precisam querer transitar entre lá e cá para, enfim, desaprender a existência de um lá e de um cá. O terror anal enquanto política do medo da igualdade radical dará lugar, então, à contrassexualidade enquanto nova arquitetura do corpo (e talvez da casa). A comunidade das sobreviventes que vem Foi para elaborar o incômodo gerado pela associação da sobrevivência a uma história de heroísmo que comecei a escrever este texto. Como disse, podemos estar caminhando para a morte de 1 milhão de pessoas no Brasil, o que fará de tantas outras, sobreviventes. Imaginar as que sobrevivem como heróis que triunfaram na guerra contra o inimigo viral nos impede de reconhecer uma característica fundamental da sobrevivente: sua solidão. A sobrevivente é, em princípio, solitária. Ela é quem constantemente repete para si mesma a pergunta sobre o por quê ela, e não tantas outras, ter sobrevivido9. Mas pensar a sobrevivência também tem sido uma questão importante para mim já há algum tempo. Nos últimos anos tenho me dedicado a investigar — para parafrasear Stengers e Despret — o que os trans/ feminismos têm feito ao pensamento; e vira-e-mexe reencontro por aí histórias de sobrevivência. Num texto de Jota Mombaça10, pude entrar em contato com uma frase postada por Kerollayne Rodrigues em um relato sobre uma agressão transfóbica que sofreu 9 GLOWCZEWSKI, Barbara. 2015. “Resisting the Disaster: Between Exhaustion and Creation”. Spheres. Disponível em: http://spheresjournal.org/resisting-the-disaster-between-exhaustion-and-creation/ 10 MOMBAÇA, Jota. 2018. “Se não puder ser livre, sê um mistério!”. Revista SELECT, 38. Disponível em: https://www.select.art.br/se-naopuder-ser-livre-se-um-misterio/
por parte de um homem cis. Ali ela dizia: “Porque nascemos para morrer, mas não morremos”. Uma profecia potente, ainda mais quando somos capazes de reconhecer para além do “nascemos para morrer”, a insistência vital no “não morremos”. A sobrevivente trans/feminista sabe reconhecer na vida, no “não morremos”, a dívida inscrita pelo “nascemos para morrer”. Não é sobre, como disseram, carregar um cemitério nas costas, é sobre se reconhecer como testemunha, sobre saber da importância de manter viva a memória dos que não sobreviveram. Mas é igualmente sobre testemunhar o próprio ato de sobrevivência. Sobreviver é antes sobre a vida do que sobre a morte: é sobre a vida de quem sobrevive tanto quanto um testemunho sobre a vida que se perdeu. É isso, me parece, que aprendemos com abigail Campos Leal em “me curo y me armo, estudando”: modos de envivecer11. Aqui reside uma importante diferença entre a sobrevivência do herói e a sobrevivente trans/ feminista. Enquanto o herói não é capaz de testemunhar nada além do seu próprio destino, a sobrevivente trans/feminista tem a possibilidade de lembrar que se ela sobreviveu entre tantas outras, é exatamente por viver entre tantas outras que ela pode sobreviver. Ela tem a chance de superar a solidão da sobrevivência ao se tonar capaz de constituir no seu testemunho uma comunidade de sobreviventes. É claro que a comunidade de sobreviventes pós acontecimento covid-19 terá que se proteger, enquanto se recusa a ser definida em termos de heroísmo, das armadilhas que tentarão converter seu testemunho em somente uma história sobre a letalidade do vírus. Que o vírus tem um poder de adoecer e matar, não questionamos. Contudo, a comunidade que vem também terá que testemunhar sobre o descaso institucional com a saúde 11 CAMPOS LEAL, abigail. 2019. me curo y me armo, estudando. Pandemia Crítica 052, N-1 edições. Disponível em: https://n-1edicoes.org/052
coletiva, a incapacidade de garantir o direito à quarentena para todas, o descuido com a segurança das que vivem o confinamento num espaço de violência, etc. Nenhum herói seria capaz de incluir em suas histórias cheias de movimento e ação e marcadas pela temporalidade linear e irreversível do progresso, a bagunça das temporalidades do cotidiano sob o signo das catástrofes. E testemunhar será preciso, pois a narrativa heroica daqueles que têm histórico de atlética já está em curso: “E… tivemos aí dois caras aí na história recente que pegaram terra arrasada e entraram para a História. Um foi Roosevelt, o outro foi Churchill. O terceiro vai ser o Bolsonaro” – disse desavergonhadamente o atual Ministro de Infraestrutura, quando, na verdade, não são eles quem têm que por os pés no chão e habitar a terra arrasada. No final das contas, os heróis possuem o mal hábito de querer morar nas alturas juntos aos deuses, enquanto na terra, a comunidade de sobreviventes tem de permanecer com o problema que é viver nas ruínas da destruição causada por suas valentes aventuras heroicas.