a história é parecida com isso Os Estados Unidos, o mundo e o capitalismo Paul Mattick Jr.
Tradução Camila Vargas Boldrini e Daniel Lühmann
O texto de Paul Mattick Jr. publicado aqui exprime de maneira condensada o sentimento que habita muitos dos radicais de esquerda norteamericanos diante do atual movimento massivo de contestação que vem ganhando toda a sociedade urbana nos Estados Unidos. É derrisório pensar a situação americana atual no contexto da velha política. Como afirma Paul Mattick Jr., estamos assistindo a um retorno inesperado da História, estamos vivendo um momento extraordinário não previsto, um dos mais intensos desde os anos 1960. Em um vídeo publicado pelo The New York Times que acabou viralizando, vê-se o prefeito democrata de esquerda de Minneapolis de camiseta diante de uma multidão que pede que ele declare estar de acordo com a “supressão da polícia”. Este é apenas um dos aspectos da crise atual, mas que traduz a complexidade e a ambiguidade da situação. Diante de sua recusa, o jovem político deixa o local debaixo de gritos de “Shame on you! Go home!” [Que vergonha! Vá embora!]. Não podia ser diferente. Esse grito que se espalha de Portland a Austin não se dirige tanto à polícia em geral, e sim, com frequência, à polícia das cidades, dos corpos que, em sua maioria, respondem às autoridades locais. É claro, os defensores do establishment traduziram imediatamente esse grito como uma demanda por uma “reforma da polícia”. Eles não podem imaginar um mundo sem policiais. Seja como for, a contestação da repressão de Estado tem ultrapassado a clássica reivindicação pela incriminação desse ou daquele policial criminoso, desse ou daquele “abuso”. O próprio partido democrata fica em maus lençóis com a amplitude do movimento; uma minoria de seu aparato amplamente corrompido se inclina agora à esquerda e dificulta a organização do próximo combate eleitoral de titãs, entre um senil e um psicopata. Suprassumo do jogo democrático moderno a ser assistido ao vivo. Obviamente, pedir o fim
da polícia, mesmo que local – e pensar nisso por um único instante que seja – significa aventar uma outra organização da sociedade. O movimento anda mais rápido do que a consciência daquelas e daqueles que dele participam. É o que caracteriza um movimento radical e espontâneo. Para falar como um cientista político, mudamos de “paradigma”! O texto de Paul Mattick Jr. exprime bem o sentimento daquelas e daqueles que sentem essa virada, que são conscientes de que todo esse fervilhamento social ocorre em circunstâncias históricas particulares, uma profunda crise econômica com seu cortejo de misérias e de revoltas por vir. Ao mesmo tempo em que evitamos alimentar um triunfalismo que pode vir a se tornar paralisante na sequência, devemos reconhecer que o que está acontecendo nos Estados Desunidos é um momento muito importante das revoltas em andamento no mundo. A previsível saída pela culatra será o retorno às ladainhas vazias da velha política e às invectivas do realismo do possível. Mas o movimento está aí, e ele ainda não encontrou seus limites. Tiremos dele a esperança que nos faz viver e lembremo-nos da frase de James Baldwin: “O impossível é o mínimo que se pode exigir”. Algumas breves linhas sobre o autor. Paul Mattick Jr. cresceu no meio de um pequeno grupo de americanos comunistas radicais e antileninistas, do qual também saíram Noam Chomsky, Kenneth Rexroth, Howard Zinn, Zellig Harris e seu pai, Paul Mattick. Foi politicamente ativo no movimento contra a guerra do Vietnã nos anos 1970. Escreve sobre arte, cozinha e sobre a lei do valor, toca flauta transversal e atualmente dirige a seção política Field Notes [Notas de campo] na excelente revista nova-iorquina The Brooklyn Rail – critical perspectives on arts, politics and culture. Charles Reeve
A história é parecida com isso Paul Mattick Jr. Escrevo estas linhas há oito dias do assassinato de George Floyd, em Minneapolis, que desencadeou incessantes – e crescentes – manifestações de cólera Estados Unidos afora e em outros países. Surpreendentemente, várias autoridades municipais e estaduais, e mesmo alguns chefes da polícia, se esforçaram para amenizar esse movimento, que não para de crescer, desaprovando expressamente esse assassinato. Mas a polícia, que em geral é incapaz de aprender com a história, fez, como tantas vezes no passado, o movimento se precipitar com suas respostas brutais. Os policiais acabam tendo escolhas limitadas, pois encarnam o viés doméstico da máxima de Max Weber, segundo a qual o Estado se define por sua pretensão ao monopólio da violência. Os chefes deles, no governo, enfrentam um dilema ainda mais difícil, pois sua legitimidade repousa na combinação entre um suposto respeito a ideias abstratas, como a justiça e a equidade, com o emprego da força para manter a ordem pública. Daí as opções limitadas de respostas, que vão da ameaça de Trump de usar contra os manifestantes os “cães mais cruéis” e sua injunção aos governadores para “dominar” os manifestantes, caso contrário “pareceriam um bando de idiotas”, até o conselho compassivo-liberal de Biden para que a polícia “atirasse na perna, não no coração”. A estratégia de moderação, que leva as mobilizações a se extinguirem por conta própria, ou a estratégia de terror, que consiste em utilizar a violência e as perseguições jurídicas para esmagá-las, têm o mesmo objetivo: voltar à normalidade. No entanto, para começo de conversa, quando tudo teve início estávamos longe de uma situação normal. Ninguém esperava pelo levante desta semana1, ainda que o assassinato de George Floyd não seja 1 O texto foi publicado originalmente em 9 de junho [NE]
uma anomalia. Durante toda a primavera, a COVID-19 foi, naturalmente, o foco das atenções. Há uma semana, o grande assunto que absorvia a atenção das mídias e do governo era o esforço para devolver a economia norte-americana nos eixos, apesar da ameaça que isso significa para a vida e o bem-estar humanos. Mas, por debaixo da superfície, a “velha toupeira” cara a Marx – a saber, as forças de ruptura social que são produto natural do status quo –, escavava seu túnel rumo à luz do dia. Nos anos que se seguiram ao movimento Occupy, a análise esteve focalizada nos interesses que opunham o 1% aos 99%. A desigualdade tornouse não só um “problema” da alçada de sociólogos e economistas, como também uma realidade insuportável vivida pelo exército de trabalhadores a serviço das necessidades dos ricos reurbanizados, sem falar nas milhares de pessoas que trabalham em condições precárias nos hinterland, longe das megalópoles globalizadas norteamericanas. A COVID-19, de uma tacada só, pôs em relevo essa desigualdade mortal e lançou luz sobre a estupidez, a incompetência e a ganância dos dirigentes da sociedade. Ao mesmo tempo, a desativação da economia, destinada a atenuar os efeitos do vírus, mas que vem se transformando numa depressão de proporções gigantescas, mostrou a todos nós que uma sociedade dominada pelas necessidades de acúmulo de capital é incapaz de enfrentar uma verdadeira emergência social. Isso já era evidente para qualquer um que tenha consciência da aceleração do movimento em direção a uma catástrofe climática, ou mesmo para qualquer um que parasse um pouco para contemplar o caráter destrutivo da vida cotidiana normal, feita de estresse, má alimentação, poluição e acidentes industriais. Mas a emergência sanitária se impôs, nos obrigando a agir de acordo. As pessoas descobriram forças das quais talvez não tivessem consciência: centenas de greves de trabalhadores
de diversos setores evidenciaram a recusa destes em aceitar passivamente o desprezo de seu bemestar por parte de seus patrões; pessoas em toda parte dos Estados Unidos se organizaram para ajudar a alimentar suas comunidades. Já se anunciavam discussões – e algumas ações – sobre greves de aluguéis, o que concedeu um viés positivo à incapacidade de pessoas desempregadas pagarem os aluguéis cada vez mais exorbitantes. Nas próximas semanas, é amplamente esperado que proprietários e bancos comecem a fechar o cerco em escala nacional. Será que a polícia vai passar, então, de jogar gás, bater e atirar nos manifestantes que pedem justiça racial à execução do aviso de despejo de dezenas de milhares de pessoas cujo desemprego persistente torna impossível pagar o aluguel ou comprar comida? O que será dos professores, do pessoal da saúde e dos funcionários públicos municipais e estaduais que agora estão sendo demitidos pois os cofres estão vazios, visto que os trilhões recém-cunhados foram gastos para ajudar empresas que já são favorecidas com reduções de impostos? A causa inicial foi a luta contra a supremacia branca, mas o movimento atual nas ruas se expandiu consideravelmente, em sua composição e em suas acusações, em comparação com os levantes análogos do passado. Um amigo que mora em Minneapolis me escreveu para dizer que, em algumas ocasiões, a maioria dos manifestantes é branca. Provavelmente muitos deles entendem que o racismo é um problema pelo qual os brancos devem assumir responsabilidade e entrar em ação, mas também parece que seus próprios descontentamentos vibram em clara afinidade com a raiva de seus concidadãos negros. Ontem, em Nova Iorque, médicos e outros agentes de saúde, que recebem homenagens semanais nas ruas por parte dos agradecidos sobreviventes dessa emergência, aproveitaram a ocasião para manifestar seu apoio àqueles que contestam a
polícia. Trump disse a verdade quando declarou aos governadores: “É um movimento, se vocês não o pararem, ele vai ficar cada vez pior”. Os Estados Unidos entraram para a extensa lista dos países que atualmente vivem rebeliões contra seus dirigentes, do Líbano e da Argélia à Bulgária e à França. Cada lugar é diferente, e em cada lugar os insultos que acabam levando as pessoas à revolta são diversos, mas todas essas diferenças se situam num sistema comum. Ontem, em Paris, 40 mil pessoas motivadas pelas manifestações norte-americanas marcharam em protesto contra a violência da polícia francesa que atinge africanos, árabes e outros imigrantes e pessoas de cor. Mas isso foi a continuidade de uma luta que assumiu inúmeras formas nas últimas décadas, da oposição à degradação da escola pública até o movimento dos coletes amarelos contra a desintegração social no interior da França, passando pela luta para manter as aposentadorias que o governo pretende cortar. Nos Estados Unidos, que têm um território maior e menos centralizado econômica e administrativamente que a França, as conexões entre movimentos díspares podem ser mais difíceis de notar. Contudo, as greves recentes de professores em diferentes estados respondem às mesmas condições subjacentes que as ações de ocupação de moradia em Los Angeles e na Baía de São Francisco – ou que a recusa, nesta semana, dos motoristas de ônibus de Minneapolis e de Nova Iorque em transportar para a delegacia as pessoas detidas pela polícia. A onda atual de protestos pode muito bem arrefecer, graças a uma combinação de repressão armada com alguns gestos de apaziguamento – um ou dois policiais podem até ser presos, ao menos por algum tempo. Haverá tentativas de usar os protestos para suscitar interesse por uma eleição que, por mais que esteja no horizonte próximo, parece preocupar cada vez menos pessoas. Mas,
assim como o colapso econômico provocado pelo coronavírus apenas revelou a profunda debilidade sistemática do capitalismo contemporâneo, o movimento desencadeado pelo assassinato de George Floyd é uma etapa importante em direção à revolta histórica que a atual crise da humanidade exige. Publicado no lundimatin#246, em 9 de junho de 2020