Cara colega de Universidade, Bruna Moraes Battistelli
Ao receber esta carta espero que estejas bem, ou pelo menos aguentando o tempo esse que nos exige uma saúde mental que não sei se ainda temos. O estado de quarentena não tem sido fácil, não sei para ti, mas aqui tenho oscilado entre tempos de sentir demais e tempos de anestesiamento. Encontrar tempo para trabalhar, pensar, escrever não tem sido simples e me assusta a perspectiva de retomada das aulas. Tenho o privilégio de minha companheira compartilhar comigo a mesma situação e, assim, vamos tentando nos apoiar para que esse processo não seja mais complicado do que já é. Imagino que tu também vens pensando sobre a condição das mulheres nesse processo. Trabalhar, cuidar, pensar, arrumar a casa, escrever, publicar, sobreviver, ficar bem, sentir… As exigências que nos colocam sobre fazer “bem” todas essas coisas começam a pesar. A casa não consegue se manter limpa, sempre há louça por lavar e a vida vai seguindo por entre reuniões de trabalho, burocracias, necessidades das crianças e alguns momentos de respiro (quando dá). Acompanhar as notícias é um sofrimento. Enquanto lhe escrevo reverbero a morte de mais uma criança negra no RJ. Mais uma vida que não permitimos seguir vivendo. Preciso te contar que no dia 18 de maio assisti uma live oportunizada pela Comissão Permanente de Combate ao Racismo Institucional em uma Universidade Pública Federal1. Daniela, Marlete, Franciely e Rejane (três mulheres negras e uma mulher indígena) que contavam suas experiências e o impacto do racismo em suas vidas, em sua permanência na instituição. Falavam do quanto era sofrido viver a Universidade e o quanto esta não se importa com suas vidas. Falavam de uma Universidade ainda excludente, mesmo com todos os avanços que tivemos, uma Universidade que facilita o ingresso, mas não consegue garantir permanência nem um acesso epistemológico digno. Uma
Universidade que ainda responsabiliza o que difere em ser responsável pelo seu próprio aprendizado, que reproduz um pensamento que permeia nossa sociedade sobre responsabilizar a vítima por resolver a violência que ela sofre. Imagino tua reação ao me ler! Ao ler as obviedades do que te digo, as coisas que tu vives e conheces tão bem. Escrevo pensando exatamente nisso: em coisas que são óbvias para algumas e alguns de nós, mas que ainda precisam ser repetidas à exaustão. Precisamos pensar nossa implicação com a branquitude. Te escrevo uma carta ancorada em meu corpo, como aprendi com Gloria Anzaldúa1 e no que ele vem sentindo, no que vem sentindo há muito tempo. O risco eminente de mortes (sim, mortes no plural mesmo, pois já não se trata mais do temor da nossa própria morte, mas das mortes de todas/os nós) tem exigido da gente a invenção de uma vida tão frágil e precária e insegura quanto essas palavras que tento aqui ao te escrever. Para algumas/ alguns a morte não é um risco, mas uma certeza: falo da população pobre, negra do nosso país. Como pensar em cuidado quando não conseguimos sustentar isso para a maior parte da população? Como pensar em cuidado quando acirra-se políticas de morte? Como pensar em cuidado e sermos inclusivos nesta discussão? Me chegou há pouco o livro “Lélia Gonzalez: primavera para as rosas negras” (2018)2, uma compilação da obra dessa que foi uma das nossas mais potentes intelectuais brasileiras, um livro necessário para quem intenta pensar o Brasil. Lélia é inspiração desta carta que te escrevo. Uma acompanhante brilhante para tempos 1 Anzaldúa, G., de Marco, É., de Lima Costa, C., & Schmidt, S. P. (2000). Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Estudos feministas, 8(1), 229-236. 2 Referência do livro caso queira saber mais: Gonzalez, L. (2018). Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa--. Diáspora Africana: Editora Filhos da África.
duros. Uma mulher genial que ainda hoje é pouco lida na Universidade que se pretende europeia. Enfim, te escrevo enquanto minha companheira lava a louça e meu enteado brinca com os carrinhos. Te escrevo entre as tarefas doméstica e de cuidado. Escrevo entre as brechas, mas também escrevo para sobreviver. A escrita, para grupos subalternos, como nós duas, é parte de um processo de sobreviver, escrevemos para além do que nos é pedido. Assim, eu sigo com a escrita de cartas, uma aposta arriscada, mas que tem sido muito potente. Uma escrita que me permite indagar os modos de produzir em uma Universidade ocidentalizada, branca, cisheteronormativa. Um espaço que ainda vive o que Lélia chama de “um sonho europeizantemente europeu” e que se pretende igualitário, mas ainda demasiadamente excludente. Uma Universidade racista por omissão, como diria a autora. Ideias de Lélia que estão no livro que citei antes. Tratamos de assuntos importantes, falamos em produzir para a mudança social, mas “esquecemos” de aprofundar nossas discussões, “esquecemos” de racializar nossas práticas e produções, respondendo ainda a uma ideologia de branqueamento que se pauta na ideia de que somos um país com raízes europeias, culturalmente ocidental (novamente Lélia me acompanha). Eu, a “louca das cartas”, vou te dizer para leres Lélia enquanto tu me lembras de Abdias do Nascimento. A gente fala em necropolítica, e esquece que Abdias já falava do genocídio negro brasileiro há mais de quarenta anos. Nossa cultura de “papagaio” do Norte global não permite que olhemos para o que é produzido desde aqui. Tempos duros exigem que olhemos e valorizemos o que é produzido em nossas terras a partir de um pensamento nosso, a partir de memórias e vivências que nos são comuns. Há quem possa me chamar de fundamentalista. É tão difícil para alguns assumir que a tal radicalidade epistemológica existe desde sempre em nossa
Universidade – uma radicalidade naturalizada, em nome de um pensamento colonizador com o requinte francês, sintaxe americana e sotaque alemão. No entanto, é com um pensamento de cumplicidade subversiva que atualmente venho pensando minhas produções, como sugere Rámon Gorsfoguel no texto Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além das esquerdas eurocêntricas rumo a uma esquerda transmoderna descolonial” de 2012. Muitos que me lerão podem dizer que há manifestações antirracistas na Universidade, que se está melhor do que já foi e que pode ser problemático “atacar” a Universidade quando vivemos. Em um momento que a Universidade pública é atacada de forma severa, vão me dizer que não é inteligente produzir um pensamento que a critique. Eu discordo profundamente, e proponho o que muitos já têm proposto com seus corpos e vidas: precisamos mudar para resistir, precisamos ser radicais em nossas mudanças para garantir a sobrevivência da Universidade pública gratuita e de amplo acesso. Estes ataques que ocorrem têm a ver com a ocupação da Universidade por corpos que não são considerados dignos desse espaço: corpos pobres, negros, indígenas, trans (mulheres e homens dissidentes). Corpos que são e vêm sendo colocados/esquecidos em lugares abjetos nesse sonho europeu (estadunidense) em que o Brasil segue acreditando. Precisamos olhar com seriedade o que estamos reproduzindo, um modelo que ainda perpetua a hierarquia epistêmica global: somos sempre cobradas a reproduzir um certo autor, uma certa teoria. Para cada palavra escrita e dita por nós, a necessidade da palavra de um homem (europeu) para endossá-la. Eu, por muito tempo fui capturada por este sistema que sustenta o modelo universitário. Levei anos e anos estudando Deleuze para tentar me adaptar. Se adaptar à norma acadêmica implica em mudar modo de ser, viver, falar, escrever,
pensar. Por que ainda não avançamos nisso? Por que nos apaixonamos por escritas e modos de pensar desapaixonados pela vida? Por que ainda exigimos a adaptação dos corpos a um modelo que nem é nosso? Sigo escorregando e tentando não cair nas armadilhas coloniais que acompanham o ambiente acadêmico. Tu deves estar se perguntando por que ainda insisto no ambiente acadêmico, porque sigo quando ainda hoje me dizem que não sirvo, que não faço produção de conhecimento, que meu trabalho não é intelectual, que não posso ser feliz e ter prazer com o que produzo. Por que insisto? Porque tenho aprendido com outras que vieram antes de mim, mulheres que ocuparam o ambiente e a escrita acadêmica com seus corpos indesejados, com suas escritas indesejadas. Mulheres como Lélia Gonzalez, bell hooks, Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento, Conceição Evaristo, Silvia Cusicanqui, entre tantas outras. Mulheres que ousaram rasgar os ouvidos surdos à suas vozes, abrir à força olhos educados a não enxergar para além da produção de homens brancos europeus. Tu deves estar pensando que essa carta tem um tom diferente de muitas outras que tu já leste. Essa é uma carta indignada: com o tempo que vivemos, com a sensação de ter as mãos amarradas em relação ao que o Brasil vem sofrendo, com a passividade de muitos e com a violência com que tantas/tantos outras/ os são tratadas/os. Assim, essa virou uma cartamanifesto. Escrita da sensação de ser pouco eficiente em combater o privilégio epistêmico que sustenta um certo modo de pensar a Universidade. Por que escrevo isso? Pois sinto que voltaremos as aulas (em modalidade à distância) fingindo que tratamos todas/ todos de forma igual, que todas/os terão condições de seguir estudando, que as/os alunas/os tem que ser gratos por existir a Universidade do jeito que existe. O Brasil é um país de muitos mitos! O que, em nossa constituição e formação, faz com que nos apeguemos com tanta virulência a estes mitos?
Escrevo acompanhada de ti e de tantas outras. Escrevo acompanhada de Lélia Gonzalez que não me deixa titubear. Sou uma mulher branca privilegiada e não basta eu simplesmente anunciar este privilégio. Preciso utilizar todo espaço que tenho para discutir questões como as que te trago nesta carta. Sou uma mulher com um pouco mais de ouvidos que querem me escutar. Preciso ocupar estes espaços de fala e falar de assuntos indigestos, mesmo que, muitas vezes, minha produção seja tratada sob o recorte da militância feminista. Toda pesquisa é militante! Precisamos aceitar isso e entender com que nossas pesquisas estão aliançadas! Tempos difíceis exigem conversas difíceis, exigem tomadas de posição. O que hoje atinge as pessoas classe média/alta e branca (medo do futuro, medo da morte, medo de um governo genocida) vem atingindo com maior violência populações pobres, negras, mulheres e indígenas há muito tempo. Estas não têm folga (nem mesmo na quarentena)! Isso não é de hoje e hoje só piora. O coronavírus não é democrático, quem diz isso, fala do alto de seus privilégios de classe, gênero e raça. Não é ingênuo, é mal intencionado, como tão bem nos diz Sueli Carneiro. O impacto da pandemia, como toda desigualdade econômica e social no Brasil tem raça, tem assinatura como a música “Não tá mais de graça” da maravilhosa Elza Soares. A inércia que estamos vendo quanto ao manejo da pandemia no Brasil é parte de um projeto maior, que está sempre colocando em risco de morte uma parcela da população (negros e pobres). Brancos e classe média/alta que morrem pelo caminho são dano colateral. Lélia é a mulher que me deixa alerta ao meu papel enquanto pesquisadora num tempo como o que estamos vivendo. Lélia é uma intérprete do Brasil, que buscou analisar e interpretar o Brasil em uma perspectiva negra, retirando os sujeitos negros ao centro do pensamento e de nossa formação cultural, e com
suas pesquisas elaborou uma visão alternativa de país, que é negro, ainda que se projete branco/ europeu (pense na projeção como no mecanismo de defesa de Freud). Lélia construiu uma possibilidade nossa de pensar a América Latina. Uma Améfrica Ladina consciente das suas raízes negras e indígenas. Imagina se nossa Universidade Ocidentalizada tivesse se descolonizado a mais tempo? Imagina se pudéssemos pesquisar/pensar/escrever a partir de uma perspectiva amefricana? Um escrever/pesquisar/ pensar aberto às múltiplas epistemologias que compõem nosso Brasil, com as múltiplas línguas que temos em nosso país. Um escrever/pesquisar/ pensar que fizesse estancar o epistemicídio que pauta nossas produções. Não podemos pensar um futuro diferente se seguimos com uma produção que silencia, captura e apagada modos de vida que diferem da vida ensinada como universal (branca, cishetero, masculina). Precisamos não só aprender com pessoas como Ailton Krenak, Daniel Mundukuru, Márcia Kambeba, Conceição Evaristo, Carolina de Jesus, Lydia Francisconi; precisamos aprender a respeitar suas produções e produzir a partir delas. Elas não podem ter a função de coadjuvantes em um texto branco e identificado com um modelo europeu (ou estadunidense), não podem servir para colorir o texto, como ouvi recentemente. Com autoras como Lélia Gonzalez, sonho com um pensar/pesquisar/escrever que amplie/acolham às lutas que precisam ser enfrentadas em nosso país. Os problemas raciais não são pauta exclusiva de pessoas negras e indígenas! As desigualdades sociais que são racializadas se repetem no ambiente acadêmico. Isso não é novo e está longe de acabar. E não é responsabilidade dos desiguais em apontar isso e produzir as possíveis resoluções. Eles foram empurrados para o lugar de desigual por alguém. É parte do trabalho das pesquisadoras/pesquisadores racializar seus
estudos, suas pautas, suas escritas. Com quais privilégios e sistemas de opressão um artigo pode estar pactuado? Com quais privilégios e sistemas de opressão sua prática está pactuada? (pergunta que tenho vontade de fazer aos docentes da Universidade ocidentalizada a qual pertencemos). Fomos ensurdecidas/ensurdecidos para vozes de mulheres e homens negras/os, indígenas! Aprendemos a ouvir somente determinadas vozes enquanto parte do processo colonial ao qual fomos submetidas/os. Mas se seguimos com esse padrão é parte de uma escolha, é escolher permanecer pactuado com um sistema de opressão racista, machista, patriarcal e cisheteronormativo. Enfim, sinto que me alongo. Queria te escrever mais, mas uma carta tão longa corre o risco de se tornar cansativa. Termino com o desejo que possamos encontrar mais escritas como as nossas, que não nos sintamos sozinhas e que possamos produzir pensamento desde um pensar brasileiro, amefricano, como nos ensina Lélia Gonzalez. E que possamos aprender com tantas outras experiências… Um abraço, Bruna Bruna Moraes Battistelli é psicóloga e desenvolve pesquisas na área do cuidado, “cartagrafias” e epistemologias feministas e antirracistas. Atualmente trabalha como doutoranda junto ao grupo de pesquisa Políticas do Texto – Programa de PósGraduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
Tu podes assisti-lo aqui: https://www.youtube.com/watch?v=SPbGRzGogp4