Pandemia Crítica 093 - O racismo anti-negro funciona da mesma maneira que um vírus

Page 1

o racismo anti-negro funciona da mesma maneira que um vírus Achille Mbembe

Tradução Francisco Freitas


O racismo nem sempre assume as formas evidentes do insulto ou da segregação, às vezes se esconde por trás de comentários que parecem inofensivos. Recentemente acusado de antissemitismo na Alemanha depois de apontar semelhanças entre a colonização israelense e o apartheid na África do Sul em seu livro Políticas da inimizade, o filósofo Achille Mbembe não mede suas palavras face aos acontecimentos recentes nos Estados Unidos e em outros lugares. Quando você vem de África e viaja ou vive no exterior, sempre está exposto, em algum momento, a não ser tradado como todos os outros seres humanos, e a ser submetido a atitudes vexatórias e discriminatórias. Pessoalmente, não me lembro de ter sido alvo consciente de atos vulgares de agressão racista, ou de ter sido maltratado ou humilhado por causa da cor da minha pele. Talvez é porque eu transito por ambientes, se não protegidos, ao menos onde não é de bom tom manifestar grosseiramente ódio aos africanos. Cresci em Camarões, onde a questão racial não se coloca realmente. Contrariamente à geração dos meus pais, que conheceu a colonização, a minha foi educada sabendo quem ela era, de onde vinha, e não havia nenhuma dúvida quanto a isso. Nós não precisávamos, diferente dos descendentes africanos estabelecidos na Europa ou nos Estados Unidos, constantemente prestar contas ao Outro. A única explicação válida que devíamos era a nós mesmos, e somente a nós. Em meados de abril e maio, no entanto, fui alvo de acusações de antissemitismo na Alemanha por parte de um político e de um alto funcionário que visivelmente não compreendem nada do trabalho que eu faço, que é do início ao fim uma defesa em favor


da reparação, da partilha e da solidariedade entre todas as memórias do sofrimento humano. Esses ataques despertaram suspeitas em mim. Por que eles estavam me atacando? Não estariam eles desviando cinicamente a luta necessária e urgente contra o antissemitismo para fins puramente racistas? Pois, nos passos de W. E. B. Du Bois, James Baldwin, Aimé Césaire, Frantz Fanon, Édouard Glissant e tantos outros, sempre considerei que diante do Holocausto você não pode senão se ajoelhar em uma posição de prece, de recolhimento e de meditação. Ademais, estou convencido de que todas as memórias da Terra, sem qualquer discriminação, são indispensáveis para a construção de um mundo comum. Todas os povos têm não somente o direito à memória. Todas as memórias têm o mesmo direito ao reconhecimento e à narração. Mas só a solidariedade entre todas as memórias do sofrimento humano permitirá relançar em escala planetária a luta universal contra o antissemitismo e os racismos. Uma tal luta universal não pode ser posta a serviço da política de poder dos Estados. Ela deve estar a serviço da verdade, da justiça e da reconciliação. O racismo, sabemos, funciona segundo a lógica da suspeita e da imputação – uma palavra aqui, um comentário ali, uma horrível e falsa acusação adiante, a vontade de sufocar o outro, de impedilo de falar em seu próprio nome, a incapacidade de ver em seu rosto o reflexo de nossa própria face, a desqualificação a priori de toda tentativa de se defender e, no fim das contas, a negação de sua humanidade. O racismo consiste também em fazer de toda tragédia que ele provoca um acidente, em inscrever constantemente a vida do sujeito racializado em uma série infinita de acidentes que não cessam de se repetir.


Na verdade, esses “acidentes” fazem sempre parte da estrutura. Por exemplo, o assassinato de George Floyd em uma calçada em Minneapolis não é um erro. É uma dimensão estrutural da essência dos Estados Unidos. Os Estados Unidos não seriam os Estados Unidos se não procedessem, de tempos em tempos, à execução extrajudicial de um ou vários afroamericanos. Não se compreende nada da ideia, do conceito dos Estados Unidos, se não se considera aquilo que aconteceu a George Floyd e a tantos outros como parte de sua substância. Esse país não seria o que é se, de tempos em tempos, não esmagasse o pescoço de um homem negro e não lhe tirasse, assim, o fôlego. Desde o início, o medo do Negro contribuiu para fazer dos Estados Unidos uma democracia negrófaga. Uma democracia negrófaga é uma “comunidade da diferença” no seio da qual o racismo pode, a qualquer momento, assumir uma dimensão eruptiva e viral. Como sabemos, uma das propriedades dos vírus é infectar as espécies bacterianas, usá-las e destruí-las para se multiplicar. O racismo antinegro funciona da mesma maneira, pela predação dos corpos, nervos e músculos. Ele fagocita corpos e vidas concebidos como reservas de matéria-prima que não se pode dispensar, mas que se consome, despende e destrói, geralmente sem motivo aparente. A fim de reverter a relação de predação característica desse ecossistema, teremos que instruir a cadeia histórica com as responsabilidades e nomear penalmente essa continuidade. Teremos que calcular o dano sofrido sabendo que é incalculável. Teremos que exigir reparação e restituição sabendo que o que foi perdido é fundamentalmente irreparável. Será tanto mais necessário insistir na imprescritibilidade da reparação e da restituição quanto suas consequências atuais são inegáveis.


Entrevista publicada em Philosophie Magazine no dia 11 de junho de 2020.

Achille Mbembe é filósofo e autor, entre outros, de Crítica da razão negra e de Necropolítica, pela n-1 edições. Políticas da inimizade e o recente Brutalismo estão no prelo, pela mesma editora.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.