Pandemia Crítica 095 - A palavra enquanto

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a palavra enquanto Helga Fernández - Victoria Larrosa Macarena Trigo Tradução Paula Lousada


Domingo, 5 de abril de 2020 Em meio à pandemia que há um mês começou a pôr em xeque o mundo, fica extraoficialmente inaugurado este ponto de encontro ao qual recorremos sem ordem e nem programação enquanto for necessário, sem objetivo maior que o de manter a vida como algo digno a ser atravessado. Depois, depois. ** Começa outra semana. Me obrigo a olhar na agenda para entender. Faz um mês desde o meu último regresso. Esse punhado de dias parece ser suficiente para ceder ao hábito. Já incorporamos O silêncio que irrompeu como uma novidade nas sessões online, nas novas senhas e palavraschaves, nas rotinas mínimas. Já localizamos o melhor horário para algumas coisas e começamos a aceitar que isso há de durar indefinidamente, ainda que não possamos imaginar ou entendê-lo. Já entendi que saber, desta vez, não aliviará grande coisa. Quanto pode se prolongar um ENQUANTO. Os aniversários continuam sendo celebrados e novas criaturas chegam a este mundo. Diante de cada foto de mãe com bebê nos braços me arrepio. Não consigo conceber essa instância, uma situação que já é por si só insólita, selvagem, desmedida, nessas coordenadas. O que será desses bebês? Em que adultos singulares se converterão vivendo seus primeiros meses augurados por um temor celular que desconhece o seu amanhã. Esses bebês têm tempo? Nós temos tempo?


Eu recebo as mensagens mais absurdas. Defendemos nosso trabalho limitado com o constrangimento gerado pelo urgente. O urgente foi ontem e não estávamos preparados. Não houve silêncio, nem tempo de comemorar a perda do que já não é mais. Ou sim, ainda está lá fora, mas inacessível. Desativado. Também os outros. Família, amigos, estudantes, amantes. Eles existem, mas não estão. Não sabemos quando ou como nos encontraremos novamente. Evitamos pensar neles porque, se abrirmos essa porta, não há saída. Evitamos pensar, sentir, observar fixamente qualquer coisa. Seguimos. Durmo durante o dia, vivo à noite. Sempre foi assim. Hoje ainda mais. Quando o sol se põe, a alegria vem, eu acordo, ganho vida. Mas a meianoite se aproxima e eu sofro de lucidez. Um horror que não passa me tortura, e adentra em mim. Aguento o máximo que um corpo pode e, com as últimas forças restantes, começo a escrever, arranco galhos já aderidos. Outras vezes, sai por conta própria e se expande sem localização ou restrição. Sei que a única coisa que vai me deixar descansar é que isso seja dito. Animais domésticos. Enjaulados antes, desde sempre, desde que a humanidade nasceu. Bichos que às vezes tremulam a vida, e outros se escondem com medo. Porque o medo provê refúgio, não acredite em si mesmo, hein, o medo o faz dependente de qualquer coisa, é capaz de amarrá-lo gentilmente à maior merda. E enquanto permanecemos trancados, cuidando e cuidando de nós mesmos e blá blá blá, outros, aqueles que querem comer o mundo a qualquer custo, continuam brincando de soldadinhos, banqueiros, poderosos. Queria ter


a metade do poder de decisão que os acompanha. Gostaria de escrever frases corretas como uma picada de abelha rainha, mas com esta ira numa página em branco não chego nem na esquina. Gostaria de escrever com a meticulosidade de serial killer degolador. Gostaria de mudar esse nada que nos mata por uma vingança que nos deixa vivos. A cada tanto chega uma lucidez e se instala. Se eu não a anoto, desaparecerá. Eu as uso, deixo cair, solto-as em uma conversa e atiro-as em um versinho, em outro parágrafo efêmero que. -

As pessoas com as quais você não se comunicou durante a pandemia já estão mortas. Além de não haver estrutura, também não há limite. Como então não enlouquecer. É preciso conseguir que o remédio não seja pior que a doença.

Rumino essa luz e espero uma diferença, um sinal, uma operação. Fantasio sobre sair daqui com algo novo entre as sobrancelhas. Uma decisão. Isso é o que quero. A decisão que implique uma mudança, um “até aqui”, um “já entendi”. Usarei o resto dos meus dias de maneira diferente, este. Mas não. Até agora nada. Por enquanto repito que estou bem. Estou bem. A disciplina monástica me salva e não sinto falta de ninguém, escrevi ontem. Menti. Tenho saudade dos de sempre. Não posso culpar a pandemia por tudo. Sempre tenho saudade de quem nunca esteve presente e do que não aconteceu. Na incógnita dessa ausência reside a possibilidade de um caminho distinto. Não necessariamente melhor. Outro.


Há um mês e meio aterrissava em Madri, descia do avião e pegava o trem para Oviedo. Há um mês cruzava o mapa sem noção nenhuma e com todo o desejo de que ainda era capaz. Há um mês, era a mesma e outra. Caminhava, sem saber, até esta despedida. O dia passou voando e o canário em que me transformei chegou apenas a cumprir sua rotina de gaiola disponível. Isso já quer dizer muita coisa. Significa que ainda que nada esteja bem, tudo é possível. Que o hábito se faz sozinho, sem permissão. Significa que verdadeiramente podemos qualquer coisa. Significa que a vida, caprichosa e cabeça-dura, se prende a qualquer terrinha, àquela que também um dia vai nos enterrar. Cada palavra é ouvida em sua matéria indômita. A palavra enquanto é um ninja, ela quer não matar e não morrer, corre diante de tais opções. A criatura se mostra uma refém indócil, ou melhor, uma refém louca. Faz movimentos incalculados e não entendemos se é ou se se faz. Enquanto parece diferente porque é outra coisa. No fim das contas, não podemos esperar dela nenhuma calma. Enquanto não quer ser aquele pedacinho do mundo onde a espera parece segura até que tudo passe. Tudo está acontecendo e isso não nos abriga na esperança. Finalmente, a utopia e a distopia, como formas funerárias ocas, caem sob a sua agonia. Enquanto é o vão em que se espera que o pior não aconteça. Enquanto é um tempo espesso de mutação do que chamamos de Mundo. O naufrágio nos pegou em casa, a quem tem uma, e à intempérie os que chamamos de Refugiados. Enquanto não quer ser uma maneira de ser semelhante. Aulas semelhantes, sessões parecidas, couro falso. O Enquanto, louco, ri do falso, está louco de simulacros, as cópias tão denegridas do platonismo invadem os cacos o que já não é e ainda tampouco.


Não entendo o que os meus colegas falam, nem o que escrevem ou o que repetem. Já me acontecia isso antes. Não posso culpar a pandemia por tudo. Meu filho me pergunta se os dentes também precisam ser limpos com água e sabão, cantando feliz aniversário para o Alberto. Enquanto pode ser um problema novo e atávico? Os sentimentos fazem as coreografias dos anos 80, enquanto brincam de nostalgia com a caixa de fotos, aquela época em que se encorajou a felicidade, os gestos que sabemos que nos vinculam, querendo ou não. Adorávamos pensar que a liberdade era decidir. Adoramos nos desencantar ao ritmo do seu disparate. Hoje quero uma causa. Uma. Uma mínima para atar a nave louca que me nomeia em um Minha Vida. Não há casa, não tenho, já arrumei as gavetas e tentei montar uma casa porque com o mundo empesteando a cozinha, os quartos, a estante, a casa se foi. Por sua vez, enquanto conserva a sua nuance de simultaneidade. Coitado, acho que quer nos fazer um favor. Ou nos coloca de volta em tantas situações de uma só vez porque o sistema caiu, mas ele fala da base? Ou pobres somos nós? O Enquanto me afoga e me oferece uma mini jangada sem precedentes. Não é do zero, jamais. É do novo. Misturamos tudo com qualquer coisa e de tanto fazê-lo chamamos de coerência ou relação ou bom gosto ou pessoa.


Render-se não é estar perdido ou se dar por perdido, mas não teria problema. É assumir a responsabilidade imensa de cobrir o vidro estilhaçado pelas pedradas que nos demos, sair da moralidade da guerrilha, das ideias férreas. Por favor! O que sabemos sobre o MUNDO? Sabemos que estamos dentro e que o exterior tece um crochê em casa, não a partir de um vazio central, mas com pedaços de amores, pedaços de dor, pedaços inaudíveis, um pouco de vinho, os filhos que não queremos ser, aqueles que nos nomeiam em disparates sem fim, os amigos que estão tão próximos que nos aterroriza ver a angústia norteando suas vidas, os amores que descascam versões acústicas e isso soa mais que tudo. Não encontrei a causa, já disse, agora réplicas de efeitos de efeitos e é preciso ser muito idiota para continuar falando sobre Textos/ contextos, Formas/conteúdos. Desculpem, onde vocês conseguiram essas percepções? Origami, dobraduras e um bolo de papel. O mesmo cálcio no fêmur que você quebrou e na poeira estelar. Como nos percebemos? Por favor, tudo o que peço ao bicho é que ele não nos leve de volta ao ANTES. O que inventar para que o enquanto minta para nós? Eu leio, escrevo e ouço como se o futuro da humanidade dependesse desses verbos. Se alguém tivesse escolhido um castigo para mim seria isso. Ele não quer ser indolente e pensar em mim e escrever sobre mim e chorar por minha causa, mas eu também sou um eu pequenino, gasto. O que resta de mim continua chorando ou uivando, porque isso não parece chorar, parece uivar mudo uivo surdo uivar a torto e à rodo. Uivar porque não há sequer uma palavra, uma mísera sílaba, um maldito fonema que dê sentido ao pesadelo coletivo. O


termo pesadelo coletivo deveria ser inventado porque isso não se encaixa no delírio coletivo ou na alucinação coletiva. Isso não se encaixa em nada. Não sei, não sei ficar muito em um lugar. Não gosto de casa. Gosto da rua, das paisagens que passam e não ficam. O cotidiano é um sonho letárgico do qual não consigo despertar, eu falo despertarei e pronto, mas não há maneira e sim sim, não dura nada. Às vezes, escuto ruídos que vêm de fora, penso que são tiros de 22, pá, pá pá, imagino que finalmente alguém se animou a sair e, em questão de segundos, outros deixarão suas varandas depois do primeiro para acabar logo com essa história. Não é uma cena de medo. É uma cena de salvação. Isso está parecendo cada vez mais uma paródia. Uma tela rasgada. O público de longe. O enredo avariado e os atores e atrizes borrados de rímel, exagerando na atuação pelo desespero da ausência. Vamos chamar a dignidade: vamos escrever cartas. Tanta autoconfiança, tanto clone, tanto in vitro, tudo tão supersônico para que um pequeno bicho nos coloque dentro do alcance de sua mira. Nem alienígenas nem a Terceira Guerra Mundial nem meteoritos nem terremotos nem tsunamis, implosão para manter a opulência. Porque o bicho existe e mata, mas pensávamos que estávamos blindados à outras mortes que não a natural. Tento dormir. Fecho os olhos. Me sinto na casa em que morei quando tinha 13 anos, a janela atrás, a porta na frente. O medo me leva para lá ou talvez eu nunca tenha saído. Palavras-porta-do-tempo. Pandemia, ameaça. Ameaça, perigo.


Perigo, medo. Medo, bomba. Bomba, debaixo da cama. Debaixo da cama, terror. Terror, objeto não localizado. Objeto não localizado, necessidade de precisão. Era uma casa de bairro, larga e comprida, tipo uma linguiça. Uma linguiça que atravessava o quarteirão. O jardim, o ponto fraco da segurança, estava separado da floricultura do bairro por um muro. Os canteiros, demarcados com madeira pintadas de vermelho e branco mantinham uma distância exata entre si. Só era permitido andar por esses corredores, não podíamos pisar na grama por nada nesse mundo. Bem no centro, havia um poste de luz. A luz dele nunca conseguiu iluminar a escuridão de algumas noites. O meu lugar favorito era o quartinho para onde iam as roupas velhas e os livros que o pessoal da segurança trazia. Ele dizia que lia para conhecer a ideologia dos outros e também os argumentos com os quais convencia os rapazes. O perímetro da casa estava rodeado por um alarme. Minutos depois de ativarem aquele sinal, retumbavam sobre a minha cabeça as corridas para a guarita. O teto do meu quarto era o piso do terraço onde eu, durante o dia, procurava os passos para a minha música preferida da Coco, a negra de “Fama”, mas à noite se convertia em uma torre de tiro e vigilância. Ao lado da sala, debaixo de uma escada, ficava a Batcaverna, lá ficavam os que cuidavam da casa e de nós quando saíamos na rua, carrancudo, veias marcadas na testa, nariz adunco e uma sobrancelha mais alta que a outra. Podia sentar onde quisesse,


mas ele não tirava os olhos de você. O pior não era a foto dele. Quando ele estava em casa, não podia fazer barulho, uma passo em falso era a desculpa para desatar sua fúria. Pendurado em outra parede, havia um escudo atravessado por duas espadas, uma vez ouvi dizer que tinha sido de uma das famílias destruídas. Ele, quando alguém perguntava de onde tinha saído o escudo, respondia que era o escudo da família. Toda vez que olhava aquilo não conseguia evitar de pensar: “De quem tinha sido? Como seria a casa de onde o roubaram? Haveria outros meninos lá? Onde estão agora? Na parede esquerda, dentro de uma vitrine retangular de madeira e vidro, uma bazuca era exibida. Foi um presente de um general para Ele, o homem do retrato, meu avô. Ele nos treinava. Você tem que fechar um olho e deixar o outro aberto, enquadrar o alvo no centro do V, respirar fundo, segurar a respiração e disparar, explicava. As aulas eram ministradas com um rifle de ar comprimido que tinha sido dele quando garoto e depois do meu pai. Um legado de família. Fique em pé, em posição de atenção. Calcanhares juntos e pés separados em um ângulo de 45 graus. Ereto, virado para a frente. Mãos com o punho fechado, ele repetiu. Depois gritava: Mar. Mar era o mar de Mar del Plata. Mar era a ordem marchar, o comando de execução. O passo tinha que ser imediatamente iniciado com o pé esquerdo. Formamos uma fileira de dois. Meu irmão, por ser homem, marchava à frente, e eu atrás.


Alinhar. Atenção! Abrir fileiras, MAR. Fechar fileiras, MAR. Alinhar à direita, alinhar. Atenção, FRENTE. Descansar. Frente, MAR. Companhia.

A cada tanto trocávamos a cadência da marcha. Criamos um código secreto. Quando, aproveitando o movimento dos braços, um roçava as costas do outro com um dedo, marchávamos ao ritmo de “Suena Tremendo”. Se nos tocássemos com dois, iríamos ao ritmo de “Yo no quiero volverme tan loco.” E se tocássemos com três dedos, marcharíamos no ritmo de “Alice em el país”. Ele, que não sabia que na verdade era a música que nos movia, gritava: Estão de brincadeira? Vamos, continuem o ritmo da marcha. Assim não impõem respeito. Respeito a quem?, perguntei a ele um dia. Aos inimigos, respondeu. O horror não passa, desperta-se cada vez que chega outro. Isso da guerra contra um inimigo invisível... … Isso de guerra contra um inimigo invisível não dá. O inimigo é outra coisa, reminiscência de outras feridas. Entro em pânico em segundos e depois, caio na gargalhada. Alguém me diz: se for infectado, eles te levarão para Technopolis. Penso no dinossauro que deixaram para trás. Rio. E choro também, nesse choro novo que é como uma espécie de casa de um corpo que não alcança. Estamos tão cansados dos diários íntimos. Mas por quê? Pelo fato de o chamarmos de querido? Pelo ideal de escrevê-lo todos os dias? Pouco antes de ficar aqui dentro, estava prestes a viajar para Rosário para fazer um seminário com


uma psicanalista francesa. Ela é alpinista. E tem cerca de oitenta anos. Avisaram que não, que ela não viria por causa do coronavírus. Pensei que pena pois perderia o rio e aqueles dias de amigos e não-rotina que que roubo do cotidiano. Peço alguns dias. Peço, e me dou. Quando começou a pandemia? Não tinha entendido quando soube que estava suspenso. Agora, também não, mas naquelas semanas ainda menos. Tantas dobras. Tantas camadas. Um mesmo tecido. É alucinante. Até pensei: tudo o que Davoine escreverá. Também o lerá como uma guerra? Ela acredita que todo louco é um louco de guerra. Um corpo ocupado por fragmentos desamarrados de um laço que a guerra rompe. Que os loucos façam a coisa quixotesca de tentar consertar o tecido do mundo, que o trauma não seja propriedade privada de ninguém, mas uma ferida do mundo que acampa em quem ilude a história, e em uma possível escuta, o vínculo criará texto que acaricie e acolha. Uma genialidade clínica, política, estética. Enfim, hoje pensei que talvez deva ser assim por muito tempo, o trabalho em casa, a repetição dos gestos. A casa terá que se inventar. Sinto falta da minha casa. Estar em casa incluía chegar e sair. Os amigos os amores os desconhecidos. Que bobagem. Cortei uma camiseta branca. Espero as máscaras que encomendei, recomendação de uma amiga. Encomendei em uma página de se chama “De niña a mujer.” No meu mini eu posso dizer que a chegada da pandemia é contemporânea à legada de um amor, esta casa sem mundo e mundo sem tanto, nesta casa edmodo, casa trabalho, casa berço. O azar


Existe uma agrimensura. Um mapa. Uma topologia. Mais uma vez marcando o campo com o pé. A onda retornará. Ainda não estamos evoluídos o suficiente para acreditar em um mundo melhor. Amei a Britney com suas declarações marxistas. Mas nossa coreografia está longe de representar a injustiça como um problema. Em águas tão claras não nadam peixes. Odeio os refrões. São o flagelo da razão. O gozo do acerto. Que maneira é essa de afirmar o que construímos como se fosse verdade? O que é uma imagem transportada? Meu filho mais novo pede desculpas que o domingo foi insuportável porque a pandemia está nos deixando em uma “desvanguarda”. Tudo é parcialmente parecido. Parece um pouco à fome, ao sonho, à dor. Mas não é a mesma coisa. Como a comida dos aviões que parece mas não é, como o alívio do desamor. Definitivamente é um bicho. Qual a diferença entre chorar e rir em multidão no consumo de bens culturais, corpos girando e girando, e as emoções que despertam as imagens dos golfinhos em Veneza? Acho que nenhuma. Mas a dos macacos saqueadores na Tailândia me matou de outra morte, acho. Já tinha me acontecido algo parecido com as imagens dos javalis ou porcos sentados em cadeiras vendo televisão. Nas casas cheias de radioatividade em Fukushima. Havia dois caras tomando cerveja e vendo um jogo! E não é fácil matá-los, porque eles também estavam radioativos e radioativos por serem sagrados. O que aconteceu com eles? E com as mutilações? E


com os jogadores de rúgbi? E com a vida nova dos príncipes que escaparam sei lá de onde? Ele sai para trabalhar e eu me irrito, não quero que vá, não me importa que saia para salvar vidas ou que o aplaudam às 21h toda noite. Quero que fique em casa, que cozinhe aquelas delícias, que ria de mim, que brinque com o nosso filho como se tivessem cinco anos. Desejo que sofra o arrebato vocacional de bancário ou que como o cão sente e veja a vida passar. Mas me diz que se decidisse ficar, escolheria o que não é e que aí eu me irritaria ainda mais com ele. Matéria endurecida, isso sim é o que somos – se é que somos alguma coisa-. O trovão seco é incrível, como uma espécie de réplica. As placas devem estar se movendo desde sempre. Em um intervalo, sedimenta-se uma versão equivalente: vida semelhante ação semelhante movimento percebido implica um olhar como percepção privilegiada. Os olhos não se cobrem. É estranho pensar nos olhos como o vazio. Orelhas mais parecidas a um buraco com labirinto, cheio de trabalhadores de construção, manda a ver, martelo, bigorna, chicote. Em vez disso: chora pânico dor semelhante sem vida sem pulsação, sem aderência, defesa baixa. Perigoso para si e para terceiros. Quero acreditar que posso me colocar no lugar do outro. A escuta, a leitura, a escrita, o teatro, a arte em si é nada mais que entrar e sair de outra forma de ser. Quero acreditar que chegamos até aqui apesar de nós mesmos, empurrados, abraçados por outros. Esses que nos odeiam e amam sem perceberem que é mais ou menos a mesma coisa. Não sei se isso de se colocar no lugar do outro é uma estupidez do intelecto ou se é realmente possível ter empatia desde um lugar útil, ou seja, um lugar de onde a comoção gere uma mudança.


Quando o corpo se move, a emoção se move. A restrição de espaço e movimento doem. A quietude paralisa. Alguém deveria dizer que também é ao revés, a dor petrifica tanto que vamos adquirindo caretas. No meu bairro, de vez em quando sai um para gritar na janela. Ninguém se assusta, quem não sabe que às vezes um grito é a única coisa que se pode fazer? Primeiro foi o grito, (no final também). Quem sabe o quê e o quanto estamos negando neste instante em que tantos, os que ainda podem, insistem que estamos bem? Porque sim, estamos. Não dói nada. Não há sintomas. Ainda. Os demais nos doem? Quero acreditar que sim. A ausência é uma forma ingovernável dos corpos. Ninguém está mais que aquele que não chega nunca, aquele que falta, quem se faz desejar. Às vezes, o ausente nem sequer suspeita de sua condição de ausente porque se desconhece omnipresente para alguém, necessário. Às vezes, isso tem a ver com o amor. Outras, com o ódio. São tão a mesma coisa que. Agora estamos sozinhos. Ausentes. Faltamos em lugares onde soubemos ser necessários, felizes. Não sabemos quando voltaremos, para quê. Talvez vamos terminar descobrindo que não queremos voltar lá, que já não pertencemos a todos aqueles espaços que antes tinham sentido. Não consigo entender se essa possibilidade não me agrada. Nunca é fácil ser um, portanto, ninguém sabe por que acreditamos que podemos ou precisamos ser alguém mais, ser outros, sermos distintos. Já


tivemos mais vidas das que podemos considerar exatas, já nos esquecemos do que então parecia indiscutível, certo, eterno. Tantas vezes acreditei que não ia poder continuar respirando sem. E continuo. O corpo é um artefato muito complexo, um lugar onde vivemos e do qual sabemos nada ou pouquíssimo. Não sei como funciona o meu corpo. Uma abstração geral de criança de primária é o que entendo sobre o assunto. Nestes dias agradeço a minha infinita ignorância, meu analfabetismo funcional sobre todas as coisas que importam neste momento e que estão quebradas. Não sei. E não quero saber. Porque quanto mais me explicam o que está acontecendo, o que está por vir, o que perdemos, menos entendo para que nos esforçamos tanto em manter a calma, a vida. Será que também não precisamos redefinir a vida? Será que a vida nunca foi a mesma para todos e agora muito menos? Ficar assim, neste estar perplexo será a vida de agora em diante? Ou só é a vida até que...? Enquanto isso? Não podemos escolher apenas o “nada” da vida. E da morte? Também não. Muito menos. Esta é a outra parede em que sempre bato a cabeça. Quero escolher a minha morte. Entendê-la. Organizá-la. Não esquentar a cabeça com documentos, a casa que outros vão esvaziar etc. Quero dar fim ao meu corpo enquanto ele ainda for meu. Caminhar para algum lugar onde me recebam bem, me ofereçam um bom jantar, um ótimo vinho, uma cama limpa e talvez um último filme para conciliar o meu último sono. E que isso seja tudo. Que depois me abram como uma caixa de ferramentas, aproveitem o que serve, incinerem o resto e que não sobre nada. Não acho


nenhum absurdo. Acho que é o mínimo que o Estado deveria garantir. Uma saída digna de uma vida de merda. Adentro ao tecido e vejo as letras se escreverem ao vivo. Morrem, vivem, vão, agregam, tiram, avançam, retrocedem e me encaçapa o filme derradeiro. Me sinto uma espiã. Vou embora. Chorei pela primeira vez no banho. Da festa que também acontece na minha casa, na minha casa de exílio no meu país. A máquina de secar roupas faz um barulho que nos dá a ilusão que algo está funcionando. Volto ao mar. Leio a morte. Penso no meu desejo. Prefiro que não tenha uma prévia. Que qualquer um me encontre, menos os meus filhos. E que seja sem que eu me dê conta. Não quero saber nada de se sua chegada e também que aproveitem tudo que serve, óbvio. Fiz a mesma coisa enquanto pude. Isso de guerra não dá, tão humanos e tanto zombieland. Matar e rematar. Questão de escalas: uma medida que não tem a unidade de medida. Como é um conjunto sem universo? Isso existe matematicamente falando? O X é a questão da unidade de medida: toda escala é sobre o corpo padrão, o peso de uma xícara, altura de uma janela, as palavras que machucam, uma suspeita, tudo. Agora: se o corpo está sem... medida, enquanto não tem unidade, deve existir. Uma vez ,não sei em qual lugar, um padre subiu em um balão e nunca mais tiveram notícias dele. Vou procurar saber o que aconteceu. Seja o que for, às vezes, tudo me parece uma grande mentira, nem acredito em nada deste plano. Foi no Brasil. Já encontraram o corpo. Preso a bexigas de aniversário. A verdade é que eu o entendo.


Um rebocador encontrou o corpo do padre brasileiro católico que desapareceu em abril, quando tentava quebrar um recorde de voo com balões de festa, anunciou nesta sexta-feira a Petrobras, empresa estatal brasileira de petróleo. A Petrobrás anunciou. Um monte de qualquer coisa. Vida Frankenstein. Vamos, é assim que funciona. Os números já foram, as cifras. A pandemia é dita de muitas maneiras. Agora a imagem: fossas comuns em Nova York. Eu não vi, mas elas já me inflaram com o ruído de mundo infectado, e eu também estou feita disso. E de horror. Uma fossa comum em Nova York. Dá pânico. Isso é uma imagem acústica ou o quê? Os ideais, da revolução à ideia, do afeto às práticas, e daí, e de uma vez, como uma pena para a casa querendo já estar contagiada e diagnosticada para sair correndo e fazer não sei o quê. O “lá fora” acabou. Eu abro as janelas, o que não está funcionando é um “fora” ainda que estejamos desaforados. Desaforados por dentro. Nosso veneno. Tanta merda com o mundo interior. Idiotas. No fim, vamos terminar com o inimigo invisível sendo o bicho. É um todos contra todos/ as/es, de repente somos suspeitos de já não termos mais identidade. Rosto de bicho e mantendo a distância. É estranho quando tudo fecha. A paranoia da festa. Muitas razões. Dizem que estão avistando muitas frotas de OVNIs. Outros esclarecem que é uma nova tecnologia do Trump em aliança com os Illuminati, proprietários do espaço. Desculpe ser tão estraga-prazeres, mas Trump não usa nem a própria cabeça. O sonho da razão gera alienígenas. Tanto.


No supermercado, o reflexo de uma mulher no aço inoxidável acima dos itens de padaria. Sou eu! Aqui! Estou com medo. Embargado. Cobrir a boca confinamento isolamento... a paleta semiótica. Tanto amor pelas performances, hoje daria tudo por uma metáfora que representasse algo ... o rizoma traz o melhor e o pior, chegamos à parte de e o pior. Às três da manhã, anuncio pelo WhatsApp que estou indo embora de onde não estava mais ou não queria estar. Sou gentil, mas sincera. Desculpem por escrever, mas decidi que vou me concentrar no que for preciso e ser consistente com o que quero, então me retiro do grupo. Não vou desperdiçar mais um segundo da minha vida fazendo o que não anda, andar. Não vou ficar em lugares onde, além da indolência do mundo, tenha que me magoar pela indolência de algum conhecido. A vida é muito frágil e efêmera para perder tempo com pessoas que não valem a pena. De hoje até o fim dos meus dias, abraço aos que sim valem. Às vezes penso que estamos vivendo em um Big Brother: Como reagimos diante do medo? Como convivemos com outros e nós mesmos encerrados? Quanto tempo aguentamos sem sair à rua e sem tocar pessoas queridas? Quais mudanças somos capazes de fazer sem estar corpo a copo? Quanto podemos mutar? Que tipo de dor é o mundo? Em que momento sairemos para matar aqueles que nos estraçalham? Olhamos para nós mesmos olhando as ruínas e ainda não conseguimos acreditar. Enquanto isso, um sexólogo do Estado sugere o sexo virtual através de aplicativos, diz que depois da masturbação é necessário lavar as mãos e desinfetar os brinquedos sexuais.


Se queremos trepar, vamos trepar como conseguimos e como tivermos vontade, mas nunca, jamais, renunciemos ao sexo desnudo. Às vezes, imagino que um processo de transformação começou: os seres humanos devem sofrer mutações para ciborgues; conectar à interface digital; esquecer rapidamente, sem luto ou objeção, o comprometimento dos corpos, e nos ajustar ao o sistema nervoso digital ou, como diz Bill Gates, com a linfa vital. Há um apelo à imaterialização, ao desaparecimento da inteligência conectiva, à semiotização do algoritmo. Aumenta o número de caixas de Ritalina, Prozac, Zoloft. Aumentam a dissociação, o sofrimento, o desespero. Enquanto estamos ocupados sobrevivendo, eles querem inserir o ciberpanóptico na carne. O discurso principal é um ventríloquo, com um exército de fantoches. É preciso amar o que não anda, o que descarrilha. É preciso amar o indômito. É preciso amar o sintoma. É preciso amar os desajustados, os marginais, os incompreendidos. É preciso amar os filhos da noite, eles fazem a diferença. Como ser outra, como ser outro alguém, sem dar todas essas voltas? Agora que os corpos são desconfortáveis e temos que removê-los, esterilizá-los, protegê-los, agora percebemos para que serviam. Dou risada


enquanto me prometo viajar mais e penso na minha enorme solidão da última década. Na minha fobia de receber visita em casa, na minha ausência de desejo físico, em como isso se tornou uma sublimação poderosa que se tornou poema, trabalho, aula... Lembro que um cantor católico de flamenco não transava para não perder a força de sua voz. Dizem que aos atletas de elite também não convêm descarregar essa energia. Como é misteriosa a abstinência e nosso pouco controle sobre esta jaula da qual pensamos sermos donos. Não escrevi a lista do que prometo para depois. Ainda não acredito no depois. Hoje eu li um texto em português que foi como um presente, me fez entender o que eu já sabia pela tração do sangue. A terra em que vivemos não é o centro do universo. Não descendemos de um deus que nos criou à imagem e semelhança, antes dele, éramos macacos. Essa invenção louca e necessária chamada eu é dona de sua própria casa. E como se tanto dano ao narcisismo não bastasse, o vírus nos incrusta que não somos “Um”, que nosso corpo é feito de várias formas de vida, que somos o mercado chinês em Wuhan, onde o covid nasceu. A ideia do “um”, um recipiente que não fecha mais e com o qual brincamos para conter os fragmentos de uma imensidão, se dispersa por toda parte. O corpo aparece ou se afasta, se camufla, encontra seus dublês. Corpo e razão nunca serão um. Lamento essa ilusão de unir corpo e mente. A mente é mente e demente, razão instrumental e prepara o território com a lógica do sistema de produção: consumo produtividade distribuição e cada um


que se vire. Não é de admirar que aceitamos entendemos concordamos ou não. Fico tão aliviada quando uma semiótica do corpo chega para frear essa impregnação e deixa um pedacinho da janela aberta pela força de tendão e mandíbula. Um corpo é aquele que não cabe em razões. Não tem nada a ver com fazer qualquer coisa. Ainda não sabemos o que é, e é isso. Digo, que alívio que nem tudo se encaixe. O texto do mundo propõe outras imagens e sons. Outro arquivo. Às vezes, a vida parece making-off. A ficção científica é a verdade que a ciência não aceita. Expulsam-na pela porta e ela entra pela janela. Levei um tempo para pensar nas palavras como espaços. Uma ilustração científica, em cortes, as palavras como montanhas e suas eras, tempos, acidentes e cumplicidades com a matéria. Uma palavra ilustrada na ficção científica que nos tire o excesso de ser humano. Quero fazer uma ressonância magnética com algumas palavras. Vou chamá-las uma de cada vez pelo microfone colado à minha boca, como faziam no Pumper Nic para pedir dois combos. Vou chamar uma de cada vez e lentamente: i n q u i e t a ç ã o s o b r e s i l ê n c i o r e a l c u r v a t u r a Quero dar aquele pedacinho de papel para que passem para pegar o resultado. Quero saber quais irão perdê-lo.


Quero fazer uma ressonância magnética com algumas palavras. Quero fazer uma ressonância magnética com algumas palavras. Quero fazer uma ressonância magnética com algumas palavras. Quero fazer uma ressonância magnética com algumas palavras. Quero fazer uma ressonância magnética com algumas palavras. Quero fazer uma ressonância magnética com algumas palavras. Entrei para pensar: há de descrever a ferida. Pensar pode ser um disparate, uma festa, não é preciso provar nada. Que o pensar seja este momento em que a palavra entra em um ressonador. Toda. Os tornozelos. Como Se fosse Um Tubo O que é que tem? E quero ver essa grafia. Sem geografia! Existirá grafia dessa matéria? Vamos ver que cidades existem. A etimologia é uma merda. De onde vêm as palavras? É a pergunta mais infeliz que existe!! Elas vêm de um afeto da espera de um grito de uma malária de algumas mãos dos cães da vizinha dos mortos de ontem daqueles que não têm caixão nome silêncio canção de berço braços mutilados do que abre o céu da tarde sozinha do chá que esfriou de seu pai na gaveta do que não é seu da astúcia da alegria do spam. Daí. Mais ou menos.


Do vazio da vertigem da ponta da língua dos arrepios do assombro do nunca visto antes do golpe na cabeça da queda do cavalo do gago vêm do seu pai um dia antes de morrer assistindo aos fogos artificiais pela janela da dor de ossos quebrados de uma mulher com câncer em todo o corpo vêm da dor de limpar o muco do seu filho com uma traqueostomia. Elas brotam ou saem daí e se acomodam com o tempo. Não sei quando começamos a entender que somos (também) esse depósito de palavras. Próprias, alheias. Neste momento em que a memória está mais viva do que nunca e mais viva que todo o futuro, de vez em quando, me deparo com uma situação em que, sem entendê-la, sabia que a palavra começava a ser eu, outra, a me distanciar. Me salvava. Me salvava com cada desconhecido que aceitava me escutar quando eu era jovem demais para ter tanto o que contar. Fui salva quando ouvi uma história pela primeira vez em voz alta e, de repente, algo rimava e a rima ia, voltava, porque era divertido para as crianças e sim, meu corpo esperava por ela, comemorava o seu retorno e... Nunca esqueci aquela manhã, grandiosa, em que uma voz dava forma a outro mundo apenas pronunciando-o e eu podia ver aquilo diante de mim. Não usamos a palavra, não a pronunciamos, ela nos pronuncia, ela nos anima. Ontem à noite sonhei que o exterior estava trancado. Dentro não era a casa, o lar, era um refúgio que qualquer um podia entrar. Não tínhamos forma humana, mudávamos, mutávamos, toda vez que alguém entrava. Parecíamos adaptados à sombra, enquanto a claridade resplandecia. Os dias eram tão brancos quanto as sensações eram confusas.


Viver se assemelha cada vez mais a andar em uma bicicleta fixa. O tempo é isso o que acontece com a luz do sol enquanto continuamos dentro. Se no mesmo lugar trabalhamos, comemos e dormimos; somos escravos. Helga Fernández Psicanalista e escritora. Membra da Escola Freudiana da Argentina. Próxima publicação: “Para un psicoanálisis profano”, Editora Archivida. Victoria Larrosa Psicanalista. Autora de “Curandería”, Editora Hekht; “Cartas de Navegación”, Editora Archivida e “Diapasón, orfandad de lo inconciente de próxima publicación”. Docente da UBA. Macarena Trigo É poeta, atriz e diretora de teatro. Pretende continuar sendo sobre e contra o mundo que se tornar disponível. Ainda não sabe como.


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