Pandemia Crítica 097 - Não vai passar

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não vai passar Camila Jourdan e Acácio Augusto


Queres saber por que os homens são ávidos do futuro? É porque ninguém toma posse de si mesmo. Sêneca “Sobre o progresso” em Cartas a Lucílio É certo que a emergência não vai terminar. Já faz tempo que vivemos uma gestão sucessiva de crises, uma governamentalidade dos estados sucessivos de exceção. Sim, a emergência é um modo de governo que permite restringir liberdades e aprofundar desigualdades; aplicar medidas econômicas e reformas; punir e precarizar ainda mais. Quando vocês se lembram que não estávamos em crise? Quando vocês se lembram que não era um momento especial, diferente, que justificasse perseguir, controlar, instaurar tribunais de exceção, suspender liberdades, cortar salários, suprimir direitos, contrariar o curso dito normal da democracia para garantir uma versão mitigada da vida, suprimir a vida até que não restasse desta senão uma imagem cada vez menos nítida. E é de tal modo que a excepcionalidade especialidade se torna o normal, que não há mais nada de especial nela. Por isso, há um esvaziamento semântico, não podemos mais voltar ao momento em que estava tudo normal, porque o normal não será mais o mesmo. E agora quando se diz que nada voltará a ser como antes, e que a pandemia funciona como um acelerador de futuros, o que se coloca como futuro esperado nada mais é do que aquilo que já estava programado. Mais do mesmo e um pouco pior. Como se o inesperado não fosse possível. Como se a emergência apenas se estabelecesse de todo como um novo normal. E que isso fique bem evidente não é algo que possamos


lamentar, pois é preciso ainda que se possa dizer neste contexto: nada está posto. Antes e depois da mais nova crise, seguimos com tudo por fazer. Que as pessoas comecem cada vez mais a ver o outro como um perigo, que se afastem e não se reúnam nunca, que temam um ao outro como uma possível morte de si. O sonho da disciplina higienista, reprogramado e ampliado com a ajuda de sofisticada tecnologias políticas de controle não-presencial. Uma aguda crise de presença vendida como solução, um esvaziamento brutal da existência e da alteridade como modo de vida. Nada mais desejável pelo capitalismo contemporâneo e de acordo com a sua suposta normalidade. E mais do que desejável, essa crise existencial é o que produziu e produz nos últimos 50 anos. Individualismo egóico reinante, relações generalizadamente mediadas por telas de aparelhos algorítmicos, medo de tudo aquilo que pode ser contagioso, medo mesmo de estar e se sentir vivo. Esta emergência não é a quebra no previsto, é sua radicalização, seu presente levado à enésima potência. O que esperar quando uma propaganda de banco nos diz para “reinventar o futuro” por meio do empreendedorismo e dos empréstimos (expandindo a forma contemporânea mais eficaz de controle social: o regime da dívida)? “Aconteça o que acontecer, não parem de negociar”, eles nos dizem. Este futuro não é novo, é uma manutenção do mesmo. O que essa propaganda expõe é que quando muitos morrem ou simplesmente vão à falência, o lucro dos bancos não cessa de crescer. Com isso, o banco convida cada um, por meio da peça de marketing, a ver na morte do outro, uma oportunidade pra si. Assim a racionalidade neoliberal opera com a mesma lógica de campos de concentração sob a rubrica da liberdade de escolha (dentro do que está posto) e do “senso de oportunidade” (mas pode chamar de oportunismo mesmo). “Se 2020 virar uma tragédia,


corra para as ações dos bancos” - nos diz outra propaganda. Como observou Deleuze, ao caracterizar as sociedades de controle, “o marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente de nossos senhores” (Gilles Deleuze. Post-scriptum sobre a sociedade de controle). E viver para trabalhar. Trabalhar em casa faz com que sintamos como se não estivéssemos trabalhando, o que se traduz em trabalhar cada vez mais, em qualquer horário e sem intervalos fixos. A modernidade capitalista se definiu como estabelecendo uma separação entre o tempo do trabalho e o tempo da vida. Tal separação é uma das fraturas que a revolução industrial introduziu, e veio acompanhada de uma concepção de temporalidade cada vez mais discricionária e rígida. Outras dicotomias modernas surgem conjuntamente: a separação entre um âmbito público e privado; exercício da política e vivências diretas; representantes e representados. Atualmente, com a intensificação das tecnologias computo-informacionais, mas não por causa delas, pode-se dizer que opera-se cada vez mais um apagamento dessas fronteiras, não com o privilégio da vida concreta senão que com o advento da pura abstração da existência real. Procura-se, enfim, matar a temporalidade por completo através da sua aceleração. E de tal modo que não se possa nunca estar aí, no momento presente. No âmbito do trabalho, isso significa que a vida não se separa mais do trabalho rigidamente, mas não porque este volta-se a incorporar a ela como um dos aspectos, senão que o trabalho se torna um absoluto que toma todos os espaços, governa todas as ações. A vida, aquela que não acontece senão no momento presente, é suprimida, diminuída, precarizada, esmagada. E certamente as pessoas já perceberam que o trabalho remoto é uma das faces da precarização. Nenhuma condição básica fornecida pelo empregador, sem horário de almoço, o dia


inteiro dedicado a cumprir funções produtivas na sua própria casa e com a utilização de seus próprios meios (espaço de trabalho, computador, conexão de internet, água, luz etc.), trata-se de uma auto-exploração generalizada. A jornada dupla, com a qual sobretudo as mulheres sempre tiveram que lidar na medida em que acumulam sobre seus ombros a função do cuidado e da reprodução, é agora cada vez mais sobreposta, intensificada. Se nenhuma temporalidade é sua, termina que também que nenhum espaço é ainda o que você habita. Sem pertencimento, você percebe-se enfim um funcionário em sua própria casa. O outro lado do trabalho remoto generalizado é, claro, o consumo remoto, todas as relações reduzidas a essas duas (que são dois lados de uma mesma moeda) e essas duas totalmente digitalizadas: um banco de dados exaustivo de gostos, hábitos, preferências. O governo da vida por meio de uma infinidade de cálculos algorítmicos. O panopticon é digital na prisão domiciliar a tal ponto de se inverter e tornar o sujeito vigia de si mesmo ou, ainda, uma forma plástica no campo dos monitoramentos capaz de, a um só tempo, desempenhar o papel de vigia e vigiado, produtor e consumidor de dados (cifras, conteúdo, informações, etc.). Aparentemente a tecnologia dominante não é capaz de gerar um aplicativo que funcione adequadamente para possibilitar o pagamento urgente de um auxílio mínimo que é, enfim, de emergência. Mas certamente é suficiente para monitorar todos os seus passos, governar as condutas em fluxos computoinformacionais para produção de subjetividades assujeitadas. Diante da catástrofe, insistimos em olhar para fora. Creditar a uma causa excepcional e exterior é a melhor maneira de nos mantermos em inação e é, também, o meio pelo qual os poderes conseguem fomentar o desejo pela volta a uma normalidade virtual, imaginária e reconfortante, que supostamente devolveria o contato coma


vida. Assim, se reconfigura e se estende os conservadorismos que nem sempre se apresentam em sua roupagem mais convencional. Como observa o Comitê Invisível, “não foi o mundo que se perdeu, fomos nós que perdemos o mundo e o perdemos sem parar; não é que ele em breve vai acabar, nós que estamos acabados, amputados, cortados, nós que recusamos alucinadamente o contato vital com o real. A crise não é econômica, ecológica ou política [ou sanitária], a crise é antes de tudo crise de presença”. (Comitê Invisível - Crise e Insurreição). A educação é um capítulo à parte neste momento. Que as escolas tenham migrado tão rapidamente para a modalidade à distância realizando um desejo antigo daqueles que pretendiam destruir a educação pública e tudo que ela possui de potenciais resistências. Muito já foi dito sobre como a luta da educação esteve na linha de frente das insurreições contemporâneas e como se constitui como um espaço potente para a emergência de novos possíveis. No entanto, agora, o trabalho do professor em sala de aula passa ser supostamente substituído por uma transmissão online, um vídeo, um compartilhamento digital de conteúdo... Isso é tudo que se desejava para acelerar ao mesmo tempo a precarização da docência, o sucateamento da educação por parte do Estado e o controle de tudo aquilo que é veiculado, os conteúdos de aulas, reuniões pedagógicas e até a simples troca de ideias entre colegas passa alimentar os big datas, tornando-se rastreáveis e governáveis algoritmicamente. Desnecessário é dizer aqui o quanto este projeto é ainda mais excludente. Mas a pandemia é aproveitada para que isso seja estabelecido como uma tendência geral, para que um novo normal se estabeleça em contraste com os tempos duros tempos de privação vividos durante a administração da catástrofe. Triste é ver colegas professores se submetendo à servidão


voluntária tão rapidamente, como que para garantir uma reserva de mercado, garantir um espaço por meio de uma adaptação sem a qual acreditam estar condenados à miséria ou extinção, sem perceber que já estão, por isso mesmo, mergulhados nelas até o pescoço, se não na total miséria material, na indigente miséria existencial. Mais uma vez a liberdade de escolha própria da racionalidade neoliberal mimetiza a política de extermínio dos campos, é sempre possível escolher entre fazer o que se espera (adaptar-se, ser resiliente) ou morrer de fome ou acumular um sem número de sofrimentos psíquicos e frustações. E tudo para evitar o “o pior” ou aceitar o menos ruim. Abolir a vida para salvar uma pálida sombra refletida do que ela poderia ser. Mas o que poderia ser o pior? O pior não é a morte, esta é naturalizada até se tornar política pública na nossa sociedade quando se trata de se evitar esse tal pior fabricado. À morte de milhares pode-se responder com um simples ‘e daí?’, isso por si só não significa muito. Que alguns se tornem matáveis é a dimensão necropolítica da exceção democrática generalizada. A morte é, infelizmente, o totalmente aceitável para a manutenção da economia e da obediência. Tanto é assim que é largamente sustentado que alguns devem continuar trabalhando ainda que se arriscando a morrer. A definição autoritária e vertical do que é essencial chegou ao ponto de, ao declarar lockdown, a prefeitura de Belém do Pará incluir o trabalho de domésticas entre os serviços essenciais. Nessas hierarquias governamentais a vida sempre aparece apenas como representação mensurável estatisticamente a ser manejada de maneira que cadeias de obediência e de produtividade se mantenham inalteradas. Quando a morte rondando, a possibilidade de morrer, se torna um modo de governo, de gerir populações, o nome disso é necropolítica. Opera neste contexto a necessidade sempre de separar


quem deve morrer e quem não deve. Quando em um hospital se escolhe quem vai ou não ocupar um leito, seja pelo critério da idade ou da classe social, o que está operando ali é a escolha entre quem vive e quem morre, são vidas, assim, que são tomadas como menores. Agora as pessoas estão morrendo na fila da UTI, esperando um respirador, ou seja, elas estão morrendo sem atendimento médico. A separação entre a rede privada e a rede pública apenas deixa evidente que a vida de alguns vale menos. E agora que as mortes entre os ricos e brancos começam a cair e a entre periféricos e negros cresce, por que não diminuir as medidas restritivas?! Quando se diz que alguns precisam continuar trabalhando para que a economia não pare, se toma não apenas um critério ético de valor entre dinheiro e necessidades, como se divide vidas que apenas têm direito a continuar se continuarem produzindo, de vidas que valem nelas mesmas. É realmente terrível quando temos toda uma sociedade pronta para repetir e assinar embaixo disso. Quando mesmo não estando entre aqueles que são tomados como valendo neles mesmos, repetem que quem não estiver se arriscando não vale mesmo viver. A situação das favelas hoje aponta justamente nesta direção, pois a existência daqueles que parecem viver apenas para produzir precisa ainda ser afirmada com um valor. Muitas são as iniciativas hoje de resistência e auto-organização das periferias, pois trata-se de territórios que sofrem ataques diários já faz muito tempo. E mesmo em meio à pandemia, as operações militares não pararam. Isso obviamente não é um acaso, é preciso manter as pessoas acuadas e com medo em um momento no qual o direito à vida está sendo recusado e o básico está faltando. Quando as condições mínimas de sobrevivência são negadas, a única atitude ética possível é aquela que afirma que a vida vale mais do que o capital. Diante dessa realidade, em uma


prevenção às ações diretas de pessoas que estão sendo deixadas pra morrer, a resposta do estado policial é se utilizar da exceção para aumentar a repressão e o controle. Quando se diz que a vida e a economia são dois lados de uma mesma moeda, o que se quer dizer é não há vida para além da economia. Que sem o capitalismo funcionando, todos nós morremos de qualquer modo. O que queremos dizer aqui é exatamente o oposto disso: não apenas a vida persiste à economia, ao trabalho, ao primado do capital, como, esta vida que insiste para além do reino do capital é capaz de se constituir em uma outra ‘forma’ de viver, uma vida outra, apartada da obediência e da produtividade. Se o momento atual deixa evidente uma certa “luta de classes”, ele deixa exatamente no sentido de que os interesses do capital não são o interesses da vida. Em última instância é uma luta entre formas de vida. Cabe a cada um, diante da catástrofe, olhar para a vida como uma forma que ultrapassa o fato biológico e que não se resume à produtividade capitalista e à obediência ao Estado. Mas então o que é esse pior que precisa ser evitado? O pior não é a morte de muitos, é a sombra que ronda a nossa civilização, aquele pelo qual e em nome do qual qualquer intolerável se torna normal. É importante acreditar-se que o pior ainda não aconteceu para que ele permaneça lá no horizonte gerando medo, como algo a ser evitado e que justifique qualquer medida de governamental de exceção e que, subjetivamente, se aceite toda sorte de aviltamento da existência e achatamento da vida. Por vezes, o pior recebe alguma personificação, o criminoso, o terrorista, o não-humano; outras vezes, como agora, aparece como um inimigo biológico invisível que forja mais uma vez, por oposição, a tal Humanidade da qual tantos são excluídos. Mas o que talvez não queiram dizer expressamente é que o pior para eles é a falência


de sua civilização, a morte dessa vida sem forma que agora ronda de modo tão evidente. É que paremos de produzir para eles e de pagar aluguel; é que deixemos de quitar prestações e comecemos a nos autogerir; é que paremos não apenas pegar empréstimos, mas também de pagar os que já contraímos; é que diante do novo coronavírus possamos escolher salvar uns aos outros e deixar queimar os bancos. É para evitar que possamos ver isso como uma solução que nos dizem para temer o caos, para temer a falência do Estado mais do que ao vírus, como se esta fosse a verdadeira guerra de todos contra todos, eles nos dizem isso desde sempre, esse mito tão importante, construído para a aceitação do Estado. Não é porque não querem ver mortos, é por que preferem ver mortos do que a propriedade privada sendo colocada em questão. Querem ver pilhas de corpos, mas não querem ver lojas saqueadas e bancos quebrados. Temem que diante do desespero possamos ver que tudo que precisamos já está aí esperando para ser pego, desde que nos livremos deste modo de vida. Temem que nos lembremos que o que vale em si mesmo é a nossa vida e não o capital. A guerra de todos contra todos não vem em situações como esta, muito pelo contrário, o que se vê é o apoio mútuo entre as pessoas, as solidariedades imprevistas, novas maneiras de se auto-organizar surgindo. Por outro lado, é o Estado que continua matando, fomentando a guerra civil e mobilizando tropas entre os que são alvo de suas balas. Nos dizem para temer o caos para que possamos aceitar a morte. Não há como negar mais: o modo de vida ocidental generalizado é um fracasso incapaz de fornecer as condições básicas à vida, quando muito oferece uma forma de vida rebaixada entre empregos de merda e relações humanas miseráveis. Busquemos construir agora nossa vida outra, em liberdade e autogestão Por que então tentar manter este edifício em pé? Que sejamos nós este pior tão temido, e que


ele se imponha como aquilo que afirma intolerável as medidas da normalidade que agora se apresenta como emergência-continuada. Não, nada disso é tolerável e do outro lado não está o tão temível inimigo fabricado; o temível selvagem da guerra de todos contra todos. Do outro lado está o que não está posto. No Chile, onde as manifestações de rua e os conflitos com a polícia continuam fortemente em meio à pandemia, manda-se um recado para todo o mundo: se podemos trabalhar, podemos protestar. Isso nos diz um pouco sobre que vida vale a pena ser vivida e defendida. “Nós não esperamos nem o millenium nem o apocalipse. Não haverá nunca paz sobre essa Terra. Abandonar a ideia de paz é a única paz verdadeira. Perante a catástrofe ocidental, a esquerda adota geralmente uma posição de lamentação, de denúncia e, portanto, de impotência, que a torna detestável até aos olhos daqueles que pretende defender. O estado de exceção no qual vivemos não deve ser denunciado, deve ser virado contra o próprio poder. E eis-nos libertos, de nossa parte, de qualquer consideração em relação à lei – na proporção da impunidade de que nos arroguemos, da relação de forças que criemos”. (Comitê InvisívelCrise e Insurreição) Esperamos que o momento presente, que atesta a falência do sistema reinante, abra o caminho para outras maneiras de viver ainda que em plena situação de calamidade e exceção de uma crise sanitáriosecuritária. Não, não vai passar. Que haja um futuro para além das negociações, da economia capitalista, este é o único futuro que ainda talvez seja possível e, então, que a exceção generalizada possa ser estabelecida contra a forma-Estado. Diante do estado de exceção sanitário-securitário imposto como saída à catástrofe viral deve se erguer a revolta, a única capaz de produzir um verdadeiro estado de emergência, a emergência de uma vida outra.


Acácio Augusto é professor no Departamento de Relações Internacionais da UNIFESP e coordenador do LASInTec (https://lasintec.milharal.org/). Camila Jourdan é professora de Filosofia na UERJ e autora de 2013: memórias e resistências. Ed. Circuito, Rio de Janeiro, 2018.


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