o fantasma do acadêmico inútil: pensamento crítico em tempos de coronavírus Ghassan Hage
Tradução Rodrigo C. Bulamah
Gosto de imaginar que muitos intelectuais concordariam que a última coisa da qual precisamos durante uma pandemia são intelectuais, muito menos de intelectuais ‘críticos’. Claro, não me refiro aqui aos ‘especialistas’, figuras sempre necessárias na medida em que seu conhecimento é considerado como tendo um valor prático. Afinal, ‘salvar a humanidade do vírus’ é uma empreitada que não deixa espaço para pontífices inconvenientes que, no máximo, atrapalham mais do que ajudam no esforço coletivo de salvar o maior número de vidas possível e de preservar a capacidade do social reemergir de maneira eficiente. Esses esforços são orientados, como devem ser, por um conjunto médico, político e policial direcionado a organizar a sociedade a fim de impedir a difusão do vírus e de assegurar que hospitais deem conta do fluxo de pessoas afetadas ao mesmo tempo em que é mantida a reprodução das funções econômicas necessárias para a sobrevivência. Urgência de ação e reflexividade intelectual não são necessariamente compatíveis. A crítica de Bourdieu à razão escolástica torna-se aqui mais necessária do que nunca. O autor usa o exemplo do gramático passeando na beira de um lago quando avista alguém gritando: ‘afogando... eu estou’ e diz às pessoas à sua volta: ‘temos aqui um exemplo de mau uso da gramática’. Em tempos de crise, sobretudo, há algo fundamentalmente antiético em tratar a realidade como existindo ao propósito de servir de exemplo para nossas teorias sobre o capitalismo, o colonialismo, a biopolítica ou qualquer coisa do tipo. Porém, mesmo sem uma inclinação escolástica, um intelectual crítico – um profissional cujo trabalho é observar, pensar, refletir e transmitir ideias – pode ser um verdadeiro incômodo em circunstâncias de urgência prática. Isso se dá, pois a temporalidade da crítica e a temporalidade das
ações de urgência são geralmente incompatíveis. Imagine alguém dando instruções ao capitão do Titanic explicando que é preciso entender como o colonialismo foi um fator central nesta tragédia vivida por todos enquanto ele tenta salvar o maior número de passageiros possível. Nessas situações, é melhor ser um ativista do que um intelectual, avisando os passageiros da terceira classe que muito provavelmente há clivagens de classe e raça no acesso a botes salva-vidas, por exemplo. Embora as pessoas sejam pouco receptivas a qualquer trabalho intelectual crítico nessas circunstancias, eu imagino que um ‘trabalho intelectual politicamente crítico’ seria ainda menos bem-vindo. Por exigir da sociedade esforços imensos e profundamente existenciais, pandemias abrem a porta para políticas bipartidárias e pessoas que tentam fazer uso político de um esforço contra o vírus não são vistas com bons olhos. Algumas o são, claro. Contudo, se lhes falta sutileza, elas são rapidamente percebidas como pessoas que priorizam um jogo político sectário em meio a uma guerra contra um inimigo invasor e que parecem pouco dispostas a compartilhar o imperativo geral de que ‘agora é hora de lutar contra o inimigo e nada mais’. Isso abre a possibilidade de que essas pessoas sejam compreendidas e deslegitimadas como quasetraidoras, por quem quer que seja. Ainda assim, é desnecessário dizer, muita coisa precisa ser intelectualmente criticada em meio a uma pandemia. Se o vírus parece assumir uma forma a-social, ele é vivido efetivamente como algo social, e o esforço em contê-lo, seja por meio da prevenção ou da medicação, continua sendo um esforço social. Por isso, ele é marcado por todos os preconceitos e relações de poder que definem qualquer ação humana: racismo, colonialismo, preconceito de classe, sexismo, preconceitos
heteronormativos. Tudo isso participa da conformação dos modos como uma sociedade lida com um vírus. Precisamente por darem lugar a metáforas de guerra, como as mencionadas acima, é que pandemias criam espaços particularmente abertos a temas políticos reacionários, tais como ‘coesão’, ‘unidade’ e ‘propósito comum’. E há uma dimensão política em jogo precisamente em razão dos sujeitos que os professam serem os mesmos a dizer: ‘agora não é o tempo para a política’. Similar ao cão de Pavlov, qualquer resposta criticamente imaginativa a isso soaria, de imediato, como o aviso de um banquete. Face a uma pandemia, no entanto, há algo de verdadeiro na afirmação de que ‘agora não é o tempo para a política’ e dedicar-se à crítica intelectual e política não pode e não deve ser tomado como uma tarefa fácil. A falta de consciência de que vivemos em uma situação contraditória, a um só tempo hiper- e a-política, está fadada a criar aquele mesmo pontífice inconveniente e inútil do qual falamos há pouco. Suponho que um intelectual crítico se preocupe não só em ter razão, mas em se fazer ouvir. Questões estratégicas sobre o tom, o momento, sobre o que dizer e o que não dizer, sobre o quanto insistir, todas elas se tornam particularmente importantes. Sem dúvida, com ou sem pandemia, a figura fantasmagórica do comentarista inútil e repetitivo, incessantemente negativo e incessantemente tagarela, sem nada a dizer que possa afetar positivamente a vida dos outros, sempre assombra os intelectuais. Nos assombra, pois às vezes ela captura com precisão como alguns dos que nos ouvem ou nos leem podem nos compreender ou como, inevitavelmente, nos compreendem. E, por mais que nos incomode admitir, isso nos assombra também porque captura o que nós muitas vezes podemos ser e, não tenho dúvidas, às vezes de fato somos.
Pessoalmente, eu sei que isso é algo contra o qual eu mesmo preciso lutar constantemente. Eu posso até dizer, sem nenhum exagero, que durante toda minha vida de trabalho como acadêmico, professor e escritor, um dos meus objetivos principais sempre foi tentar não me tornar essa figura do ‘acadêmico incessantemente tagarela e inútil’. Por isso, ouvir pessoas dizerem que minhas aulas e meus textos influenciaram suas vidas de maneira positiva foi e continua sendo algo imensamente motivador. E mesmo tendo recebido um conjunto suficiente de retornos positivos de estudantes e leitores sobre o meu trabalho a ponto de me sentir confiante sobre seu efeito nas outras pessoas, eu sei que não estou alheio a cair em tagarelices negativas. O fantasma do acadêmico inútil continua a me assombrar. Apesar disso, e mesmo entendendo que o que concebo como útil não se aproxima em nada do que Sara Ahmed (2019) escreve em seu livro único e primoroso sobre “os usos do uso”, devo admitir que nunca tive uma concepção muito estrita do que significa ser útil. E nunca tomei como minha uma concepção crua, conservadora, excessivamente pragmática e anti-intelectual do que é a utilidade. Quando penso no que é útil, sempre penso em algo que é participativo, no sentido proposto por Lévy-Bruhl1. Algo que expande a vida das pessoas. Nesse sentido, um cafuné, uma música, o som dos pássaros, uma paisagem bonita, uma boa leitura estimulante, a poesia, um bom livro de ficção científica, tudo isso eu considero como sendo útil. Se eu estou a bordo do Titanic, prefiro me esforçar para dizer algo que tenha o mesmo efeito 1 Diferente da concepção ocidental dominante de vida enquanto atributo de seres autônomos e discerníveis, Lévy-Bruhl (1985) argumenta, baseado em dados etnográficos amazônicos, que pessoas, assim como objetos e animais, podem participar em, e aprimorar, a existência uns dos outros. Ver também Hage (2017) para a relevância deste argumento para se pensar relações alternativas com a natureza frente ao aquecimento global.
da música tocada por aquele quase-mítico conjunto que continuou seu show até o fim. Acho que tudo isso me fez estar mais disposto, quando pensava no COVID-19, a querer deixar de lado o cenário de urgência política e existencial. Me sinto mais inclinado a escrever sobre novas situações produzidas pelo vírus e novos modos de vida que ele trouxe à tona. Essa não é uma sugestão normativa. É simplesmente a forma como eu tento dar continuidade ao meu trabalho de reflexão mesmo em meio a todas essas dificuldades. Termino, então, trazendo dois exemplos. Uma coisa que me chamou a atenção como possível objeto de estudo desde o início da epidemia de coronavírus é a experiência de vulnerabilidade. Tenho pensado particularmente na relação entre vulnerabilidade e ansiedade. O que estava claro desde o começo, em Wuhan, eram as diferenças de vulnerabilidade na forma como saúde e idade se relacionavam com o vírus. Pessoas com mais de 70, pessoas com diabetes, pessoas com problemas de coração e complicações respiratórias foram todas consideradas mais vulneráveis ao vírus. Mais vulneráveis não significa mais propensas a pegar o vírus, mas mais suscetíveis a serem afetadas por ele de forma grave e, de fato, mais suscetíveis a morrerem por conta disso. Porém, essa não era uma regra incontornável: houve um número suficiente de casos de pessoas jovens sem problemas de saúde preexistentes que apresentaram sintomas graves. Isso mostrou que não havia uma correlação inflexível entre distribuição da vulnerabilidade (a possibilidade objetiva de ser afetado pelo vírus) e a distribuição da ansiedade (isto é, do sentimento de vulnerabilidade). O fato de eu pertencer a uma categoria social com menos probabilidade de morrer pelo COVID-19, enquanto meu amigo é alguém asmático e com mais de 70 anos, não significa que na semana que vem não possa ser eu a precisar de cuidados intensivos ao mesmo
tempo em que meu amigo não sente desconforto algum. Isso me fez pensar sobre a diferença entre as probabilidades estatísticas e a experiência das probabilidades estatísticas – e como essa experiência é moldada por classe e gênero assim como por raça e fatores coloniais. Isso também me ajudou a refletir sobre as diferentes políticas levadas à frente por meio do governo de vulnerabilidades distintas e do governo de ansiedades distintas e como isso pode complexificar nossas concepções herdadas do que é ‘biopolítica’. Outro fenômeno particularmente interessante e que atraiu minha atenção é que enquanto as metáforas de guerra usadas para descrever a forma como a sociedade está dando conta do vírus são bastante convencionais, nossas práticas subvertem noções usuais do que é resistência passiva e resistência ativa frente a um inimigo. Primeiramente, estamos diante da ideia de um inimigo que não pode ser derrotado por um confronto heroico nas ruas, mas deixando-o passar. Em situações normais de confronto, esconder-se em casa é o que fazem os covardes e os que não podem lutar. É uma opção por sermos passivos frente a um inimigo. Mas aqui, contra o COVID-19, esconder-se é a coisa mais ativa que alguém pode fazer. Aquele que insiste em se manter nas ruas é quem está passivamente garantindo a vitória do vírus. Não dizemos ‘No Pasarán’ bloqueando as ruas, mas indo pra casa e lavando as nossas mãos. Sendo uma subversão de nosso imaginário dominante que define o que é resistência passiva e ativa e, por isso mesmo, por ir contra nosso senso comum sobre ambos, essa diferença é às vezes tão difícil de ser internalizada. Se o vírus é o inimigo, os colaboradores são os que, tal qual os libertários de direita nos Estados Unidos, querem confrontálo ‘de cabeça erguida’. A resistência vem dos que sabem o que é preciso para fazê-lo parar de circular. Eles o fazem simplesmente saindo de seu
caminho. Nesse sentido, a resistência ao COVID-19 pode nos ajudar a refinar diferentes concepções do que significa resistência. Isso nos convida a pensar que tais estratégias de recusa em ser um transmissor, de desvetorizar-se, por assim dizer, pode ser transposto de maneira proveitosa para outros espaços onde podem ser boas alternativas a estratégias mais centradas no confronto. De saída, posso pensar imediatamente que tal recusa em ser um agente de transmissão é, de longe, uma estratégia muito melhor contra o Trump e o trumpismo. De fato, este último pode ser pensado como um vírus social que se desenvolve ao entrar em circulação. Não importa se ele circula através de pessoas que concordam com ele ou entre pessoas que lhe são críticas, pois enquanto permanecer mantendo mais e mais pessoas ocupadas, significa que ele está indo bem. O trumpismo te ocupa quando te deixa preocupado. Por isso, não se pode resistir a ele através do confronto e da crítica, mas por meio da recusa em ser seu vetor de transmissão. Referências Ahmed, S (2019) What’s the Use: On the Uses of Use. Durham, NC: Duke University Press. Hage, G (2017) Is Racism an Environmental Threat? Nova Iorque: Polity Press. Lévy-Bruhl, L (1985) How Natives Think. Princeton, NJ: Princeton University Press. Publicado originalmente como “The Haunting Figure of the Useless Academic: Critical Thinking in Coronavirus Time” no European Journal of Cultural Studies, em maio de 2020. Disponível em: https://doi. org/10.1177/1367549420926182, acesso em 23 de maio 2020.
Ghassan Hage é professor de antropologia e teoria social na Universidade de Melbourne. Sua pesquisa atual se debruça sobre as diferentes concepções do que constitui uma vida viável. Suas publicações incluem Alter-Politics: Critical Anthropology and the Radical Imagination (2015) e Is racism an Environmental threat? (2017).