Zine Clínicas de Borda 19 - Psicanálise na Praça Roosevelt (São Paulo/SP)

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Coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt


COLEÇÃO DE ZINES DAS CLÍNICAS DE BORDA BRASILEIRAS A Coleção de Zines das Clínicas de Borda Psicanalíticas Brasileiras, aberta a novos fascículos, nasce da experiência compartilhada de psicanalistas inconformadas e inconformados com a resposta clínica de seu fazer e de sua formação face à realidade nacional brasileira, exposta à brutalidade e à violência estrutural. Trazem experiências múltiplas e plurais, sem necessariamente criarem um mínimo comum, nas quais experimentam o vigor da práxis psicanalítica na transformação de sujeitos, processos, espaços públicos, modos de pertencimento e participação, meios de formação. Nasceram da resistência dos movimentos sociais, em reação a genocídios, suicídios, chacinas, feminicídios e homicídios, deslocamentos migratórios, nas periferias, praças, estações, ocupações, quilombos. Seu fazer é produto da rua e dos modos possíveis de cuidado a que o enlace transferencial na direção do tratamento psicanalítico dá visibilidade e nome a corpos apagados no cotidiano. Instituem elementos necessários na teoria e na prática, revisitando as clínicas públicas e populares, datadas dos tempos de fundação do campo psicanalítico com Sigmund Freud. Reviradas pela experiência do Sul Global, em elipse, olham o avesso do espelho e atravessam suas fronteiras. Marcam, em ato, o cinismo e a indiferença contemporâneos com novos modos de partilha e de presença. Saem definitivamente do modelo burguês do consultório individual. Recebem os analisantes, tanto online, quanto em cadeiras expostas ao sol, a fim de escutarem seu sofrimento. Colocam o pagamento em xeque, não mais no cheque. Trazem a marca de sua região, de sua língua, das ricas expressões dos dialetos brasileiros. Distribuem-se em cada canto do país e questionam o modo de circulação do capital e de resposta do inconsciente às violações cotidianas. Interrogam os fundamentos da própria noção de clínica psicanalítica e da lógica excludente da formação do psicanalista, enfim, sua presença na polis. Elas não estão todas reunidas aqui. A coleção, aberta, aguarda novas presenças nessa escrita histórica. A psicanálise mudou. A gente queria que você soubesse.


Zine Clínicas de Borda Coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt Coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt, 2023 Editora n-1, 2023 ISBN: 978-65-81097-82-0 Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagem e a especificidade de cada obra publicada. COORDENAÇÃO EDITORIAL Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes DIREÇÃO DE ARTE Ricardo Muniz Fernandes CAPA E DIAGRAMAÇÃO Thata Oliveros COMITÊ EDITORIAL DA COLEÇÃO CLÍNICA DE BORDAS Andréa M C Guerra Augusto Coaracy Daniel Mondoni Marta Togni Ferreira Pedro O. Obliziner A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessário a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. 1° edição | outubro, 2023. n-1edições.org


Título: Coleção Clínicas de Borda Autor: Coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt Medidas: 14x21 Número de páginas: 28 Assunto geral do livro: Psicanálise de rua Palavras chave: Psicanálise; Clínica pública; Política; Clínica de borda ISBN: 978-65-81097-82-0


Zine Clínicas de Borda COLEÇÃO: 1. PsiMaré (Rio de Janeiro/RJ) 2. MOVE: Movimentos Migratórios e Psicologia (Curitiba/PR) 3. ClínicAberta de Psicanálise de Santos (Santos/SP) 4. Falatrans (Juiz de Fora, UFJF/MG) 5. Ocupação Psicanalítica (Belo Horizonte/MG; Rio de Janeir/RJ; Vitória/ES; Santo Antônio de Jesus/BA) 6. Estação Psicanálise (Campinas/SP) 7. Coletivo Margem Psicanálise (Fortaleza/CE) 8. Intervenção Psicanalítica Clínico - Política às demandas da População LGBT (Rio de Janeiro/RJ) 9. Rede Sur (São Paulo/ SP) 10. Roda de escuta/grupos flutuantes LGBTQI+ (Aracajú/SE) 11. Clínica Periférica de Psicanálise (São Paulo/SP) 12. Clínica do Cuidado (Altamira/PA; São Paulo/SP) 13. Coletivo Psicanálise e Política e Cotidiano Refugiado (Rio de Janeiro/RJ) 14. Projeto Gradiva (Porto Alegre/RS) 15. Museu das Memórias (In)Possíveis (Porto Alegre/RS) 16. Psicanálise na Rua (Cuiabá/MT) 17. Coletivo Testemunho e Ação/SIG (Porto Alegre/RS) 18. Margens Clínicas (São Paulo/SP) 19. Coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt (São Paulo/SP) 20. Psicanálise no Jacarezinho (Rio de Janeiro/RJ) 21. Mutabis (São Paulo/SP) 22. Clínica Aberta Casa do Povo (São Paulo/SP)



INTRODUÇÃO "Desejo de manter o coletivo vivo", frase que aparece na ata-artística da reunião de 22/09/2020, e nos atravessa, desde maio de 2017 até os dias de hoje. Em julho daquele ano colocamos as cadeiras de praia no centro da cidade de São Paulo/SP, na Praça Roosevelt, pela primeira vez. Abrimos a possibilidade de que as pessoas que circulavam por lá se deparassem conosco, com uma placa que dizia "Clínica Aberta de Psicanálise – Público e Gratuito", e com a possibilidade de escuta psicanalítica junta ao eventual desejo de falar. Nesse primeiro dia, realizamos apenas um atendimento, mas esse número variou muito, chegando nos dias mais cheios ao número de quarenta pessoas. Os atendimentos passaram a acontecer todos os sábados das 11h às 14h, com a proposta de não haver valor em dinheiro cobrado pela sessão. Nosso começo é marcado pela invenção de um setting-praça e do deslocamento do dinheiro como forma única de se determinar o valor de uma sessão. Desde então, vamos à praça todos sábados presencialmente (online durante a pandemia). Às terças nos reunimos para discutir os processos coletivos e os casos clínicos – ponto este que se tornou central na construção de uma transferência de trabalho entre as analistas. Construímos uma lógica clínica coletiva que nos permite apostar na psicanálise feita extramuros, numa praça. E qual foi a primeira fagulha para compor esse desejo coletivo de ir à praça e lá fazer uma clínica em 2017?


CLÍNICA NA PRAÇA ROOSEVELT Em maio daquele ano, estávamos a cerca de seis meses do golpe parlamentar que retirou a presidenta Dilma Rousseff do governo. Estávamos um tanto desestabilizados com o atentado à democracia e diante de um não saber face à emergência conservadora. Eram execráveis as manifestações fascistas, como as saudações aos torturadores da ditadura em pleno Congresso Nacional e nas ruas. Cada vez mais tais manifestações tomavam o espaço na vida pública e vários de nós nos encontrávamos divididos entre incredulidade e ímpeto de luta e resistência. Foi, então, a partir de um instante de ver, permeado por um não saber e seu sucessivo momento de compreender, o que nos levou ao ato de ocupar a praça. Pode-se dizer que o não saber teve uma função de formar coletivo, uma primeira fagulha que afetou os desejos de cada um de nós. Já em uma perspectiva local, a Praça Roosevelt recém havia sofrido uma tentativa de cercamento a partir de um projeto de lei que propunha a transformação da praça em parque, a fim de controlar o fluxo e permanência de frequentadores, principalmente no período noturno. Esse projeto de lei foi construído de maneira unilateral por parte de moradores insatisfeitos com a alta circulação de pessoas de diversas origens sociais e geográficas. Para estes moradores não seria conveniente que as pessoas chegassem em busca de lazer gratuito e ocupassem a praça de maneira que lhes é incômoda, alegando que haveria excesso de barulho e lixo produzidos pelos frequentadores. Mas não é só isso. O desejo de fechar o espaço, controlando a entrada, a saída e os modos de permanência na Roosevelt, tem forte viés higienista e gentrificador. Se medidas classistas e racistas já eram comuns na cidade, agora encontram ainda mais forças no momento político autoritário que atravessa o país desde 2016. O projeto de cercamento da praça, ao vir a público, causou forte reação de moradores, comerciantes e frequentadores que conseguiram se


organizar para fazer pressão política e forçar que a ideia fosse engavetada. Porém, o desejo de controle do espaço e dos corpos que ocupam o espaço público ficou desnudo e insiste em se fazer presente de diversas outras maneiras. Diante desse cenário, ocupar a praça com nossos corpos e nossas escutas um ato político em favor do acesso não só à psicanálise, mas também ao espaço público, ao direito à cidade, assim como fazem tantos outros atores que lá atuam. Nossa presença enquanto trabalho clínico se contrapõe ao esvaziamento do espaço público. Nossa chegada a esse território não se deu sem atravessamentos daquela política autoritária, de controle. Bastou que colocássemos nossas cadeiras ali para que fôssemos reconhecidos como um grupo organizado em prol de alguma atividade coletiva específica, o que levou à inspeção do coletivo por agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM),a pedido de algum morador local. Esta não foi a única abordagem policial, mas reconhecemos que não passamos por tantas quanto costuma ser comum a outros coletivos compostos por pessoas negras e/ou reconhecidas por agentes de segurança como estrangeiros ao território. Da mesma forma, as abordagens não foram tão agressivas quanto tantas outras que presenciamos, quando os alvos das ações são pessoas em situação de rua ou mesmo jovens negros que por ali estão andando de skate ou realizando alguma atividade encarada como perturbação. Assim, se a proposta de uma atividade coletiva nos coloca à mercê da desconfiança de vizinhos e agentes policiais, por outro lado, é importante reconhecer que o fato de sermos predominantemente brancos nos protege de sermos vistos como ameaça e expostos aos excessos dos agentes de segurança pública ali instalados. Encontramo-nos, até hoje, Inquietos com o momento político, no qual a explicitação do preconceito e discriminação ganha status de normalidade, gerando uma crescente violência contra pobres, negros, comunidade LGBTIA+, pessoas em situação de rua e outros grupos minorizados. Atuando numa configuração clínica baseada na


perspectiva da Clínica Pública e, também, praticando uma outra forma de organização, não institucionalizada e não hierárquica, como falaremos adiante. Desejamos que outras formas de circulação da palavra, como é a psicanálise, estejam presentes na política do espaço público.


CLÍNICA ABERTA Esses são os marcadores políticos de nosso desejo. Mas para aprofundálos, é importante retornar às nossas origens. Em relação aos aspectos clínicos da formação do coletivo, em 2017, o fato disparador foi o diálogo com a Clínica Aberta de Psicanálise (Casa do Povo, no bairro Bom Retiro) e sua inventividade clínico-política. A primeira formação de pessoas a compor o coletivo veio de um chamamento feito por psicanalistas da Casa do Povo. Antes de ir à Praça Roosevelt, alguns de nós atendemos com eles e experimentamos um outro setting. Foi lá que ouvimos pela primeira vez expressões como "grupo analista" ou "rotatividade": aqueles que eram atendidos não teriam apenas um analista, mas seriam atendidos rotativamente por analistas componentes desse "grupo analista", os quais se reuniam regularmente para produção de um saber coletivo sobre a clínica. Além de um modelo clínico que estávamos "importando" da Clínica Aberta/Casa do Povo, trazíamos também essa referência em nosso nome, que era "Clínica Aberta de Psicanálise - Praça Roosevelt". E ainda: uma configuração com figuras que centralizavam o pensamento e a condução do coletivo. Porém, de saída havia uma diferença importante entre nós e a Clínica Aberta na Casa do Povo: o fato de que nosso trabalho precisava ser inventado naquela praça. Como a prática clínica psicanalítica é interpelada pelo território? Ainda mais uma prática que se pretende pública, tal como uma praça, cuja circulação, modos de uso e vasto campo de contingências tem incidência na clínica? Despontou que o mais interessante seria ser afetado pela Praça Roosevelt, ouvir suas lógicas e dizeres, muito mais do que uma atitude messiânica ou caritativa de "levar a psicanálise aos mais necessitados", numa lógica de oferta/demanda.


REFUNDAÇÃO É desse ponto em diante, estabelecendo diferenças clínicas e teóricas com nosso ponto de origem como "Clínica Aberta de Psicanálise", que nos nomeamos "Psicanálise na Praça Roosevelt". Esse é o momento que chamamos de "Refundação": é aí que (re)afirmamos o desejo de manter o coletivo vivo, de prescindir de figuras centrais de poder/saber e, acima de tudo, de pensar de forma autônoma nosso modelo clínico a partir do que encontrávamos na nossa prática. As ideias iniciais propunham como argumento clínico da rotatividade do analista favorecer a "sustentabilidade do coletivo", já que essa proposta metodológica possibilitava ao analista uma abertura maior quanto a sua participação. Ou seja, cada um pode estar na praça, aos sábados, da maneira que puder e quiser. Questionávamos se essa metodologia não estava mais a serviço dos próprios psicanalistas do que dos atendidos. Isso, conforme elaboramos e fomos interpelados, apontou para a dimensão de conveniência que a rotatividade de analistas teria, a conveniência para os próprias analistas. Porém, para não jogar o bebê fora com a água do banho, de fato pudemos seguir uma esteira de inventividade clínica a respeito do que estabelecemos como "rotatividade e fixação", advertidos dessa dimensão de conveniência. Isso será melhor aprofundado adiante. Outra questão central foi a afirmação do termo "coletivo" em detrimento de uma estrutura hierárquica, de escola ou coisa parecida. Isso não veio sem embates e debates, encontros e desencontros e a percepção de que entrelaçar trabalho clínico-político a um modo coletivo de funcionar a partir dos desejos é algo que necessariamente inclui conflitos constantes. Uma presença importante nesse momento é a dos textos "A tirania das organizações sem estrutura", de Jo Freeman, e a resposta a este primeiro texto, vinda poucos anos depois, no texto "Tirania da tirania", de Cathy Levine. O que então pudemos


extrair do debate destas autoras, originalmente estabelecido no âmago do feminismo estadunidense dos anos 1970, foi o reconhecimento de certa dimensão de poder ligada ao fato de operar a partir de uma lógica horizontal, sem uma estrutura hierárquica pré-estabelecida. O poder e práticas antidemocráticas se infiltram informalmente no fazer político coletivo, especialmente naqueles sem estruturas claras e definidas, mas podem ser tratados. No entanto, será que a única forma de ensejar a circulação de poder e um trabalho democrático é por meio do estabelecimento de "estruturas"? De todo modo, acabamos por aderir mais à resposta de Cathy Levine, mesmo reconhecendo a existência de dinâmicas que possam estabelecer privilégios numa prática pretensamente horizontal, conforme Jo Freeman expressa. Propusemos-nos a ir para uma versão mais advertida de uma composição coletiva e horizontal. Entendemos que apostaríamos na amizade como potência, não de infinita reafirmação narcísica, mas como diferença e suporte – afinal, éramos e nos mantivemos refratários às regras burocráticas e enrijecidas de trabalho, inclusive por não acreditar nelas como sustento de uma prática democrática.


ROTATIVIDADE E FIXAÇÃO Por estar em uma região central, o público que atendemos sempre foi diversificado, desde pessoas com certa estabilidade financeira até pessoas em situação de rua, moradores do entorno e pessoas de regiões mais afastadas. Já nos questionamos muitas vezes (e fomos questionados por outros) se estamos no local mais adequado para oferecer essa escuta ou se ela não seria politicamente melhor direcionada se nos colocássemos em um bairro onde a população tem menos acesso à psicanálise. Para além dos motivos referentes ao território, sustentamos também a posição de uma escuta oferecida indiscriminadamente para essa variedade de possíveis interessados, sem direcioná-la a uma população específica. Inicialmente apostamos no modelo da Clínica Aberta da Casa do Povo, com atendimentos por ordem de chegada e com rotatividade de analistas. Esse modelo mostrou-se pertinente para alguns casos, mas não para todos. Nossa proposta nunca foi de conseguir oferecer um atendimento universalmente abrangente, sempre tivemos ciência de que cada proposta tem suas limitações, mas isso não excluiu o constante questionamento e reflexões sobre a rotatividade. Fomos logo interpelados pela ideia de ser uma "recusa da transferência para pobres", que essa seria um privilégio de classes abastadas. Ou mesmo de "conveniência do analista", afinal este poderia não estar presente todos os sábados. Uma ideia que sugere, portanto, que essa seria uma diferença com o consultório privado em prejuízo da clínica pública, pois o analisante da praça não "teria o direito" de ter uma transferência contínua com um analista. Contudo, pudemos viver experiências que explicitam um movimento transferencial direcionado ao coletivo. Como exemplos, um paciente nos presenteou com um cavalete de madeira para apoiar nossa placa; uma outra paciente que trouxe


um bolo para que pudéssemos comer coletivamente. Após cinco anos de atendimento, ainda temos pacientes em rotatividade que começamos a atender no início de nossas atividades e que seguem conosco até hoje. Os efeitos da circulação dos analistas são distintos para os analisandos: alguns demonstram um certo incômodo ao se depararem com a ideia de terem que contar sua história novamente para outro analista; outros não manifestam incômodo, inclusive se referem ao analista da sessão subsequente como se ele fosse o mesmo do(s) atendimento(s) anterior(es). Há ainda aqueles que veem essa experiência como algo interessante, pelo fato de se sentirem beneficiados com as diferentes formas de intervenção dos analistas, marcadas pela singularidade de cada um. Porém, se esses exemplos nos mostram uma potência de atendimento coletivo em rotatividade, por outro lado percebemos que em algumas situações não tinham esse efeito, que a transferência só se daria com uma analista fixa. Nesse caso, notávamos que a rotatividade contribuía para a resistência ao trabalho analítico. Esse foi um dos pontos que mudamos em nossa “refundação”, quando passamos a poder "fixar" os analisantes e analistas, caso a transferência apontasse para isso – uma construção do desejo de seguirem em análise, ambos, através da prática clínica. De todo modo, ainda que fixando vários pacientes no um a um, o coletivo seguiu apostando também na rotatividade analista/analistante, na Praça e online. Isso não veio sem muito trabalho coletivo, com inquietações perenes, lembrando (ou procurando não esquecer) que não se trata de uma experimentação clínica por sobre os analisantes. Em nossas constantes discussões sobre os casos, verificávamos a feitura de uma clínica com transferência, isto é, com endereçamentos para as falas e repetições do sintoma, em variações e diferenças clínicas importantes.


Deparamo-nos também com a problemática das formas intermitentes de presença na praça dos analisantes, que vêm por vezes mensalmente, ou até com as "sessões únicas": quando uma sessão muito mobilizadora é realizada e, no entanto, esta é a única vez que a pessoa vem. A dinâmica de rotatividade e fixação compõe, assim, uma forma de manter o desejo de escuta e a aposta clínica do coletivo em relação aos encontros promovidos na praça. A aposta está em poder valer-se da inventividade no modo como a transferência é estabelecida em meio à praça. Isto é, não tida a priori como entre um analisante e um analista, mas como algo que é feito em meio a um processo clínico, que aponta seja para a rotatividade, seja para a fixação. No caso das sessões únicas não há pretensão de ter nelas a redenção ou qualquer sucesso. É muitas vezes apostar no que é possível, e, para isso, não é necessário abrir mão da clínica psicanalítica e concederá sugestão.



CLÍNICA(S) PÚBLICA(S) O volume de questões não diminuiu após a refundação, principalmente quando passamos a nos pensar cada vez mais como uma Clínica Pública. Ao pensarmos nossa ação coletiva em uma perspectiva pública, o que isso implica? Estaríamos lidando com aquilo que o SUS não está conseguindo abarcar, tapando algum de seus buracos? Então, por que não dedicar nossa libido e força de trabalho ao SUS? Aliás, que traz com excelência teorias e práticas clínicas entrelaçando psicanálise, território e atendimento público. Ou, de outra forma, seria nossa prática um alívio de consciência burguesa? Caridade? Filantropia? E, ainda: por que não nos filiar, pedir apoio ou até atuar a partir das instituições de psicanálise? Mas como seria isso? Por fim: como pode se sustentar materialmente o psicanalista que trabalha nesse tipo de prática pública, nas ruas, ao modo de um coletivo? São questões essas que não atravessam somente a nós, mas também todas as Clínicas de Borda, cada qual em sua tarefa de se estabelecer coletivamente à sua própria maneira. Em meio a estas questões que nos constituíram e seguem inquietantes, também estivemos, em 2018, junto à emergência de inúmeras clínicas de psicanálise na rua, com as quais estabelecemos contatos. Seja em Porto Alegre/RS ou Brasília/DF, dentre tantos coletivos que operam em perspectiva pública e que se estabeleceram, com os quais tivemos algumas interlocuções para lidar com as questões que seguiam emergindo. Estamos inventando uma clínica que opera numa perspectiva pública, no sentido da produção do comum: o entrelaçamento de uma prática coletiva endereçada ao espaço público e provocada pelas nossas inquietações políticas. A noção de público é diferente da de comum, mas na nossa prática propomos uma restituição do comum ao público. Portanto, o termo público deve ser retirado da estereotipia de ser aquilo que partiria do Estado, ou daquilo que


seria gratuito, muitas vezes conferindo um caráter pejorativo e preconceituoso. Ainda mais se considerarmos que pode haver um trabalho que enseje privilégios tanto numa prática clínica que é proporcionada pelo Estado quanto fora dele. Um ativismo em clínicas públicas de psicanálise não deve abrir mão de levantar a bandeira do SUS, clínica pública por excelência. Porém, a escolha de atuar a partir da compreensão do público como comum passa também por reconhecer a importância em contrapor as várias faces do Estado que mantém suas políticas públicas sucateadas, submetidas a administrações por vezes higienistas, racistas e conservadoras, que buscam minimizar o debate político nas práticas diárias clínicas e institucionais. Vale salientar que estamos em solidariedade aos trabalhadores do SUS. Apontar tais contradições e percalços de uma prática clínica a partir do Estado é também uma forma de evidenciar as nossas próprias contradições. Atuar numa perspectiva pública por fora do Estado, além de trazer limites materiais e de alcance, traz uma zona fronteiriça com uma prática liberal, caso nos propuséssemos a ser a "inovação" no campo da psicanálise. Isso seria incompatível com nossa proposta, pois nossa atuação é pensada no sentido de expandir e fortalecer o público em oposição à valorização do privado, inclusive de um suposto "sucesso" nosso – como se uma clínica pública nunca tivesse sido feita antes. Além disso, nossa posição como psicanalistas implica fazer frente à política da própria psicanálise como ainda a conhecemos: um espaço bastante restrito às elites, em territórios segregados. Pensamos que a formação em psicanálise segue sendo o gargalo mais apertado e a ocupação de uma praça pode ser uma provocação nesse sentido. Ainda que saibamos que a análise pessoal é parte da formação, o que pudemos fazer até o momento foi um grupo de estudos online - "Freud no espaço público" - durante a pandemia, por um ano e meio.


TELAS DEMAIS CORPOS DE MENOS A pandemia foi um destes momentos experienciados pelo coletivo em que o dito “desejo de manter o coletivo vivo” volta a nos acenar com força. Um dos maiores sentidos a se fazer pertencer a este coletivo era, sem dúvida, os atendimentos que aconteciam em meio a praça. Todo sábado quase um ritual: buscar as cadeiras de praia, montar a base junto às parceiras, colocar a placa, abrir o caderno e aguardar a chegada de pessoas em busca de uma escuta para seu sofrimento. Deste ritual também fazia parte o ‘pós-praça’: o almoço e a cervejinha, conversa solta. Eis que chega a pandemia e não pudemos mais ir à Praça. Na verdade, privilegiados, pudemos trabalhar sem sair de casa. Surge então a questão: passaremos a atender online? A resposta foi sim, uma vez que seguimos (des)norteados pelo desejo de manter o coletivo vivo. Mas como manter essa chama acesa já que não temos mais o território? Território este até então pilar fundamental da sustentação do nosso desejo. A partir desse momento, ao conversarmos sobre o nosso trabalho, ocorreu que a palavra “descaracterizado” nunca antes havia sido tão utilizada. Tanto que até esgarçou, desgastou. Desgaste este que acreditamos também nos possibilitou abrir novas vias de acesso ao desejo. Capenga, por vezes? Muitas. Afinal, uma mudança drástica na dinâmica do dispositivo que literalmente dava lugar a escuta do sofrimento: o território. O que era antes feito numa praça, uma prática no espaço público, passa a ser em nossas casas, espaço privado. Privado de corpos presentes, de território pulsante. Encontros intermediados por telas. Telas essas que passamos a conviver em abundância. Telas demais, corpos de menos. Pensando nessa equação, arriscaríamos dizer que para além dos atendimentos, o que também possibilitou nos sustentarmos como coletivo foram nossas reuniões-encontros, que também


puderam se manter semanalmente online, invariavelmente. Mesmo intermediados por telas, um Nós ali, em meio a tantos entres, em meio a tantas mortes, vias de acesso ao desejo, ao manter-se vivo. Estávamos entre a torrente de informações desencontradas, o negacionismo explícito do governo federal, enfim, de uma situação de caos e medo diante do desconhecido. Um caráter de precipitação parece descrever bem como as coisas se deram quando passamos a atender online, aspecto que certamente não diz respeito somente a nós. Afinal, estávamos todos, mais uma vez, enlaçados por um não saber o que fazer diante do caos, um senso de urgência sanitária e social. Esta foi uma experiência e tanto. De um lado, certo contentamento de que vários dos analisantes que iam à praça física seguiram indo à praça online, inclusive os casos rotativos. Era algo que também nos servia de suporte, poder manter vivo uma ação clínica e coletiva. Elaboramos outra rotina: as inscrições chegavam pelo facebook, a única rede social que utilizamos, no mesmo horário aos sábados. Isso possibilitou encontros clínicos muito interessantes, com pessoas de todo o Brasil nas mais diversas condições sócio econômicas, muitas vezes, pessoas em situações de urgência subjetiva e que vieram apenas uma vez. De outro lado, muitos daqueles que se inscreveram logo nos primeiros sábados seguiram "fixos" com um(a) analista, aspecto que toca um verdadeiro impasse que nos afetou. Por mais interessante que essa escuta virtual pudesse ser no que diz respeito aos aspectos clínicos e de acesso, pouca bagagem tínhamos para o atendimento online. Isso trouxe também certo desconforto e inquietações. Nesse sentido, pensamos sobre o quanto a mudança para o modelo típico de transferência um a um, com analistas fixos, não foi também um recurso das próprias analistas para dar mais segurança perante às mudanças do território físico para o virtual.


O que logo se passou é que a demanda era massiva e os analistas do coletivo já rapidamente esgotaram vagas para atendimento. Entendemos que a redução de atendimentos rotativos mostra o quanto o nosso corpo analítico fisicamente presente propiciava a transferência com o coletivo ao permitir identificar-nos visualmente enquanto grupo. E a própria pandemia parecia que nunca cederia… no início, mal sabíamos que aquela previsão de que "até agosto de 2020 as coisas estarão melhores" estava por demais otimista. Outro impasse advindo da virtualidade dos atendimentos que precipitamos foi certo lugar que o termo "saúde mental" passou a ocupar no mercado de informações e circulações na internet. Não demorou para que grandes listas com "mapas da saúde mental" online passassem a circular, todas construídas na melhor das intenções, muitas vezes estabelecidas a partir da iniciativa privada e da grande mídia. No entanto, a maioria dessas listas de fato não conversou com os coletivos para saber que trabalho era realizado ou as dificuldades que os próprios coletivos estavam vivenciando naquele momento. Essas listas pareciam apontar para várias possibilidades de cuidado em saúde mental que estavam já abarrotadas e com as portas fechadas. No nosso caso, o fato é que o excessivo volume de demanda só aumentava. O cuidado em saúde mental, importante que seja, cada vez mais trazia um aspecto midiático e mercadológico; enquanto isso nossas fileiras estavam sobrecarregadas – afinal, nós também estávamos pessoalmente muito afetados pela pandemia. Decidimos restringir o acesso das inscrições somente para pessoas da grande São Paulo que pudessem dar continuidade aos atendimentos quando retornássemos presencialmente à praça, pois acreditávamos que não demoraria tanto. Era preciso que estivéssemos mais em nosso território. Isso não veio sem muito debate.


As inscrições aos sábados restritas à grande São Paulo, vários dos analisantes "fixados" com um analista e uma perspectiva longínqua de fim da pandemia: assim estávamos em agosto de 2020. Essas escolhas nos permitiram uma marcha vagarosa, mas que nos manteve para suportarmos o tempo indeterminado até uma vacina ou qualquer notícia que trouxesse alívio. Isso não veio sem prejuízos no tal desejo de manter o coletivo vivo. Há mais de dois anos nessa condição de “praça online”, um tanto distantes da Praça Roosevelt, uma dimensão muito tangível de nosso trabalho clínicoterritorial, fez com que nos deparássemos com um certo vazio político. Era difícil relançar as apostas naquilo que nos fazia coletivo e saiu de "tela" o que seria uma Clínica Pública com suas linhas de ação.


O ESBARRÃO NARCÍSICO Mantínhamos viva uma discussão clínica às terças-feiras sobre os casos que seguiam, principalmente sobre os rotativos, mas o comum, advindo das discussões clínicas, parecia insuficiente para manter vivo o desejo coletivo. Não é demais lembrar que presenciávamos um genocídio alimentado por políticas ostensivas de negação da pandemia e de cuidados com a saúde. Então, parecia excessivo exigir que houvesse ali toda uma força inventiva brotando de nossos corpos. Questões tão simples quanto "o que estamos fazendo com essa clínica?" nos provocaram uma reflexão importante: havíamos ficado presos no Golpe (de 2016)? Afinal, a revolta e o não saber diante desse evento foi um grande enlaçador de nosso coletivo por muito tempo, mas o campo de ameaças reacionárias às nossas precárias condições democráticas não diminuiu. Precisávamos realimentar nosso discurso, afinal. Isso foi incrementado por certo esbarrão no espelho que o coletivo deu em suas reuniões, já nos últimos meses de 2021, quando se reconheceu predominantemente branco. O esbarrão narcísico da branquitude de um coletivo que até então não havia sequer começado a se racializar coletivamente. A emergência dessa implicação veio do contato com uma pesquisadora que levantou um questionamento sobre o tema no coletivo, ou mesmo das implicações antirracistas de nossa prática clínica. O tal vazio político compareceu de forma ostensiva – e, então, percebemos que a dimensão racial da teoria, da clínica e do pensamento político, por mais que possa ter sido percorrida por diversos membros do coletivo, de forma isolada, não havia sido tratada em grupo.


O RETORNO À PRAÇA Por fim, no início de 2022 começamos as discussões sobre o retorno à praça, necessário para manter um certo sentido do trabalho e as relações entre clínica e território. Sentíamos que havia um certo esgotamento do espaço virtual. Mesmo assim, esse retorno estava marcado por incertezas e receios em relação aos cuidados sanitários e as possíveis transformações na praça ao longo desses dois anos. Adiamos esse retorno algumas vezes, mas finalmente aconteceu em abril de 2022. De certa forma, encontramos uma praça diferente de 2020: o pergolado que usávamos como ponto de encontro e de atendimentos estava cercado, com a justificativa de reparos estruturais; o café está fechado e visivelmente abandonado, com vidros quebrados; e, principalmente, encontramos uma praça com uma maior ocupação de pessoas em situação de rua, fato este que se estende por toda a cidade. Isso levanta uma questão fundamental para pensarmos como este território está atravessado pela vida das pessoas, seja no aspecto da saúde mental, seja pelas questões referentes à moradia, ao aumento do desemprego e à precariedade da vida.


Recentemente, em janeiro de 2022, a prefeitura da cidade de São Paulo divulgou que, nos últimos dois anos, houve um aumento de 31% dos moradores de rua, o que corresponde a cerca de 31.000 pessoas. Isso se reflete também na praça, através das barracas de pessoas que estão morando ali. As marcas da pauperização generalizada do Brasil estão explícitas na praça. Por fim, com inquietações e estilhaços, pensamos que este é um possível campo de abertura para nos atualizarmos ou repensarmos. Nosso trabalho continua, na praça, atravessado pela contingência, pela possibilidade de encontros e desencontros, pelas pessoas que circulam com seus quereres e impossibilidades. Continuamos nosso trabalho, tentando pensar o que é uma clínica no território, como ouvir o sofrimento atravessado pela posição subjetiva e social e, afinal, com mais dúvidas do que certezas sobre como manter um coletivo vivo.


Adriana Marino Ana Bê Vasconcelos Ana Carolina Perrella Aquinoã Abgail Pederzoli Anderson Santos Augusto Coaracy Caetano Rudá dos Santos Morais. Camila Galvão Tourinho Daniel da Silva Taranta Denise Tamarozzi Mamede Giovanna Bartucci Juliana Tambelli Maria Cristina Itagiba Mayara Pinho Rodrigo Pucci



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