Quando e como eu li Foucault

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Apresentação, por Mario A. Marino Um novo Foucault Sobre o método da crítica da política Quando e como eu li Foucault Origens políticas do biopolítico. Um seminário A soberania entre governo, exceção e governance Biopoder e Subjetividade Multidão e Biopoder De onde viemos? A origem Uma experiência marxista de Foucault

219 Índice de nomes e noções 223 Sobre o autor



Apresentação

por Mario A. Marino

Este livro é uma coletânea de nove textos, inéditos em português, entre artigos, entrevistas e seminários de Antonio Negri sobre o pensamento político de Michel Foucault. Nele, o leitor poderá se beneficiar tanto de uma introdução clara e concisa ao pensamento de Foucault pelas palavras de um dos mais conceituados pensadores de nossa atualidade, quanto ter acesso ao panorama do pensamento político negriano, que abre as portas para a compreensão de fenômenos que deixam não poucos observadores aturdidos: a ordem globalizada, a formação do império, a liquidação da soberania nacional, a desterritorialização dos conceitos e das categorias da ciência política — a passagem, portanto, do moderno ao pós-moderno, do político ao biopolítico. Michel Foucault gostava de comparar sua produção a uma caixa de ferramentas. Que se use uma frase, ideia ou análise de meus livros para desmontar, desqualificar e romper com os sistemas de poder, dizia ele. É preciso que a teoria sirva e funcione, mas não apenas enquanto teoria: não há valor se não houver alguém para se servir dela. Não se revisita uma teoria; servimo-nos dela para fazer

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outras. Trinta anos após a morte de Foucault, resta a pergunta: seu pensamento ainda é atual? As suas ideias ainda são capazes de ferir a atualidade? De que forma conceitos como biopolítica e biopoder continuam operatórios? Quais são, atualmente, os usos novos, possíveis e imprevistos do pensamento de Foucault? A produção do filósofo francês repercute nos mais diversos campos do pensamento; aqui, tais perguntas concentram-se sobretudo no campo da política contemporânea, ou, mais especificamente, para Antonio Negri, no tema da política da multidão. Para ele não há dúvidas: o pensamento de Foucault é atual — e são numerosos os artigos, seminários e livros no qual Negri expressa sua dívida a Michel Foucault. Ao reunir os textos desta coletânea, selecionamos aqueles que não só apresentam a atualidade do pensamento de Foucault como instrumento para pensar a ética e a política hoje, mas também o modo como esse pensamento é apropriado e transformado por Negri — sempre é tocante, como dizia Nietzsche, ver um filósofo recolhendo a flecha arremessada por outro e a enviando numa nova direção. Como plano de fundo, é possível acompanhar o modo pelo qual Negri entrelaça dois eventos fundamentais: primeiro, a transformação dos movimentos operários das fábrica fordista em movimentos sociais, da qual o filósofo italiano foi um ator, teórico prolífico e observador privilegiadíssimo; e, segundo, o desenvolvimento teórico de um novo campo de crítica política e social — a biopolítica.

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A gênese dessa aproximação de Antonio Negri do pensamento de Michel Foucault data do final dos anos 1960, a partir da experiência do operaísmo italiano. Nesse período, a fábrica deixava rapidamente de ser o palco maior do embate entre trabalho e capital: o modo de produzir se alterava, o trabalho mudava de lugar, havia a “deslocalização”. Primeiro, as “ilhas” de produção toyotista substituíram a cadeia de montagem centralizada; em seguida, os dispositivos de automação e de informática alteraram de modo estrutural a produção, até que, por fim, tais dispositivos técnicos se espalharam e a sociedade passou para o controle do capital financeiro. Inaugura-se o pós-fordismo.1 Negri buscava compreender tanto essa transformação — provocada, segundo ele, pelo próprio movimento operário em luta por melhores condições de vida — quanto a reação do capital diante dela, a partir dos anos 1970, com a socialização capitalista do trabalho. Em termos marxistas, o capital havia “subsumido” a sociedade inteira, isto é, todos os processos de exploração do trabalho passam a ser sociais. A remuneração pelo trabalho, por exemplo, deixa de ser somente aquilo que o operário negocia na fábrica para se tornar “uma máquina que segue a reprodução e a formação da força de trabalho no nível da sociedade inteira e no tempo da vida”.2 1. Cf. p. 92 desta edição. 2. Ibid., p. 93.

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Nesse ponto, surge a questão: ainda existe a classe operária como sujeito político no contexto da crítica ao capitalismo? A resposta de Negri, o remanejamento teórico que ele e seus companheiros empreenderam, consistiu na abertura de uma “nova genealogia”: a do operário social. Aqui, diz Negri, todos os aspectos da vida, dessa potência da vida humana (afetos e linguagens, cooperação social, desejos e invenção de novos modos de vida), são postos para trabalhar, ou seja, todos os aspectos ligados à sua reprodução integram-se à produção. A nova organização dos processos de trabalho passa a ser marcadamente tecnológica: “doravante a economia política do capital e a organização da exploração se desenvolverão, cada vez mais, através do trabalho imaterial; a acumulação irá se referir às dimensões intelectuais do trabalho, à sua mobilidade espacial e à sua flexibilidade temporal.”3 Esta coletânea, portanto, traz alguns textos que marcam justamente o momento em que Antonio Negri reelaborava as bases de um pensamento que, sem abandonar o marxismo, apontava para a necessidade de uma profunda mudança no pensamento do comunismo. Seus textos aqui reunidos constituem uma resposta viva, forjada em meio às lutas mais concretas, e num período crucial de transição histórica. É a elaboração teórica desta passagem que o leitor terá o privilégio de acompanhar, ao seguir as inflexões 3. Ibid., p. 24.

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que o pensamento de Foucault produziu na perspectiva negriana e as aberturas biopolíticas que daí surgiram.

mario antunes marino é bacharel em ciência da computação pela Unicamp, bacharel e mestrando em filosofia pela usp, onde desenvolve pesquisa sobre o pensamento político de Michel Foucault, especificamente os temas da biopolítica, da governamentalidade e a análise crítica do neoliberalismo. É membro do Grupo de Pesquisa Michel Foucault da puc-sp e tradutor da obra de Foucault, O que é a crítica? (no prelo).

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Um novo Foucault, uma entrevista1

As análises de Foucault são atuais para compreender os movimentos e as instituições sociais? Em quais domínios, segundo o senhor e Michael Hardt, elas deveriam ser renovadas, reajustadas ou estendidas? A obra de Foucault é uma máquina estranha. Ela permite pensar a história apenas como história presente. Provavelmente tudo aquilo que Foucault escreveu (como Deleuze já sublinhava) deveria ser reescrito. Ele sempre procura, aproxima, desconstrói e formula hipóteses, imagina, constrói analogias e conta fábulas… Mas o essencial não é isso: a coisa fundamental é o seu método, pois lhe permite estudar e descrever o movimento entre passado e presente e entre presente e futuro. É o método da transição cujo centro é o 1. Artigo-entrevista realizado em Paris, no Instituto de Pesquisas da Federação Sindical Unitária (fsu) em 11 de junho de 2004. Publicado in Antonio Negri, Movimenti nell’Impero. Milão: Raffaello Cortina, 2006 pp. 281-286. Revisão técnica de Homero Silveira Santiago. É relevante observar que o entrevistador é Christian Laval. Na obra Sauver Marx?, de autoria de Laval, Pierre Dardot e El Mouhoub Mouhoud, esta entrevista é retomada para abrir um debate com Império e Multidão em torno do pensamento de Marx. Cf. Sauver Marx. Paris: Éditions de la découverte, 2007.

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presente. Foucault está ali no meio, não entre o passado e o futuro, mas ali naquele presente que os distingue. É ali que se instala o questionamento. Com Foucault, a análise histórica torna-se uma ação, o conhecimento do passado uma genealogia, a perspectiva do amanhã um dispositivo. Para quem vem do marxismo militante dos anos 1960 (não me refiro às tradições caricaturais e dogmáticas da Segunda e da Terceira Internacional), o ponto de vista de Foucault é correto, poderíamos dizer “normal” — corresponde à percepção do evento, do lutar e da alegria de arriscar fora de qualquer necessidade ou teleologia preestabelecidas. No pensamento de Foucault o marxismo é sim desmantelado — seja com relação à analise das relações de poder, seja com relação à teleologia histórica —, assim como o historicismo ou o positivismo; mas no mesmo momento ele é reinventado e remodelado do ponto de vista dos movimentos e das lutas. Conhecer é produzir subjetividade. Penso ser razoável distinguir três Foucaults: o estudo das formações das ciências humanas nos anos 1960, ou seja, a arqueologia do saber e a desconstrução do conceito de episteme; nos anos 1970, os estudos da relação saber-poder, das formas disciplinares e o desenvolvimento do conceito de soberania da modernidade; por fim, as análises dos processos de subjetivação nos anos 1980. Não sei se podemos distinguir três ou dois Foucaults (com frequência se fala de dois antes da publicação dos últimos cursos); parece-me sobretudo que os três temas sobre os

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quais Foucault aplicou a sua atenção sejam contínuos e coerentes — coerentes no sentido de uma produção teórica unitária e contínua. O que muda é provavelmente apenas a especificidade das condições históricas e das necessidades políticas com que Foucault se confronta. Deste ponto de vista, assumir a perspectiva foucaultiana é, portanto, também uma outra coisa: é — na minha linguagem (e talvez na de Foucault) — colocar um estilo de pensamento (que reconhecemos na genealogia e na produção de subjetividade) em contato com uma situação histórica determinada, com uma dimensão específica do domínio, do desenvolvimento das suas relações, ou seja, com aquela figura do desenvolvimento capitalista que vê o comando investir a vida e as relações que reproduzem a vida de maneira plena. O poder se tornou biopoder. Na discussão foucaultiana do desenvolvimento do capitalismo, será vã a busca por aquilo que determina a passagem do welfare state à sua crise, da organização fordista à pós-fordista, das figuras keynesianas da macroeconomia às neoliberais; no entanto, na magra definição da passagem dos regimes disciplinares aos de controle, é possível descobrir que o pós-moderno não representa uma retirada do Estado do domínio sobre o trabalho social, mas, ao contrário, um aperfeiçoamento posterior do controle sobre a vida. Na obra de Foucault esta intuição se desenvolve em toda parte, como se a análise da passagem para a era pós-industrial constituísse o elemento central do seu pensamento.

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A determinação metodológica, a teoria da genealogia e, enfim, os dispositivos de produção da subjetividade são impensáveis fora da determinação material deste presente e fora deste horizonte de transição. É a passagem da definição do político moderno para a da biopolítica pós-moderna o que Foucault implicitamente teoriza aqui. Em Foucault, o conceito de político se separa radicalmente das conclusões de Max Weber e de seus seguidores, também do século xx, das concepções modernas de poder (Kelsen, Schmitt etc.). Deve-se notar que Foucault também flertou com eles — mas após 1968 o quadro muda de modo radical e o próprio Foucault desvela o que estava implícito em seu pensamento. Não há nada, portanto, que deva ser renovado ou reajustado: trata-se apenas de prolongar as intuições de Foucault relativas à construção da subjetividade. As lutas das minorias que Foucault, Guattari e Deleuze sustentaram nos anos 1970 em torno, por exemplo, da questão carcerária, constroem uma nova relação entre saber e poder: e isso não diz respeito apenas às relações na prisão, mas a todo o quadro de desenvolvimento das potências subversivas. Quanto ao dispositivo de produção de subjetividade, este pode ser provavelmente traduzido na perspectiva de um processo constituinte de uma nova ordem na qual os indivíduos são substituídos por redes e constelações de singularidades e de multidões. Foucault não é grande apenas pela sua obra de desconstrução, tampouco pela obra de reconstrução que

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empreendeu. Ele criou um novo quadro de possibilidades teóricas ligadas a novas determinações materiais da realidade a partir da transformação do contexto produtivo e revolucionário. Não lhes parece que na França estamos vendo as análises de Foucault serem colocadas de lado pelas correntes que declaram desejar renovar a crítica social e política? O que ocorre no resto da Europa (em particular na Itália) e nos Estados Unidos? A academia odeia Foucault. Primeiro o manteve afastado, em seguida o promoveu ao Collège de France para melhor isolá-lo.2 Quando Foucault não era odiado, era isolado. O positivismo sociológico à la Bourdieu, certamente muito generoso nas suas tensões políticas, não consegue se cruzar com o pensamento foucaultiano e, acima de tudo, denuncia o seu subjetivismo. Ora, essa acusação é imprópria: não há subjetivismo em Foucault. Ao contrário, o que Foucault recusa sempre, em cada aspecto da sua obra, é o transcendentalismo: as filosofias da história que não aceitam levar em conta nenhuma determinação do real na rede e no embate das potências subjetivas. Por transcendentalismo, em suma, entendo toda concepção da sociedade que acredita poder valorar ou manipular esta última a partir de um ponto de vista exterior, transcendente, autoritário. Não, não é possível. Há apenas um método que nos permite o 2. Foucault foi nomeado para o Collège de France em 1970. [n.t.]

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acesso ao social, e é o da imanência absoluta, da contínua invenção das constelações significantes e dos dispositivos de ação. Como outros autores importantes da sua geração, aqui Foucault acerta as contas, de maneira definitiva, com qualquer reminiscência do estruturalismo — ou seja, com a fixação transcendental das categorias epistêmicas que este último prescrevia (hoje esse erro está sendo reproposto com a renovação do naturalismo…). Mas, além do embate sobre o método, refuta-se Foucault (sobretudo na França) porque, do ponto de vista da crítica, ele não se sujeita às mitologias da tradição republicana: nada lhe é mais distante e hostil do que o soberanismo, mesmo que o jacobino; ou o laicismo unilateral, mesmo que seja igualitário; ou ainda o tradicionalismo na concepção da família e da demografia patriótica, mesmo que seja integracionista etc. Mas então, objeta-se, a metodologia de Foucault não será, no fim das contas, nada mais do que uma nova proposta daquele ponto de vista historicista, relativista e cético, com o qual nos deparamos com frequência, tal qual a degradação de uma concepção idealista da história? Não e não. O pensamento de Foucault, ao afirmar o ponto de vista ideológico, reconquista a rica proposta revolucionária daquele pensamento europeu e americano que havia se libertado da tradição moderna do Estado-nação e do socialismo. Proposta de forma alguma cética ou relativista, construída, pelo contrário, sobre a exaltação da Aufklärung, da reconstrução do homem e de sua potência democrática

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depois que toda ilusão de progresso e de reconstrução comum tinha sido traída pelas dialéticas totalitárias do moderno. Cada um de nós é culpado disso: o nacional-socialismo é puro produto da dialética do moderno. Libertar-se dela significa ir além. A Aufklärung — lembra-nos Foucault — não é a exaltação utópica das luzes da razão; ao contrário, é dis-utopia, é luta cotidiana em torno do evento, em torno do “isto aqui”, dos temas da emancipação e da liberdade. Parece-lhes por acaso relativista ou cética a batalha de Foucault na questão das prisões que ele conduziu com o gip3 no início dos anos 1970? Ou então a luta para afirmar o direito de revolução do povo iraniano contra o poder americano e das irmãs internacionais do petróleo? Ou ainda sua tomada de posição em favor dos autônomos italianos no momento mais difícil da repressão e do “compromisso histórico”4 na Itália? Na França, Foucault com frequência foi vítima de mistificação pelos seus alunos. O anticomunismo teve um papel crucial aqui. A ruptura metodológica com o materialismo 3. Grupo de Informações sobre as Prisões. O seu objetivo foi dar visibilidade pública à situação do encarceramento na França, dar voz aos presos e transformar os seus relatos num saber comum e numa prática coordenada. O anúncio da constituição deste grupo foi feito por Foucault e outros em fevereiro de 1971. 4. Aliança entre o Partido Comunista Italiano e sindicatos aliados à direita, principalmente com o Partido Democrata Cristão, visando a um governo de coalizão nos anos 1970. Cf. “Quando e como eu li Foucault”, p. 65. [n.t.]

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