SPARTAKUS Simbologia da revolta

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SPARTAKUS

SIMBOLOGIA DA REVOLTA furio jesi

n-1 edições © 2018 ISBN: 978-85-66943-58-0

Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada. coordenação editorial Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes assistente editorial Inês Mendonça direção de arte Ricardo Muniz Fernandes projeto gráfico Érico Peretta tradução Vinícius Nicastro Honesko preparação Tiago Ferro A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. 1a edição | Impresso em São Paulo | Junho, 2018 n-1edicoes.org


Edição sob os cuidados de Andrea Cavalletti Tradução Vinícius Nicastro Honesko



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PREFÁCIO ADVERTÊNCIA INTRODUÇÃO

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A SUSPENSÃO DO TEMPO HISTÓRICO OS SÍMBOLOS DO PODER TAMBORES NA NOITE INATUALIDADE DA REVOLTA

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APÊNDICE

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PREFÁCIO


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Ler Spartakus andrea cavalletti

Na noite de 11 de dezembro de 1969, Furio Jesi escreve para um amigo: “Anuncio gloriosamente para você que terminei, há uma hora, a releitura do manuscrito completo de Spartakus: Simbologia da revolta. Está terminado... Nele, fala-se de Rosa Luxemburgo, mas também muito de Dostoiévski, de Storm, de Fromentin, de Brecht, e também, naturalmente, de Thomas Mann! É muito... ‘fragmentário’: as ‘conexões’ são reduzidas ao mínimo em um monólogo que, com as devidas créances, assemelha-se mais a Finnegan’s Wake do que a Acumulação do capital”1. Spartakus é um livro esplendoroso e secreto. Sem dúvida, é um dos mais belos e originais ensaios em língua italiana da segunda metade do século xx. Entretanto, permaneceu por muito tempo oculto e foi descoberto e publicado pelo autor desse prefácio vinte anos depois da prematura morte de Jesi (ocorrida em Gênova, em 1980). Desde então, e após cada leitura, Spartakus mantém sua singular e irredutível novidade; permanece um livro inclassificável, como o gênio de seu autor. 1. Carta a Enrico Pietra de 11 de dezembro de 1969, conservada por Marta Rossi Jesi.


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Nascido em Turim em 1941 (seu pai provinha de uma antiga família rabínica), Jesi dedica suas primeiras pesquisas à arqueologia e à egiptologia. É um enfant prodige, publica o ensaio “Notes sur l’édit Dionysiaque de Ptolémée iv Philopator” no prestigioso Journal of Near Eastern Studies quando tinha apenas quinze anos.2 Com compreensível impaciência, abandona de imediato o liceu, começa a viajar e inclusive reside por diversos meses na Grécia e na Turquia; passa longos períodos nos depósitos dos museus da Europa (como o Pelizaeus de Hildesheim), estuda na Fondation Égyptologique Reine Élisabeth, de Bruxelas, participa de congressos internacionais. Durante um destes, em Hamburgo, conhece Sigfried Giedion, de quem se torna amigo e com quem inicia uma intensa correspondência científica. À atividade de ensaísta une o aprendizado literário, e como poeta. Justamente nesse período, sendo hóspede do egiptólogo Boris de Rachewiltz, encontra, na residência de Castel Fontana, Ezra Pound, sobre quem escreveu: “a pessoa com que mais aprendi em matéria de poesia.”3 Em Turim, por outro lado, funda e dirige a revista Archivio Internazionale di Etnologia e Preistoria, entrando assim em contado com estudiosos como 2. Furio Jesi. “Notes sur l’édit Dionysiaque de Ptolémée iv Philopator”. In: Journal of Near Eastern Studies, vol. xv, nº 4, 1956, pp. 236-240. 3. Furio Jesi & Karl Kerényi. “I pensieri segreti del mitólogo”. In: Furio Jesi. Materiali mitologici. Mito e antropologia nella cultura mitteleuropea (1979). Nova edição aos cuidados de Andrea Cavalletti. Turim: Einaudi, 2001, pp. 3-53.


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Raffaele Pettazzoni ou Vladimir Propp. Na cópia de um de seus ensaios de egiptologia havia escrito a seguinte dedicatória jocosa: “Se crês que vou continuar neste caminho...”. Em 1957, de fato, quando passa um período no monastério da Transfiguração, em Meteora, Tessália, para estudar o neoplatonismo em relação com a religiosidade greco-ortodoxa, a orientação de sua pesquisa já está mudando. Levou consigo os livros de Leo Frobenius e de Propp pensando em “eliminar as contradições graças a Jung”.4 O resultado é, na realidade, uma reinterpretação crítica do modelo junguiano, ou seja, o importante ensaio histórico Le connessioni archetipiche [As conexões arquetípicas] (1958).5 Da papirologia e da arqueologia, Jesi já está se dirigindo à ciência do mito. Estudará a partir de então as antigas mitologias e suas modernas sobrevivências (para retomar um termo warburguiano que lhe era caro) na poesia e na literatura, na história das religiões, na filosofia, mas também na cultura popular; estudará criticamente o método dos mitólogos e, sobretudo em âmbito alemão, o modo como as figuras antigas podem ser representadas em um contexto que já lhes é estranho, portanto, de maneira distorcida e perigosa. A partir de 1964, Jesi entra em contato com Karl Kerényi, o estudioso que admira e considera um mestre, e com 4. Furio Jesi. “Quando Kerényi mi distrasse da Jung”. In: Il tempo dela festa. Edição aos cuidados de Andrea Cavalletti. Roma: Nottetempo, 2013, p. 229. 5. Furio Jesi. “Le connessioni archetipiche”. In: Archivio Internazionale di Etnografia e Preistoria, nº 1, pp. 35-44, 1958.


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quem então inicia uma intensa correspondência.6 Justamente nesse ano, na conferência que faz em Roma, “Do mito genuíno ao mito tecnicizado”, Kerényi havia definido a autêntica experiência mítica, isto é, o contato inspirado com o “mito genuíno” (o echter Mythos, que ele também chamava com a expressão goethiana, Urphänomen), distinguindo-o da esfera do “mito não genuíno” (unechter Mythos) ou, precisamente, “tecnicizado” (zur Technik gewordener Mythos), ou seja, da distorção instrumental dos antigos mitologemas com fins de propaganda política.7 Já faz tempo, segundo Kerényi, que o mito não é mais, como foi para os antigos, sinônimo de verdade, e o contato imediato com o divino, a antiga experiência festiva em que a comunidade se encontrava consigo mesma, para nós é algo interditado. Se as imagens e as estátuas eram para os gregos manifestações transparentes da alegria de um deus, as figuras que hoje influenciam as massas não têm, de fato, um verdadeiro caráter mítico, mas são apenas falsificações obscuras e com frequência triviais do mito. Entretanto, justamente por isso é que o próprio mito não deve ser condenado, mas sim o homem que deve ser curado. Desse modo, Kerényi – citando Mann 6. Furio Jesi & Karl Kerényi. Demone e mito. Carteggio (1964-1968). Edição aos cuidados de Magda Kerényi e Andrea Cavalletti. Macerata: Quodlibet, 1999. 7. A locução “echter Mythos” (mito genuíno), usada em uma acepção particular por Kerényi e na sequência retomada por Jesi, foi, na realidade, cunhada por Walter Friedrich Otto.


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contra Sorel (as palavras sobre os “mitos fabricados para as massas” do capítulo xxxiv do Doktor Faustus [Doutor Fausto]) – opunha suas defesas “humanistas” aos resultados mais nefastos da manipulação política, e ao mesmo tempo instituía uma hierarquia precisa. A distinção do fenômeno originário do falso e da tecnicização implica, com efeito, uma fé positiva em sua existência atual. Assim, para Kerényi, também hoje existiriam aqueles que, únicos “verdadeiros mestres” e “poetas” (como os que lhe eram mais próximos: Mann ou Hermann Hesse), alcançam diretamente, por meio da inspiração, as fontes genuínas do mito. E depois deles estariam os sábios, os estudiosos das mitologias (como Walter Friedrich Otto ou o próprio Kerényi), que não são poetas, mas, em virtude de seus saberes, são ao mesmo tempo alunos diretos, testemunhas e intérpretes dos primeiros, e, portanto, mestres e educadores dos últimos, ou seja, dos não eruditos, da multidão que, ao contrário, está disposta a crer nos falsos mitos e a ficar à mercê de um encantador qualquer. Em outubro de 1964 Kerényi envia a Jesi o texto da conferência de Roma. É possível dizer que a partir daquele momento toda a reflexão de Jesi se torna uma retomada crítica e uma radicalização profunda e ao mesmo tempo irônica da distinção entre mito genuíno e mito tecnicizado. Nesse período de trocas intensas e fecundas com o grande mitólogo e historiador das religiões, ele escreve dois de seus livros mais importantes. O primeiro, Germania


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segreta [Alemanha secreta] (1967),8 é um estudo sobre as “sobrevivências de algumas imagens míticas na cultura alemã dos séculos xix e xx”. O segundo, e por muito tempo o mais conhecido de Jesi, é a coletânea de ensaios (sobre Pound, Rilke, Pavese, Novalis, Hoffmann, Apuleio) intitulada Letteratura e mito,9 que em 1968 é publicada pela Einaudi graças ao interesse de Italo Calvino. Pouco depois do lançamento desse livro, a relação com Kerényi se encerra inesperadamente, com um rompimento dramático e insanável. É maio de 1968, e a coincidência com a revolta parisiense não é casual. Na origem do dissídio de fato estão, como escreverá Jesi, “divergências acima de tudo políticas”. Ou melhor: “políticas no sentido mais amplo ou mais pleno”, isto é, capazes de tocar o coração da teoria kerényiana do Urphänomen. A desavença entre o jovem estudioso, comprometido com as posições da extrema esquerda, e o humanista burguês diz respeito ao teor propriamente político da ciência mitológica e às implicações mitológicas da práxis política. A última e duríssima carta de Kerényi é de 14 de maio. Jesi responde no dia 16, com um tom igualmente áspero: “Se a sorte quer que eu seja obrigado a dirigir estas palavras à pessoa que considerei meu mestre desde a adolescência, isso significa 8. Furio Jesi. Germania Segreta. Miti nella cultura tedesca del ‘900. Milão: Feltrinelli, 1995. Posfácio de David Bidussa. 9. Furio Jesi. Letteratura e mito. Turim: Einaudi, 2002.


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que os tempos são particularmente obscuros. Duvido, por outro lado, que possam se aclarar sem antes se tornar ainda mais obscuros; ou seja, sem que se tenha atingido o ápice da crise. E é provável que será uma crise que se desdobrará nas ruas e que se combaterá com armas; uma crise em que também mestre e discípulo, pai e filho, serão concretamente inimigos, de um lado e de outro”,10 conclui. Justamente naquele dia, em Paris, a assembleia da Sorbonne lança o apelo pela ocupação geral das fábricas e para a formação dos conselhos operários. E Jesi de pronto partirá para a cidade das barricadas. Ao retornar, começará a escrever Spartakus. É o livro sobre o mito e a revolta e, ao mesmo tempo, é uma resposta a Kerényi. A resposta de quem agora se atém a um programa teórico e político preciso: “usufruir do ensinamento em contraste explícito com as indicações do mestre”. Na primavera de 1969, Jesi deixa Turim e seu trabalho na editora Utet para se transferir com a família para o lago Orta. Inicia assim um período de compromisso febril, no qual a produção ensaística, literária e poética, a atividade de tradutor e consultor editorial se tornam ocupações de tempo integral. Ele se dedica de dia à escritura e, nas noites, à tradução e à profusa correspondência. “É certo que meu ritmo de trabalho é, por assim dizer, demasiado 10. Furio Jesi & Karl Kerényi. Demone e mito. Carteggio (1964-1968). Op. cit., p. 117.


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intenso”, confessa a um amigo daqueles anos. Entre o outono de 1971 e janeiro de 1973 publica nada menos que sete livros: as monografias Rilke (1971), Thomas Mann (1972), Rousseau (1972), Kierkegaard (1972, um de seus textos mais densos e relevantes), Pascal, Brecht (ambos publicados em 1974), e o importante Mitologia intorno all’Illuminismo, de 1972, com capítulos sobre as heresias messiânicas do sabatinismo e do frankismo, que suscitará o mais vivo interesse de Gershom Scholem.11 Enquanto trabalha na edição de La religione arcaica, de Georges Dumézil (com o qual inicia uma amizade duradoura),12

11. Os dados bibliográficos das obras mencionadas (tomando as edições mais recentes) são: Rilke. Florença: La Nuova Italia, 1971; Thomas Mann. Florença: La Nuova Italia, 1972; Brecht. Florença: La Nuova Italia, 1974; Che cosa ha veramente detto Rousseau. Roma: Ubaldini, 1972; Che cosa ha veramente detto Pascal. Roma: Ubaldini, 1974; Kierkegaard. Turim: Bollati Boringhieri, 2001; Mitologie intorno all’Illuminismo. Milão: Edizioni di Comunità, 1972. Cf. a carta de Scholem a Jesi de 1º de abril de 1973, agora em Scienza & Politica, xxv, nº 48, p. 108, 2013. 12. Georges Dumézil. La religione romana arcaica. Miti, leggende, realtà della vita religiosa romana. Edição aos cuidados de Furio Jesi. Milão: Rizzoli, 2001. Dumézil escreverá a introdução ao livro de Jesi La vera terra. Antologia di storici e altri prosatori greci sul mito e la stori. Turim: Paravia, 1974. “Nosso século” – dirá em 1986 em uma entrevista italiana – “é o século dos cultos. Discuti isso com meus amigos Eliade e Jünger, e com Furio Jesi. O senhor o conheceu? Um homem inteligentíssimo [...] Uma pena que tenha morrido tão cedo. Talvez porque duvidava. Eu, ao contrário, fiz um pacto com os deuses [...].” (“O iniciado que fala com os deuses”, entrevista com Georges Dumézil por Marcello Staglieno. In: Il Giornale, p. 3, 17 jul. 1986.)


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traduz Masse und Macht, de Elias Canetti,13 e começa uma grande empreitada de tradução e comentário de Mutterrecht, de Johann Jakob Bachofen.14 Do mesmo período ou de alguns meses seguintes são diversos ensaios muito importantes, dentre outros, sobre Rimbaud,15 sobre Heidegger e Rilke,16 sobre Wittgenstein17 e sobre as mitologias do antissemitismo.18 Alguns anos antes também havia começado um romance, L’ultima notte, que será publicado depois de sua morte.19 13. Elias Canetti. Massa e potere. Tradução de Furio Jesi. Milão: Adelphi, 1981. [Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995] 14. Cf. Furio Jesi. Bachofen. Edição aos cuidados de Andrea Cavalletti. Turim: Bollati Boringhieri, 2005; e Johann Jakob Bachofen. Il matriarcato. Ricerca sulla ginecocrazia nel mondo antico nei suoi aspetti religiosi e giuridici. Edição aos cuidados de Giulio Schiavoni, com tradução parcial e introdução de Furio Jesi. Turim: Einaudi, 1988. 15. Furio Jesi. “Lettura del Bateau ivre di Rimbaud”. In: Il tempo dela festa. Edição aos cuidados de Andrea Cavalletti. Roma: Nottetempo, 2013. (Há uma tradução para o português desse texto publicada em: Outra travessia. Revista de Literatura. nº 19. Florianópolis, ufsc, pp. 61-76, 2015. Tradução: Fernando Scheibe e Vinícius Nicastro Honesko.) 16. Furio Jesi. “Heidegger et Rilke: Zwiesprache et Andenken”. In: Esoterismo e linguaggio mitológico. Studi su Rainer Maria Rilke. Macerata: Quodlibet, 2002, pp. 167-179. 17. Furio Jesi. “Wittgenstein nei giardini di Kensington”. In: Materiali mitologici. Op. cit., pp. 158-173. 18. Furio Jesi. L’accusa del sangue. La macchina mitologica antisemita. Turim: Bollati Boringhieri, 2007. 19. Furio Jesi. L’ultima notte. Genova: Marietti, 1987.


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É uma história fantástica de vampiros que aqui são vítimas dos homens. Lê-se no romance: “A miséria a avidez, a dissolução, o fanatismo mesclado com orgulho e baixeza, formavam o caráter dos perseguidores... e por fanatismo compreendo o espírito de intolerância e de perseguição, de ódio e de vingança, em prol da causa de uma espécie que se crê eleita”.20 Sem dúvida, é difícil não reconhecer nos vampiros perseguidos aqueles que foram acusados pelos tribunais da Inquisição de nutrir-se de sangue cristão. No entanto, as páginas de L’ultima notte dialogam não só com as de L’accusa del sangue: “Talvez não seja por acaso que junto com Spartakus tenha terminado também o romance de vampiros”, escreve Jesi naquela noite de dezembro de 1969. Não é um acaso, porque L’ultima notte é sobretudo o romance sobre uma insurreição, da batalha que os vampiros têm contra seus cruéis opressores numa Turim surreal e, entretanto, reconhecível, feita de sombras em fuga, de pedradas e breves enfrentamentos corpo a corpo, rumores surdos e cadenciados ou imprevisíveis, luminárias quebradas e pontes derrubadas. “Os vampiros não portavam armas, estas não eram necessárias: sua força selvagem superava a do homem mais forte.” E enquanto as investidas dos insurgentes faziam fugir os homens, “a cidade revelava seu ser, agora, na noite da grande batalha”.21 20. Idem, p. 10. 21. Idem, pp. 66 e 68.


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Nas visões de Spartakus, a Berlim de 1919 é uma Paris transfigurada. Ou melhor: nos instantes suspensos da revolta, a Berlim de Rosa Luxemburgo vive e se confunde na Paris de 1968, e projeta sua sombra sobre a cidade de Jesi, a Turim das lutas estudantis e operárias daqueles anos, enquanto em todas essas cidades de ontem e de hoje ainda se vislumbra com clareza a Paris da Comuna. De fato, esclarece Jesi, este livro não é uma história daquela insurreição e da derrota espartaquista. Pelo contrário, é a tentativa de conhecer tais eventos, quase os imitando no ritmo intenso da prosa, desde um ponto de vista não exterior, rigorosamente agradável. É uma pesquisa fenomenológica, que age desde o interior, garantindo desde o interior a objetividade da revolta e de suas experiências do tempo”. Spartakus é uma obra de montagem, ao mesmo tempo fílmica e brechtiana, na qual se seguem velozes sequências narrativas e paradas teóricas vertiginosas, em que a tensão dramática dos eventos é quebrada, em seu ápice, pela potência despertadora da crítica. O núcleo original é a Introdução, isto é, “Subversão e memória”, um ensaio publicado na revista Uomini e idee em 1969, que Jesi decide então modificar e acrescentar ao livro já terminado (como comprova a análise do original datilografado).22 Essas páginas mostram, com efeito, em uma perspectiva 22. Furio Jesi. “Sovversione e memoria”. In: Uomini e idee, nº 19-22, pp. 3-18, dez. 1969.


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abreviada, o desenvolvimento de todo o trabalho, e apresentam sobretudo o ponto teórico decisivo, qual seja, a oposição entre ideia e ideologia, entre a epifania imediata da ideia e seu enrijecer-se no cânone ideológico, portanto, entre novidade e continuidade, tempo da subversão ou do mito e tempo da memória. Já em 1965, no ensaio “Mito e linguagem da coletividade”, Jesi havia começado sua reinterpretação da diferença entre o mito genuíno e o mito tecnicizado: “o mito genuíno que surge espontaneamente das profundidades da psique, determina com sua presença no nível da consciência uma realidade linguística cujo caráter coletivo corresponde ao valor coletivo reconhecido por Martin Buber no ‘estado de vigília’ ao qual se refere um fragmento de Heráclito: ‘Aqueles que estão despertos [em contraposição àqueles que dormem] têm um único cosmo em comum, isto é, um único mundo no qual participam todos juntos’ [...] O mesmo não se pode dizer do mito [...] tecnicizado – segundo a definição de Kerényi –, isto é, evocado intencionalmente pelo homem para conseguir determinados fins. Nesse caso, de fato, a realidade linguística [...] não possui um caráter coletivo, sofrendo as restrições impostas pelos tecnicizadores”.23 As imagens e os mitologemas não genuínos constituem, então, “uma 23. Furio Jesi. “Mito e linguaggio dela collettività”. In: Letteratura e mito. Op. cit., pp. 35-36.


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realidade linguística especialmente subjetiva, como subjetivo é o cosmo de quem – nas palavras de Heráclito – está em estado de sono”. Aqui, nas páginas de 1965, onde coletividade, mito genuíno e estado de vigília para Jesi coincidem, a diferença em relação a Kerényi já está assinalada: se este, com efeito, pretendia opor-se aos perigos da tecnicização reservando unicamente aos “verdadeiros mestres” (os “poetas”) a possibilidade de atingir as fontes do mito, e fundava assim uma didática e mantinha uma hierarquia precisa (verdadeiros mestres, eruditos, homens comuns), para Jesi, também o mais sábio deve ser alguém como os outros no mundo deveras comum do mito, uma vez que as hierarquias são apenas expressões do próprio ordenamento social vigente, que separa e mantém os homens em estado de sono. “Subversão e memória” retoma e radicaliza essa posição. A poesia revela aqui seu estatuto liminar e anfibológico: é um “solitário acesso à coletividade do ser”. É a palavra da solidão e do sacrifício, uma vez que o poeta é aquele que sofre a exclusão de seus semelhantes, que dormem e estão igualmente solitários. Mas é, como testemunho genuinamente coletivo de um ser, também um apelo subversivo, um apelo à evasão da solidão. Ao unir assim mito e revolta, Jesi pode verdadeiramente fazer suas, de maneira irônica e provocadora, as palavras de Kerényi. Na conferência de 1964, Kerényi havia citado


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um episódio da crônica daqueles tempos. Um monge havia colocado fogo em si mesmo, no Vietnã, para protestar contra a política dos Estados Unidos. E Kerényi reconhecia nesse gesto o modelo exato da mais perigosa manipulação do mito: um antigo instituto (com o qual o religioso se unia em um tempo à própria divindade) agora era subtraído de seu contexto originário e tecnicizado, isto é, pregado com fins políticos, que nada mais tinham a ver com sua esfera genuína. Jesi (que já é um atento leitor de Walter Benjamin e domina a técnica benjaminiana da citação) retoma, em “Subversão e memória”, as palavras do mestre, omitindo, entretanto, as aspas, retirando-as de seu contexto originário. Ele também cita o gesto do monge para dele fazer um uso exatamente oposto ao feito por Kerényi, isto é, assumindo-o como um exemplo de “propaganda genuína”. Por certo Kerényi jamais teria aceitado uma expressão similar, aliás, pelo contrário, a teria compreendido como um oximoro monstruoso ou como uma paródia até mesmo ofensiva. Mas é justamente em chave paródica que Jesi dá seu primeiro passo teórico essencial. Onde há propaganda e política, sustentava Kerényi, não pode haver genuinidade do mito. Onde o mito é genuíno, sustenta ao contrário Jesi, não há mestres inspirados e solitários, mas apenas uma verdadeira coletividade, que se liberta subvertendo as fronteiras da sociedade atual. No gesto do monge vietnamita, como nos gestos de quem colocava em jogo a própria vida nas filas


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dos espartaquistas em Berlim, cumpre-se assim para ele o que para Kerényi jamais poderia se cumprir, isto é, a perfeita “sutura entre o mito genuíno, aflorado espontânea e desinteressadamente das profundezas da psique, e a autêntica propaganda política”. A propaganda genuína é um modo de dizer a verdade. Spartakus é uma fenomenologia da subversão. Aqui a realidade genuína do mito se revela fenômeno sempre novo e irredutível – segundo a lógica de “Subversão e memória” – ao tempo da lembrança: “As epifanias míticas não são repetições no fio da memória ou segundo as leis de uma história cíclica de um precedente antigo. Elas são, antes, interferências da verdade extra-temporal com a existência de quem se crê envolvido no tempo da história”. Quando essa interferência se coloca em ato, em palavra poética (palavra do mito, já para Kerényi, e, portanto, para Jesi, palavra de novidade e coletiva) e em propaganda revelam (contra Kerényi, que as separava) sua mais íntima e autêntica coerência, enquanto o mito volta a ser o que não fora desde o Helenismo: sinônimo de verdade. Na hora da batalha, quando a regra não vale e nada retorna, poesia e ideia, mito e verdade, coincidem. Jesi, todavia, também articula uma distinção fundamental. Compreender a revolta como fenômeno específico significa, de fato, apreender acima de tudo sua diferença em relação à revolução. Max Stirner havia sustentado isso utilizando-se de todas as suas armas, usando todo o vigor


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de seu estilo; e suscitando, como se sabe, o sarcasmo de Marx e Engels: “A revolução e a revolta stirneriana se distinguem não enquanto [...] uma é um ato político social e a outra é um ato egoístico, mas enquanto uma é um ato e a outra não”. Jesi, que ainda reconsidera os componentes egoísticos (como “espaço de ‘pura revolta’”), reelabora a distinção opositiva de maneira de todo original e coerente com aquela entre ideia e ideologia: enquanto a revolução comporta uma estratégia de longo termo, e está totalmente mergulhada no decurso da história, a revolta não é apenas um repentino sobressalto insurrecional, mas uma verdadeira “suspensão” do tempo histórico. E é na suspensão que se libera a verdadeira experiência coletiva: “O instante da revolta determina a fulminante autorrealização e objetivação de si enquanto parte de uma coletividade. A batalha entre o bem e o mal, entre sobrevivência e morte, entre êxito e fracasso, em que cada um está diariamente comprometido, identifica-se com a batalha de toda a coletividade: todos têm as mesmas armas, todos afrontam os mesmos obstáculos, o mesmo inimigo. Todos experimentam a epifania dos mesmos símbolos”. A suspensão não é, então, um encantamento. A revolta não substitui o tempo histórico pelo tempo do sonho. Poderíamos dizer, ao contrário, que apenas no instante da revolta os homens vivem verdadeiramente no estado de vigília. No “tempo normal”, na cotidianidade regulada pelo trabalho e pelas pausas dirigidas, pelo contrário, eles


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estão sós, cada um imerso em seu sonho. Justamente esse “tempo normal” não é nada mais do que o produto de uma contínua tecnicização, o fruto – lê-se em Spartakus – da “manipulação burguesa do tempo”. A revolta de Berlim fracassou. A epifania da novidade foi interrompida e o tempo normal restaurado da maneira mais cruel, com o sacrifício de muitos dos protagonistas. É tarefa do mitólogo a análise desse fracasso, e, com efeito, Jesi consegue mostrar de que maneira a tecnicização se insinua na luta espartaquista, vencendo-a. De um lado, de fato, o rosto do poder mostra-se aos revoltosos como demoníaco e monstruoso, e assim esse poder instituído é reconhecido por eles como uma cruel dominação. Por outro lado, entretanto, justamente um inimigo identificado como monstro dita, de modo negativo, a atitude de quem se insurge e o desafia. Ao opor-se ao inimigo-monstro, os revoltosos devem se comportar, custe o que custar, como homens, serem virtuosos e leais, até o extremo sacrifício de si. Abismo fantasmático da ética e do humanismo burguês, o monstro define de forma paradoxal os valores, e nos gestos generosos e desesperados dos espartaquistas ele se torna o verdadeiro “depositário de um poder”. A representação negativa do inimigo como ser desumano, explica Jesi, era uma herança pesada da Grande Guerra, uma imagem funcional para o aparato de tecnicização. Assim, também os opostos valores “positivos” não têm um caráter genuinamente coletivo, não surgem


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espontâneos mas são instrumentais, e úteis à minoria exploradora; são veículos de morte e de sacrifício que se prolongarão na sequência, e continuarão agindo, em todas as mitologizações dos heróis, caídos pela causa, celebrados de boa fé. É preciso reconhecer essas figuras e analisá-las, para sair de seu fascínio. E é uma tarefa que Jesi toma para si, e que chama de, reinterpretando mais uma vez uma palavra cara a Kerényi, desmitologização (Entmythologisierung). Só a fenomenologia, que “age desde o interior” da revolta, pode “encontrar uma saída do beco dos grandes sacrificadores e das grandes vítimas” No terceiro capítulo, Jesi relê o célebre drama brechtiano sobre a insurreição espartaquista, Trommeln in der Nacht [Tambores na noite], que já em 1960 Andreas Kragler havia montado, sendo seu diretor e protagonista, no teatro improvisado de um subsolo turinense.24 Kragler, como é notório, por fim dá as costas aos insurrectos. Em polêmica com a retórica do expressionismo, Brecht havia substituído a figura do herói e seu sacrifício por um personagem e um final de comédia. 24. Segundo o testemunho, muito conhecido por Jesi, de Lion Feuchtwanger, o manuscrito original do drama brechtiano Trommeln in der Nacht levava precisamente o título Spartakus. Cf. Lion Feuchtwanger. “Bertold Brecht: Dargestellt für Engländer”. In: Die Weltbühne, 24-2, pp. 372-376, 4 set. 1928, retomado em Hubert Witt (ed.). Erinnerungen an Brecht. Leipzig: Reclam, 1964, pp. 11-16 (especialmente, pp. 11-13); cf. também John Willett. The Theatre of Bertolt Brecht: A Study from Eight Aspects. Londres: Methuen, 1967, p. 24.


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Trommeln in der Nacht mostra-se então para Jesi, que o aproxima de modo inesperado ao Doktor Faustus, de Mann, o paradigma de um “ritual de substituição” que tende a salvar “a humanidade presente no povo alemão da derrota que lhe inflige a sorte”. Aí onde, segundo o cânone expressionista, deveria ter caído um homem, Brecht põe em ato sua sabotagem, abandona sobre a cena uma máscara burlesca. Trata-se de um verdadeiro ato de desmitologização que, então, de modo paradoxal – explica Jesi –, pertence ainda à revolta, ou seja, a uma batalha que perdura ininterrupta, justamente porque a tragédia foi substituída pela comédia, e a vítima do destino foi subtraída no último momento.25 “Do passado, o que verdadeiramente importa é o que não se recorda. O resto, o que a memória conserva e reencontra, é apenas sedimento”, afirma Jesi em uma passagem com forte tom nietzschiano. Representar Trommeln in der Nacht não significa reavivar sua recordação, mas deixar viver em nós um passado “não recordável”, ou seja, a epifania da novidade, o tempo do mito e da revolta, 25. Jesi desenvolve aqui o tema já esboçado no livro anterior, Germania Segreta: “O drama de Brecht supera o fracasso do espartaquismo substituindo o mal compreendido sentimento de honra [...] pela conduta de Kragler, que abandona os tambores noturnos para voltar para sua casa com a mulher que lhe havia sido arrebatada e que agora conseguiu recuperar. [...] Em Trommeln in der Nacht, Brecht adverte, ainda que em termos imperfeitos, que a vitória contra o horror se confia a quem rechaça o heroísmo como tal para sobreviver em uma batalha mortal. A própria sobrevivência é já uma vitória contra quem idolatra a morte”. In: Germania segreta. Op. cit., p. 101.


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estranho à memória e à continuidade. Se Spartakus não é um livro de história, a interpretação de Trommeln in der Nacht é assim seu paradigma experimental. A revolta é suspensão do tempo histórico. Mas essa suspensão permanece um intervalo isolado: depois de seu fim cruel, o dispositivo normalizador volta a funcionar. Monstro/homem, tempo histórico/tempo mítico, vida/morte são, na realidade, oposições colaborativas. É preciso, portanto, esconjurar seu jogo, que separa e isola a revolta da história. Ao introduzir a noção de “propaganda genuína”, Jesi havia começado sua sutil manobra teórica. Ora, no último capítulo do livro (Inatualidade da revolta), ele dá o passo crucial. De que modo? Propondo uma surpreendente teoria da “dupla Sophia”, ou seja, da consciência como denominador comum entre os mundos da história e do mito. O eu que se salva do jogo colaborativo de todas as oposições é aquele que se situa exatamente em seu ponto de cruzamento, que, conhecendo a si mesmo, “conhece ao mesmo tempo [...] a permanência e a destruição de si, o tempo histórico e o tempo do mito [...] é o elemento comum, o ponto de intersecção, entre dois universos: o [...] do tempo histórico, o [...] do tempo mítico”. A categoria destruição, que ao menos de Bakunin em diante define a essência do fenômeno insurrecional, aqui é restituída a seu papel central. E, mais uma vez, de maneira coerente, Jesi retoma uma passagem decisiva de Kerényi. Desenvolvendo sua famosa similitude com


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a música, este observava que a consciência e a criação mitológica requerem nos poetas um “ouvido” particular: “’Ouvido’ significa também aqui um vibrar juntos, ainda mais, expandir-se juntos. ‘Aquele que se expande como uma fonte é conhecido pelo conhecimento’”.26 É de acordo com essa citação rilkeana (dos Sonetos a Orfeu, ii, xii), e no verbo expandir-se, que mito e história, dinâmica e imobilidade, fundem-se nas páginas de Spartakus: “O eu que padece o tempo histórico mesmo sendo partícipe do tempo mítico, no instante em que acede ao mito ‘se expande como uma fonte’, isto é, destrói a si mesmo em um processo dinâmico que envolve sua duração histórica. Em suma, o eu é verdadeiramente partícipe do correr da história quando com este chega a identificar o decurso de sua destruição, e, assim, de seu acesso ao mito”. Essa “destruição de si” não acontece no último sacrifício, que põe fim à vida. É, ao contrário, o sacrifício das componentes burguesas, normalizadas pelo sujeito no contato com a esfera do mito genuíno. É o encontro dinâmico com uma morte que não é simples ausência de vida, mas passado verdadeiro, isto é, não recordável, “espaço interior de eternidade presente na vida do homem”. Somente nessa destruição de si o “acesso à coletividade do ser” não será mais solitário. 26. Karl Kerényi. “Einleitung: Über Ursprung und Gründung in der Mythologie”. In: Karl Kerényi & Carl G. Jung. Einführung in das Wesen der Mythologie. Zurique: Rhein-Verlag, 1951, pp. 9-38.


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Pois bem, desmitologizar significa não cair na armadilha da tecnicização, manter viva a revolta. Representar verdadeiramente o drama brechtiano (autêntico paradigma de desmitologização) significa viver, desde o interior, uma ininterrupta batalha. Mas a verdadeira desmitologização se realiza apenas com a teoria da “dupla Sophia”: só então o livro de Jesi se revela, por sua vez, como momento da batalha e a interpretação de Trommeln in der Nacht já não é apenas teatral. Em novembro de 1971, dois anos depois da entrega do material datilografado, apesar da insistência de Jesi, as provas de Spartakus ainda não estavam prontas. A editora (Silva) se encontra em grandes dificuldades: promete, mas não cumpre. Em fevereiro de 1972, Jesi, exasperado, rompe todas as suas relações com o editor e retoma o original. Naquele período, entretanto, já está concebendo um novo modelo interpretativo, que chama “máquina mitológica” e que aplica em dois ensaios, escritos contemporaneamente: “A festa e a máquina mitológica” e “Leitura do ‘Bateau ivre’ de Rimbaud”, este último publicado pela primeira vez em 1972.27 Como Brecht, que vinte anos depois de Trommeln 27. Furio Jesi. “La festa e la macchina mitologic”., In: Materiali mitologici. Op. cit., pp. 81-120 [Boletim de Pesquisas NELIC. v. 14, nº 22. Florianópolis, ufsc, pp. 26-58, 2014. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.]; Furio Jesi. “Lettura del Bateau ivre di Rimbaud”. In: Il tempo dela festa. Op. cit., pp. 30-58. [Outra Travessia. Revista de Literatura, nº 19. Florianópolis, ufsc, pp. 61-76, 2015. Tradução: Fernando Scheibe e Vinícius Nicastro Honesko.]


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in der Nacht havia regressado ao tema da revolta com Die Tage der Commune [Os dias da Comuna], Jesi reelabora mais uma vez o problema da suspensão do tempo na “Leitura do ‘Bateau ivre’”, deslocando-o desde as jornadas alemãs de 1919 às francesas de 1871. Substitui-se, então, por assim dizer dentro do mesmo tema musical, um novo desenvolvimento teórico. E justamente quando Jesi recompõe uma página de Spartakus no ensaio sobre Rimbaud, o destino do livro seria definido. É uma página extraída do primeiro capítulo, sobre a suspensão do tempo histórico: Pode-se amar uma cidade, podem-se reconhecer suas casas e suas ruas nas próprias memórias mais remotas e secretas;28 mas só na hora da revolta a cidade é sentida verdadeiramente como o “haut lieu” e ao mesmo tempo como a própria cidade: própria porque do eu e ao mesmo tempo dos “outros”; própria, porque campo de uma batalha que se escolheu e que a coletividade escolheu; própria, porque espaço circunscrito em que o tempo histórico está suspenso e todo ato vale por si mesmo, nas suas consequências absolutamente imediatas. A gente se apropria de uma cidade fugindo ou avançando no alternar-se dos ataques muito mais do que brincando quando criança em seus pátios, ou por suas ruas, ou passeando mais tarde com uma mulher. 28. Há uma leve variação em relação ao texto de Spartakus, onde se lê: “nas mais remotas ou mais caras memórias” (veja o capítulo 1 do presente volume).


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É uma página em que vibra, como observou Giorgio Agamben, “uma inconfundível marca de memória pessoal”, e está, sem dúvida, “entre as coisas mais belas já escritas sobre a relação entre cidade e política”.29 Se o modelo “máquina mitológica” radicaliza e então substitui a noção kerényiana de tecnicização, o conceito de “dupla Sophia” não voltará a aparecer nos textos de Jesi. Mas, por outro lado, a categoria “destruição” permanecerá sendo central. Estudar as máquinas – analisando seus produtos: as mitologias do diferente, da raça, da cultura de direita etc. – significa, com efeito, subtrair-se de seu fascínio e estar pronto para destruir as condições que as tornam ativas e eficazes. “A possibilidade dessa destruição é exclusivamente política”, escreverá Jesi por volta da metade dos anos 1960. Assim, mesmo nos novos desenvolvimentos, resplandece ainda a novidade incomparável de Spartakus. Trate-se de Turim, de Berlim ou de Paris, quando o mito coincide com a história o espaço interior se revela no espaço da cidade. Porque apenas na verdadeira destruição o tempo é ao mesmo tempo suspenso e verdadeiramente transcorre. Então, ao longo das ruas da cidade desencantada, não se veem mais monstros: sejam homens ou vampiros, os combatentes conhecem, vivem e criam um mundo comum. 29. Giorgio Agamben. “Il talismano di Furio Jesi. In: Furio Jesi. Lettura del ‘Bateau ivre’ di Rimbaud. Macerata: Quodlibet, 1996, pp. 5-8. [“O Talismã de Furio Jesi”. In: Outra Travessia. Revista de Literatura. nº 19, Florianópolis, ufsc, pp. 77-79, 2015. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.]


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Spartakus

“[...] e súbito há um momento de inexplicável hesitação, como que um hiato entre causa e efeito, um peso que leva ao sonho, quase um pesadelo.” f. nietzsche, Além do bem e do mal, cap. viii, § 240

“Marquei muitas coisas em seu pequeno (mas interiormente grande) romance crítico, porém, mais do que em outras partes, como agora vejo, assim o fiz no capítulo intitulado ‘Revolução’, com essa passagem decisiva sobre Nietzsche e Lawrence e sobre o ‘equilíbrio’ entre instinto e consciência, no qual residem a salvação e, quase seria possível dizer, o futuro. O senhor pode muito bem imaginar como isso muito me dizia respeito, dado que em todos esses anos me ocupo de algo que se poderia chamar de ‘mito humanizado’.” thomas mann, carta a René Schickele, 12 de outubro de 1934.


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