(..) Pela Vida | Estamos divididos de Isabelle Stengers | tradução: Ana Luiza Braga

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Estamos divididos Isabelle Stengers tradução Ana Luiza Braga


Estamos divididos, escreve Bruno Latour, e de tal modo que nos parece impossível “sentar à mesma mesa” e chegar a qualquer forma de acordo. Ao menos a um acordo que efetivamente obrigue as partes, e não de maneira retórica, como as Conferências das Partes (COP) que se sucedem há vinte e cinco anos. Devemos culpar os diplomatas – isto é, denunciar as ilusões da diplomacia? Proponho que estendamos a noção de arte diplomática a todas as situações onde as partes se considerem logicamente “obrigadas”1 à guerra – ou isso, ou trairemos aquilo que nos importa e que nos mantém, aquilo que faz de nós quem somos. A arte diplomática é a capacidade de formular essas obrigações de uma forma um pouco diferente, que permita – não de maneira geral, mas em torno daquela situação – que a paz seja possível sem traição. Esta proposição é restritiva. Quando uma parte beligerante empreende uma guerra predatória, por exemplo, quando define a outra parte como sua presa, não há lugar para a diplomacia. Seria fácil reduzir a diplomacia a uma arte das aparências, como certa crítica que identifica todas as relações como predatórias e se recusa a reconhecer pertenças que obrigam – só interesses de conquista e dominação. Ainda assim, essa proposição me parece permitir que a diplomacia seja entendida como uma arte não moderna, isto é; avançar a hipótese de que o ser humano que se apresenta como não obrigado por nada, como a crítica, é um filho da modernidade2. Nem é preciso dizer que se a crítica estiver certa, podemos nos despedir não só da diplomacia mas também, estou convencida, da possibilidade dos humanos de salvaguardar um futuro digno desse nome nesta terra. Por isso, diante da impotência dos diplomatas que atuam em cada COP, eu preferiria examinar, usando os termos de Bruno Latour em sua Investigação sobre os modos de existência, as condições de felicidade ou de infelicidade da prática diplomática3. Neste caso, convém sublinhar que esse exercício não se limita à obtenção de um acordo entre diplomatas. Cada um daqueles reunidos ao redor da mesa sabe que deverá retornar ao poder que lhe concedeu o mandato, e que cabe a este último ratificar o acordo ou rejeitá-lo. Não vamos falar da rejeição 1 Em Cosmopolitiques, proponho chamar de “obrigação” aquilo que deve ser respeitado como condição crucial para a pertença a um coletivo de praticantes; e de “requerimento” aquilo que esse coletivo demanda de seu ambiente para se manter (Cosmopolitics I, Minneapolis : University of Minnesota Press, 2010). As obrigações não são normas, porque suas implicações têm o poder de fazer hesitar cada membro e o coletivo como um todo. A diferença entre normas e obrigações é paralela à diferença entre desobedecer e trair. A arte do diplomata exige a hesitação. Isso é apresentado no Cosmopolitics II, publicado em 2011. 2 Para um exemplo da importância crucial dos tratados e das obrigações que eles implicam para povos não modernos, recomendo o belíssimo livro de Michael Asch, On Being Here to Stay. Treaties and Aboriginal Rights in Canada. Toronto: University of Toronto 2014. 3 Latour, Bruno. Investigação sobre os modos de existência: uma antropologia dos modernos. Editora Vozes, 2019. [N.T.]


trumpista do acordo da COP 21, nem das ratificações parlamentares em outros países. Falemos do modo de hesitação que o “retorno do diplomata” deveria suscitar. As condições de felicidade implicam que o compromisso que a aceitação de um tratado produz seja objeto de uma verdadeira consulta, no sentido forte: aquelas e aqueles a quem o diplomata retorna devem saber hesitar e questionar o que os obriga, ou seja, pensar também na presença daquilo que eles correm o risco de trair. É importante sublinhar que as obrigações e o risco de trair não implicam uma referência nostálgica aos povos ditos tradicionais. Em contrapartida, os praticantes modernos que fazem a experiência dessa hesitação, em grande parte, não cultivaram as artes da consulta. Eles delegam o poder de defendê-los às suas instituições, em nome de princípios universais que exigem um acordo unânime e, portanto, tornam qualquer diplomacia impossível. A ideia de que os diplomatas possam hoje nos ajudar a articular o que nos divide não deve ser abandonada, mas sim reformulada: tentar pensar na possibilidade de um futuro digno desse nome não é pensar num futuro sem conflito ou divisão, mas pensar num futuro onde a diplomacia poderia recuperar suas condições de felicidade ao invés de ficar sem aderência, como rodas que giram loucamente num ambiente sem atrito, um ambiente onde o retorno do diplomata não tem o poder de perturbar o business-as-usual daqueles que são responsáveis ​​por dar consequência ao seu acordo. 4 Vale a pena criticar o Estado? Seria ignorar o diagnóstico feito em 1927 por John Dewey em The Public and Its Problems5: a dinâmica generativa que forçava os Estados a equiparem-se de forma adequada, aquela que ele associava a um Público cuja emergência o obrigava a encarregar-se de novas questões, secara desde que esses Estados se tornaram modernos. Assim, observa Dewey, o direito de propriedade é essencialmente oriundo da era pré-industrial, sem que, em nossos países supostamente democráticos, jamais tenham sido questionadas as condições de funcionamento jurídico e político dessa instituição que é a propriedade privada. Desde Dewey ficou ainda pior: os Estados se despojaram do poder de questionar essa instituição. Hoje, o que Dewey chamou de democracia política já não é só impotente, como também é oficialmente excluída quando se trata de liberdade transnacional do comércio e dos investimentos. 4 Segundo Latour, a instituição jurídica, a única dentre elas que teria tal responsabilidade, conservou certa capacidade de defender não o Estado de Direito, mas as obrigações que lhe dão sentido. O êxito de determinadas ações judiciais movidas contra Estados por descumprimento de obrigações decorrentes dos acordos da COP 21 poderia, de fato, atestar a capacidade do direito de conferir consequências aos acordos diplomáticos, perturbando o business-as-usual. 5 John Dewey. The Public and Its Problems. Athens OH, Swallow Press, 1954.


Contudo, é certo que o ambiente em que a diplomacia já não é mais operante nos confronta, para além do Estado, com o Capitalismo. Dele, com efeito, podemos afirmar que desconhece o significado da palavra ‘obrigação’ e, portanto, a experiência da hesitação. O capitalismo exige de seu ambiente legal e político todos os tipos de liberdade, mas não se deixa obrigar por nada – ele externaliza suas consequências. Claro, um chefe pode hesitar, mas por razões gerais, de decência humana. E como Marx viu claramente, hesitar demais significa ser varrido pelos concorrentes, quer dizer, por uma lógica de funcionamento em que hesitar significa tornar-se presa de outros predadores. É preciso evitar, no entanto, a armadilha que converte essa lógica em uma explicação totalizante, sistêmica; pois tal explicação tornaria irrisória até mesmo a possibilidade de imaginar a capacidade de contrariar sua empreitada de redefinição do mundo6. É preferível tentar caracterizá-lo, no sentido de uma caracterização que não pretenda a neutralidade de uma definição, mas que responda a uma visada pragmática, que privilegie o tipo de relação que o ser caracterizado mantém com seu meio. Neste caso, proponho caracterizar o capitalismo de uma forma suficientemente abstrata para aceitar o clamor de ativistas contemporâneos: “Nós não estamos defendendo a natureza, nós somos a natureza defendendo a si mesma.” Como toda criação política, esse grito passa por cima do acúmulo de dissertações que opuseram Humano e Natureza, ou que reduziram a natureza a uma construção humana. Tanto o Humano como a Natureza perderam suas maiúsculas; ambos são caracterizados, mas não definidos, como devastados – e o grito dos ativistas afirma a possibilidade de uma resistência a essa dupla devastação. Claro, as incontáveis espécies condenadas à extinção hoje não serão ressuscitadas. Mas o que deve ser defendido é aquilo que a redefinição capitalista do mundo não cessa de capturar e explorar, e também desfazer e destruir. O capitalismo, como tentarei caracterizar a partir de sua ação sobre o meio, redefine o mundo de modo a dissolver as relações de interdependência e institui as mais inextricáveis redes de cadeias de dependência. “Estamos divididos”, então, deve ser primeiramente entendido no sentido ativo, designando aquilo que nos divide – o que faz com que o sentimento de interdependência política não seja mais um afeto político operante. Isso não significa que sem essa divisão nós seríamos unidos, solidários e preocupados com o interesse comum. A diferença entre a dependência e a interdependência não é moral. A dependência é primeiramente um fato. Nós dependemos da habitabilidade da Terra, e a ideia de que um dia poderemos nos livrar dessa 6 Ver Philippe Pignarre e Isabelle Stengers. Capitalist Sorcery. Breaking the Spell. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2011.


dependência é fantasiosa. Sonhar com ir a Marte é sonhar com viver de um modo dependente de um emaranhado de tecnologias altamente sofisticadas, a serem permanentemente monitoradas. Da mesma maneira, as sementes produzidas industrialmente podem engendrar plantas que vivem praticamente fora do solo, ou seja, que prescindem dele, mas que são vitalmente dependentes de fertilizantes e pesticidas produzidos pela indústria agroquímica. Desde Lynn Margulis, no entanto, os biólogos vêm se dando conta cada vez mais: se a Terra não é somente habitável, mas também abundante de vida; se rochas áridas se transformaram em terras férteis; tudo isso se deve à criação de relações de interdependência. Relações que não suscitam um imaginário de libertação porque os seres que delas participam se tornam capazes graças a outros, com outros e ao risco de outros daquilo de que eles seriam incapazes sozinhos. Relações que, por toda a terra, povos humanos celebraram, traduziram e cultivaram em termos de obrigações para com aqueles que fazem deles o que eles são. ‘Obrigada’, em português, e obliged, em inglês, manifestam gratidão. Estar obrigado é saber-se em dívida com algo diferente de si, por quem se é. A forma pela qual as relações de interdependência foram substituídas por cadeias de dependência cada vez mais longas durante toda nossa modernidade não expressa um sonho de libertação, ainda que ele tenha seduzido os que inventaram mil e uma maneiras de se emancipar dos “caprichos da natureza”. Antes, ela traduz uma operação de mobilização, no sentido militar. O ideal de mobilização é a possibilidade de definir os soldados como seres cujo comportamento deve depender unicamente das ordens recebidas, transmitidas por uma cadeia de comandos: um exército mobilizado não se deve deixar retardar por nada. Se houver alguma libertação, ela seria em relação aos escrúpulos que a devastação causada por sua passagem poderia provocar. É por isso que a mobilização é um correlato da anestesia a qualquer coisa que possa perturbar a disciplina, a qualquer coisa que não deve importar. A substituição das relações de interdependência por cadeias de dependência implica, portanto, uma canalização da sensibilidade imaginativa, o sonho de um funcionamento sem atrito. Como demonstra implacavelmente Anna Tsing7, a invenção das plantations de cana-de-açúcar a partir do século XVI constituiu o terrível êxito de uma mobilização que produz seres incapazes de construir histórias ou tecer ligações “caprichosas”. Aqui está a receita: plante cana-de-açúcar (que se reproduz identicamente, por clonagem) em uma terra distante, onde ela não encontrará plantas aparentadas nem insetos familiares; nessa terra, você terá perseguido 7 Tsing, Anna, The Mushroom at the End of the World. Princeton: Princeton University Press. 2015 [O cogumelo no fim do mundo, no prelo pela n-1 edições].


ou exterminado previamente os habitantes e eliminado a vegetação nativa; e lá você porá a trabalhar escravos, tão estrangeiros quanto a cana-de-açúcar às memórias do lugar para onde foram transplantados, e cujo curto tempo de vida implica uma renovação permanente: a cadeia tripla de circulação de açúcar, dinheiro e humanos. O que os portugueses criaram, sublinha Tsing, é um modo de produção capaz de se manter e se propagar pelos mais diversos lugares sem perder sua identidade praticamente “fora do solo”; um modo que corresponde aos requisitos de escalabilidade. Ao fazê-lo, ela ilumina brutalmente o sentido do clamor ativista, “nós somos a natureza defendendo a si mesma”, porque a exigência de escalabilidade hoje rege tanto as normas de produção industrial quanto o que será considerado cognoscível, racional ou objetivo, como a gestão estatal das populações. E em cada caso, ainda que a cada vez de modo particular, o preço é análogo: as relações de interdependência são erodidas, ignoradas, até mesmo deliberadamente destruídas. Porque essas relações constituem um obstáculo às definições gerais, que são independentes das circunstâncias, das memórias locais e sociais; dos costumes que mantêm e que sustentam a continuidade das comunidades. Diante da iminente desordem climática, resta a injunção escalável por excelência: cada um deve reduzir “sua própria” pegada de carbono. A escalabilidade permite entender o grito “nós somos a natureza defendendo a si mesma” sem o confundir com um “retorno à natureza”, ou com uma assimilação que afogaria o pensamento e o sentir no furor de controvérsias acadêmicas – ousar uma analogia entre o horror das vidas escravizadas nas plantations e a vida estéril das canas de açúcar! Não se trata de comparar, mas de designar o que torna indissociável o preço que a exigência de escalabilidade cobra de humanos e não-humanos. Correlativamente, tal exigência permite caracterizar as instituições que fazem com que ela prevaleça, sem assimilá-las. Essa exigência é assumida e propagada por diferentes racionalidades que armam o Estado e a Economia, mas também a Ciência que Deleuze e Guattari chamaram de “régia”8. Contudo, em si mesmas, as cadeias de dependência são frágeis e frequentemente conflituosas. Elas são imperativas, é claro; e ordenam que negligenciemos 8 Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil Platôs vol 5. São Paulo: Ed 34, 1997, p. 41. Ciências régias procedem segundo a premissa de que “todas as outras coisas são iguais”, privilegiando categorias e operações cujo pressuposto é tornar as circunstâncias tão insignificantes quanto possível. Em contraste, as ciências que “seguem” aquilo que buscam são chamadas de ambulantes. Praticantes ambulantes aprendem a observar, reparar, deixar-se intrigar – o que Anna Tsing chama no seu O cogumelo no fim do mundo, de “arts of noticing.” “Ciências ambulantes, escrevem Deleuze e Guattari, incessantemente “inventam problemas” cuja “solução remeteria a todo um conjunto de atividades coletivas, não científicas”, enquanto as ciências régias devem ser autônomas, isto é, devem transformar os problemas de modo a torná-los cientificamente solucionáveis. E o que é assim instituído não é só o aparato categorial, mas também e acima de tudo uma “organização de trabalho”, uma separação entre “designers” e implementadores…


tudo de que elas fazem abstração, mas elas não têm o poder de nos fazer esquecer. Cada cadeia fabrica uma noção “fora do solo” da dependência, mas presa à porta do laboratório, do tribunal, do hospital ou de qualquer outro lugar onde ela determine o que importa e o que não importa; e assim a confusão de dependências persiste e resiste. Cada cadeia está localizada e pode ser avaliada, criticada, ou mesmo abertamente contestada. Este, aliás, é o papel que John Dewey associou à emergência do Público, que foi também a emergência de um protesto contra o poder de prejudicar protagonistas negligenciados na definição das preocupações do Estado. Mas quando as cadeias se entrelaçam, elas adquirem um poder que nenhuma delas possui isoladamente: o poder de criar dependências que assumem o aspecto de necessidades incontornáveis, que anulam as possibilidades de escrúpulo e de hesitação e que silenciam todos os protestos. Basta pensar nas plantations produtoras de açúcar, um bem de luxo que se tornou um recurso que ninguém imagina dispensar. Quem pensa no preço pago por outros para essa abundância, e também o nó de dispositivos militares, legais e comerciais necessários para manter esse modo de produção? Ao contrário das interdependências entrelaçadas que os povos humanos honraram, para com as quais sentiram e cultivaram obrigações, os nós entre essas cadeias formam uma rede fora do solo que conjuga os efeitos da anestesia suscitados pelas cadeias que amarra, fabrica labirintos por onde se perdem aqueles que poderiam contestá-la e, como hoje sabemos, ostenta com toda impunidade que ninguém pode fazer nada contra ela: “Vocês acham que podem regular a extração de petróleo para salvar o planeta? Vocês querem provocar um cataclismo financeiro...” É aqui que a minha caracterização do Capitalismo ganha sentido como a força que substitui as relações de interdependência por redes intricadas de cadeias de dependência. O Capitalismo não é o grande marionetista, puxando as cordas do Estado, da Ciência ou da Economia. Ele é o que nunca cessa de tirar proveito de seus respectivos modos de abstração para amarrar as cadeias umas às outras e tornar a negligência irreversível. E, ao fazê-lo, ele cria as “alternativas infernais”9 que, diante das catástrofes que já começaram, nos deixam divididos e impotentes. No entanto, é preciso lembrar que a escalabilidade requer uma conquista permanente. Ela não garante uma aquisição estável. As interdependências erradicadas não cessam de produzir ressurgência. Essas ressurgências não são “inerentemente boas” - nada é “inerentemente bom”. Portanto, não falaremos nem de uma “natureza que retoma seus direitos” nem de humanos que têm uma 9 Ver Pignarre e Stengers, Capitalist Sorcery, op. cit. p. 23-30.


causa comum contra a servidão, porque essas imagens são portadoras de um imaginário assombrado pela escalabilidade – o sonho de uma grande força da verdade que varreria para longe os poderes que a constrangem. Por outro lado, essas ressurgências incessantes e díspares talvez permitam que nos situemos de outro modo em relação ao fato de que “estamos divididos”, presos em uma intrincada rede de cadeias de dependência. Trata-se, então, de aceitar tomar partido e de aprender o que a ativação e a cultura das ressurgências exigem sem demandar delas que garantam um futuro que vá ao encontro de nossos desejos abstratos de paz e reconciliação. Nenhuma das grandes cenografias da guerra heroica, do arrependimento e da redenção estão na ordem do dia, mas o momento tampouco é propício para a diplomacia. Com efeito, o que a diplomacia requer – a capacidade de um grupo se consultar sobre o que o obriga, sua capacidade de compreender o que o mantém e o que deve sustentar – é precisamente o que foi desfeito pelas cadeias de dependência, reduzido a um imaginário oco e queixoso, a um desejo inconsistente, a uma boa vontade desenraizada, fora do solo. Os diplomatas hoje não estão preparados para cultivar a arte da consulta de que dependem. Reativar o sentido de interdependência poderia ser um apelo não aos diplomatas, mas a uma figura que John Dewey evocou ao constatar o eclipse do que chamou de Público – a esterilização do solo que gera questões capazes de obrigar um Estado a reinventar as categorias que definem suas responsabilidades: a figura do Investigador. E o investigador aqui não é o produtor de um conhecimento neutro, de um saber que explicaria a divisão e a impotência. Os investigadores de Dewey são experimentadores, intervindo ativamente como qualquer experimentador; mas não no laboratório, não para aprender a extrair daquilo que interrogam um saber confiável. Em campo, no terreno, eles buscam aprender como conseguir uma transformação na relação entre aqueles que padecem com aquilo de que padecem, e que seja capaz de gerar uma saída política de que o Estado se incumbiria. Entretanto, os Estados contemporâneos renunciaram à capacidade de responder politicamente à questão do futuro, entregando-a aos bons cuidados do que chamamos de Economia; e já não podem dirigir-se a quem governam, exceto pedagogicamente, para explicar-lhes que o futuro comum está acorrentado ao crescimento. Os investigadores contemporâneos já não podem vincular as saídas políticas que eles contribuem em ativar a uma tomada de ação do Estado, e a perspectiva desse vínculo hoje é qualificada como “demagógica”. A única reivindicação efetivamente política que podemos dirigir ao Estado hoje é que ele não torne mais difícil, ou mesmo ilícito, aquilo cuja possibilidade adquire


consistência, que ganha o poder de fazer sentir e pensar aquelas e aqueles que se tornam capazes de fazer sentido em comum. Tornar-se capaz, quando se trata de reativar a interdependência, é fazer a experiência que só pode ser feita com outros, graças a outros e ao risco de outros. Esse também é o caso dos investigadores; ao contrário do que afirmava Marx, eles sabem que quem acolhe a experiência não tem só cadeias a perder. As cadeias da dependência agora também são o que compõe mundo, o que define por nós, e sem nós, o que cada um pode ou não pode esperar ou exigir. Os investigadores sabem que sua tarefa não é “dar a saber”, transmitir ou “fazer tomar consciência”, mas antes “fazer sentir”, induzir uma modificação na forma como cada um entende as razões dos outros e suas próprias razões. O sentido de interdependência não deriva do conhecimento. É antes um “deixar-se tocar”, carregar um sentido de gratidão que não é subjetivo nem objetivo, porque sua verdade está em sua generatividade. Se esse sentido deve ser cultivado, certamente será porque só os humanos podem ser ingratos, blindando-se contra a experiência de ser o que são graças a outros. Por mais aparentemente irrisório, intersticial e frágil que seja o sentido que emerge, a tarefa do investigador é fazê-lo existir como parte relevante de uma imaginação prática e política que precisamos reativar pouco a pouco, passo a passo. Diversos ativistas chamaram esse processo de reativação de “retomada”10, e sabem que não se trata apenas de regenerar, mas também de lutar. Porque essa regeneração se dá em um ambiente hostil ou perigoso, propenso a capturar e acorrentar qualquer iniciativa de mera boa vontade. A reativação de práticas que reivindicam e pressupõem a interdependência exige uma cultura cujo germe o investigador pode trazer, mas que deve ser nutrida pelo solo que o recebe. Isso significa que tais práticas deverão resistir às demandas de escalabilidade e fazer existir seu próprio terreno, um modo de entendimento que poderíamos chamar de vernáculo, porque as palavras e os enunciados estão enraizados nesse chão. Um outro grito ativista afirma que “é preciso ter raízes para resistir à tempestade”. Se as raízes ajudam a sobreviver à tempestade, é porque elas participam de um emaranhado crescente de modos de viver por encontros e conexões, e não por uma definição escalável dos recursos a serem mobilizados para viver. Correlativamente, qualquer luta deverá resistir a uma definição escalável daquilo que defende, deixando-se obrigar pelo emaranhamento dos modos de sensibilidade que um terreno tece e que é tecido por ele. E é aqui, onde ganham sentido novamente as obrigações, que a figura do diplomata pode voltar a ser pertinente. Porque a ressurgência de culturas de 10 No original, reclaim. [N.T.]


interdependência, evidentemente, não é a solução, mas o início de problemas de vizinhança, de sobreposições, de relações a serem estabelecidas, de confianças a serem arriscadas, de queixas a serem transformadas em memórias generativas. Os “nós” chamados a participar do “nós somos a natureza defendendo a si mesma” incluirá as minorias11 obrigadas de modos divergentes – camponeses, mas também outros que devem igualmente aprender a reencontrar o sentido de suas obrigações contra os imperativos da escalabilidade, e a tornar-se novamente sensíveis a tudo que havia sido rejeitado como ilusório, anedótico ou irracional: pesquisadores, cientistas, médicos, técnicos, juristas, enfermeiros, pessoas de fé, descendentes de povos colonizados, etc..., para falar apenas da Bélgica. Nenhuma dessas minorias é estática e homogênea; cada uma é “ambulante”12 a seu modo, inventando problemas e gerando soluções que pressupõem e intensificam as interdependências. E as próprias interdependências são de portes diferentes; algumas supõem a proximidade, outras exigem conexões de longa distância. Mas as diferenças de escala não criam uma hierarquia embutida; elas só existem em um regime movente, feito de interferências variáveis, repercussões inesperadas e também conflitos assassinos. Os diplomatas encontram aqui suas condições de felicidade, porque eles devem intervir entre as partes obrigadas de modos divergentes – mas que, entretanto, se tornaram capazes de questionar suas obrigações e de hesitar juntos, isto é, de resistir ao sonho majoritário que transforma a divergência em oposição. Os acordos diplomáticos precisariam ter o caráter de conexões parciais, como qualquer comunicação entre línguas vernáculas. Eles não garantiriam a manutenção da pureza original mas, se tiverem êxito, gerariam relatos sobre o que se aprendeu e sobre o que fez crescer, cada uma à sua maneira, as partes entrelaçadas. E essas seriam as narrativas que os diplomatas carregariam consigo – não a título de um modelo ou argumento, mas como ativadoras de imaginações, de objeções, da criação de contrastes; do que pode nutrir o possível e permitir que ele faça seu caminho. Sem dúvida, uma dinâmica passo a passo não substituirá o poder do Estado que, como tal, define em seus próprios termos os problemas que importam e as soluções que lhes correspondem. A armadilha seria pretender que os problemas 11 Aqui, devemos entender as minorias no sentido de Deleuze e Guattari (Mil Platôs vol 4, p. 87-89), como um devir que diverge da norma anônima do majoritário. Correlativamente, a divergência não significa “divergir de”, ou “opor-se” no sentido de que aqueles que se opõem sonham em triunfar, em se converter na norma. O que eu chamo de obrigação é sempre minoritário, e corre o risco de ser destruído se aquilo a que obriga for apresentado como legalmente obrigatório a todos os humanos. Notadamente, isso é o que aconteceu com as ciências experimentais, transformadas em um modelo geral de racionalidade. 12 Ver a nota 6.


correspondentes às soluções escaláveis deveriam ser tratados por aqueles a quem eles concernem. A armadilha está no “deveriam”, na imaginação que fabrica desafios abstratos supostamente incontornáveis: “Você quer prescindir das garantias do Estado de Direito, da polícia, da justiça? Como vocês, pobres cordeiros, vão lidar com bandos armados?” Escapar a essa armadilha, recusar uma linha de demarcação que definiria o que deve caber legitimamente ao Estado (o que na França, nomeadamente, ainda se chama de “direitos soberanos”), é reivindicar o tempo da aprendizagem que inventa as próprias questões e desfaz as alternativas infernais. Podemos imaginar um Estado capaz de aceitar que seu papel e suas responsabilidades só são legítimos à revelia e, portanto, provisoriamente, enquanto não tiverem sido experimentados outros modos de reinventar o problema? Um Estado ciente de que não pode desfazer sozinho a rede de cadeias de dependência que o paralisam, mas que poderia dar uma chance àqueles que, elo por elo, aprendem a desmontá-la? Um Estado que saiba se retirar enquanto nossos mundos e nossas imaginações se regeneram? E se arriscássemos a hipótese de um Estado cansado de fingir, em pânico diante da própria impotência, sustentando-se apenas pela crença de que se ele abrir mão, isso significaria o caos? Talvez, então, devêssemos inventar curandeiros que se dirijam àqueles que se creem os baluartes da ordem pública para ensiná-los a valorizar o que é inventado, e a entender que o que é feito sem eles não é necessariamente feito contra eles, e que fossem capazes de confiar. ©Isabelle Stengers Isabelle Stengers é autora de diversos livros sobre filosofia da ciência e é professora na Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica.

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