400 EM 1
Editorial O lançamento da 1ª edição tinha sido adiado por dois meses. No dia em que a disponibilizamos, estávamos exaustos, eufóricos, mas também com um sentimento que era um misto de felicidade e pertencimento. Descobri aos poucos, conversando com o resto da equipe, que a sensação era justamente de ser parte de uma cidade, de um cenário cultural o qual já habitávamos. Éramos, finalmente, agentes transformadores de Belém. No mês dos 400 anos de Belém e de 1 ano da revista, adotamos um formato diferente. Todas as matérias são narrativas do cotidiano dos nossos entrevistados, que não são exatamente artistas no sentido tradicional. Eles produzem o que nós da Na Cuia entendemos como cultura: um conjunto de saberes, costumes e práticas que unem um determinado grupo social. Omar, Dona Coló, Lilia, Bento, Renan e Heitor vivenciam a cidade de Belém de maneiras diferentes. O cuidado que cada um tem com ela está relacionado às histórias pessoais, às reflexões que fazem ao se deparar com os detalhes das suas rotinas. A Na Cuia é a forma que encontramos para contribuir com a metamorfose contínua da nossa cidade quatrocentona. Alterar percepções, discutir, explorar e esbravejar nosso amor aos 4 cantos. Se nós fazemos isso - com a revista e nossas explorações pessoais da cidade - e os entrevistados por entre estas páginas também, por que seria diferente com os nossos leitores? Conheça as pessoas da nossa edição de 1 ano e descubra o fazedor de cultura que carregas contigo!
expediente na cuia revista cultural
Para contratar qualquer departamento da reista: nacuiarevistacultural@gmailcom @revistanacuia /nacuia
editora-chefe Juliana Araujo
chafe de redação Matheus Botelho
redaçã0
departamento de comunicação
Coordenação de Mídias Sociais: Ana Luiza Rocha Planejamento deComunicação: Mariana Gumarães
departamento de arte e design
Diretora de Arte e Diagramação: Lorena Emanuela Arte: Luana Lisboa , Livia
departamento de fotografia
Diretora de Fotografia: Bianca Brandão Fotógrafas: Bianca Brandão e Madylene Barata
revisão e finalização
Vitória Mendes Juliana Araujo, Bianca Brandão, Madylene Barata, Madylene Barata Matheus Botelho, Vitória Mendes, Ana Castro
foto de capa Bianca Brandão
Dona Coló Página 4
Omar Amer Página 12
Fotos Representativas Página 16
LÍlia Melo Página 22
Bento Maravilha Página 30
Heitor e Renan Página 34
Ainda sem Poesia: “Esfinge” Página 40
Bira! Página 42
Edição 11
Dona Coló Texto: Madylene Barata Foto: Madylene Barata
Em mais uma segunda-feira de trabalho, Dona Coló acorda às 3 horas da madrugada, toma banho, escova os dentes, prepara o café e os últimos detalhes de sua mercadoria. Enquanto isso, o marido vai comprar o pão para se alimentarem e irem juntos para o trabalho. Às 3h e 40min eles já estão em uma parada do bairro Almir Gabriel, na cidade de Marituba-Pa, prontos para irem à Belém. O ônibus Marituba-Ver-o -Peso se aproxima, Dona Coló e o marido fazem sinal. O motorista para e eles sobem com suas sacolas perfumadas, vão levando consigo cheiros do Pará.
D
ona Coló está levando para o mercado mais
conhecido
e
movimentado de Belém líqui-
encomenda e, dentro de alguns
dos perfumados que garantem
meses, já tinha um lugar fixo na
alguns benefícios para quem os
ala das erveiras e já era conhecida
precisa. Ela os preparou durante
por todos os fregueses.
o fim de semana. Sempre tira os
sábados e domingos para sepa-
Marido, filhos, genros e netos co-
rar, escolher, misturar e trans-
nhecem desde cedo o poder ances-
formar as ervas em banho que
tral das ervas do Pará e as manipu-
atendem desejos.
lam com destreza de mestres. Toda
Clotilde Melo de Sou-
a família de Dona Coló trabalha
za, mais conhecida como Dona
na feira, seus 5 filhos também
Coló é uma erveira do Ver-o-pe-
têm bancas de ervas e trabalham
so. Trabalha há 34 anos com per-
atraindo felicidade, saúde, paz e
fumes, banhos, óleos, garrafadas
muito amor e desfazendo energias
e pomadas na feira de ervas do
negativas.
Mobilizou toda a família.
Mercado, e conserva, pela pro-
Assim também aconteceu com
fissão, uma alegria de iniciante.
Dona Coló, tudo o que ela sabe
Percebeu seu dom ainda moça.
e compartilha hoje, veio de um
Aprendeu a fazer o banho de
saber conservado pelos seus avôs
cheiro aos 13 anos. Mais tarde
e pais, que também aprenderam
ocupou um espaço no ver-o-pe-
com os pais de sangue e os pais das
so. Primeiro levava mato, depois
religiões afro. A avó de Dona Coló
começou a fazer perfumes por
era parteira e a mãe dançava Umbanda. A erveira seguiu o mesmo caminho, hoje se considera católica e umbandista, devota de Nossa Senhora de Nazaré e de Ogum.
Dona Coló ainda está fazendo o mesmo
de cor morena escura, que aqui na Amazô-
percurso de todos os dias ao lado do marido. Está
nia se reconhece como pele legítima cabocla.
na janela contemplando a cidade ao amanhecer.
Passa pelos mesmos lugares, mas nunca deixa de
partir daí não têm descanso “é bom dia meu
reparar na beleza natural e construída dessa velha
bem pra cá, boa tarde meu amor pra lá” e
cidade de 400 anos. Para ela, Belém é a cidade
várias consultas e indicações de produtos
mais linda do Brasil, nunca quis sair daqui, ape-
para ter uma vida mais agradável. Nesse dia,
sar de receber vários convites.
como nos outros, talvez Dona Coló almoce
ou talvez não, mas sabe que precisa voltar
Os dois aportam no lugar que, inevitavel-
Chegam na “Ala das Erveiras” e a
mente, é o preferido de Dona Coló: o complexo
pra casa às 18h.
Ver-o-Peso. Dona Coló chama atenção de todos
com seus brincos de pimenta malagueta, anéis de
tas festas e de desejos de renovação, por isso,
ferro trabalhado e vestido estampado de renda
a feira está ainda mais movimentada. Nesse
rosa que se agita harmonicamente sobre sua pele
período, o que mais se procura é o banho de
Já é mês de dezembro, tempos de mui-
limpeza, da felicidade, da sorte, da prosperidade, da saúde e do amor. Alguns turistas se aproximam, querem um Banho de Limpeza. Dona Coló os atende e indica um que promete lavar as impurezas do corpo e da alma.
A movimentação dessa época só se compa-
ra a de São João, quando muitas pessoas procuram perfumes e banhos de cheiro pra lavar a casa e a cabeça, como uma espécie de ritual, desejando sempre paz e felicidade nos dias de São Pedro, Santo Antônio e São João. Fora desses dois períodos a venda principal é de perfumes do amor, como o “Pega não me larga”, “Chora nos meus pés”, “Chega-te a mim” e o “Corre atrás de mim”.
São perfumes que raramente deixam de funcionar, e só depende de cada um, “a magia maior é você se concentrar, fazer o seu pedido e tudo vai dar certo, tudo vai ficar pai d’égua”, promete.
Dona Coló é parte da Amazônia, é
membro principal dessas encantarias que a gente não consegue explicar o motivo, mas que acredita que existe e que acontece. São possibilidades de encontros místicos com a natureza e satisfação dos desejos, sem explicação. São acasos sobrenaturais que parecem ser demandados por um deus poderoso, ou por vários deuses juntos, ou por uma deusa. Quem sabe? Há quem diga que não é por nenhum deles e sim uma por força racional humana. Ninguém comprova e Dona Coló também não precisa ter certeza. Já são 18h, ela quer apenas voltar pra casa com a sua família, pra jantar, dormir e se preparar para um novo dia de trabalho, porque amanhã ela vai curar muitos males do corpo e da alma e ajudar a trazer amor, felicidade e sorte pra muita gente.
Fotos Represen
ntativas Texto e fotis: Bianca Brand茫o Juliana Araujo Madylene Barata Vit贸ria Mendes
ESSE RIO É MINHA RUA - Por Juliana Araujo
Essa foto é uma representação muito pessoal da cidade de Belém. Foi onde eu me senti pertencente a Belém pela primeira vez. O rio é esse pedaço de cidade que insistimos em ignorar, a voltar nossas costas para ele. Aprendi a amar o que nos costumamos a ignorar na cidade. Foto: Juliana Araujo
A PAZ E A REPÚBLICA - Por Madylene Barata
Escolhi essa foto não pela beleza, mas pelo lugar simbólico que ela representa. Pra mim a cidade é um espaço de trocas, confrontos, encontros e movimento. Belém não é diferente e esse lugar, em especial, envolve contradições visíveis, porque nele encontramos um grande monumento arquitetônico que é mantido pela riqueza de uma parcela da população- o Teatro da Paz, e ao mesmo tempo encontramos pelos arredores uma minoria que não tem riqueza, e tão pouco é sustentada pela elite paraense. Essa minoria ocupa o resto do espaço da Avenida da Paz e da Praça da República pra morar, batucar, fazer arte e existir. Foto: Madylene Barata
BOSQUE - BIANCA BRANDテグ
Minha foto retrata um dos lugares que mais amo em Belテゥm e posso dizer que テゥ quase saudosista. Sinto falta desse contato com a natureza em outros lugares da cidade, capaz de render muito mais que belas imagens e uma brisa no calor da tarde. Foto: Bianca Brandテ」o.
Na Rua - Por Vitória Mendes
Escolhi essa foto porque esse lugar é encantador. Tinha chovido e eu estava voltando do trabalho quando passei pelos arredores do Ver-o-peso e vi esse fim de tarde lindo. E é impossível não ter uma interrupção linda no fluxo do cotidiano olhando pra essa cena. Obrigada, Belém. Foto: Vitória Mendes.
LÍLIA MELO
Belém não é uma capital muito grande em termos de espaço físico. Mesmo tendo um tamanho reduzido, a cidade tem alguns “números grandes”. Uns podem frisar que esses números tratam de coisas ruins, como violência urbana e o preço de alguns serviços, mas o que está em questão é algo muito mais bonito. Belém tem uma grande quantidade de praças para o pouco tamanho que tem! Praças grandes, pequenas, com muita ou pouca gente, algumas bem cuidadas, outras não. Há ainda as que são o meio de sobrevivência de pessoas e outras que estão completamente abandonadas. Uma delas, em especial, a Praça Olavo Bilac, no bairro da Terra Firme, mudaria a vida de muitas pessoas, especialmente a de Lília Melo. TEXTO: ANA PAULA CASTRO FOTO: BIANCA BRANDÃO
Professora da rede estadual do Pará, quan-
do foi chamada pela Secretaria de Educação para dar aula na Escola Estadual Brigadeiro Fontenelle, inicialmente teve medo, pois a fama da Terra Firme vai longe. Mas quando teve de fazer sua primeira lotação, conheceu a praça e sua alma sentiu algo de especial. O medo se esvaiu. Ao ver a movimentação do lugar, as pessoas trabalhando e transitando, os sons, as cores, Lília experi-
Quem mora na Terra Firme sabe que o
mentou algo que era ao mesmo tempo familiar
bairro é muito maior e melhor do que o lugar
e diferente. Era como algo de vidas passadas, ela
comum atribuído a ela na opinião pública, e
pôde sentir a rua pulsando, a vida nascendo ali.
Lília vive isso diariamente. Ela se identifica
Naquele momento sua história com o bairro co-
com os jovens para os quais dá aula e, ao per-
meçava.
ceber que perdia alunos para o tráfico, para
Lília nasceu e cresceu no bairro da Cre-
balas perdidas, para o extermínio e que ti-
mação, sempre foi uma pessoa periférica, acos-
nha alunos que sofriam violência sexual, ela
tumada a correr e brincar na rua, espaço onde
começou a se questionar o que poderia fa-
construiu e fortificou laços, e não dispensa um
zer para intervir por eles. Essa resposta foi
bom banho na chuva da tarde, se puder. Logo,
obtida por meio de projetos sociais. Fazendo
não foi difícil se apaixonar pela Terra Firme.
jus à profissão que exerce, ela utiliza o espaço
Quando deu por si, não tinha mais volta, estava
da escola para agregar, integraliza suas ações
entregue à riqueza cultural e simbólica do bairro.
com os inúmeros coletivos culturais que atu-
Pegou os filhos e mudou-se para lá. Sim, foi uma
am no bairro e os põe em contato com os alu-
escolha, da qual ela não se arrepende, pois dessa
nos, na tentativa de romper a barreira entre a
forma pôde participar da efervescência do bairro
escola e essas iniciativas.
de forma mais efetiva.
Lília encontrou, por meio de seus pro-
jetos, pessoas com o mesmo intuito, que têm o objetivo de lutar em prol de uma causa. Ela sempre via quem atuava em projetos sociais
nos mesmos lugares e eventos e sabe que isso não é uma coincidência. Seu círculo de amizades aumentou à medida em que ela se envolvia mais no processo, conhecendo verdadeiras lideranças do bairro e mudando os próprios hábitos dentro de casa, levando os cinco filhos também para aquele meio. Hoje ela costuma pensar que não tem mais uma casa, pois o lugar onde mora é uma ação social constante. Ela está sempre organizando alguma coisa, um sarau, uma ocupação… E como se fosse pouco, ela ainda coordena a ONG Grupo de Ouro Nacional, que ajuda crianças com câncer. Devido ao seu cotidiano, Lília gosta de estar em praças - visto que foi uma delas que fez com que quisesse viver na Terra Firme -, em especial a Pracinha do Flora, no conjunto Flora Amazônica, onde há uma ocupação de contação de histórias para crianças nos finais de semana. Lá todos se reúnem à noite pra deitar no chão, ouvir histórias e olhar as estrelas.
Lília faz a diferença por onde passa,
desde que tomou consciência de que podia fazê-lo. Coincidentemente ou não, isso aconteceu em um teatro, mais especificamente no Teatro Universitário Cláudio Barradas, em sua antiga sede. Foi no quintal desse teatro, num lugar cercado de árvores, durante a montagem de um espetáculo sobre Belém e após muitas leituras que ela se deu conta de que era alguém
“dentro de um lugar, que estava dentro de outro lugar, que pertencia a um lugar maior”. Foi ali que se reconheceu como alguém do mato, índia, do norte e amazônida. Percebeu, naquele momento, que tinha uma história bonita pra contar e que podia deixar um bom recado por aí. Construir sua vida em bairros que vivem à margem da sociedade fez com que Lília analisasse mais criticamente a relação de Belém com a sua própria periferia. Ela considera uma relação desarmoniosa, em que o centro é nutrido e abastecido pelas pessoas da periferia, mas esta não recebe os créditos por isso. Os créditos vão pra os cartões-postais, que serão reconhecidos pelos turistas e por boa parte dos moradores como “o que é Belém”. A periferia não é mencionada nisso “por ser feia, preta, suja, fedorenta… Por não ser ‘legal’”. Apesar disso, ela reconhece as coisas boas
que existem no centro da cidade, as manifestações culturais, por exemplo, mesmo que completamente diferentes em suas perspectivas, são de grande valor pra ela. Mas a verdade é que a periferia é sua casa, é onde se sente à vontade, onde trabalha e também busca seu lazer, ela realmente gosta de estar ali. Ela pertence à periferia tanto quanto esta pertence a Belém. O diferencial da Terra Firme é o incômodo das pessoas com a situação de seu lugar perante à cidade, mas que, ao se incomodarem, buscam uma solução coletiva. Lília é um exemplo disso e pessoas como ela têm o potencial para mostrar caminhos diferentes. A periferia faz parte de Belém e, mesmo estando excluída do protagonismo da cidade, não vai ficar sem ação perante às decisões que lhe dizem respeito e ao que acontece consigo.
HEITOR E RENAN TEXTO: MATHEUS BOTELHO FOTO: MADYLENE BARATA
“Olha o Ice Kiss! Olha o Ice Kiss!”; “Tem de todos os sabores!”; “só é 3 por 50 e 4 por 1 real!”. Esses são alguns dos pregões que se escuta diariamente nos transportes coletivos de Belém. Vendedores de todos os tipos de produtos: amendoim, água, picolé, cremosinho, balas de gengibre e bombons. Uma variedade enorme de bombons e de pessoas. De bombons regionais aos industrializados, gente da periferia e de outras cidades. Gente como o Heitor e o Renan.
Nota: Infelizmente, não conseguimos mais entrar em contato com o Heitor Santos Figueiredo para fazermos as fotos para a matéria.
Heitor tem 28 anos e mora no 40 horas,
bairro periférico de Ananindeua, cidade limítrofe de Belém. Ele é pedreiro, mas durante o período natalino não há muito trabalho nesse ramo. Por esse e outros motivos optou por ven-
roda por toda Belém, por diferentes cami-
der bombons nos ônibus. Ele já faz isso há 3
nhos, estes que não são poucos e nem sim-
meses.
ples, sempre guardam alguma dificuldade
Renan tem 23 anos e mora num bairro
pela frente.
periférico de Belém, o Tapanã II. Ele está de-
Afinal, não são todos os ônibus que
sempregado há pouco mais de 3 meses e preci-
estão de portas abertas aos “bombonzei-
sava ganhar dinheiro de alguma forma, então,
ros” - nome pelo qual o senso comum já os
para não mexer em nada de ninguém a única
batizou. Muitos motoristas não permitem a
saída foi vender bombons nos ônibus. Ele já
entrada deles, conforme o que estabelece o
está há dois meses exercendo essa atividade.
Regulamento do Serviço de Transporte Co-
Renan acorda todos os dias às 7 horas da
letivo do Município de Belém, “o motoris-
manhã. Às 8 horas ele já está fazendo compras
ta fica autorizado a recusar passageiro que,
e segue para os coletivos de Belém. Heitor as
de alguma forma, comprometa a seguran-
vezes toma café, as vezes não, porque nem sem-
ça, tranquilidade e conforto dos demais”,
pre tem. Compra a sua mercadoria e sai para o
o que restringe o seu trabalho. Além dis-
trabalho. Já começa a labuta pela avenida Pedro
so, eles passam por muitas outras situações
Álvares Cabral, segue pelo bairro do Telégra-
como: se já tiver ambulante no ônibus, tem
fo, passa pela Pedreira, depois pelo Jurunas e,
que esperar o próximo. As vezes os moto-
a partir daí, vai por onde os ônibus o levarem.
ristas fecham a porta pro bombonzeiro fi-
As vezes tem almoço, as vezes não. Quando o
car preso, mas uma hora ou outra eles dei-
negócio ta pegando muito, ele não almoça, só
xam a porta aberta e o vendedor aproveita
come uma merenda, um chop mesmo. Daí, ele
a oportunidade, o que nem sempre deixa os motoristas felizes.
Pelo visto não é uma rotina muito
fácil. Entretanto, proporciona um contato maior com todo tipo gente. Pessoas de todos os lugares, de muitos sotaques e mui-
tos estilos. Pra um vendedor de bombons
também há olhares de ajuda, silêncios
com/o o Renan, por exemplo, que trabalha
que falam através das atitudes, como
nos coletivos de Belém, Ananindeua, Ma-
comprar mais que o desejado. O ven-
rituba e Castanhal num só dia, é fácil per-
dedor também tem que fazer a parte
ceber como se comportam os seus clientes.
dele, tentar ganhar a confiança de cada
Quando eles entram nos ônibus a primeira
passageiro, seja através do discurso, seja
coisa que encontram são caras viradas, pes-
através do preço. Esse é o “marketing”
soas que não gostam de serem perturbadas.
das ruas.
Há outras que fingem que estão mexendo
no celular ou que olham com pena, mas
riferias, praças, pontos turísticos, co-
Desse jeito, eles passam por pe-
mércios e vão conhecendo tudo. Já é difícil se
zer parte do município de Belém, mas o Heitor
perderem pela cidade. O Heitor tem isso es-
faz, assim como todas as pessoas que circulam
tampado na cara, através de suas expressões ao
pela cidade todos os dias, seja para passear ou
falar dos caminhos pelo qual percorreu. Por
para fazer compras. Gente que mora nas ilhas
falar em caras, para ele, o lugar que é a cara
ao redor da cidade, que vem do interior para
de Belém é o Ver-o-Peso, por tudo o que ele
estudar, para visitar parentes, para ir a hospitais
representa. O Renan pensa da mesma forma.
cuidar da saúde. Gente como ele, que sai cedo
Para ele, uma das melhores partes da cidade são
todos os dias do seu bairro lá em Ananindeua
a Estação das Docas e o Hangar, lugares que ele
só para trabalhar e volta para sua casa no fim
frequenta de vez em quando. Já para o Heitor,
do dia.
o melhor lugar de Belém é a sua casa lá no 40
Horas, junto de sua família.
delas. Belém não é diferente. Prestes a comple-
tar 400 anos, a cidade tem muitas histórias a
O bairro de sua residência pode não fa-
Toda cidade é feita de pessoas e é reflexo
contar através de seus monumentos, museus, patrimônios, ruas e avenidas. Porém, de que forma essas histórias serão contadas? O que determina o que é ou não é história? E o que deve ou não ser contado?
A resposta se encontra nas pessoas. Pessoas que
nasceram e vivem por aqui. Aquelas que viveram aqui mas foram embora. As que vem de fora e ficam e as que vão mas sempre voltam. Pessoas como o Renan que quando está nos ônibus vendendo os seus bombons se sente de uma forma mais honesta, independente da ilegalidade da profissão. E ele não tem vergonha do que faz. No fim das contas são os fluxos de pessoas e do que elas movimentam através de cada atitude, de cada gesto, de cada sentimento, que formam cada século desta cidade.
ESFINGE
Raphael Santos Filipe Mercês
Há um canto agudo que acompanha a revoada. Se há sentido nisso, não se sabe, mas com
certeza existem muitas direções. Os periquitos surgem das árvores e ofuscam os ruídos do trânsito das seis, dançando sobre uma barafunda de cabeças confusas entre amá-los e odiá-los. Eles não se chocam, dizem, não pisam nos pés de seus parceiros, pois sabem que todos têm uma marca branca em cada asa.
Lá embaixo, nos transportes coletivos, compartilham-se histórias de sol e chuva entre ve-
redas de gordurosas veias acinzentadas. Histórias que abafam suspiros, que abafam as lamúrias de olhares perdidos na artéria do mais belo castanho; que confortam com a memória de um quando em que a água que descia dos céus era bênção e não castigo. E nesses veículos, onde trabalham jovens avelhantados que cuidam dos seus ou cuidam de si, quarenta horas não é tempo hábil para se alcançar qualquer destino. Sequer existem destinos, a última parada é movimento, é devir, continuum. Os anos que cabem no rosto não cabem nos papéis, e nem sempre os anéis cabem nos dedos; as portas estreitas existem, mas são tão estreitas quanto a fugaz doçura do bombom que derrete na boca.
A ferrugem de um portão, de uma trave, de um carro de som adverte quanto ao tempo, não
o movimenta; e os meninos que brincam o pingue-pongue invertido, potencialmente detidos, não querem vê-lo passar. A luz da cidade, represada às costas de estruturas modernóides, de carcaças de centros sem paladar, por vezes não palatáveis, entre os quatro muros de condomundos à parte, não lhes chega a iluminar a trilha. É possível enxergar, porém, à margem destes caminhos obscuros, brotos de sonhos em que os meninos se agarram e avançam em consonância com uma voz que soa de um rádio, de um alto-falante, uma voz que diz que o futuro pode ser diferente. Então, ainda que esmagados pela tentativa de soterramento em concreto, despontam alardes que encandecem as vias esquecidas, vias de corpos à mostra, vias de bermudas e chinelos, mas vias de honra e possibilidades.
Por meio desta fresta, escutam-se vozes falando de amor, logo em terreno fértil para que ele
cresça: à beira da baía do Guajará. Amores vernais; amores que vão e que alguém deseja de volta; amores latentes que germina de uma semente de quintal; que ardem e se escondem, que buscam amansar os que já arderam em cinzas; amores que em cinzas querem amansar outras brasas; amo-
Daniel Chagas Victor Pedrosa
res que nascem e que morrem. Que duram. Entre tantos amores, tem quem diga que Belém ama e pronto, como uma entidade só que abre os braços e envolve os filhos desta terra e os que decidiram tomá-la como mãe. Mas quantas formas de amar cabem em rios que cortam as ruas ou que caem dos céus? Rios de açaí seduzem um sírio, e os igarapés escuros devem dar medo na mesma medida em que apaixonam, mas será que estão vivos? Devem ser muitas as formas de amar e devem ter sido muitos os amores para quem tem quatrocentos anos, então quantos terá quem tem mais de quatrocentas faces?
Afinal de contas, onde está Belém? Busca-se incessante-
mente pelo lastro da existência e, portanto, do significado deste cosmo. Mas, dentre tantas coisas, tem-se aqui, principalmente, o infinito, indeterminação maiúscula dos seres e o apogeu da vida. Dito isto, optar por alguma determinação diminuiria a potencialidade e o vigor desses vastos conglomerados que são esta cidade.
Lá em cima, os periquitos surgem das árvores e ofuscam
os ruídos do trânsito das seis. Há quem diga que eles não se chocam, não pisam nos pés de seus parceiros, pois sabem que todos tem uma marca branca em cada asa. Mesmo assim, hoje, em plena comemoração, todos se encontraram de uma só vez, ocupando, por um milésimo de segundo, um único ponto no espaço e no tempo. E caíram, caíram em silêncio. Mas o trânsito não parou.
DECIFRA-ME OU TE DEVORO
BIRA! Estávamos reunidos em uma livraria quando por acaso fomos apresentados ao cartunista Biratan Porto. Ele, que já desenha desde a década de 70, gentilmente se dispôs a publicar seu trabalho premiado internacionalmente com a gente, uma revista que está apenas começando sua história. Um presentão de aniversário. Bem-vindo, Bira!