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Estima-se que 1 em cada 110 crianças seja portadora de autismo. Apesar disso, ainda há muita falta de informação e erros de diganóstico relacionados ao distúrbio. Conheça como ele se manifesta e histórias de mães que aprenderam a entender o mundo particular de seus filhos Por RENATA GALLO Ilustrações MIGUEL GALLARDO 39
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nquanto os meninos de 7 anos vibram com os saltos do Homem-Aranha, Diego prefere seus brinquedinhos de borracha. Matheus, de 11 anos, pode passar horas no gira-gira do parquinho, sem sentir-se atordoado ou notar a presença de outra criança. Já Lucas, de 8 anos, tem madrugadas agitadas, sem dormir, quando recebe uma visita em casa. Diego, Matheus e Lucas não gostam de sair de casa, não estudam em uma escola convencional e evitam o contato visual, seja com desconhecidos ou com parentes próximos. Os três são portadores do Transtorno do Espectro Autista (TEA) e têm uma visão muito particular do mundo. “Os autistas enxergam o mundo de maneira caótica e vivem em confusão permanente. Recebem as informações fragmentadas e não conseguem organizá-las de forma coerente”, explica o psiquiatra Estevão Vadasz, coordenador do Programa de Transtornos do Espectro Autista (Protea) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, de São Paulo. Por não saber decodificar essa cascata de informações, sofrem de problemas comportamentais. “O autista é voltado para si próprio e sua maior dificuldade é a comunicação. Eles têm uma captação sensorial diferente, confusa. Minha filha, por exemplo, diz que correr é vermelho e já conheci crianças que, quando comem sal, dizem que sentem frio ou que, quando escutam um barulho, decodificam uma cor”, conta Eliana Boralli, psicóloga e fundadora da Associação dos Amigos da Criança Autista (Auma). Eliana é mãe de Natália que, aos 2 anos, parou de andar, falar e voltou para a fralda. Um caso raro de autismo, no qual a criança tem uma primeira infância aparentemente normal e depois começa a regredir. Depois de passar por diversos consultórios, saga comum entre os pais com filhos especiais, Eliana teve o diagnóstico e o prognóstico que, na adolescência, Natália teria de ser internada em uma clínica. “Se eu deixasse, minha filha ficaria na quina da parede, de costas para o mundo, balançando o corpo o dia todo, mas resolvi lutar”, diz Eliana. No quintal da sua casa, fundou a Auma para receber crianças que tinham o mesmo problema e não conseguiam estudar em uma escola convencional e passou a estudar o distúrbio. “Eu poderia ter sido uma vítima do autismo e ter me entregue, mas daí minha dor teria sido maior do que o amor que tenho pela minha filha”, diz. Para ela, o conhecimento é o melhor caminho para os pais de crianças especiais. “Cada mãe tem de construir o seu manual. Ler muito, ter contato com outros pais na mesma situação, trocar informações. Com isso, o medo, a negação, a angústia, a culpa, tudo tende a melhorar”, ensina. “Com os estudos, Natália voltou a ser minha filha e eu passei a ter novamente domínio sobre ela, não tinha mais medo dela porque nada mais me era desconhecido”, diz Eliana.
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Natália tem hoje 25 anos e, diferentemente do prognóstico, mora com sua mãe, é alfabetizada, consegue se alimentar e cuidar de sua higiene sem precisar de ajuda. Adora ler revistas, assistir TV, tem ótima qualidade de vida. “E, mais importante de tudo, é feliz”, diz Eliana. Alerta vermelho Dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), agência de saúde pública norte-americana revelam que 1 a cada 110 crianças tenha TEA, em seus diferentes graus. A proporção é de quatro a cinco meninos para cada menina. Número alarmante que, no Brasil, não é levado a sério, de acordo com o psiquiatra Estevão Vadasz. “No Brasil, há cerca de 1,5 milhão de autistas, mas 95% deles vivem sem diagnóstico ou com o diagnóstico errado. Muitas vezes, são tratados como esquizofrênicos, como portadores de outros transtornos ou, quando são agressivos, vivem presos em hospitais psiquiátricos ou isolados em casa”, afirma. Segundo o psiquiatra, a situação do autista no Brasil é caótica. “As crianças são diagnosticadas tardiamente, com 6, 8 anos de idade”, diz. Isso acontece porque não há exame laboratorial nem características físicas que revelem que a criança sofre do transtorno. Os autistas são, aparentemente, “normais” e o diagnóstico é fechado por meio de análises comportamentais com base na chamada tríade, que avalia se a criança sofre de transtornos de comunicação e linguagem, tem problema de sociabilidade, imaginação pobre, movimentos e atividades repetitivas. Imaturidade motora, insensibilidade à
dor e discurso repetitivo (ecolalia) também são características do transtorno. De acordo com Estevão Vadasz, o ideal seria se as crianças fossem diagnosticadas nos primeiros anos de vida. Para tanto, os pais devem ficar atentos à evolução do filho. “Se a criança está com 1 ano e meio, 2 anos e não fala, procure um especialista”, alerta. Segundo ele, o sinal vermelho tem de se acender se a criança parece surda, não responde quando é chamada e parece viver em um mundo particular. O transtorno de espectro autista se apresenta em graus variáveis. Os casos mais severos, que correspondem a 70% dos diagnósticos, são denominados como de baixo e moderado funcionamento. O restante se divide entre os casos de alto funcionamento e da chamada Síndrome de Asperger, uma forma mais branda do distúrbio em que a criança não apresenta déficit mental. “Os portadores da Síndrome de Asperger são inteligentes, bem articulados e, muitas vezes, passam por pessoas excêntricas. Mas, assim como todos os autistas, têm problemas de socialização e interesses restritos”, explica Vadasz. Muitos são excepcionais em física e em matemática, como Raymond, papel de Dustin Hoffman em Rain Man, que era capaz de decorar listas telefônicas. O dia a dia da maioria dos autistas, no entanto, passa longe de situações geniais apresentadas no filme vencedor do Oscar de 1989. “A sociedade crucifica pais e filhos e muitos autistas estão escondidos por falta de informação”, diz Dezoete Soares Pereira, mãe de Lucas, de 8 anos, que, frequentemente, tem
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filho é para dent ro. Ant es EU me ent rist ecia, mas hoje sei que ele ”“ está bem e é feliz.p Araci, mãe de Matheus, de 11 anos 41
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de escutar que seu filho não sabe se comportar e que é mal educado. “As pessoas não gostam muito da presença do meu filho, ficam incomodadas”, conta Araci Martins, mãe de Matheus, de 11 anos. “Costumo dizer que são crianças de porão, pois são branquinhas, não tomam sol. Os autistas não gostam de sair da rotina, preferem ficar em casa e isso, de certa forma, é cômodo para os pais que não têm de passar por olhares de provação”, completa Eliana Boralli. Mundo particular Lucas é uma das crianças assistidas pela Auma, tem o caso mais severo do transtorno e um histórico de diagnóstico comum a muitas crianças. Quando tinha 2 anos, foi diagnosticado como deficiente auditivo. “Ele gostava de ficar isolado, não falava e eu achava que era porque não escutava”, conta Dezoete. Por mais de um ano, ela tentou juntar dinheiro para comprar próteses auditivas, passou a pesquisar cursos de libras, a linguagem dos sinais, até que conseguiu uma prótese emprestada e decidiu levar seu filho a um novo médico. “Depois do exame o médico me disse que Lucas não era deficiente auditivo, mas autista. Foi assustador porque eu sabia o que era um deficiente auditivo, mas não um autista”, conta. Após o diagnóstico, no entanto, quando Lucas estava com 4 anos, tudo se encaixou. “Meu filho nunca gostou de pessoas em casa. Quando tínhamos visita, precisávamos prepará-lo dias antes e sabíamos que as noites seguintes seriam agitadas”, conta Dezoete. Para ele não entrar em crise, Dezoete conta que, até hoje, não pode nem mesmo mudar os móveis da casa
de lugar. “Quando compro algum móvel novo, procuro escolher da mesma cor, do mesmo estilo, para ele não se alterar”, diz. Dezoete leva Lucas para todos os lugares e sempre tenta antecipar o que vão encontrar pelo caminho. “Muitas vezes tive de voltar para casa porque ele não queria caminhar por uma rua que não conhecia”, conta. Agenda pré-estabelecida A rotina é importantíssima na vida do autista. Para ele, é fundamental saber o que vai acontecer a cada momento. Na Espanha e em muitos outros países da Europa, as escolas de educação especial trabalham com a agenda do dia, onde colocam imagens de todas as atividades que serão executadas, incluindo ações corriqueiras como lavar as mãos ou ir ao banheiro. A cada nova etapa, a agenda é consultada para que as crianças se sintam seguras. Além da necessidade de ter uma rotina pré-estabelecida, muitos autistas também têm insensibilidade à dor. “Um dia, na escola, meu filho caiu do gira-gira e se machucou e as professoras ficaram assustadas ao perceberem que ele não chorou”, conta Araci, mãe de Matheus. Na época, ela ainda não havia recebido o diagnóstico que Matheus era autista de grau médio. “Aos 2 anos, meu filho não falava nada, então coloquei-o na escola para estimulá-lo”, diz. “Se deixassem, ele passava horas no gira-gira, sem se atordoar. É da natureza dele, ele tem prazer em girar”, explica Araci. Desde bebê, Matheus gosta de ficar sozinho. Depois de fazer vários cursos para entender o distúrbio do seu filho,
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LIVRO ABERTO Os desenhos que ilustram esta reportagem foram cedidos à n.magazine pelo renomado artista espanhol Miguel Gallardo. Pai de María, uma garota autista, hoje com 18 anos, ele tem usado sua arte para orientar e expor questões importantes sobre o distúrbio. Em 2007, lançou o belo comic María y Yo (Maria e Eu), no qual narra de maneira sensível as férias de um pai (o próprio Gallardo) e sua filha autista e a relação da menina com o mundo e as pessoas que a rodeiam. Ganhador de alguns dos mais importantes prêmios de quadrinhos na Europa, o livro inspirou o documentário de mesmo título, dirigido por Félix Fernandez Castro e lançado no ano passado. A história de María e Gallardo também foi transformada no curta-metragem de animação El Viaje de María (A Viagem de María), que em cinco meses já teve mais de 100 mil visualizações no Youtube de suas versões em espanhol, inglês e francês.
Araci conta que conseguiu avanços. Ano passado, o levou até o aeroporto para mostrar como seria gostoso ele viajar. “Ele gostou tanto que queria embarcar naquela hora. Todo mundo achou estranho um menino daquele tamanho chorando e fazendo escândalo no aeroporto. Mas, de lá para cá, já fizemos três viagens. Quando ele entra no avião, vibra, grita de alegria”, diz. Os anos de dedicação exclusiva a seu filho também fizeram que ela o entendesse. “Hoje nós somos duas pessoas iguais. Eu sei que o mundo do meu filho é para dentro, mas eu o entendo. Antes eu me entristecia, mas hoje eu sei que ele está bem e é feliz”, diz. Pequenos (grandes) êxitos Reconstruir expectativas, redimensionar prioridades e valores são alguns dos exercícios frequentes aos pais de crianças especiais. “Com meu filho eu aprendo e com ele me tornei uma pessoa muito mais tolerante”, diz Patrícia Silva de Souza, mãe de Diego. “Às vezes meu filho me olha bem rápido. Quando eu percebo, ele já desviou o olhar, mas, mesmo sendo por segundos, isso já me faz um bem enorme”, diz Dezoete, mãe de Lucas. “Quando a Natália me pede um absorvente e diz que precisa de remédio para cólica porque não está bem eu vibro internamente”, relata Eliana Boralli, que tem até hoje viva na memória o dia do aniversário de 3 anos de sua filha, quando ela sorriu após um ano e meio sem esboçar nenhum sentimento. Com Natália, Eliana aprendeu a lapidar seu olhar do que é ser feliz. “Fácil não é, não posso dizer que sou a pessoa mais feliz do mundo. Mas aprendi a valorizar coisas menores e reescalar o que é felicidade. A Natália é minha filha, independente do diagnóstico, e eu a amo”. Eis um remédio transformador, o amor.