Impressão 199, Caderno I

Page 1

DANILO SILVEIRA

Ano 33 • número 199 • Outubro de 2015 • Belo Horizonte/MG

Jornalismo que suja os sapatos Repórteres do IMPRESSÃO encaram desafios inusitados e relatam suas viagens de ônibus, de trem e a pé. PÁGINAS 4 A 11 Caderno DO!S - Teatro, tecnologia, bancas de jornal e cartas manuscritas


2

Belo HorIzonte, outuBro De 2015

primeiras palavras

Impressão

Atravessar é preciso Danilo Silveira Há um passo de completarmos a ducentésima edição do IMPRESSãO, nossos repórteres fizeram o que é mais importante

dentro da profissão de “jornalista”: sair do lugar comum e sujar os sapatos. Buscaram, em suas peregrinações, insights que aperfeiçoassem suas reportagens. Abandonaram a angelical burocratização do texto padrão, ao serem possuídos pelo demônio da curiosidade. A capacidade de sair da inércia resultou nos “destinos” de três repórteres, que, com valores distintos em seus bolsos, tiveram que escolher as viagens que caberiam em seus orçamentos, levando em conta os preços de passagem, alimentação e hospedagem. O Dossiê Viagem continua com dois repórteres que usaram as canelas para percorrer 19,6 km – da Rua Diamantina, em BH, até o Centro Histórico de Sabará – e termina com outros dois jornalistas por uma viagem

de 12 horas no moderno trem de passageiros da Vale, que transporta, todos os anos, mais de um milhão de pessoas. No caderno Dois!, o mercado teatral belo-horizontino é tema de uma reportagem que compreende as oportunidades e aponta os desafios encontrados por atores com idade acima de 60 anos. Mais adiante, o faturamento milionário de pessoas que usam o YouTube como meio de trabalho, seguidos do perfil de uma banca de jornal 24 horas e de um jovem que encarna, ao mesmo tempo, carteiro e poeta. A edição 199 ainda está repleta de crônicas, dicas culturais, belas imagens e muita criatividade. Então, saia do lugar comum: embarque em nossas histórias.

eXpeDIente

VICE-REITORA Profa Vânia Café INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS Prof. Paulo Emílio S. Vaz (diretor) Profa. Cynthia Enoque (adjunta) COORDENAÇÃO DO CURSO DE JORNALISMO Prof. João Carvalho

LABORATÓRIO DE JORNALISMO IMPRESSO EDITORES Prof. Leo Cunha Prof. Maurício Guilherme Silva Jr. PRECEPTORA Profa. Ana Paula Abreu (Prog. Visual / Diagramação) ESTAGIÁRIOS Danilo Silveira Rodrigo Oliveira Wilson Albino ILUSTRAÇÕES William Araújo Dandara Deolinda PARCERIAS Lab. de Criação Publicitária (LACP) Laboratório de Jornalismo Online Laboratório de Fotografia Laboratório de Experimentações Gráficas (LEGRA) IMPRESSÃO / TIRAGEM Sempre Editora 2.000 exemplares eleito o melhor Jornal-laboratório do país na expocom 2009 e o 2º melhor na expocom 2003 O jornal IMPRESSÃO é um projeto de ensino coordenado pelos professores Maurício Guilherme e Leo Cunha, com os alunos do curso de Jornalismo do UniBH. Mesmo como projeto do curso de Jornalismo, o jornal está aberto a colaborações de alunos e professores de outros cursos do Centro Universitário. Espera-se que os alunos possam exercitar a prática e divulgar suas produções neste espaço. Participe do IMPRESSÃO e faça contato com a nossa equipe: Rua Diamantina, 463 Lagoinha – BH/MG CEP: 31.110-320 Telefone: (31) 3207-2811 Email: impresso@unibh.br

pArA seGuIr o JornAl Facebook TudoUni – Centro de Experimentação Transmídia

@ E no dia seguinte...

Site: www.unibh.br/tudouni

Twitter: twitter.com/tudounibh


Visão Crítica

Impressão

Belo HorIzonte, outuBro De 2015

3

Eta, comidinha fresca! REPRODUÇãO

Francyne Perácio A gourmetização invadiu a vida dos brasileiros, seja nos restaurantes ou na rua. Ela está em todo lugar. Um simples cachorro-quente, ao ser incrementado por molhos caseiros e outras especiarias, tem seu preço aumentado e leva o nome de gourmet. Ele está atrelado à qualidade, ao requinte, a algo diferente e bizarro, ou seja, frequentar um restaurante gourmet seria como almoçar na rue Saint-Martin, ou na rue de Rivoli, em Paris. O termo gourmet foi criado pelo gastrônomo francês Jean Savarin, para designar aquele que possui um paladar apurado, mais sofisticado. O sentido e o significado dessa palavra sofreram influência do marketing empresarial, e toda comida ou prato exótico, hoje, leva o nome de gourmet. Os brasileiros, em sua maioria, adoram se apropriar desses estrangeirismos e atribuir outros significados a eles, assim como as palavras garçom, proveniente do francês garçon, que significava jovem ou rapaz e bolo, que, no espanhol, significa panqueca, ou bolo de frigideira. Em um país onde a “invasão da classe C” aos shoppings, restaurantes e aeroportos não é bem vista pela elite, a gourmetização é um divisor de águas entre essas duas classes. Os elevados preços dos produtos, cujo rótulo leva essa expressão no nome, não são acessíveis a uma parcela da sociedade que vive de um mísero salário mínimo. Seria a gourmetização mais um modis-

mo espelhado nos europeus e americanos? Não é preciso ser caro ou requintado. Um simples brigadeiro ou o tradicional tropeiro, ao ser rotulado como gourmet, sofre um aumento considerável, a especulação está em todo lugar, e com o ramo alimentício não seria diferente. Comer uma pizza com

Infância regada a música Ana Borges Desde quando nasceu, ouviu muita música, inclusive erudita, o que o fez crescer gostando de tal estilo. Aos dois anos, enquanto ouvia a “Nona Sinfonia” de Ludwig van Beethoven, na companhia do padrinho, Artur Leal Carvalho seguiu até o teclado eletrônico do tio e com apenas um dedinho tirou a música de ouvido. Por perceber o quanto o garoto gostava de aprender as músicas no teclado, sua mãe o colocou, aos quatro anos, na aula de piano, onde, além de estudar a técnica, passou a cantar a Nona em alemão. Tempos depois, dedilhou a música “Minha Canção”, de Chico Buarque,

extraída do musical infantil Saltimbancos. Porém, aos 5 anos, o menino se desiludiu com o piano, por causa da primeira professora, o que o fez desistir temporariamente do instrumento. Quando Artur tinha 6 anos, seu padrinho conheceu aquela que seria a nova professora de musicalização do garoto. No entanto, o pequeno não voltou a tocar imediatamente, pois ainda estava decepcionado. A nova professora, por meio de atividades lúdicas, acabou por convencê-lo a retomar os estudos. Atualmente, aos 11 anos, ele compõe suas próprias músicas eruditas, que diz ser seu estilo preferido. Inspiração? Johann Sebastian Bach.

os amigos se tornou um ritual, e, ao ser atingida pelo “raio gourmetizador”, uma pizza de frango com catupiry tem seu valor aumentado. Além disso, comidas gourmet nem sempre são sinônimos de aprovação e aceitação, muitas pessoas preferem alimentos mais simples e comuns, sem muitos

ingredientes atípicos. Então o que fazer, em meio a essa “invasão”? Aguardar os resultados desse “movimento”. Mas é interessante acompanhar com atenção e evitar que essa “colonização” faça-se presente em nossa história novamente.

Um sonho de viagem Thiago Fonseca Ansiosa, nervosa, dedicada e sonhadora. Eis os adjetivos que melhor qualificam kayssa Pena, de 17 anos. Como toda pessoa que busca um exemplo a seguir, ela se espelhou no pai, já falecido, que era professor de inglês, para fazer o que mais gosta e o que mais quer: aprender e praticar a língua estrangeira. Há um ano, a jovem recebeu a notícia de que poderia realizar seu sonho maior. A novidade viera após ter participado de um longo processo de seleção na escola. Ela havia sido escolhida para viver os 15 dias mais emocionantes e felizes de sua vida. Inspirada no pai, kayssa sente-se

animada de ter a oportunidade de deixá-lo orgulhoso. A jovem corre contra o tempo para arrumar todas as coisas necessárias à grande viagem. Depois de muito esforço, tudo pronto e arrumado! Câmera, passaporte, paletós e cachecóis, “a postos” na mala. Só lhe resta partir. No grande dia, a família inteira se reúne: abraços aqui e acolá, lágrimas correm pelos rostos da mãe e dá avó. A nostalgia já bate nos corações dos familiares. Alegria e tristeza, insegurança e emoção... Paradoxos invadem os corredores do saguão de embarque do Aeroporto de Internacional Tancredo Neves, em Confins. Sentimentos nascidos da realização do sonho de kayssa: a ida para a “América”.


4

Belo HorIzonte, outuBro De 2015

Dossiê Viagem

Impressão

Três destinos desconhecidos O relato de uma pobre, mediana e rica viagem

O que importa não é o dinheiro, mas o prazer que ele proporciona

Texto e fotos: Elen Castro Monia Ferreira Vanessa Alves Tudo começou em uma viagem, que deu início a outras viagens. À espera do metrô Eldorado-Belo Horizonte, a ideia surgiu. O trabalho da disciplina Edição Jornalística pedia uma sacada extraordinária, com pautas fora do comum. Valor da avaliação: 25 pontos. No total, foram dois dias de brainstorm, mas nada vinha à mente. Até que, em frente à plataforma, a ideia surgiu: “Seria legal se passássemos um dia como mochileiras”. Pareceu loucura... e de fato era. O professor resolveu complicar a pauta: ao invés de apenas relatar as peripécias de um passeio a três, que tal pensar em três viagens? Mas como assim? Vamos lá: por sorteio, uma das alunas viajaria com pouco dinheiro, uma segunda seria o que chamaremos de “mediana” e a outra ostentaria ri-

queza. Cientes de quanto tinham em mãos, cada uma deveria escolher um destino e traçar seus planos de viagem. Tínhamos coragem e só. Estipulamos R$ 1 mil reais, a ser dividido pelas três viajantes de forma desigual – R$ 600, R$ 300 e R$ 100, respectivamente –, mas não sabíamos como alcançar a meta. Cada uma deveria doar R$ 200. Mesmo assim, ainda faltavam 40% do valor esperado. O próximo desafio, portanto, seria arrecadar R$ 400 em três semanas. Resultado? Apelamos para tudo: da venda de bombons a descarados pedidos de dinheiro a amigos e professores. Chegamos, até mesmo, a procurar agências de turismo para pedir patrocínio. Nem todas as iniciativas deram certo. Resolvemos, então, recorrer a Wilson Oliveira, nosso colega de turma e dono do jornal O Grito, que circula em Itabirito (MG). Contamos a ele a história, que colaborou com outros R$ 200. Foi a primeira vez que consideramos viável o desafio. Sabíamos, afinal,

que, como toda pauta, ela poderia cair. Ainda no que diz respeito à arrecadação de fundos, passemos aos bombons: no total, encomendamos 30 unidades, a R$ 36. Estipulamos preço de R$ 2 por produto e lucramos exatos R$ 24. A ajuda da turma foi algo surpreendente. Muitos alunos, com quem, inclusive, mal conversávamos, gostaram da ideia e passaram a nos ajudar. Criamos um grupo no Whatsapp para registrar o futuro boletim de viagem e, também, para receber dicas durante o percurso – que, aliás, até então, não estava definido. Nos últimos dias antes da partida, arrecadamos o valor desejado. Arrumamos as malas de forma a servir para qualquer lugar, fosse uma cidade próxima a BH ou, até mesmo, em outro estado. Ao final da arrecadação, ultrapassamos a meta: R$ 1.040. Há quem diga que iria ser apenas mais uma sexta-feira fria em Belo Horizonte, mas, para nós, as emoções do fim de semana apenas se iniciavam.

Tudo começou, mesmo, com o despertador, às 5h30. Completamente fora da rotina, encontramo-nos, na rodoviária de Belo Horizonte, às 8h. Cerca de vinte pessoas, entre familiares, alunos e professores. foram ao local, para se despedir e testemunhar o bendito sorteio das condições financeiras das viajantes. Era chegada a hora de descobrir o que rechearia o bolso de cada uma. Apostas lançadas, provocações realizadas, ânimos alterados e, finalmente, a viajante “mediana” foi decidida. Mônia ficaria com R$ 300. Na sequência, o momento de maior tensão: quem seriam a pobre e a rica? Tambores rufaram, dedos se cruzaram, câmeras registraram... e o azar coube à pobre Vanessa, que teria que se virar com apenas 140 pilas. Já Elen, mal disfarçando o alívio, com um sorriso, passava a imaginar um fim de semana nababesco (ou nem tanto...) com R$ 600 na bolsa. Hora de comprar passagens!


Dossiê Viagem

Impressão

Belo HorIzonte, outuBro De 2015

5

Paupérrima sorte VANESSA ALVES

Vanessa Alves Após descobrir que seria a pobre, veio a parte mais difícil: para onde ir? A cidade que escolhi fica a cerca de 110 km da capital mineira. Trata-se de terra desconhecida, mas não longínqua. Saio de Belo Horizonte às 10h. A passagem custou R$ 34,80. Antes de embarcar, vou ao banheiro e compro um lanche por R$ 4,70. Exatas 2h30 depois, desembarco em Santa Bárbara (MG), por volta das 13h e devo admitir que o sentimento de chegar a um lugar desconhecido, e para onde você sequer tenha pensado em ir, é algo extraordinário. Percorro a cidade por cerca de uma hora, com o intuito de encontrar um canto para ficar. Vou a três estabelecimentos diferentes e, quando penso que terei que voltar para BH no mesmo dia, EUREkA! Um caminhão passa por mim, com tal famosa expressão grega, que traduz a felicidade e descoberta, impressa em sua carroceria. Parece um bom sinal. Eis que a boa sorte dos desafortunados resolve se manifestar: encontro o ambiente perfeito para me hospedar, na cidade, por uma noite. Como o próprio nome informa, a Pousada Central fica no centro comercial da cidade e me dá acesso rápido à rodoviária e ao centro histórico. Um senhor muito simpático me atende e diz que há um único quarto disponível. Ele me conta, ainda, que poderia me aceitar por R$ 35 – ou R$ 5 a menos do que a diária normal, pois o banheiro é de uso coletivo. O lugar é limpo, bem localizado e barato. Com a chave de meu quarto em mãos, consigo livrar-me da pesada mochila, preparada para uma viagem de alguém com um pouco mais de grana.

A 110 km de BH, Santa Bárbara é umas das cidades do circuito do ouro

E posso me trocar para explorar a cidade devidamente. Enquanto procurava um lugar para ficar, eu andei bastante, mas meus pensamentos voltavam-se à solução de um problema específico. Por isso, resolvo voltar à rodoviária e, de lá, seguir com minha incursão por Santa Barbará. Os santabarbareses são educados e atenciosos. A curta estadia pela cidade não me permite dizer muito mais do que isso sobre os habitantes. Aqueles com quem converso, contudo, são bastante gentis. Ando pela avenida principal, em direção ao centro histórico, munida de câmera fotográfica e celular. A igreja do Rosário é a primeira construção histórica que vejo.

Como sobreviver com r$ 140 • Lembre que viajar com tão pouco dinheiro não quer dizer ter uma aventura menos prazerosa. • Calcule o destino pensando no valor de ida e de volta da passagem. • No seu destino, faça pesquisa de valores em locais para se hospedar. • Não vá a restaurantes, procure supermercados ou padarias. • Procure transporte barato, de preferência caminhe pela cidade. • Escolha um hotel que sirva ao menos uma refeição. • Alimente-se antes de sair do local de partida. • Vá ao banheiro na rodoviária. Valores Passagem de ida e de volta: R$ 66,65 Pousada: R$ 35,00 Alimentação: R$ 22,10 Presentes: R$ 15,80

Infelizmente, está fechada. Em seguida, avisto a casa do ex-presidente Afonso Pena, mas não entro. Afinal, sou absorvida pela próxima construção. Com as portas abertas, a paróquia de Santo Antônio me proporciona um dos momentos mais especiais da viagem. Acredito ter ficado cerca de 20 minutos sentada dentro da igreja histórica, na tentativa de apreciar toda a beleza de seu interior. Não é a primeira vez que entro em uma igreja como aquela, mas é impressionante o poder de envolvimento de gigantescas obras de arte. Ao sair do centro histórico, lembro-me de duas coisas: preciso comer e comprar a passagem de volta. Já são quase 16 horas e eu, no frisson de viver aventura tão planejada, esqueço de me alimentar. Como as finanças não estão lá essas coisas, decido ir ao supermercado mais próximo, para passar a noite com alguns sanduíches. A ideia foi boa! No supermercado, gasto exatos R$ 13,60 e consigo comprar comida suficiente para o que preciso. Volto ao hotel para saciar a fome e descansar um pouco das emoções do dia. Por volta das 17h30, resolvo tomar um banho e me preparar para a noite de Santa Bárbara. Lembro-me, então, do aviso que recebi ao chegar: “O chuveiro demora um pouco para esquentar”. A água continua fria e, como “o que não tem remédio remediado está”, tomo banho frio, mesmo, sem escapatória. Antes de sair de BH, eu havia sido advertida sobre o frio que enfrentaria

em Santa Bárbara. O banho gelado serve para acentuar a “cara” da cidade, mas estou preparada para suportar esse outro revés. A cidade está numa calmaria sem fim. Mesmo instalada no centro, não encontro nenhum tipo de movimento noturno. Sendo assim, após uma volta, que não deve ter durado nem 40 minutos, retorno à pousada. No meio da noite, percebo que tinha companhia no quarto: no porão – que fica embaixo de onde estou – ratos não param de fazer barulho. Os bichinhos me assustam no início, mas não me impedem de curtir uma maravilhosa noite de sono. No sábado, acordo às 7h para tentar andar um pouco pela cidade, antes de ir para casa. O hotel serve café da manhã, o que é muito útil para meu bolso. Volto ao centro histórico, ando por outros lugares do município, encontro um presente para o meu “desafiador” – um pote de goiabada, que me custa R$ 11 – e ainda compro lembrancinhas por R$ 5. Chego à rodoviária 40 minutos antes de minha partida. Lá, conheço o Geraldinho, motorista de táxi que insiste para que eu fique mais na cidade. Ele me dá muitas dicas sobre lugares para visitar, em municípios próximos a Santa Bárbara. Muito gentil e simpático, ele me leva à porta do ônibus e se despede com um “Até logo!”. No fim das contas, sobram-me R$ 0,45. Grata surpresa! Chego a Belo Horizonte por volta das 15h. Cansada, mas feliz.


6

Belo HorIzonte, outuBro De 2015

Dossiê Viagem

Impressão

Nem rica, nem pobre Monia Ferreira Ao receber R$ 300 no sorteio, fico sem saber para onde ir. Tenho mil opções para a quantidade mínima, mas não havia pensado em um destino possível sendo... “mediana”. Num piscar de olhos, vejo o nome “Barbacena” em uma placa. Nunca pisei na cidade, mas sei que é histórica. Eis minha primeira opção. Depois, penso em São João del Rei, com quase o mesmo valor da passagem (R$ 54). A partir da opinião de pessoas próximas – incluindo dona Fatinha, mãe da viajante rica, que nos dá apoio na rodoviária –, escolho o segundo destino. Pesquiso a cidade na internet, mas o serviço de dados – como sempre – está horrível. Imagino o que farei ali, que pessoas conhecerei e se consegurei hospedagem. Sei que o dinheiro não dará para um hotel mais confortável, mas talvez ache algo em conta. No caminho, recebo dica valiosa de Bruno Costa, colega de sala, que me indica um hotel próximo à rodoviária. Apesar disso, ao pisar na terra desconhecida, entro na primeira pousada que avisto. Quando o dono me diz que a hospedagem custa apenas R$ 35, decido passar a noite ali. De cabeça bem branca, ele está na cidade há 70 anos. Tem muitas histórias a contar e muito amor pela terra natal. Estou sozinha, sem conhecer o lugar, nem ninguém. São 15h e meu estômago ronca. Busco restaurantes, mas estão todos fechados. Durante o caminho, tenho a brilhante ideia de comprar pão e mortadela, para economizar no lanche. Porém, continuo com uma fome terrível. Além disso, todas as roupas em minha mochila têm, agora, cheiro de mortadela. Ao passear pela parte histórica da cidade, acabo comprando um milk-shake. Lá se vão R$ 12 com uma bebida feita à base de leite de vaca. Ainda preciso andar por um longo período, mas nem sei ao certo que caminho tomar. Recebo ajuda dos moradores para encontrar as famosas igrejas da cidade. Ando bastante por um caminho com ladeiras em pedra sabão. O centro histórico se esforça para preservar a memória. Assim como outros municípios antigos, é proibido fazer novas construções. A Igreja do Carmo é a primeira que avisto. A entrada custa R$ 2. É possível fotografar em seu interior, mas não há guia que auxilie a visitação. O lugar que mais gosto, porém, é a Igreja de Nossa Senhora das Mercês, de arquitetura linda. Além disso, um guia muito simpático auxilia a visita. Ao lado da igreja, na loja Madeira em Arte, é possível encontrar de

lembrancinhas a bebidas. A maioria das coisas encontradas por lá é feita artesanalmente por pessoas da região. Solícita ao me mostrar a loja, a vendedora quer saber o motivo de minha viagem. Ela acha interessante o desafio e me deseja boa sorte. Sua simpatia talvez a tenha ajudado a vender os produtos, pois gastei R$ 75, incluindo pequenas miniaturas de igrejas da região, um licor de jabuticaba e um copinho feito de bambu. São João também é terra de Tancredo Neves e local de seu memorial. O valor da entrada é de R$ 2, e é talvez a melhor parte do passeio. Sempre gostei do político, e não imaginava encontrar um espaço dedicado a ele na cidade. Na mesma rua, é possível ver a Universidade Federal de São João del Rei. O campus é bem amplo, como um local à parte dentro da cidade. Alguns profissionais estão em greve, mas muitos alunos conversam no pátio. Dentro da universidade, vejo uma capela, que também pode ser visitada por quem passa pela cidade. Embora seja histórica, São João tem toques de metrópole. Posso comprar minha “janta”, por exemplo, em uma unidade do Subway. Pelo caminho, há outras lojas tradicionais. De volta à pousada, converso com Penha, moradora de São João desde que nasceu, há 62 anos. O passeio custava mais barato há cinco anos, mas, como o fluxo de turistas aumentou, os preços da Maria Fumaça triplicaram. A moradora lamenta, também, a violência na cidade. “Na última semana, presenciei um assalto à mão armada.

Viagem remediada: como aproveitar r$300 • Não compre todas as lembrancinhas que desejar • Não entre no primeiro hotel que encontrar • Converse com pessoas locais, que podem ser bons guias • Procure bons restaurantes, que caibam no seu bolso • Não anuncie que é turista, para não pagar preços altos • Não coma nada pesado • Cuidado com a segurança • Escolha cidades próximas

Estou em choque até hoje”, conta. Acordo bem cedo no sábado para ir a Tiradentes. Uma das opções de ônibus é a Vila do Ouro, que passa pela Estrada Real, com passagem acessível (R$ 3,50). Outra escolha é ir pela viação Presidente, via estrada comum. Quase todas as igrejas estão fechadas, infelizmente. A cidade histórica me encanta e, como é pequena, em uma hora, visito todo o centro. Espero a abertura da Igreja da Matriz, onde me cobram taxa de R$ 5. Ao visitar lojas e restaurantes, é possível notar grande diferença nos preços. Enquanto, em São João, come-se bem com R$ 10, em Tiradentes, não se encontra lugar que cobre menos de R$ 30. As lembrancinhas e a hospedagem também custam mais! Tiradentes recebe muitos turistas. Enquanto passo pelas ruas da cidade, realiza-se, por exemplo, a Santíssima, evento religioso que atrai muitas pessoas. A cidade é uma espécie de São João gourmetizada. Tudo é maior: os

preços, o número de turistas e o volume de eventos temáticos. Faço a última tentativa de andar de Maria Fumaça e peço desconto à funcionária, uma mulher de seus 30 anos, com mau humor típico de quem acorda cedo. Explico o trabalho. Tudo em vão... Ela diz que não pode dar desconto, pois seria cobrado em seu salário. Além disso, a próxima viagem está marcada, exatamente, para uma hora antes do ônibus de volta a BH. Volto para casa extremamente cansada e com a sensação que ter passado por uma experiência única na faculdade. Durante os últimos períodos, questionei a falta de trabalhos diferentes e as fórmulas exatas para fazer reportagens. Agora, tenho certeza de que preciso encontrar mais pautas assim, que me façam contar as horas de ansiedade. Todo esse tempo foi bom para perceber que uma boa ideia precisa partir da gente. O resto se resolve com coragem, parceria e vontade de fazer jornalismo. MONIA FERREIRA

A arquitetura colonial de Tiradentes e São João del Rei resiste à ação do tempo


Dossiê Viagem

Impressão

Belo HorIzonte, outuBro De 2015

7

Viagem premiada Elen Castro No total, 522 km e nove horas de viagem. O mais estranho é que parece que ainda estou em casa. Tudo flui tão naturalmente, a simpatia das pessoas, a proximidade do sotaque e as montanhas em volta da ilha, que penso comigo: “Por que demorei tanto a conhecer esse novo universo?”. Parece um cantinho de Minas. Um dia antes da viagem, minha mãe resolveu ir comigo, para fazer companhia, e disse: “Se você for a rica e viajar para um lugar distante, vou ficar preocupada”. Avisei que ela podia ir, com a condição de não interferir no rumo da viagem. Parece que ela já estava prevendo... De repente, passa pela minha cabeça “Sou rica! E agora? O que fazer? Para onde ir? Onde dormir?”. Uma hora e meia de procura e não sei para onde vou com meus 600 reais. São Paulo e Rio seriam comuns demais. Quero um lugar com menos de 12 horas de viagem e onde não tenha posto os pés. Leio “Vitória” nas cabines das empresas de ônibus e me decido: É para lá que vou! A próxima passagem, por R$ 95,82, tem saída às 13h40 e ainda são 9h30. O negócio é esperar! Já dentro do ônibus, janelas, cortinas e pessoas desconhecidas. Além disso, montanhas, árvores e mais árvores. Eis a paisagem ao longo de quatro horas. O que me deixa aflita é que ainda faltam outras cinco de viagem. Não conheço nada em Vitória. Escolho no booking.com o hotel Porto do Sol, com ar-condicionado, wi-fi,

TV a cabo, piscina, café da manhã e, como regalia, uma bela vista paro o mar. Como boa mineira, não resisto a essas tentações e fecho reserva. Primeira parada: 18h. Segunda: 20h. Terceira: 21h. E nada de chegar a Vitória! Às 22h50, chega o grande momento. Como diz o ditado: “a primeira impressão é a que fica”. É noite, faz frio e uma chuva caiu poucos minutos antes, mas fico encantada com a grandeza da ilha e com a simplicidade urbana da cidade. Vitória é uma das três ilhas-capitais do país. Segundo o IBGE, a população, em 2014, era de 352 mil. O taxi é a melhor opção para chegar ao hotel. No dia seguinte, acordo e abro a janela para explorar o mar azul e o sol de Vitória, mas vem a decepção: está chovendo. Ou melhor: cai uma tempestade e o “meu” mar azul está cinza! Calma, ainda tenho que conhecer muitas coisas por aqui e já amo a todos apenas pelo sotaque, que não se difere muito da fala dos mineiros. Após saborear um belo café da manhã com vista para o mar e a chuva, encerro a minha hospedagem e antes de explorar a cidade, vou à rodoviária para comprar a passagem de volta, evitando qualquer imprevisto. Sigo ao Mercado Vila Rubim, umas das cartas de visita da cidade. Conheço Joanicio Barcelos, comerciante há 17 anos, que trabalha com artesanato. O ponto forte da loja são as panelas de barro, para preparo da tradicional moqueca capixaba, que faz parte da cultura do estado. “Recebemos pessoas de vários estados do Bra-

Como ter uma rica Viagem com r$ 600 • Ser for de ônibus, a viagem será longa. Então, escolha uma empresa que proporciona conforto para seus clientes. • Escolha um hotel que tenha boas avaliações na internet e que oferece o que há de melhor no destino desejado. • É importante que o hotel tenha ao menos o café da manhã, assim, você já sai pronto para explorar a cidade. • Calcule os valores que quer gastar com lembrancinhas, alimentação e com os passeios. • Lembre-se de conferir o dinheiro, pois não adianta um hotel com vista para o mar e nenhum dinheiro para comer. • Esteja preparado para tudo! Leve uma blusa de frio e roupa para banho, para o caso de o tempo mudar. • Pesquise os pontos turísticos e faça um roteiro de viagem, isso facilita a escolher os lugares que quer visitar.

sil e os que mais se identificam com o povo capixaba são os mineiros. Seu povo alavanca o comércio do Espírito Santo nos períodos turísticos”, afirma. Após a ótima conversa na loja do Joanicio, onde gasto R$ 44, resolvo ir à Avenida Saturnino de Brito, para conhecer as praças à beira-mar. Já são quase 19h. O tempo passou voando e não dá mais tempo de conhecer nada. Tenho que pegar o ônibus até a rodoviária e me despedir da cidade. Ao chegar à estação de ônibus, porém, sento por 15 minutos, quase em lágrimas, e penso que não fui aos principais lugares da cidade. A chuva não me ajudou nada naquele dia. Minha mãe pergunta o que estava acontecendo, explico a situação e pergunto se ela toparia me fazer companhia por mais um dia. Conto o dinheiro restante e ELEN CASTRO

Mesmo com chuva, “o mar, quando quebra na praia, é bonito

resolvo ficar. Isso me custa outros R$ 35 de hospedagem e mais R$ 20 de multa, por trocar o dia da passagem, no valor de R$ 104. Sinto-me, de repente, no lugar da viajante pobre. Terei que me virar mais um dia com o dinheiro que sobrou. O Hotel Spala tem quatro estrelas a menos do que o Porto do Sol: nada de ar-condicionado, wi-fi, piscina ou vista para o mar. Apenas um corredor escuro, que dá medo no caminho até o quarto. É um hotel de beira de estrada, mas surpreende: tem chuveiro quente e lençóis limpos, além da TV, com mais ruídos do que imagem. No dia seguinte, a chuva persiste. Primeira parada: o famoso Convento da Penha, no alto de uma montanha. Pego um ônibus de R$2,15 e depois uma van, no valor de R$3,50, ida e volta. Não consigo ver a paisagem, pois a neblina e a chuva não cessam. Depois, no bairro Goiabeiras, quero saber como são confeccionadas as panelas que vi no dia anterior. Conheço dona Maria Conceição Barbosa, que trabalha ali há 46 anos. Aprendeu com sua sogra e passou a tradição à filha. Dona Maria me explica como a panelas são feitas, em poucos minutos, com delicadeza e experiência. Minha mãe e o taxista Anselmo, que nos levou ao local, viram meus assistentes de reportagem: fazem perguntas, filmam, pegam meu caderno e a minha caneta para anotações. A alegria de dona Maria contagia a todos. Volto à rodoviária com R$45 a menos após a visita às paneleiras. Ali, gasto outros R$ 60. E assim termina minha jornada por Vitória. Chuva, neblina, frio, o que não me impede de levar comigo o sorriso, a simpatia, a cultura e as histórias de pessoas incríveis. Tenho a impressão de que não saí de BH, pois me senti muito próxima ao povo capixaba. Quero mais dessa experiência.


8

Belo Horizonte, Outubro DE 2015

Dossiê Viagem

Impressão

A partida O relógio marcava 8h15 quando saímos do UniBH rumo à aventura. Antes da primeira esquina, estávamos cientes de que as plantas de nossos pés não mais voltariam a tocar certos solos daquele caminho de 20 quilômetros entre BH e Sabará. A brisa matinal ainda alimentava expectativas. De uma coisa fizemos questão: extirpar medos e incertezas. Na hora em que as emoções tentavam se transformar em palavras faladas, mudávamos a direção do pensamento. Até rompermos o perímetro urbano, gastamos mais de hora. Ofegantes, suados e com garrafas de água em punho, vencemos subidas inacreditavelmente íngremes e descidas absurdamente acentuadas. Entre um “ladeirão” e outro, também percorremos algumas retas. Nestes espaços, avistamos gerações diversas que, coletivamente, celebravam a vida, a saúde e o lazer. Pessoas acompanhadas de seus cães passeavam sem pressa, outras faziam cooper e traziam seus iPhones nas mãos, ou na linha da cintura, como se estes aparelhos fossem partes integrantes dos próprios corpos.

de Be a Sab Texto e fotos de: Danilo Silveira e Wilson Albino

A avenida Ainda era cedo quando desembocamos na Avenida José Cândido da Silveira, a caminho de Sabará City. A arborização influenciava na incidência de raios ultravioleta em nossas cabeças, principalmente nos canteiros centrais, onde tivemos que disputar espaço com pessoas que faziam jogging, cooper, workout, ou, simplesmente, andavam. Nas beiras, a presença imóvel de casas, prédios e estabelecimentos guardados por muros e grades, totalmente alheias a de tudo o que ocorre do portão para fora. A todo momento ficávamos confusos pelas ziguezagueantes faixas de pedestre que, a cada canteiro, surgiam em um lugar diferente. Os usuários daquele passeio faziam jus às residências do entorno. Trajados de leggings, trainings, shorts, regatas e outras roupas de peso medíocre, os praticantes de exercício exibiam Nikes Air Zoom, Mizunos Wave Prophecy e Adidas Ultra Boost, acompanhados de iPhones, Citizens, yorkshires, terriers e um ar de superioridade. Não muito longe dali, alguns desabrigados se equilibravam em um barranco abaixo da Rua Iraque, encostados a um grande edifício e tapados por um outdoor.

Não nos leia como se fôssemos personagens de ficção. Somos de verdade, vivenciamos todas as aventuras aqui descritas: o que nos une às epopeias e aos romances é a vontade de realizar a façanhas daqueles heróis. Imagine-se atravessar um sertão em busca de histórias ou simplesmente de uma busca espiritual. Foi o que fizemos, só que em escala menor e com recursos mais simplórios – R$ 100, uma dúzia de garrafas com água e as canelas como condução. Mas com um objetivo: mostrar que

O gato preto Tínhamos acabado de sair da Avenida José Cândido da Silveira, paramos ao lado de um posto de combustível. Ali, sentados, comemos biscoito e tomamos um pouco de água superfaturada. A nossa direita, além do posto e de uma farmácia 24 horas, avistamos dois dos famosos motéis do trevo para Sabará. À nossa frente, os aglomerados que beiram a BR 262. Não passamos mais que cinco minutos ingerindo cream crackers. Logo saímos pelo restante de perímetro urbano. Mas, pelo acostamento em que íamos, a sombra já tinha se esgotado. Atravessamos a estrada em busca do refresco que as árvores da fachada de um motel nos ofereceriam. Tudo estava ao nosso favor. Entretanto, a Lei de Murphy nos proporcionou um encontro com um magricelo gato preto de pequena estatura. Seria um aviso do que nos viria a acontecer no decorrer da MG 05? Não se sabe. Apesar de não sermos supersticiosos, ficaríamos atentos. É certo que estávamos alimentados, essa era a nossa sorte, ao contrário do pobre bichano, que miava de fome.


Dossiê Viagem

Impressão

e gá b rá pé somos capazes de nos imergir em uma experiência arriscada e deixar todo e qualquer conforto para trás. Mas não é isso que o jornalista faz: vai à busca de uma fonte, ao invés de se acomodar em uma cadeira ergométrica, atrás de um computador e amparado por um telefone, como os setores burocráticos fazem? Será que estamos enganados? Seria possível vivenciar a experiência de ser ultrapassado por uma charrete por duas vezes dentro de um escritório? Se for, nos avise.

Na curva Numa das incontáveis curvas da Rodovia MG 05, tivemos uma surpresa. Cambaleantes, não mais pensávamos como dantes... zero de suor, saliva ou urina. Assemelhávamos à pererecas estorricadas agonizando no asfalto. Bem que tentávamos não pensar, mas só formava em nossas mentes, a imagem daquela gostosa se jogando em cima da gente, tão deliciosa, inodora, insipida e cristalina água gelada. De repente, avistamos uma moto na curva. Quando o motociclista nos viu, soou em nós um alerta de perigo. Numa consulta mútua, resolvemos, antes de avançar, mudar de pista, embora fôssemos dois, estávamos meio mortos, e, se somados, não chegava a um. Instantes depois, o motociclista também atravessou a pista e, sem tirar o capacete, parou em diante da gente. Pensamos: pronto, lascô! De orelha em pé, preparados para ouvir um “entreguem seus celulares ou estouro seu miolos!” , ou qualquer outro argumento tanto ou ainda mais convincente que este. Mas, em lugar disso ouvimos um “boa tarde”, seguido de uma pergunta: “Purum acauso ceis passaru pru alguma burracharia? Uníssonos, e, com as pernas bambas, dissemos não.

Belo Horizonte, Outubro DE 2015

O lixo Nas margens onde podíamos andar em segurança – acostamento era miragem –, avistamos sibipirunas, quaresmeiras e imbaúbas, árvores que, heroicamente, resistiram às últimas queimadas e travam batalha diária contra o mormaço. Talvez tenha sido o sol na nuca, mas o fato é que vimos muitas árvores sem vida à beira do caminho. Os troncos, retorcidos e carbonizados, provocaram a imaginação destes passantes. De longe, pareceram-nos corpos com cotos apontados em direções diversas, frutos de amputações causadas pela imbecilidade ‘Nérica’, essa mania idiota que certas pessoas têm de atear fogo em meio mundo. Afora isso, encontramos, além de ossadas e animais podres, material plástico em formatos variados, desde garrafas pet a crânios chamuscados de bonecas. A luz solar derramada ali oscilava entre as cores amarela e branca. Vimos ao longo do trajeto diversos estilhaços de para-brisas. Fragmentos de vidro tão imprestáveis quanto os demais lixos. Inutilidades que a imaginação e claridade fizeram questão de promover a graúdos diamantes.

9


10

Belo Horizonte, Outubro DE 2015

Dossiê Viagem

Impressão

Prosas e afins Chega um ponto da viagem em que ninguém mais tem domínio do que fala. O Sol queima as ideias e a intimidade permite que besteiras sejam ditas. Era uma história de um peruano que não conseguia entender a expressão “cara de pau”. “Yo no soy cara de pau! Usted é cara de pau!” “Ulisses, é uma expressão que depende da situação!” “Aaaaaah... la situación!” Frases iniciais de música sem o restante da letra. “Eu sou o rei do baralho... na nana na nana...” “Você tá cantando essa música desde que começamos a andar! De quem que ela é?” “Acho que é de um tal Chiquinho, Manoelzinho... um desses nomes no diminutivo!” Passamos pelas referências automobilísticas. “Você já ouviu falar em ch ‘vruuuuum’ ete júnior?” “Charrete?” “Ch ‘vruuuuuuum’ ete!” “Corvette?” “CHEVETE!” “Aaaaaah...” “Chevete Júnior! É um Chevete com a frente de um Monza!” Até que as músicas internacionais, sob o delírio causado pelo Sol e da ignorância linguística, começaram a sair. “Ona dar dizi raruei, cum irindin mai rer...” (trecho inicial de Hotel Califórnia) “Você tem que cantar aquela do Bob Dylan!” “Di anssu mai frend is blouin endeu inde! De anssu is blouin endeu inde!”(refrão de Blowing in the Wind) Enfim, só não falamos de mulher.

O sol Após quatro horas de andança, acabou o suprimento de água. Estávamos sedentos, exaustos e açoitados pelo calor. De cima para baixo éramos grelhados pelo astro rei, de baixo para cima, assados no bafo do asfalto. Nunca as expressões braseiro e fornalha, usadas por ‘Gonzagão’, fizeram tanto sentido. Possuíamos 50 reais cada, para custear matalotagens. Duas cédulas, com ‘onças’ estampadas, jamais valeram tão pouco. À direita um chapadão, a esquerda um descampado, onde céu e terra topavam no horizonte. Noutras palavras, ao alcance das vistas, não havia sinal comércio. A grana só recheava as carteiras.

Linha férrea Chegamos a uma encruzilhada. À nossa frente, uma ponte sobre o Rio das Velhas, onde cabiam somente carros, caminhões, motos e ônibus. Pensamos em disputar o viaduto com os veículos, mas eles não paravam de passar, velozes, nas duas direções. Chegamos à conclusão de que era impossível cruzar a ponte a pé. Eram os 150 metros mais difíceis de toda a viagem. Do lado direito, uma descida nos levaria ao bairro Nações Unidas, do lado esquerdo um aclive que nos destinaria ao bairro Nossa Senhora de Fátima. Ensaiamos seguir um transeunte que passava, supondo que ele saberia o caminho. Hesitamos quando o vimos se amoitar entre as árvores de um terreno baldio para urinar. Uma moradora nos aconselhou a pedir carona. Temendo ficar acenando o polegar um dia inteiro por um motorista de alma caridosa, tivemos a brilhante ideia de invadir o terreno baldio, que dava para uma linha férrea, por onde poderíamos atravessar. Mas e se viesse um trem? Não teríamos a menor chance de escapar. O jeito era criar coragem, encarar os trilhos e torcer para nenhuma locomotiva aparecer do outro lado. Deu certo... mas por muito pouco. Alguns metros adiante, paramos para arejar os pés e veio desembestada uma composição cheia de vagões carregados com minério de ferro!

Às 13h, o sol parecia cheio de ira. Em meio ao inferno que a estrela candente promovia, vimos Ipomeas cairicas, umas florezinhas roxas que margeiam os caminhos. Vistosas, davam de ombros ao maldito cauterizador. Imóvel entre as flores, vigiava-nos um calango. Que bicho estranho! Pareceu-nos resto esquecido do princípio do mundo. Podíamos jurar que, naquela ‘olhança’, havia uma afronta e mais, parecia que o pequeno lagarto se ria dos dois andarilhos incapazes de suportar, por algumas míseras horas, o que ele, e as flores marginais suportam ao longo da existência – o calor eterno.


Dossiê Viagem

Impressão

Belo Horizonte, Outubro DE 2015

Água morna, água de torneira Ora íamos pela esquerda, encarando os veículos, ora íamos pela direita, onde certamente teríamos que olhar para trás a cada meio minuto. Tudo isso em função de míseros metros de sombra que pajeariam nossas cabeças. Após dez minutos ziguezagueando pelos dois lados da estrada, encontramos sinal de civilização. Em cima de um barranco, duas casas beiravam o lado esquerdo do caminho. A casa do ponto mais alto tinha um cão de guarda de pedigree duvidoso e um telhado irregular sobre lajotas ainda não rebocadas. Ainda em construção, a casa de baixo era guardada por um muro de dois metros de altura, fechado por um portão ainda sem cor e um solitário pedreiro que guardava a construção. Pedimos água. Relutante, o homem demorou algum tempo a mais para abrir o portão. Ele nos ofereceu a água da torneira, a única que teria. Apesar de a água nascer de uma mina atrás do barranco, a temperatura do sol sobre os canos que a conduziam tinha inutilizado o seu poder de refresco. Esperamos quase cinco minutos matar a sede e encher nossos “cantis”. Tínhamos tomado água de torneira, água de bebedouro e água mineral superfaturada. Naquele calor, a água-malte-lúpulo é que viria a calhar.

A chegada

Ardendos Quando éramos outros, ainda na fase embrionária da vida académica, certa vez, bailamos ao som da música “Cajuína”, de Caetano Veloso. Isso, em sala de aula, imagine. Nesse dia, o professor Edmundo de Novaes, responsável pela disciplina, propunha que abandonássemos o óbvio. Ir de Beagá a Sabará a pé, foi o click derradeiro. Já ouvimos dizer que jornalista que é jornalista tem mesmo de sujar os sapatos a fim de apurar ‘melhormente’ os fatos. Pois, muito bem, cravamos com raça nossas marcas no pó daquele chão. Nos relatos relacionados à curva, aclive ou declive, fomos éticos. E... sim, já sabemos que jamais alcançaremos as glórias dum Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, Euclides da Cunha em Os Sertões, Graciliano Ramos, com Vidas Secas, Rachel de Queiroz em, O Quinze, ou Jorge Amado, com Seara Vermelha. Entretanto, estes escritores, suas obras consagradas e nós, estaremos todos unidos pelo elo/sol. O astro responsável por emanar a luz que banhou estes Mestres e seus dizeres, foi o mesmo que nos submergiu, cauterizou-nos e, que, por pouco, não nos afoga em sua brasa.

Cinco horas e meia, e, quase 20 km depois que partirmos de Beagá, varamos em Sabará. Tostados? Só das ‘epidermes das almas’, até os cernes dos corpos. Dores? Apenas sentíamos quando respirávamos ou sorríamos. E, como sorrimos! Enquanto os nossos pés calejados transpunham os limites da cidade mais antiga da rota do ouro nas Gerais, invadiu-nos uma alegria bucólica, simplória... quase infantil. Um tipo de felicidade que custa a prosperar, mas que, se vem, chega nua. Independe da provisão de qualquer bem material. Andejos que fomos, corremos riscos vários, e assumimos a responsabilidade por isso. Dentre estres, sermos ofendidos por serpentes, ou abordados na estrada por algum lunático é nada, se comparado com os estragos que o atropelamento por trem pode causar. No caminho perguntávamos de quando em vez: o que de real têm entre a abertura e o arremate da aventura que vivenciamos? Saciada a sede, sossegadas as línguas, Sabará e Beagá sabem de cor, o mestre Guimarães Rosa já ensinou que [...] o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.

11


12

Belo Horizonte, Outubro DE 2015

Dossiê viagem

Impressão

Dois estados, um trem e 12h de prosa Único trem de passageiros de circulação diária no país valoriza história de Minas David Santos Noemia Silva Todos os dias, por volta de 7h, desde 1959, uma cena não muito popular chama atenção no Centro de Belo Horizonte. Por trás dos prédios, escondido sob o viaduto de Santa Tereza, entre a Serraria Souza Pinto e o Museu de Artes e Ofícios, está o único trem de passageiro ainda a circular diariamente no Brasil. Da Estação, que um dia foi terminal de cargas da Central, é possível vê-lo, por meio do brasão da antiga ferrovia, nos portões de ferro que foram presente do Rei Alberto da Bélgica, por ocasião da inauguração da capital. O contexto logo remete ao passado. Os passageiros apressados percorrem a plataforma em busca de seus lugares. Às 7h30, a buzina marca o início de mais uma viagem pelos centenários trilhos da

Estrada de Ferro Vitória a Minas. Como diria Carlos Drummond de Andrade, “o trem maior do mundo vai serpenteando” as montanhas do Estado, e, já nos primeiros minutos de viagem, é possível compreender por que Minas Gerais exibe a fama de um das mais belas regiões do país. É possível avistar rios, vales, matas preservadas e vilarejos. A paisagem externa compõe as cenas no interior do trem. Com o olhar vidrado ao que se passa pela janela, Carlos Eduardo, de sete anos, enxerga o mundo pela ótica de um passageiro de primeira viagem. Tudo é novo. Cada curva é uma surpresa. “Olha, mãe!”, grita o garoto, ao descobrir que é possível avistar a locomotiva que conduz os 20 carros da composição. Não demora muito o Chefe-de-trem vem cumprimentar os passageiros. O serviço de bordo

segue logo atrás. No café da manhã, ainda no frio da Serra do Caraça, o pão de queijo e o café quentinhos disputam espaço entre as paisagens e as conversas que embalam a viagem. O trem é grande. São quase 500 metros de extensão, divididos entre as classes econômica e executiva, os carrosrestaurante, lanchonete e o grupo gerador, além de um especial para cadeirantes. A composição é moderna. Foi fabricada na Romênia em 2013 e substituiu o antigo trem, que circulou por 60 anos. Num desses carros, viaja dona Ilda, de 59 anos. Sua alegria é reunir as irmãs, uma vez por ano, para uma viagem em família. Junto aos netos, as “irmãs cajazeiras”, como preferem ser chamadas, seguem a Vitória – capital do Espírito Santo. Como moram distantes umas das outras, o desafio das irmãs é conseguir pôr o papo em dia antes de desem-

barcar. “No trem, temos uma vantagem em relação ao avião: tempo para conversar e relaxar”, conta Ilda, ao explicar que ainda leva em consideração a segurança e a praticidade, em detrimento da burocracia e da rigidez dos aeroportos. “De trem, demora mais. Porém, é mais barato, seguro e confortável”, afirma. Vai e vem Diariamente, dois trens circulam pela ferrovia. O primeiro sai de Belo Horizonte no início do dia e se encontra com outro, que saiu de Vitória em direção oposta. A passagem das máquinas pelas estações movimenta a vida das pequenas cidades. O tempo de apenas um minuto para desembarque, em certas localidades, é suficiente para que as doceiras vendam cocada e pé-de-moleque aos passageiros. A pequena renda gerada pela venda dos fotos: David Santos

Entre 30 estações, o trem de passageiros percorre 664 km todos os dias


Impressão

Dossiê viagem

Em funcionamento desde 1904, a empresa transporta mais de um milhão de passageiros por ano

doces mantém, nas famílias, o hábito de frequentar as estações. A ferrovia nasceu de uma necessidade: estabelecer ligação entre Minas e o mar. Em 1904, quando foi inaugurada a linha, seu propósito era escoar a produção agrícola do estado, em trajetória que se estenderia do porto de Vitória a Diamantina. Logo que os trilhos foram lançados, partindo capital capixaba, descobriram-se grandes jazidas de minério na região central daquele estado. Os planos mudaram e o café cedeu lugar ao ferro em pó. Resultado? A Vitória a Minas transformou-se na mais produtiva ferrovia do Brasil. Nos anos 2000, 40% de toda carga transportada por ferrovias brasileiras passavam pela EFVM. Milton Nascimento e o saudoso Fernando Brant dizem que “o trem que chega é o mesmo trem da partida”. Pois eles têm razão. De fato, o veículo que traz os passageiros aos reencontros também leva aqueles que se despedem. Um amontoado de histórias se encontra a bordo e ajuda a construir a memória da ferrovia. Com o intuito de trabalhar e estudar, Jéssica Cristina deixou a família em João Monlevade para morar na capital. Sempre que a saudade aperta, contudo, é o trem que os une. “A cada estação que passo, sinto que estou mais perto de casa”, conta. Em meio a tantos encontros e despedidas, Jéssica se prepara para rever a família. Na mesma plataforma, horas mais tarde, o abraço do reencontro seria substituído pelo da partida, já que voltaria a Belo Horizonte no mesmíssimo dia. Para sempre nos trilhos No tempo em que o Brasil andava sobre os trilhos, o trem da EFVM era só mais um entre os vários que exis-

tiam. “Dos luxuosos aos ‘catajecas’, era possível ir de trem a qualquer região do estado”, conta Naum Julio, que, aos 73 anos, ainda se lembra da primeira vez que viajou. “Eu tinha treze anos e nunca tinha visto um trem.

Lembro que minha roupa ficou toda marcada com as fagulhas que saíam da locomotiva”. Àquela época, no início dos anos 1950, a viagem entre Vitória e Belo Horizonte levava até dois dias. Os

Belo Horizonte, Outubro DE 2015

13

trilhos da EFVM se encontravam com os da Central do Brasil, em São José da Lagoa, atual Nova Era, onde era feita uma baldeação. Por questões políticas, os trens de uma ferrovia não avançavam sobre os trilhos da outra, situação que teve fim no início dos anos 1960. Os carros de madeira e as mais de 50 horas para completar o trajeto entre as duas capitais em nada lembram o trem de hoje. São 12 horas para cruzar o estado rumo ao mar, com paradas em 30 estações, ao longo de 664 km de trilhos. O trem que hoje é raridade no Brasil, encontra motivos de sobra para continuar a circular. Além da cláusula contratual, que obriga a concessionária da ferrovia a mantê-lo em funcionamento, os passageiros, presentes em todas as viagens, são a maior razão para que o trem avance no tempo e mantenha sua memória viva. As pessoas que vão a trabalho, e a passeio, assim como aquelas que viajam por curiosidade ou param, tão somente, para ver o trem passar, são a alma da ferrovia. O trem e o mineiro revelam-se, nessas 12 horas de trajeto, um só. Agora, em algum lugar, um estará esperando pelo outro, aguardando, apenas, a hora de começar tudo outra vez.

Desde agosto de 2014, os vagões passaram a ter mais conforto, comodidade e segurança


14

Belo Horizonte, Outubro DE 2015

Um dia no...

Impressão

Tecelãs da oração Aprendiz de jornalismo conta sua experiência de 29 horas no mosteiro fotos: luana barbosa

Luana Barbosa Palco de revoluções, cercados por mitos, estes intrigantes lugares foram cenários de histórias como a do famoso romance Os miseráveis, de Victor Hugo. Aliás, como desconstruir as imagens criadas em nossas cabeças, também, a partir de filmes como A noviça rebelde ou Mudança de hábito? Mosteiros e conventos são habitados por seres humanos, e não por heróis ou protagonistas famosos. Amor ou loucura? Qual o sentido do chamado religioso? Chego a meu destino final. Sem saber como seria esta experiência, decido, simplesmente, vivenciá-la, mas o frio na barriga é inevitável. Não é todo dia que se dorme em um convento. Deparo-me com a rua do Mosteiro, 138, no bairro Vila Paris, em BH. Por trás dos altos muros, o silêncio que temia parece se aproximar. Na portaria, um morador de rua tocava a campainha. Uma freira o atendeu, depois me acompanhou à cela, o quarto. Uma cama, uma pequena mesa e um armário revelaram a simplicidade do ambiente. Trata-se de móveis suficientes para aquela proposta de hospedaria, de acolher pessoas comuns: leigos, padres e freiras para descanso, retiros ou pacientes em tratamento de saúde. Mara, 52, limpa as celas. Seria ela meu anjo durante este sábado. Desfaço as malas minutos antes de começar a terceira oração do dia. As religiosas têm sete momentos de oração, com idas à igreja e à missa. Elas se dividem em vigílias (4h50), laudes (6h20), missas (7h), terças (9h), sextas (11h20), noas (15h), vésperas (17h25) e completas (19h40). O sino toca: passo a cumprir minha primeira atividade do dia. As freiras entram em silêncio e, em dupla, reverenciam a Deus e se cumprimentam. Com salmos, cantos gregorianos e a própria liturgia, louvam ao Senhor, clamam por misericórdia e intercedem pela humanidade. Os nomes de cada tempo de oração vêm do tempo dos apóstolos, quando o dia era dividido de três em três horas. Minha inexperiência com a liturgia das horas, livro por meio do qual acompanham-se as orações, é compensada pela caridade de Mara, vocacionada da congregação. Participo de cada um destes momentos, e, após a hora terça, converso com Irmã Felicidade, hoje com 83 anos, sendo 58 dedicados ao mosteiro. “Antes de conhecer a vida monástica, queria

ir para o Amazonas trabalhar com os índios. Eu descobri, porém, que poderia atingir mais pessoas no mosteiro”, conta, ao lembrar que decidiu ir para o convento aos 18 anos, mas, como não havia vagas, fez o concurso dos Correios, onde trabalhou durante quatros anos. Irmã Felicidade explica que as primeiras regras monásticas sempre tiveram como base o Evangelho e a orientação de vivência no dia a dia. Porém, os monges viviam como eremitas, sozinhos e isolados. No século VI, na Itália, São Bento reuniu a vida monástica comunitária e escreveu sua Regra, que prioriza o silêncio, a oração, o trabalho, o recolhimento, a caridade fraterna e a obediência. Assim nascia a Ordem dos Beneditinos – ou Ordem de São Bento. Escolhas O voto de estabilidade surgiu a partir da necessidade do monge de permanecer em sua comunidade e realizar a vocação recebida de Deus. Atualmente, se precisarem ir a outro mosteiro para uma nova criação ou para ajudar alguém temporariamente, elas têm a permissão de sair. Sobre a obediência, Irmã Felicidade relata que se busca a imitação do Cristo, que obedeceu ao Pai até a morte. “Não quer dizer que a gente fique como bobo, ou que sejamos joguetes nas mãos de nossos superiores”, afirma, ao destacar que tudo, no convento, é fruto de consenso e inteligência. “Tudo é conversado”, completa. Em relação ao voto de conversão de costumes, o que inclui pobreza e castidade, não se trata de simples mudança de hábito – ou decisão que se toma de um dia para o outro. “É uma continuidade, um aprofundamento à busca de Deus, uma maior consciência de nossa pobreza ontológica e um desejo de entrega total ao reino na castidade”, explica e completa: “Por isso, não nos casamos. Com o casamento, ficaríamos limitadas a um grupo pequeno: a família. Não se trata, porém, de desprezo. Pelo contrário: a família é o núcleo essencial não só da igreja, mas da sociedade”. Conforme destaca Irmã Felicidade, o sentido da castidade é estar disponível o tempo todo. “Durante toda nossa vida, 24 horas por dia, é ser de Deus como única razão de nosso ser, mas, ao mesmo tempo, com os olhos na humanidade”. Sobre a situação do mundo, por vezes usada como argumento para contra-atacar a existência de Deus,


Um dia no...

Impressão

Belo Horizonte, Outubro DE 2015

15

Irmã Felicidade destaca que Ele não fez robôs, e que realiza suas funções conforme o planejado. “Deus fez pessoas humanas, com liberdade, consciência de si mesmo e capacidade de decisão. Então, Ele espera nossa adesão a seu plano, como nós somos”, conclui. A vida de Mara Após o bate-papo com Irmã Felicidade, almoço e participo das orações, no início da tarde, ao som da cítara, que, por sinal, eu só conhecia via Google. Ouço, ainda, os cantos em latim. Também tenho a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre a vida de Mara, cujo caminho no noviciado é um pouco fora do comum. Natural de Uberlândia (MG), ela se mudou para Brasília, onde se casou e teve três filhos. Hoje, é avó de sete netos e viúva. Uma vez por mês, Mara chega a Belo Horizonte para fazer acompanhamentos e não perder o contato com o mosteiro, até que regularize sua vida “aqui fora”. Formada em Moda, ela cuidou de empresas de vestuário em três shoppings no Distrito Federal, junto ao marido. Após a trágica morte do companheiro, assumiu o controle das finanças, até que um de seus filhos, Júnior, pudesse cuidar da parte da empresa que não vendeu, e das fazendas. “Meu esposo era rotariano e tinha uma vida social muito intensa, mas sempre o acompanhei mesmo não sendo o meu

Momento de preces, devoção e fé

ideal de vida. Depois que ele faleceu, decidi que iria assumir a vida religiosa que eu sempre quis”, pontua. O “lugar” em que Mara mais sofre preconceito é na própria família. Seus filhos temem a distância e a escolha por uma ordem radical, de clausura

“Eles não acham ruim por eu estar velha, ou pelo fato de ser viúva. Sou uma pessoa com vida estabilizada lá fora, mas que deseja entrar para um convento. Eles gostariam que eu assumisse uma linha menos radical, mas é por esta que me encanto: o silêncio e a intimidade profunda me apaixonam”, ressalta. O silêncio como alimento Os horários no convento são bem diferentes, mas não dá tempo de ficar com fome. Para as freiras, o refeitório parece uma extensão da capela. Por isso, o silêncio é absoluto. Impressionante como um pequenino barulho parece pisada de elefante. Esbarro no prato e consigo até ouvir os ecos. Na verdade, nunca havia percebido que fazia tanto barulho: a escova cai no chão e parece um terremoto. A porta – ixiiiii! – bate várias vezes... O copo na pia e o caderninho de anotações, que dá um salto dos meus braços e vai ao chão. Tento salvá-lo em câmera lenta, mas meus movimentos bruscos fazem um pouco mais de ruídos. Eis, em breves linhas, a descrição de minha falta de intimidade com o silêncio.

O badalar dos sinos rompe o silêncio do convento

Noviças Irmã Vera Lúcia, 35 anos – sendo dois de mosteiro e noviciado – é de Brasília e descobriu “o chamado” um pouco antes dos19 anos: “Mesmo no tempo de namoro, já sentia muito forte o convite à vida religiosa”, diz. Enquanto morava na capital federal, estudou Psicologia até o sétimo período, mas, ao mudar-se para BH, preferiu abandonar o curso. “Quando entrei, não tinha muita noção

da diferença entre vida apostólica e monástica. Porém, carregava a certeza de minha vocação”, conta. Após 13 anos, nesta ordem religiosa e prestes a fazer votos perpétuos, com a ajuda de um diretor espiritual, decidiu sair. Dois meses depois, começou a conhecer o mosteiro pela internet e fez os primeiros contatos. Já Isabela, 32, é natural de Ponte Nova (MG) e está em discernimento vocacional, quando as jovens têm a oportunidade de fazer experiência, dentro da clausura, de até três meses. Ela se sentiu apaixonada pela igreja e pela palavra de Deus. Seu caso, na verdade, deu-se pela internet. No espaço virtual, teve contato com a “Regra de São Bento”. Formada em Direito, ao final da faculdade, ela passou por um processo de nova conversão. “Quando chegava em casa, após o estágio, lia a Bíblia e sentia arrepios. É um amor profundo, uma coisa tão maravilhosa! Deus é um amor que o ser humano precisa redescobrir”, exalta. Isabela, porém, achou que não daria conta da vida religiosa e deixou a ideia para depois. Em 2014, entrou em contato com o mosteiro, também pela internet, e começou sua nova história. “Espero contribuir cada vez mais com a igreja, que me tocou, me chamou. Eu a amo muito”, completa, aos risos. Ao final desta aventura, depois de 29 horas no mosteiro, posso concluir que dia após dia elas tecem a própria vida, a partir de suas escolhas, baseadas na oração e sem muito barulho, ou melhor, quase nada... E o sentido do chamado? Esse a resposta diz respeito a cada uma!!


16

Belo Horizonte, Outubro DE 2015

Tramas contemporäneas

Impressão

Diferença e igualdade Repórteres visitam casas de acolhimento a idosos com ampla diferença de orçamento karla cristina guimarães

O verde do jardim torna o ambiente mais familiar

Karla Cristina Guimarães Mayara Cristina Rafaela Gouvêa Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a população idosa é a que mais cresce no Brasil, mas há poucas alternativas para cuidar dessas pessoas quando começam a perder a independência. A maioria das instituições brasileiras é filantrópica (65,2%), sendo que estabelecimentos particulares correspondem a 28,2%. Para conhecer e mostrar um pouco da realidade do tratamento de senhores e senhoras no Brasil, resolvemos visitar casas de acolhimento - públicas e particulares -, de modo a desvendar a vida dos idosos que vivem ali. Dia nublado e triste, fomos ao Asilo Lar São Vicente de Paulo, em Lagoa Santa (MG), fundado em 1983, pelo sr. Luiz Machado. Apesar de parecer que o dia também seria tristonho, adiantamos alguns sentimentos vividos nesta experiência: emoção, alegria, descobertas, admiração, amor e sintonia. Tudo ao mesmo tempo. Lugar humilde e acolhedor: fachada simples, muro pintado de branco e um velho portão azul. Na entrada, um terreiro grande e arejado, com um banco de madeira e outro portão pequeno, que daria acesso à entrada da casa. O chão, um mosaico de pedaços de cerâmica. Fomos recebidas por Vicente Costa, que nos abraça e, quando viu o celular nas mãos de uma das repórteres, pediu uma foto conosco. Percebemos que aquele lugar é diferente do que

imaginávamos. Nosso “recepcionais” conversou muito e contou “causos”, de modo alegre e extrovertido. Devido a tanto carinho e atenção, é impossível não nos sentirmos á vontade. Em uma pequena sala, alguns moradores estavam sentados, uns no sofá e outros em poltronas. Todos assistiam TV. Ao entrarmos, nos olham meio desconfiados, tímidos e curiosos. Ao lado da sala, ficava uma enfermaria, um cômodo pequeno, mas bem organizado. Em frente a ela, um pequeno corredor nos levaria ao refeitório, com mesas e bancos que nos lembram cantina de escola. Mais adiante, uma porta dá para a cozinha, grande e limpa. Na área de serviço e rouparia, nos surpreendeu a organização. Lugar muito aconchegante. Vidas e mais vidas Depois de um tempo, todos acostumaram com a nossa presença e nos perguntam o que fazíamos. Como crianças, disputaram nossa atenção, contaram de suas vidas e mostraram o quarto onde dormem. Enquanto estávamos com a coordenadora, uma senhora meiga, conhecida como Neném, se aproximou de nós. “A decisão de vir para o asilo foi minha. Percebi que meus filhos não cuidariam de mim, devido a essa deficiência nas pernas”, contou. Na cozinha, conversamos com dona Petrina, senhora cheia de bijuterias extravagantes. Na bolsa atravessada nos ombros, mais bijus, a ponto do amigo, Vicente chamá-la de “árvore de natal”. Ela nos levou a seu quarto,

onde havia uma cama cheia de bonecas. “Esta se chama Angelita, o nome da minha filha”, disse, ao revelar que tem duas filhas, que demoram ir vê-la, pois moram muito longe... Na verdade, em Venda Nova, BH. Dona Petrina teve derrame muito cedo, aos 30 anos. Ela não se recorda há quanto tempo está no asilo. Com voz suave e tranquila, falou de sua vida, como se estivesse a nos ensinar algo. Enquanto isso acariciava as bonecas. Ao sugerirmos deixássemos o quarto, a resposta veio direta: “Podem ir, porque tenho que arrumá-las”. Quem apareceu agora foi Maria Fernanda, a “repórter”. Adivinhe quem lhe deu a alcunha? O senhor Vicente, é claro! Bem- humorada, ria e falava nosso nome o tempo todo. Comentaram, aliás, que tem memória de elefante. “Gosto de morar no asilo. Já me acostumei e não tem muito o que escolher. O que mais gosto na casa são as atividades físicas, pois, ao mesmo tempo, eu me divirto e cuido da saúde”, destacou. Para nossa surpresa, Vicente voltou. Alto, cabelos brancos, lisos e bem cuidados, por sinal. “Tenho seis filhos, mas não sei onde estão. Morava com minha irmã, mas não deu certo. Por isso, vim parar aqui”, explicou. Por trás do bom humor, ele escondia certa tristeza. Não estava insatisfeito com o lar, mas demonstra vontade de morar com a família. Contudo, que também se sentia feliz. A noite se aproximava e estava na hora de partirmos. Quando nada mais havia a acontecer, veio nova surpresa. Ao sair da casa, deparamo-nos com senhor “Barão”, que dança sozinho na varanda, ao som do radinho de pilha que carregava na mão esquerda. Só queria deixar a música conduzir o próprio corpo. A outra face Quando estacionamos no Solar Resort para idosos, as surpresas já tomaram conta. Lugar bonito, calmo e com surpreendente área verde. Além disso, cercado por grades, mas com pequena visão de como é por dentro. Na entrada, uma estátua de crianças sentadas em um banco, ao lado da fonte. Entramos na recepção e uma senhora bem-vestida já nos aguardava e dizia que seríamos atendidas pela gerente. Ocupamos um sofá confortável, enquanto esperávamos. Começamos a ouvir o barulho da fonte da entrada. O som acalma e relaxa. Ainda na recepção, o interfone tocou. O motorista veio buscar dona

Rosaura Dias. Uma senhora baixinha, de cabelos grisalhos, vestida com terninho preto e cachecol, saía pela porta que dava acesso aos quartos. Sem olhar para os lados, dirigiu-se ao carro que a aguarda. A recepcionista foi gentil, “Bom passeio, dona Rosaura”. Sem olhar para trás, ela respondeu: “E quem te falou que vou passear?”. O tom me assustou, pois não tínhamos a menor ideia do que nos esperava. Continuamos na recepção, quando idosas surgiram, todas muito bem vestidas. Uma senhora nos chamou a atenção pelo modo de falar. Ela trazia um papel com instruções de algo que queria fazer. Ao se aproximar da recepção, entrega o papel e disse: “Quero dessa forma”. Rosângela, a governanta, leu e informou à dona Filomena Alves sobre as possibilidades de realizar o pedido. Pelo que entendeos, ela queria comprar algo para dar de presente, pois não estava muito afim de se emperequetar, para sair. De repente, uma moça nos chamou. Levantamos e fomos a seu encontro. Ela educadamente se apresentou como Patrícia, enfermeira chefe do hotel, e nos conduziu por uma porta, que dava para os apartamentos. Seguimos por um grande corredor, conversando sobre o funcionamento do lugar. Logo á frente, uma senhora gritou: “Bom dia, Patrícia. Não passei nada bem essa noite, tive muita dor, mas agora, graças a Deus, estou bem melhor”. Pedimos autorização para entrar em seu apartamento. Muito educada, ela nos autorizou e logo nos contaou que quem estva decorando o ambiente, era a neta, arquiteta e decoradora. Enquanto andávamos pelo hotel, para conhecermos as instalações, encontramos pouco a pouco os hóspedes, todos muito educados. Dava para perceber que, mesmo com todo aquele conforto, a carência pairava nos semblantes de muitos. Sorrisos inocentes pareciam pedir carinho. Voltamos nossa atenção a um hóspede, o ex-deputado Gil César de Oliveira. Uma enfermeira o conduz iana cadeira de rodas. Ele sorria e acenava. Seus olhos brilhavam. Recebe a visita de sua esposa e seus cinco filhos todos os dias, mas, infelizmente, já não os reconhece. Despedimos de todos. Hora de ir embora. Ganhamos vários sorrisos. Mesmo com a diferença de poder aquisitivo, os idosos têm as mesmas dificuldades, carências e dependências.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.