Revista Múltipla, edição 36

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REVISTA DO LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DO UNIBH

#36 :: NOV/15


Compartilhar experiências é o que nos aproxima Localização conta muito quando você decide por uma instituição de ensino. Mas para que a escolha transforme para valer sua realidade, é fundamental unir proximidade e excelência no aprendizado.

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a narrativa

EDITORIAL

DO CORPO O corpo belo cria admiração e despeito. O corpo morto provoca medo e respeito. O corpo tatuado gera orgulho e preconceito. O corpo... Eis o tema do dossiê que ocupa grande parte da MÚLTIPLA #36. Proposto e conduzido pelos professores Virgínia Palmerston, Murilo Gontijo e Alysson Neves, o conjunto de reportagens investiga várias formas como o homem se relaciona com o seu próprio corpo, e o dos outros. Além do dossiê, esta edição aborda as temáticas da adoção e da mudança do panorama das salas de cinema de Belo Horizonte. Conta ainda com o curioso perfil de um consertador de aparelhos. Para encerrar, o jornalismo – ele mesmo – assume a voz e traça uma espécie de autobiografia. Nós, do Laboratório de Jornalismo Impresso do UniBH, temos o prazer de apresentar a vocês parte da produção dos alunos do último ano do curso. Deleitem-se!

Profs. Leo Cunha e Maurício Guilherme

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EXPEDIENTE

vice-reitora Prof. Vânia Café instituto de ciências sociais aplicadas diretor Prof. Paulo Emílio S. Vaz diretora adjunta Profª. Cynthia de Freitas Oliveira Enoque Curso: comunicaÇão social Rua Diamantina, 567 - Lagoiiha BH - MG - CEP: 31110-320 Telefone: (31) 3207-2811 coordenaÇão do curso de jornalismo Prof. João Carvalho

laboratório de jornalismo impresso editores Prof. Leo Cunha Prof. Maurício Guilherme Silva Jr. pROFESSORES RESPONSÁVEIS PELO DOSSIÊ Profs. Alysson Lisboa, Murilo Gontijo e Virgínia Palmerston Oficina de perfis Profª. Lorena Tárcia e Dany Starling Projeto gráfico Prof. Rangel Sales - LEGRA DiagramaÇão Profª. Ana Paula de Abreu Carvalho Estagiários Danilo Silveira, Rodrigo Oliveira e Wilson Albino foto da capa Danilo Silveira Anúncios Davinci Agência Experimental

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Impressão / Tiragem Gráfica e Editora O Lutador / 300 exemplares


novo de novo doar não dói

taTtoo you frui sexus em boas mãos foBIa do fim

just do it I`m so sexy #vinganÇA saudosa telona para além do sangue eu sou assim!

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SUMÁRIO

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MATHEUS FERRAZ

PERFIL

novíssimas

VELHARIAS Adriano do Carmo, dono da maravilhosa fábrica de reciclagem

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Matheus Ferraz Escondida entre oficinas de carro e fábricas de tinta, num bairro industrial de Contagem, a casa de Adriano do Carmo Silva não se destaca pela fachada. Mas é só cruzar o portão para encontrar uma infinidade de objetos curiosos. Brinquedos, geladeiras, televisões, videocassetes e vitrolas ocupam o imóvel. A sensação é de adentrar um museu pós-moderno, mas, ao contrário de um museu, esses objetos estão sempre indo e vindo, e seu dono não é um colecionador, mas um profissional da reciclagem. Em suas andanças pelo Bairro Eldorado, Adriano já se tornou uma espécie de celebridade local. Tornou-se também uma referência para conserto de objetos e eletrodomésticos, mais eficiente do que qualquer assistência técnica oficial. Mais do que um simples faz-tudo, possui uma habilidade espantosa para aprender o funcionamento de qualquer eletrodoméstico, mesmo que seja de um tipo com o qual jamais tenha tido contato antes. “Gosto de revitalizar antiguidades” afirma o restaurador. “Pegar algo sem vida e fazer com que tenha utilidade de novo.” Trabalhando mais com instinto e intuição do que com rigor técnico, ele afirma nem sempre ser capaz de consertar tudo, já que muitas vezes lhe falta material e condições de trabalho adequadas. Novas velharias chegam todos os dias

e passam por restauração antes de serem colocadas à venda. Mesmo aquelas que não podem voltar a cumprir sua função original, por estarem muito deterioradas ou por falta de peças novas no mercado, acabam encontrando uma nova função. É o caso da geladeira vermelha modelo anos 1950, repintada e reformada para se transformar em uma estilosa estante de livros. Frequentador de ferros-velhos desde a infância pobre, Adriano acabou desenvolvendo uma obsessão por cuidar de antiguidades. O que inicialmente era feito para gerar uma renda extra, se tornou uma paixão durante a adolescência. Hoje, en-

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PERFIL

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PERFIL tretanto, voltou a ser uma necessidade, e ele afirma que a atividade perdeu um pouco do seu romantismo, já que ela é responsável por oitenta por cento de sua renda. Ao contrário do que possa parecer para quem entra na sua casa pela primeira vez, Adriano não se considera um acumulador. Um objeto que entra ali geralmente não permanece por muito tempo, e logo é repassado para um cliente. O segredo, segundo o restaurador, é comprar as coisas por um preço baixo e torná-las atraentes para poder repassá-las e conseguir lucro. Portanto, ele não vê sentido em acumular objetos por muito tempo e está sempre procurando alguém interessado em adquiri-los.

Ferro-novo “Mesmo se eu fosse milionário, iria querer ter uma oficina para cuidar de antiguidades”, afirma o restaurador. Já conhecido de todos os donos de ferro-velho da região, ele costuma receber ligações toda vez que aparece algum objeto interessante, como um fogão ou máquina de lavar roupa. Os revendedores têm prazer em repassar objetos antigos para ele, pois sabem que estão lidando com um profissional capaz de resgatar o valor de coisas que aparentemente não servem para mais nada. Antes de serem repassados, os objetos passam por todo um processo de desmonte, troca de peças e pintura. O método costuma demorar, pois Adriano é bastante exigente com a qualidade do próprio trabalho. Segundo ele, cada mercadoria tem que sair em perfeito estado, pois um cliente insatisfeito automaticamente significa prejuízo. “Dou uma garantia de três meses para tudo o que conserto. Se um cliente me liga porque algo deu defeito, tenho que interromper o trabalho que estou fazendo no momento e me deslocar. Com isso, inevitavelmente perco dinheiro” afirma ele. A responsabilidade de criar um filho faz com que o

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restaurador assuma também a atividade de vendedor. Para isso, utiliza ferramentas da internet, mas seu maior aliado é a rede de contatos que possui pelo bairro. Ele procura deixar claro para o cliente que é um profissional, e que não faz o que faz apenas por paixão ou hobby, mas como forma de sustento. Seu nível de exigência é tomado como antipatia por alguns, mas ele afirma que na sua condição financeira não pode se dar ao luxo de fazer negócios com compradores que não levam seu trabalho a sério. “Considero essa obsessão com ferros-velhos quase uma doença”, admite o restaurador, que não pode ver um estabelecimento do tipo sem entrar e passar horas analisando objetos sucateados e imaginando que tipo de trabalho poderia fazer com eles. Sua paixão pela reciclagem é peculiar, pois em nenhum momento durante a entrevista ele defende a prática por seus benefícios ecológicos. Para ele, reciclar começou como uma necessidade financeira, mas logo se tornou algo automático, uma parte integral da sua vida. Tendo crescido sem pai, Adriano e seus cinco irmãos foram sustentados pela mãe, costureira. Desde pequeno, teve que aprender a cuidar da casa e a trabalhar. A fome era presente, e o jovem Adriano encontrou refúgio na Adriano recupera antiguidades em sua oficina

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De miudeza em miudeza, as reformas acontecem reciclagem. Ela foi uma força benéfica na

A maleta de ferramentas é uma amiga inseparável

sua infância pobre, uma forma de ganhar dinheiro que o manteve longe de se envolver com as pessoas erradas. Em vez de cair no mundo das drogas, ele preferia percorrer o bairro juntando fios de cobre e latas para revender.

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Educação informal Apesar da simplicidade de seu trabalho, a mente do restaurador é inquieta. Sua capacidade de compreensão imediata permanece em estado bruto, e ele afirma sua frustração em não ter conseguido seguir um caminho acadêmico formal. “Eu poderia ser uma pessoa muito bem sucedida” diz ele. “Ou talvez uma pessoa muito frustrada.” Por ter sido uma criança muito hiperativa, Adriano foi um aluno medíocre e inquieto, que largou a escola na sexta série. Desde então, cumpriu inúmeras funções até poder se estabelecer na atividade atual. Sua inquietude é evidente na forma rápida e cheia de gestos com a qual se comunica, e não é fácil imaginá-lo num escritório ou atrás de um guichê. Em seus anos de escola, o restaurador garante que não conseguia encontrar interesse nas matérias e nem nos colegas. Hoje acredita que as pessoas são mais “bonitas” do que na sua época, mas ainda mais vazias. Adriano não esconde sua antipatia pelos jovens atuais, que, para ele, têm a cabeça fraca e pouca capacidade de correr atrás do que querem. Sentar-se na sala de aula de um colégio municipal era uma atividade maçante e tediosa, uma vez que era tão mais interessante e divertido ensinar a si mesmo. Por conta de sua índole agitada e impaciente, encontrou em si mesmo o professor ideal. Autodidata por excelência, descobriu sozinho as técnicas necessárias para seu trabalho, e


PERFIL também para diversos outros setores da vida. Sendo um homem de inúmeros interesses e que não consegue ficar parado muito tempo num assunto só, ele se vale de sua capacidade de aprendizado para satisfazer suas obsessões. Sem dinheiro para pagar aulas de música, Adriano diz ter aprendido a tocar violão apenas de observar outras pessoas tocando. “Eu enxerguei a matemática da música e a compreendi”. Além da falta de educação formal, o restaurador lamenta não possuir ferramentas de ponta que tornariam o seu trabalho mais fácil. De fato, suas técnicas são bastante artesanais, assim como seus instrumentos. Grande parte do seu trabalho envolve andanças pela cidade à procura de peças e ferramentas necessárias para realizar os consertos. Ele admite que um pouco mais de sofisticação beneficiaria o seu trabalho, mas que ainda assim gosta de fazer as coisas do seu jeito. A contadora Kátima Fernandes, de 56 anos, expressou seu espanto pela forma como Adriano consertou a sua máquina de secar roupas. “Quando expliquei o meu problema, ele disse jamais ter visto uma máquina do tipo antes” afirma ela. “Mas em poucas semanas a devolveu nova em folha”. Mesmo depois de quatro anos, a máquina continua funcionando perfeitamente, e hoje Kátima sempre recorre a Adriano para realizar todo tipo de conserto. “Se eu tivesse levado minha máquina para a assistência técnica, teria de passar por muita burocracia antes de tê-la de volta. O serviço dele é mais rápido e eu confio mais nele do que em qualquer outro”, afirma. O trabalho com objetos de diversas naturezas é ideal para um homem que se cansa muito rápido das coisas. “Meu negócio é a prática, e não a teoria. Eu gosto de botar a mão na massa, e aconselho a todos que façam o mesmo”, afirma o restaurador. O fato de nunca ter trabalhado com um tipo de máquina em especial não é desculpa para recusar

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CIÊNCIA PERFIL trabalho; ele aceita novos desafios com prazer e confiança de que irá desvendar o funcionamento do que quer que seja e entregar o trabalho no prazo e com qualidade.

Personalidade complexa

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Apesar de sua habilidade com consertos, Adriano jamais deu certo em empregos convencionais. Já trabalhou em todo tipo de função, inclusive no reparo de eletrodomésticos para assistências técnicas, antes de montar sua própria oficina e começar a trabalhar por conta própria. Seu temperamento agitado e dificuldade para aceitar ordens o levaram a ser demitido de diversas firmas. “Não gosto de ouvir desculpas de ninguém, nem de mim mesmo”. Muitas vezes brigava com seus colegas e superiores por não concordar com suas decisões e atitudes. Ser seu próprio chefe não significa poder relaxar no trabalho, pois ele é bastante duro consigo mesmo. Ao falar de trabalhos que deram errado, a voz do restaurador assume um tom não de arrependimento, mas de raiva. Ele estabelece um alto padrão para seus serviços, e não se satisfaz com um trabalho malfeito. Embora se considere uma personalidade difícil, Adriano vê a si mesmo como um ímã de pessoas. Pode ser encontra-

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PERFIL CIÊNCIA

A paixão por máquinas está até na decoração do, toda noite na mercearia e bar Comercial Central, no quarteirão de sua casa, tomando uma cerveja e servindo de conselheiro para pessoas que, muitas vezes, nunca viu na vida. É tido como um sábio na região, e com poucas palavras, é capaz de ganhar a confiança de estranhos, que se abrem para ele como se fosse um psicólogo. Para Adriano, esse magnetismo pessoal vem de sua curiosidade e pela mania de procurar explicações para tudo que vê. Essa obsessão fez, de maneira paradoxal, com que se tornasse um centro de referência para as pessoas ao redor. “Muita gente vem até mim em busca de conselhos. Acho isso estranho, porque fui um adolescente muito tímido e retraído, e só fui me tornar mais extrovertido depois de adulto” afirma, e acrescenta em tom de brincadeira: ”Já dis-

seram que eu deveria entrar para a política.” Mas, assim como não consegue explicar sua facilidade de entender os objetos, Adriano sente dificuldade em orientar esse magnetismo pessoal. A facilidade de reunir desconhecidos numa mesa de bar contrasta com a dificuldade em chamar a atenção das pessoas de quem realmente gosta, inclusive sentimentalmente. Isso se reflete nas relações pessoais, como no caso de seu irmão, com quem não conversa há algum tempo. Os vizinhos e conhecidos se referem a ele como um homem com a inteligência acima do normal, mas ainda assim bastante acessível. “Para mim, o que mais importa são as pessoas, não os objetos”, afirma. Se o trabalho de reforma e restauração dos objetos significa passar horas sozinho na oficina, a tarefa de aquisição e revenda

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PERFIL exige contato humano. O restaurador procura não ser muito brusco com os clientes, mas afirma que precisa ser sério e profissional para poder manter a rede de contatos da qual depende para continuar exercendo sua função.

Riqueza que vem de baixo Adriano sabe que possui algo de diferente na sua mente, embora se frustre na tentativa de definir o que é. Insone desde criança, ele luta com as palavras para expressar a angústia de sua mente atribulada. “Minha alma é perturbada. Eu não consigo explicar em palavras, mas consigo ver como as coisas funcionam apenas com observação.” Seu gênio é, de fato, de ordem prática, como atestam aqueles que convivem com ele. “Consigo entender qualquer coisa, só não consigo entender a cabeça das mulheres” acrescenta, em tom de brincadeira. Sendo um homem que ganha a vida dando nova utilidade para objetos que já haviam perdido o seu valor, acredita que errar é o elemento mais importante no sucesso. Para ele, conseguir algo de mão beijada sem ter sujado as mãos e levado alguns tombos não tem valor algum. Ele vive isso no seu dia-a-dia, e faz dessa filosofia seu modo de vida e também de sustento. Adriano conhece suas limitações, e se diz arrependido por não ter sido capaz de continuar seus estudos. Mas, ao mesmo tempo, foi capaz de encontrar um meio de vida que lhe permite resgatar o valor daquilo que muitos considerariam como lixo. O mais importante para este restaurador não é o objeto pronto, mas o processo. O mesmo vale para a vida. Enquanto muitos esperam por um momento pelo qual vale a pena viver, ele tira proveito do caminho, que julga ser mais importante do que o ponto de chegada. E afirma que prefere seguir esse caminho sem mapa, pois assim ele é ainda mais valoroso. “A riqueza não vem de cima” diz ele. “Ela vem de baixo.”

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doar faz

BEM

Depoimentos de profissionais, pacientes e familiares sobre emoções e dúvidas para doar e receber órgãos Fransciny Alves • Rayana Bartholo Informação e cuidado. Ao trabalhar com esses dois vocábulos, o MG Transplantes aumentou sua eficiência. O número de transplantes de órgãos em Minas Gerais saltou de 1.459 doações, em 2004, para 2.367, em 2014. Ampliação de quase 40% em apenas uma década. Esse crescimento se deve justamente à informação, ao cuidado e ao preparo das equipes médicas ao abordar famílias que perderam parentes aptos a doar. De acordo com o Sistema Nacional de Transplantes (SNT), a doação de órgãos

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REPRODUÇÃO

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DOSSIÊ CORPO trabalha com três perfis. O primeiro é o da morte encefálica, a completa e irreversível parada de todas as funções dos órgãos centrais do corpo humano. Esse tipo de morte ocorre como resultado de severa agressão ou ferimento grave no cérebro. Neste caso, podem ser retirados todos os órgãos aptos para transplante, como córneas, coração, pulmão, rins, fígado, pâncreas, ossos, pele e válvulas cardíacas. Coordenador metropolitano do MG Transplante, o médico Omar Lopes Cançado ressalta que muitas pessoas ainda acreditam, erroneamente, que morte encefálica é coma. “A lei determina que o atestado de óbito indique a hora exata em que a morte encefálica foi diagnosticada. É quando o cérebro parou de funcionar, e não a hora em que o coração parou de bater. E, para confirmar a morte, diversos exames são feitos. É tudo muito seguro”, esclarece.

“Lembro que fiz seis meses de hemodiálise. Foi um período complicado. A única esperança era que os exames do meu tio dessem certo, para que tudo se resolvesse. O sofrimento só não foi maior por causa do apoio dos familiares” Outro tipo de doador é o que sofre parada cardíaca. Neste caso, só é possível retirar as córneas - num prazo de até seis horas após constatado o falecimento. Já o doador vivo é aquele do qual se pode retirar um órgão duplo como o rim, uma parte do fígado, pâncreas, pulmão, ou tecido como a medula óssea. O doador deve ser parente do receptor até quarto grau, e, em alguns casos, pode ser um indivíduo que não é da família, o que requer liberação do Comitê de Ética da instituição onde será feito o transplante e de autorização judicial para prevenir o comércio de órgãos. Esse é o caso de Samuel Santos, 24 anos, jornalista que nasceu com insuficiência renal crônica e, por isso, teve

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DOSSIÊ CORPO Brasil, não. Por isso, as pessoas precisam ter informação para aumentarmos o número de doações”, acredita. Para que essa informação seja eficiente, todos os funcionários da Santa Casa são treinados, independentemente de cargos hierárquicos. Assim, quando assumem os plantões, os cinco mil funcionários ajudam a propagar a informação no Hospital e nos ambientes onde circulam. Além disso, outra função da CIHDOTT – que está presente em todos os hospitais acima de 50 leitos – é abordar as famílias que perderam um parente, solicitando a doação. “É o que chamamos de busca ativa. Quer dizer: que pacientes da Santa Casa podem doar? Temos uma equipe (enfermeiros, médicos, psicólogos e assistentes sociais) de plantão por 24 horas. Se alguém falece no Abordagem certa é decisiva para doação DANILO SILVEIRA

um rim atrofiado. Ele conta que, até os 12 anos, sua vida era normal, porém com algumas limitações e constantes visitas ao médico. No entanto, com essa idade, seu único rim funcionava com apenas 17% de eficiência, o que o levou para a hemodiálise e, posteriormente, ao transplante, em 2003. O doador foi o tio. “Lembro que fiz seis meses de hemodiálise. Foi um período complicado. A única esperança era que os exames do meu tio dessem certo, para que tudo se resolvesse. O sofrimento só não foi maior por causa do apoio dos familiares”, diz, emocionado. Analista de sistemas, o tio, Júlio Carlos Santos Lima, 43 anos, explica que, ao ver o sofrimento da irmã, resolveu fazer um gesto de amor pelo sobrinho. “O Samuel era muito novo quando começou a fazer hemodiálise. Queria que ele tivesse a vida normal de um adolescente, sem as restrições alimentares e os desconfortos do tratamento. Fiquei receoso de não ser compatível e de ele voltar para a fila, à espera de outro doador ”, conta.

No limiar das emoções Coordenador da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHDOTT) do Hospital Santa Casa, o médico Cláudio Dornas lida todos os dias com a angústia dos familiares e com a missão de informar as pessoas. “Em alguns países, ser doador é dever do cidadão. Se ele não quiser, comunica ao governo. No

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DOSSIÊ CORPO hospital, um membro dessa equipe faz o contato com a família.”, diz.

Infraestrutura Segundo Omar Lopes Cançado, a Instituição, subordinada à Fundação Hospital de Minas Gerais (Fhemig), é responsável por coordenar a política de transplantes de órgãos e tecidos no Estado, regulando o processo de notificação, doação, distribuição e logística. Assim, quando surge um doador, a equipe do MG Transplantes é acionada e realiza os trâmites legais. “Se a família assina o termo de doação, o MG Transplantes faz a lista de possíveis receptores, que é nacional, mas regionalizada. Depois do cruzamento de dados, sabendo para quem vai o órgão, comunicamos a equipe de retirada, acionamos o hospital onde está o receptor e combinamos uma hora para o transplante. Os demais procedimentos cabem ao hospital”, esclarece. Todas as equipes aptas a retirar e realizar os procedimentos são autorizadas pelo Ministério da Saúde, mas é o MG Transplantes que cuida de todos os trâmites. Além disso, a entidade avalia resultados e capacita hospitais e profissionais. O MG Transplantes busca órgãos em todo o estado, desde que haja condições de transporte. A regra geral é: busca-se de carro quando o doador está a 100 quilômetros ou menos de distância. Acima disso, preferimos o transporte aéreo. O Estado

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nos deixa disponíveis as aeronaves do governador, do Corpo de Bombeiros e das polícias Militar e Civil,” diz Omar.

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Angústia Por mais que Minas Gerais tenha crescido no número de transplantes realizados, isso não quer dizer que a fila à espera de órgãos cessou. Até o início de maio deste ano, segundo o MG Transplantes, 1.356 se encontram nesta situação. Sendo que, 1.069 estão à espera de um rim. E, por mais que seja um dos tipos de transplantes mais realizados, ficando atrás somente da córnea, a fila não para de crescer e a angústia dos pacientes, que aguardam , cresce junto. É o caso de Hagmar Nepomuceno, de 32 anos, está há quinze na fila de espera. Hagmar é renal crônico desde os doze anos de idade, e realizou um transplante em 1995, mas o rim doado pelo pai apresentou rejeição pouco tempo depois. Desde então, vive sem rins, dependendo da hemodiálise. Um tratamento que permite remover as toxinas e o excesso de água do organismo. “Quero sair dessa privação de ir à clínica três vezes por semana e ficar quatro horas em cada sessão. Quero viajar e beber um copo de água sem receio. Meu sonho é receber um rim para tirar esse peso da minha consciência,” afirma. O coordenador do MG Transplante ainda faz um último apelo. “Minas Gerais é o segundo Estado do país, com o maior número absoluto de transplantes realizados.

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Imaginar-se no lugar do outro pode salvar vidas Estamos no caminho certo, mas temos que melhorar. Então, se você é um doador, avise sua família. Entenda que por meio da sua morte, outras vidas podem ser salvas. Esse é um gesto de solidariedade que você pode fazer ”, afirma.

Ajudar não dói Uma simples agulhada pode salvar vidas. É verdade que nada é tão simples quanto parece, mas o transplante de medula óssea é uma dessas raras exceções. E que apesar do nome, não é uma cirurgia, mas sim uma transfusão. Primeiro, é preciso entender que a medula é um líquido gelatinoso que ocupa o interior dos ossos, sendo responsável por produzir os componentes do sangue: hemácias, leucócitos e plaquetas. Algumas

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doenças, como a leucemia e o linfoma, por exemplo, afetam a produção dessas células sanguíneas, tornado necessária a substituição da medula. O procedimento para doação é simples. Consta em aspirar a medula do doador com uma seringa e injetar no paciente. O coordenador da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTT), do Hospital Santa Casa, Dr. Cláudio Dornas, salienta que essas historietas de retirar a medula do osso da bacia e correr o risco de ficar tetraplégico não passam de boatos. O método é totalmente seguro. Além disso, o médico explica que o procedimento deve ser realizado in loco. “O ideal é que o transplante seja simultâneo. Todo procedimento é acompa-


DOSSIÊ CORPO nho e amparado pelo MG Transplantes. No caso de doações em lugares distantes, o Estado oferece todo o suporte necessário ao doador, seja hospedagem, translado ou alimentação”, diz. Em quase todos os casos, o paciente que doou recompõe o que foi retirado rapidamente. “Doar medula é como doar sangue. Temos um valor estável daquele líquido, quando você tira um pouco, tem uma queda, mas isso se recupera rapidamente”, esclarece o coordenador da Santa Casa.

Doadores Se por um lado o transplante é simples de ser realizado, por outro, encontrar um doador é difícil. Para que seja realizado o transplante, é preciso que haja 100% de compatibilidade entre o doador e o paciente. Mas, segundo a Associação de Medula Óssea (Ameo), a chance de encontrar uma medula compatível no Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea (Redome) é de uma para 100 mil. Por isso, a primeira procura por um possível doador é feita na família. “A possibilidade encontrar uma pessoa compatível na família é maior devido à carga genética. Mas, como atualmente, as famílias são menores, é um pouco mais complicado. Assim, quando esse doador não é encontrado no seio familiar, o paciente recorre ao Redome”, pontua. De acordo o INCA (Instituto Nacional do Câncer), para realizar o cadastro é preciso ter entre 18 e 55 anos de idade e gozar de

boa saúde (salvo os casos de familiares em que a idade pode ser menor). Para se cadastrar, o candidato precisa procurar o hemocentro da sua região, efetivar ou marcar a coleta de uma amostra de sangue (de cinco a dez mls). As características genéticas são analisadas e guardadas num banco de dados, o Redome. Quando surge um paciente, a equipe do Inca entra em contato com o doador. Infelizmente, alguns casos são tão graves, que o paciente não consegue receber a medula óssea. A publicitária Sarah Bonini passou por uma experiência parecida. Ela realizou o cadastro para se tornar doadora, em 2009, no UNI-BH, em 2014 recebeu o primeiro contato do Inca, realizou os exames para realizar a doação, porém o contato foi cessado, o que a levou a crer que o paciente não resistiu. Na tentativa de acelerar o encontro de doadores e receptores compatíveis, é preciso que mais pessoas se cadastrem no Redome. Atualmente, o número de doadores cadastrados no sistema é de 3,5 milhões. Há 15 anos, eram apenas 12 mil inscritos. Houve um avanço, mas não é hora de parar. A doação de medula pode devolver a saúde a alguém que necessita e não muda em nada a vida do doador, ao menos fisicamente, porque o gesto e a sensação de fazer o bem, esses ficam para sempre. Para mais informações, ligue para (31) 3281-3842, de segunda a sexta, das 7h às 18h, ou acesse: www.hemominas.mg.gov.br..

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ORGULHO &

preconceito Arte milenar, tatuagem ainda desperta reações extremas Alessandra Pereira • Arthur Moller • Flaviano Junior • Laura Lana • Luan Gonçalves • Vinícius Silveira “Quero ficar no teu corpo feito tatuagem”, cantou Chico Buarque, referindo-se à eternidade proporcionada por esses desenhos na pele. Paixão, saudade, revolta, amor, esperança, nostalgia... Quantos podem ser os sentimentos que motivam o ato de se tatuar? Pesquisa desenvolvida no Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) concluiu que o jovem se tatua para marcar mudanças significativas em sua vida, expressando o desejo de eternizar a memória de um fato

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DOSSIÊ CORPO importante. Muitas vezes, esse comportamento está associado a fatores inconscientes projetados nas imagens escolhidas. De acordo com estudo feito pela jornalista Leusa Araújo, a palavra “tattow”que posteriormente daria origem ao termo “tatuagem”- foi ouvida pela primeira vez em 1769, quando o explorador James Cook desembarcou em uma tribo do Taiti, na qual todos os nativos possuíam desenhos no corpo. A palavra “tatuagem” é derivada de “tattoo” – conhecida como a reprodução do som do cabo de madeira ao bater no instrumento que perfura a pele para introduzir a tinta. Autor do livro O Brasil Tatuado e Outros Mundos, o jornalista carioca Toni Marques afirma, em sua obra, que a primeira tatuagem de que se tem registro foi encontrada em 1991, em restos mortais do “Homem de Gelo”, que teria vivido em torno do ano 5300 a.C., ainda na chamada “Era do Gelo”. Pesquisa realizada pela antropóloga Lux Vidal relata que, no Brasil, as pinturas corporais indígenas eram mais comuns que a tatuagem, quando se utilizavam diversos materiais, de acordo com a situação. Qualquer forma de pintura ou marca corporal pode ser considerada como uma maneira de expressar a socialização do corpo humano, subordinando os aspectos físicos ao comportamento e valores sociais comuns. Além da estética, a tatuagem pode ser tratada como forma de externar determinado comportamento simbólico, como afirma

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DOSSIÊ CORPO o antropólogo Andrei Isnardis Horta, professor da UFMG. “Tatuar é indubitavelmente uma atitude que articula significados, embora esses possam ser os mais diversos”, relata Horta. O antropólogo considera que o contexto atual da tatuagem no Brasil é bastante diferente do que era há 30 ou 40 anos, quando apenas algumas pessoas faziam tatuagens, geralmente para sinalizar que faziam parte de determinados grupos. “Nas duas últimas décadas, a prática se expandiu muito no Brasil e já não é possível associar as tatuagens a grupos específicos, pois um grande número de pessoas fora desses grupos marginais ou alternativos começou a se apropriar dessa prática”, analisa. Famoso por tatuar integrantes da banda de thrash metal Sepultura e por ter contribuído para criar o logotipo do grupo para um disco, Pedro Alberto Amorim – mais conhecido como Bozó – discorda em parte do pensamento do antropólogo, pois con-

sidera que há uma midiatização no ato de se tatuar atualmente. “Antes as pessoas se tatuavam por rebeldia, por um ideal ou um marco. Hoje em dia, com a banalização das tatuagens, amplificada pela mídia, muitas pessoas resolveram entrar na onda por puro modismo, com raras exceções”, critica. O tatuador considera que a popularização da tatuagem é algo negativo. “A tatuagem não pode ser tomada como moda, já que não sai da pele. Ela precisa ter um significado pessoal e individual”, afirma. Carolina Duca tem 18 tatuagens. Diferentemente de Bozó, ela não acredita que “todas as tatuagens precisam ter um significado”. Duca sempre foi apaixonada por tatuagens e diz que a maioria das que possui não têm significado – são apenas desenhos bonitos para enfeitar seu corpo. “Gosto de como fica a tinta bem preta na minha pele clara. Algumas poucas significam alguma coisa, como o cabide, que significa minha paixão pela moda”, conta.

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A dor e a tinta na pele são formas de prazer

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O que tatuar? Ter uma ideia preconcebida sobre o que se quer tatuar é imprescindível na hora de conversar com o tatuador, pois ele vai orientar o cliente em relação aos traços, ao tipo de letra adequada de acordo com a anatomia do local escolhido, as cores e estilos da tatuagem. A partir dessa conversa, muitos profissionais podem produzir um desenho exclusivo, que dificilmente estará em outra pessoa. Os entrevistados foram unânimes ao afirmar que não seriam as mesmas pessoas sem suas tatuagens, pois estas fazem parte do que eles são. Carolina Gonçalves considera que se tatuar é uma ação definitiva e, por isso, a vida muda a partir do momento em que se toma a decisão de marcar o corpo para sempre. “Cada decisão que tomamos a respeito de nossa vida e de nosso corpo nos modifica – não só fisicamente, mas também mentalmente”, comenta. A psicóloga Simone Matias considera que, dentre as várias razões que motivam um sujeito a se tatuar, algumas delas podem ser encontradas em relatos conscientes de que a tatuagem é a expressão de individualidade, de declarações políticas ou homenagens para alguém especial. “Na maioria das vezes, as tatuagens são utilizadas como forma de identificação e pertencimento a um determinado grupo ou têm objetivo estético, dentre outras razões inconscientes”, conclui Simone. A jornalista Ana Luíza Gonçalves con-

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pequenos, desenhos tirados da internet, desenhos old school (aqueles que já estiveram na moda e hoje são considerados vintage, como âncoras, caveiras e rosas). A novidade do momento é a tatuagem virtual. Com ela, uma pessoa que está insegura de se tatuar pode capturar ângulos de seu corpo com uma câmera e verificar, no computador, como ficariam os desenhos em cada local do corpo. Toda essa tecnologia indica que a tatuagem tende a sobreviver aos próximos milênios.

Remoção a laser

Tatuagem: status e/ou estética corda com a psicóloga que a tatuagem é uma forma de expressar sua individualidade. Ana Luíza diz que seria completamente diferente sem suas tattoos. “A tatuagem é parte de mim, é um pedaço do que sou hoje. Sou sempre lembrada por elas, e elas representam o que eu sou”, conta. Atualmente, as tatuagens mais pedidas no estúdio do Bozó, em BH, são as maoris (gravuras usadas por nativos da tribo maori, naturais da Nova Zelândia); frases, símbolos

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Há também pessoas que se tatuaram muito jovens e que, com o passar dos anos, perderam o apreço pela figura. É o caso da jornalista Cathe Oliveira (26), que fez sua primeira tatuagem aos 12 anos de idade. A comunicóloga fez o desenho de um singelo gatinho nas costas. Naturalmente o corpo da jovem desenvolveu, e a imagem do felino se descaracterizou. Por isso, Cathe recorreu a um tratamento que, aos poucos, vem conquistando muitos adeptos: a remoção a laser. “Por meio de amigos, soube da remoção a laser. Decidi encará-la, e já fiz duas sessões. Porém, ainda serão necessárias outras duas”, conta. Apesar de não ter concluído o tratamento, Cathe se diz satisfeita com o resultado parcial. De acordo com a jovem, “a pele ficou mais clara, e em alguns pontos já não existe nenhum resquício da tatuagem. Acredito que o desenho será completa-

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mente removido.” Entretanto, os dois primeiros encontros com o médico responsável pela remoção foram marcados pela dor. “O processo é doloroso. Mas como a tatuagem é pequena, consigo suportar ”, explica. O processo de remoção a laser parece simples, mas, na realidade, não é. Esteticamente, o “problema” de Cathe será resolvido. Porém, outro incômodo pode ser desencadeado ao fim do procedimento. De acordo com a dermatologista e especialista em medicina estética, Marcella Mattos, o paciente é previamente alertado quanto aos cuidados e possíveis contraindicações – o método pode causar infecções. “O paciente precisa estar ciente de tudo o que pode acontecer durante e depois do trabalho. Se a pessoa não estiver convicta do que quer, recomendo que não tatue, pois a remoção é bastante complexa”, ressalta. Ao ser disparado contra a tatuagem, o laser quebra a tinta depositada na derme, transformando-a em pequenas partículas. A partir daí, o sistema imunológico assume o trabalho com os glóbulos brancos, agrupando os resquícios do pigmento e levando-os para o fígado, de onde serão, enfim, expelidos. Entretanto, os riscos e incômodos causados pelo tratamento parecem não assustar. Marcela Mattos afirma que, toda semana,

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A dor pode ser fruto de má escolha recebe vários pacientes decididos a remover tatuagens. “Os motivos são vários: desenho mal feito, arrependimento e mesmo o término de relacionamento.” O psicólogo Flávio Hastenreiter explica que as tatuagens representam determinadas fases da vida. Segundo ele, o amadurecimento traz consigo mudanças de valores. “Com o passar do tempo, uma tatuagem pode perder o sentido para determinado indivíduo”, diz. Hastenreiter defende que as pessoas se tatuam com o objetivo de demonstrar distinção. “As tatuagens têm relação com a autoestima. Ao ser notada, ela causa sensações como prazer e ‘poder ’”, diz. O psicólogo afirma ainda que tais marcas no corpo podem representar “a superação de alguma dificuldade, da qual a pessoa queira se lembrar para sempre.

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A geóloga Nathália Pimenta (25) quis eternizar, num dos pulsos, o nome da mãe. A homenagem, que deveria ser motivo de orgulho, transformou-se em dor de cabeça. Isso porque o tatuador errou o nome da homenageada. Nathália acredita que faltou profissionalismo ao homem que a tatuou. “Na hora da sessão, ele estava aparentemente bem. Mas, tempos depois, ele me confessou que estava bêbado”, relembra. Agora, além de processar o responsável pelo ocorrido, a geóloga pretende remover a tatuagem. “Já marquei consulta com um cirurgião para pedir um orçamento judicial. Posteriormente, realizarei a remoção a laser. Apesar de não conhecer a fundo o procedimento de remoção, farei assim mesmo. É o que me resta”, lamenta.


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Preconceito à flor da pele Se muita gente já entende a tatuagem como arte, outros ainda hoje a associam a desvios de comportamento. Estudo publicado pela Academia Americana de Pediatria avaliou a tatuagem como indicativo de comportamento de risco, principalmente em adolescentes. Segundo a pesquisa, os tatuados teriam maior envolvimento com comportamento de risco, incluindo distúrbios alimentares, contato com usuários de drogas, e até suicídio. Pesquisa feita pelo Capitão Alden José, da Polícia Militar da Bahia, estudou 40 mil fotos de tatuagens usadas por criminosos e concluiu que algumas trazem significados ocultos. O projeto deu origem à cartilha Tatuagens: Desvendando Segredos”, que orienta policiais em relação às mensagens que os criminosos desejam transmitir nas tatuagens. Da Bahia, o estudo difundiu-se pelo Brasil, e muitos policiais têm estudado a cartilha para entender o comportamento dos criminosos. O Soldado Senra, da 10ª Cia de Polícia de BH, afirma que os militares já discutiram a cartilha e a levam a sério. Há um pedido para ficarmos atentos principalmente com a tatuagem de palhaço, que significa que aquela pessoa já matou algum policial”, explica. Mas nem sempre a tatuagem traz um dado real. “O criminoso pode até não ter realmente matado um militar, mas utiliza para ganhar respeito no mundo do crime”, conclui Senra. A psicóloga Simone Matias julga os estudos relevantes, e ressalta que ainda há muitas associações entre tatuagens e desvios de comportamento. “O significado da marca no corpo é singular, só podendo ser avaliada com a observação individual do caso. Este comportamento pode ou não estar associado a fatores patológicos e de riscos, não é possível fazer generalizações”, ressalta Simone.

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descobrindo

PRAZER

E a gente vai à luta. Consideramos justa toda forma de... sexo! Carolina Ávila • Emerson Araújo • Edu Oliveira Ao consultarmos o dicionário Aurélio, percebemos que o significado primário da palavra sexo é: “Exercício sexual praticado a partir de dois seres, em busca de prazer ou reprodução”. Quem dera fosse tão simples! Poucos temas atraem mais interesse, dúvidas e polêmicas do que sexo. Natural para alguns, tabu para outros, as diversas opiniões são alimentadas por uma série de variáveis. O início da vida sexual, as doenças sexualmente transmissíveis, o risco da gravidez precoce, as relações homoafetivas e as interferências da religião são nuances que fomentam essa discussão. A adolescência já é uma fase por si só complicada. Todas as transformações inerentes ao período, o borbulhar dos hormônios e as dúvidas na transição da infância para a vida adulta explodem nessa etapa. A descoberta do prazer com o próprio corpo aumenta exponencialmente a atratividade do assunto e cria monstros para alguns, como a necessidade de perder (ou manter) a virgindade.

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Esse talvez seja um dos primeiros grandes obstáculos enfrentados pelos jovens. Quando iniciar a vida sexual? A psicóloga clínica, com formação em sexologia, Cynthia Dias Pinto Coelho, nos ajuda a elucidar a questão. “A iniciação sexual dos jovens brasileiros tem sido cada vez mais precoce, segundo pesquisas feitas pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Para se iniciar a vida íntima, o adolescente precisa ter consciência do que é o sexo (tanto do ponto de vista fisiológico, quanto do emocional) e das consequências do que pode lhe ocorrer, como uma gravidez indesejada, a contaminação por DSTs (doenças sexualmente transmissíveis) e questões emocionais liga-

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das ao início da prática”, comenta. A Pense (Pesquisa Nacional de Saúde Escolar), divulgada em 2013 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), reforça a opinião da especialista. O estudo, realizado com estudantes do ensino fundamental, revelou que quase 29% dos estudantes na faixa etária entre 13 e 15 anos de idade já tiveram relação sexual. Em termos de gênero, 40,1% dos meninos entrevistados já tiveram sua primeira vez, enquanto, 18,2% das meninas afirmaram ter passado pela experiência. Um importante indicador da pesquisa se refere ao uso do preservativo: 75,3% do total de entrevistados contaram ter usado camisinha em suas relações.


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DOSSIÊ CORPO A hora certa A vida sexual cada vez mais precoce pode acarretar em arrependimento para alguns jovens. A estudante Karoline Tsuda, 18 anos, se diz ativa sexualmente desde os 14 e avalia que, hoje, teria feito escolhas diferentes. “Na maioria das vezes a iniciação no sexo ocorre por influência de nossos próprios amigos, e isso vai gerando certa curiosidade. Me arrependo sim de ter começado muito cedo”, afirma. Iniciar a vida sexual antes de alcançar um processo de maturidade pode trazer danos para a vida dos jovens. A sexóloga Cynthia explica: “Vários adultos que buscam terapia para trabalhar questões ligadas à sexualidade relatam situações traumáticas do início de sua vida sexual”. O analista de sistemas Victor Pinheiro tem visão similar. Por mais que não se diga arrependido do início prematuro no universo do sexo, considera que poderia ter sofrido mais por suas escolhas na adolescência: “Quanto mais precoce, mais chances de a pessoa sofrer traumas, sejam físicos ou psicológicos. Tive sorte de não colher frutos graves do que plantei ao longo da vida, porque tudo foi aprendido na prática”, diz. Mesmo em um estado laico como o Brasil, é inegável a importância que a religião tem sobre a população. As duas que têm mais adeptos no Brasil, católica e protestante (majoritariamente pentecostal), pregam um comportamento mais conservador para seus fiéis, que devem preservar-se “puros”, e considerar o sexo apenas para finalidades reprodutivas, após o casamento. O casal Feliphe Gomes e Gabriela Lima, integrantes do movimento Eu Escolhi Esperar, desejam manter viva a tradição da relação sexual somente após o altar. “O sexo foi criado para ser feito dentro do casamento, para que as duas pessoas (homem e mulher) se unam e se tornem uma só. Consideramos que a prática antes do casamento não é a vontade de Deus para nossas vidas”, afirma Feliphe.

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DOSSIÊ CORPO Questionado sobre as uniões homoafetivas, o casal também se mostra contrário. “Achamos que esse relacionamento é errado”. Já o padre Vitório Bastos, 56, mantem uma postura menos radical: “Essa união entre pessoas do mesmo sexo é normalmente ligada a um ato de amor. O verdadeiro amor, o Divino, se estende a todos os seres, independentemente de suas escolhas. A Igreja tem uma posição que é embasada pelos valores da família, conforme nos ensina a palavra de Deus. Não é saudável que espalhemos palavras de ódio para quem adota práticas diferentes das nossas”, afirma. O publicitário Everton Luiz faz algumas ponderações sobre a posição da sociedade sobre sua homossexualidade: “Não se trata de escolha. Ninguém escolhe fazer parte de um grupo de pessoas que será perseguido. Não me incomodo com o que pensam porque internamente sou muito bem resolvido com a minha condição”, diz. Sobre a relação com a igreja, acrescenta: “Estou impedido de concordar com o que as igrejas pregam, pois assim não viveria de forma plena e feliz”, explica.

“Não se trata de escolha. Ninguém escolhe fazer parte de um grupo de pessoas que será perseguido. Não me incomodo com o que pensam porque internamente sou muito bem resolvido com a minha condição” Vida após o HIV A rotina da jovem P.R.S, 21 anos, mudou radicalmente depois que ela descobriu que havia contraído o vírus da Aids – doença que ataca o sistema imunológico devido à destruição dos glóbulos brancos, as células responsáveis por proteger o organismo. Em 2011, quando 17 anos, manteve relações sexuais com seu namorado, sem a devida precau-

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ção. Desde então, passou a fazer uso de medicamentos antirretrovirais fornecidos em postos do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) para manter a doença controlada: “Foi um grande susto, pois eu acreditava que ele mantinha relações sexuais apenas comigo. Eu perdi meu chão, mas felizmente minha família esteve do meu lado e hoje tenho uma vida normal”, diz. Conforme levantamento feito pelo Ministério da Saúde, no início de 2015, cerca de 94% dos brasileiros tinham conhecimento de que a camisinha é o método mais eficaz de prevenção às Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) e Aids. Apesar disto, 45% da população sexualmente ativa do país não usou preservativo nas relações sexuais casuais ao longo de todo o ano de 2014. Contudo, segundo o Ministério da Saúde, os dados comparativos com pesquisas anteriores mostraram que o uso do preservativo na última relação sexual, ocorrida nos 12 meses anteriores, se manteve praticamente estável ao longo dos anos: 52% em 2004, 47% em 2008 e 55% em 2013, apesar das constantes campanhas sobre o uso de preservativos. De acordo com o infectologista José Alvarenga Junior, é muito importante que as pessoas fiquem atentas aos possíveis sinais das DSTs. “Normalmente são dores e coceira na região genital, incômodo ao urinar, dores durante a relação sexual e até embaixo do ventre (no caso das mulheres). Se o indivíduo sente algum destes sintomas, é

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importante que procure uma unidade de saúde, para que exames mais aprofundados possam ser feitos, com o objetivo de solucionar o problema e melhorar a sua qualidade de vida. A medicina evoluiu muito e hoje é possível viver uma vida normal após este tipo de diagnóstico”, afirma o médico. O Governo Federal passou a adotar outros métodos na tentativa de diminuir consideravelmente o índice de pessoas infectadas pelas DSTs. Conforme o site do Ministério da Saúde, em 2014 foram distribuídos 6,4 milhões de testes rápidos para HIV, número 26% superior aos 4,7 milhões distribuídos em 2013. Das cerca de 734 mil pessoas que vivem com HIV e aids no Brasil, atualmente, 80% delas foram diagnosticadas com a ajuda destes exames. O estudante de engenharia, T.M.N, de 26 anos, descobriu que havia contraído sífilis em 2009. O diagnóstico precoce da doença possibilitou a ele um tratamento mais eficaz e uma recuperação muito mais rápida:

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“Sou uma prova viva de que as pessoas podem contornar este problema. Quando o resultado do VDRL (exame de sangue que confirma a cura da sífilis) constou negativo para a doença, foi como se eu tivesse tirado o mundo das minhas costas”, desabafa o jovem. Conforme o Ministério da Saúde, o incentivo ao diagnóstico e o combate ao tratamento tardio também se refletiu na redução da mortalidade do HIV. Desde 2003, houve uma queda de 15,6% no número de mortes de pacientes com Aids no país. A taxa por 100 mil habitantes caiu de 6,4 óbitos, em 2003, para 5,4 óbitos, em 2014. Segundo a enfermeira Andréa Mourão, a maioria das pessoas que buscam atendimento para verificar se estão com alguma Doença Sexualmente Transmissível são jovens de 18 a 32 anos: “Eles costumam chegar apavorados, já com alguma suspeita em mente. O nosso papel é orientar tanto os pacientes quanto as famílias e incentivar


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CIÊNCIACORPO DOSSIÊ sempre o uso de preservativos”, diz. Atualmente, o uso da tecnologia tem se tornado um aliado contra as DSTs. Em junho deste ano, por exemplo, estudantes de uma escola do Reino Unido criaram um preservativo que muda de cor quando entra em contato com as DSTs. Batizada de S.T.EYE, a camisinha tem um indicador que detecta infecções como a sífilis, mudando de coloração conforme as bactérias presentes. Ainda não há previsão de quando esta novidade chegará ao Brasil.

O experimento Em busca de uma opinião popular bem atual, a reportagem realizou um pequeno experimento com pessoas que transitam diariamente pela Praça Sete de Setembro, região central de Belo Horizonte. Cem pessoas foram escolhidas a partir de um critério simples, a faixa etária superior aos 18 anos, buscando uma mescla entre homens e mulheres dentro de um ambiente que reconhecidamente preza pela multiplicidade. Duas perguntas básicas foram realizadas para essas pessoas: “Você é a favor do sexo antes do casamento?” e “Você é a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo?”. As respostas foram variadas e as opiniões mais conservadoras. Entre justificativas, comentários extremos, muitos discursos de defesa aos direitos individuais e alguns lamentavelmente intolerantes. 43% dos entrevistados se disseram a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo, enquanto 56% não se opõem ao sexo antes do casamento. Dentre aqueles que se posicionam contrários ao sexo antes do casamento, alguns alegam que suas escolhas se devem a razões religiosas. Há também os que não concordam com o casamento entre pessoas do mesmo sexo, dizendo-se a favor da “família tradicional”, composta por homem e mulher, considerada como única forma de família.

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além

DO FIM

A experiência de acompanhar o corpo após o último suspiro

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DOSSIÊ CORPO Jéssica Nunes • Marianna Poeta • Paulo Neves Uma sala grande, duas macas, mangueiras e um forte cheiro de produto químico. Este era nosso cenário às 8h50 do dia 21 de maio de 2015. Paredes brancas, chão cinza e molhado. Tesoura, alicate, bisturi. As únicas vozes que ouvíamos eram dos tanatopraxistas, profissionais que preparam os corpos em funerárias. Chegou um corpo e o processo de tanatopraxia avançada ia começar. “Primeiro, o corpo é higienizado, para limpar secreções e sangue; depois, cortaremos a jugular, para melhorar a coloração do corpo, e retiraremos os órgãos para lavagem interna. Fazemos isso para que o corpo fique conservado por até 70 horas”, instrui Alexandre Almeida. Até ali estávamos tranquilos, não assimiláramos o que poderia vir a acontecer após alguns segundos. O corpo foi retirado de um saco plástico preto, colocado na maca e lavado. Márcio* tinha morrido havia poucas horas de insuficiência respiratória, após anos lutando contra um câncer no fígado. De acordo com Ciro Buldrini Filogonio, professor titular de clínica médica na UFMG, doutor em medicina tropical e alergologista, “quando a pessoa morre, as células deixam de trabalhar. A película que envolve a parte central, onde está o código genético, e o citoplasma vão se confundindo, já que tudo vai se deteriorando”.

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DOSSIÊ CORPO Mais um corpo chegou à sala. Dessa vez, era de uma senhora de 65 anos. Luiza* faleceu em decorrência de insuficiência cardíaca, diabetes e choque séptico às 5 da manhã. “Ela estava com uma infecção que gerou o choque séptico, doença que afeta a corrente sanguínea e fragiliza o sistema imunológico”, conta Walisson Renê. O procedimento foi repetido na mulher, porém, quando o corpo foi aberto, o cheiro foi mais forte. Ela estava no hospital há muito tempo e se alimentava por meio de sonda. Por isso, um líquido amarelo saiu de sua barriga. O cheiro repulsivo nos embrulhou o estômago. Seus órgãos foram retirados um a um. De acordo com o tanatopraxista Walisson Renê, isso ocorre porque alguns órgãos já estão infectados. “Tiramos todos, vemos quais estão em bom estado, lavamos e colocamos de volta no corpo. Os que estão em fase de decomposição são retirados, lavados e enterrados em um local específico”, explica.

“É uma profissão como qualquer outra, a gente acaba acostumando. As pessoas olham meio torto, acham que é esquisito, mas não percebem que o que fazemos aqui é essencial para garantir um momento menos ruim após a morte” Em meio ao processo, conversamos sobre a profissão. Alexandre e Walisson são tanatopraxistas há três anos e afirmam que sempre gostaram de situações mórbidas. Em relação ao sentimento de ver a morte tão de perto, eles são enfáticos ao dizer que não sentem nada. “É uma profissão como qualquer outra, a gente acaba acostumando. O lado ruim é que me tornei mais frio. Hoje, nada mais me comove”, afirma Alexandre. Para Walisson, o pior é o preconceito. “As pessoas olham meio torto, acham que a gente é esquisito, mas

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no cinema Entre dramas, comédias e documentários, a tanatopraxia está, às vezes de maneira sutil, inserida no cinema. Em muitos casos, a técnica ou o profissional que a pratica é o foco da história. A ornamentação dos corpos é um procedimento antigo, e a sétima arte aproveita, de maneira artística, um trabalho que ainda é visto com muito preconceito – tanto pela ignorância quanto pelo imaginário do público.

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Bernie, 2011 (Bernie, quase um anjo), E.U.A. Dir.: Richard Linklater Elvis and Annabelle (Elvis e Annabelle, o despertar de um amor), 2007, Reino Unido. Dir.: Will Geiger Faces of Death (Faces da Morte), 1978, Dir.: John Alan Schwartz E.U.A. The Mortician (O agente funerário), 2011, Dir.: Gareth Maxwell Roberts, E.U.A. Sábado, 1994, Dir.: Ugo Giorgetti, Brasil My Girl (Meu Primeiro Amor), 1991, Dir.: Howard Zieff, E.U.A. Okuribito (A partida), 2008, Dir.: Yôjirô Takita, Japão O Tanatopraxista, 2013, Dir.: Eduardo Melo, Brasil

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não percebem que o que fazemos aqui é essencial para garantir um momento menos ruim após a morte”. Finalizada a primeira etapa da reportagem, partimos para a sala ao lado. Hora de ornamentar os corpos. Márcio* estava impecável vestido em um terno cinza, a gravata alinhada e a camisa passada. Luiza* estava mais simples: blusa florida rosa e uma calça preta. Ela gostava de se vestir assim. É comum muitas pessoas serem enterradas com a roupa preferida, como por exemplo, camisas de times. “A gente tem o cuidado de preservar o corpo. Tentamos deixar o mais parecido com o que era antes da morte. Aqui, a gente vai colocar um pouco de jornal para dar

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forma aos seios”, conta Walisson, enquanto prepara o corpo de Luiza*. O caixão é todo revestido com jornal e preparado para acomodar os corpos. Nele existe uma espécie de manta, utilizada como base para a colocação das flores que servem para ornamentar o ataúde. Depois disso, o cadáver recebe os últimos cuidados. Uma medida preventiva é realizada com o objetivo de preservar os familiares, amigos e presentes no velório. Os olhos são colados e a boca, após ser costurada, também é colada. No nariz, é introduzido algodão, para evitar que secreções escorram. Por conta da retirada quase total do sangue do corpo, a pele perde sua coloração natural. “A palidez se dá pela falta de

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A higienização é um princípio do tanatopraxista...


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circulação. Quando atinge um tom azulado, é chamado de lividez”, explica o médico. Por isso, o trabalho de maquiagem é essencial. Feita de maneira sutil, ela mantém a pele com as características mais próximas daquelas em vida. A família pode solicitar que o lado estético do corpo receba um cuidado ainda maior, como, por exemplo, escova, coloração capilar, esmaltação, batons, entre outros processos de beleza. Conversando com os profissionais durante a experiência, eles nos contaram sobre o que já vivenciaram em três anos de trabalho. ”Certa vez, estava preparando o corpo de um senhor e a família pediu para que ele fosse velado e enterrado com um anel que tinha um significado especial. Quando colocava o anel em um de seus dedos,

senti uma pressão na mão. Quis correr, mas isso é natural, hoje não me assusta mais”, conta, rindo, Alexandre Almeida. A morte não ocorre no mesmo momento para todas as células. Aquelas que dependem menos de oxigênio continuam tendo algum tempo de vida mesmo depois que não existe circulação. Segundo Ciro, “alguns movimentos se dão por conta de algum reflexo neurológico, que ainda não foi perdido pelos nervos. Além do mais, o acúmulo de gases intestinais provoca ruídos, que às vezes, assustam as pessoas”. Com os corpos ornamentados e preparados, já podíamos ir embora. Antes, contudo, fomos surpreendidos. Em uma parte da sala onde os corpos são ornamentados, uma funcionária trabalhava silenciosamente. ... além do manuseio de cosméticos

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Instrumentos de corte e sutura dos corpos Curiosos, nos aproximamos e vimos Gabriel*. Um bebê de, no máximo, seis meses, que havia falecido de causa indeterminada. O processo em Gabriel* é diferente. A tanatopraxia avançada não é realizada. Em um recém-nascido, os métodos utilizados são mais brandos, já que o corpo tende a estar melhor. Gabriel* era mulato e vestia um macacão verde claro. Sua aparência era tranquila, parecia aquilo que se diz de um bebê quando morre: um anjinho. A experiência é quase inenarrável e enriquecedora. Nosso sentimento era de tristeza por imaginar o sofrimento de várias famílias. Por outro lado, estávamos admirados com aqueles profissionais que ganhavam a vida com a morte. Pessoas simples, carismáticas, serenas e, acima de tudo, preocupadas com a preservação da vida após a morte. Assim como Márcio*, Luiza* e Gabriel*, todos nós passaremos por esse processo.

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Utensílios de sucção de líquidos e semilíquidos Nossos olhos e bocas serão colados, nosso sangue será retirado, os órgãos lavados, mas a memória de quem éramos ficará sempre viva em quem conviveu conosco.

Nota dos autores Essa matéria não tem como objetivo polemizar, assustar ou ser de cunho sensacionalista. Nosso intuito é valorizar o trabalho exercido pelos tanatopraxistas. Tentamos esclarecer, para os nossos leitores, como é o processo de preparação do corpo após a morte. Procuramos ser respeitosos e cautelosos ao contar essas histórias . *Luiza, *Márcio e *Gabriel são nomes fictícios que usamos para manter a identidade das pessoas em sigilo. Esses cognomes foram escolhidos devido aos seus significados: lutadora, guerreiro e enviado de Deus, respectivamente.


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Com o coração na mão Jéssica Nunes E se eu disser a você que peguei no coração? O órgão que é sinônimo de vida estava ali na minha mão, frágil e representando o momento do fim. O mais estranho é pensar que um coração que já bateu bilhões de vezes, viveu emoções e angústias, estava inanimado, vivendo a morte. Hesitei em tocar, mas, como jornalista, a curiosidade prevaleceu à repulsa. Segurei! Nesse instante, me senti a única pessoa no mundo com dois corações. Em minha mão esquerda, o órgão sem vida e, no peito, um pulsando. Muito! Parecia pesar 300g. Seu exterior era frio, nem rígido, nem flácido! Fiquei em êxtase por alguns segundos. “Vocês querem que eu abra?”, perguntou um dos profissionais.

Silêncio O silêncio sepulcral foi o bastante para ele perceber que sim. Abriu! Cheiro insuportável e sensação imediata de vômito. Ainda assim, insisti em continuar a tateá-lo. Seu interior era fibroso. E, o mais impressionante, ainda estava quente! Independentemente de a medicina ter respostas para tal fenômeno, a sensação foi maior que o aspecto científico. Mesmo as palavras sendo a única maneira de contar essa experiência, elas não são suficientes para transmitir as reações do meu corpo. Ali, alguns dos sentidos foram aguçados, como tato, olfato e visão. Além disso, me senti impotente, com medo, insignificante. Mas, acima dessa nulidade, o sentimento de valorizar a vida estava gritando. Por alguns minutos, apenas agradeci por ter saúde, família, amigos. Enfim, por viver!

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caixão. O cheiro das flores que compõem a decoração me dá enjoo. Morro de medo de morrer”, afirmou. Viegas não está sozinha e engana-se quem pensa que este é um tipo de medo característico das mulheres. Jorge Fernando, 30 anos, é supervisor administrativo de uma funerária na zona leste de Belo Horizonte. Encontrou bastante dificuldade para lidar com cadáveres. “Acostumei-me aos poucos. Fazia uma remoção aqui, outra ali, gradativamente, até chegar ao ponto em que estou hoje, menos temeroso. Falar que não tenho medo é mentira, mas já me acostumei”, ressaltou.

A causa do medo

Cleiton Augusto Soares • Marconi Turci de Lima • Roseli Honorato Você tem medo de ver um corpo morto? Há gente que não consegue se aproximar de um cadáver no velório, ou em qualquer outro lugar. Olhar e tocar um indivíduo que se encontra sem vida está fora de cogitação. Rosângela Viegas, 49 anos, é católica e confessa ter medo só de saber que alguém morreu, pois pensa que pode vir a sonhar com aquela pessoa. Já trabalhou esse medo, mas não consegue. “Fico impressionada quando vejo uma pessoa morta. Vou ao velório e não fico muito perto do

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Segundo o Dr. Sérgio Campos Christo, cirurgião cardiovascular do Hospital João XXIII, este tipo de medo existe devido ao temor da própria morte. “As pessoas têm medo de cadáver porque têm medo de morrer ”, enfatiza. O médico, que também é professor de medicina do Centro Universitário de Belo Horizonte - UniBH, observa que alguns alunos chegam a passar mal no início do curso quando se deparam com o cadáver que será utilizado no processo de dissecação. Mas atitudes como a de Breno Coelho, 28 anos, residente em anestesiologia da Faculdade de Medicina da UFMG, podem evitar certos “constrangimentos”. Breno comenta que, no primeiro dia de aula, alguns alunos tiveram mal estar quando se depararam com um cadáver. Surgiu a dúvida se alguém

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questionaria a escolha da profissão em função disso. Há dez anos, Breno assistiu a uma cirurgia, para identificar qual seria sua reação. “No curso houve várias dissecações e eu quis assistir para saber se teria medo de sangue ou coisas do tipo. Não tenho medo de cadáver, mas sim de ficar doente ou de alguém da minha família adoecer também, algo que os incapacite ou cause a morte. No dia-a-dia a gente vai criando uma defesa. Ser médico é pesado, lidamos com a morte constantemente”, destacou. Longe da ciência, os pensamentos religiosos, difundidos pelas diversas crenças, influenciam diretamente a forma de pensar das pessoas em relação ao modo se comportam diante de um cadáver. Os cristãos católicos e evangélicos acreditam que haverá uma ressurreição após a morte. Já os espíritas pregam a reencarnação. Creem que a morte é uma passagem ou viagem deste um mundo para outro. Renata Pádua, 42 anos, afirma não ter medo de cadáver. “Como espírita, acredito que o corpo humano não passa de matéria. Respeito, claro, mas não há sentimento. Temos que fazer o bem enquanto estamos vivos e num momento fúnebre sermos solidários e respeitosos uns com os outros”, frisou a administradora de empresas.

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E respeito não apenas entre quem está vivo, diga-se de passagem. O respeito aos cadáveres ou suas cinzas é garantido por lei. Está na Constituição Federativa do Brasil, no artigo 212 do Código Penal. Vilipendiar um cadáver ou suas cinzas gera uma pena de 1 a 3 anos de detenção, e multa. A exposição de imagens e vídeos, na internet, do corpo do cantor sertanejo Cristiano Araújo, 29 anos, e sua namorada Allana Moraes, 19 anos, mortos num acidente de carro, em Goiânia, no dia 24 de junho de 2015, colocou em pauta o assunto. Os meios de comunicação debateram a questão, os responsáveis pela gravação e compartilhamento dos conteúdos foram intimados a depor e responderão a processos. O número de mortes no país será maior que o de nascimentos dentro de alguns anos, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em

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2013. Naquele ano, cerca de 2.127.426 morreram no país, contra 2.155.097 nascimentos. De acordo com o Censo, éramos pouco mais de 237,5 milhões de brasileiros em 2010. Antônio Carlos Ferrarezi, mestre em Ciências da Religião, por diversas vezes é submetido a situações que envolvem a morte. Ferrarezi é pastor de uma igreja

metodista. Solicitado por um rapaz da igreja, foram juntos ao Instituto Médico Legal para reconhecimento do corpo do irmão, que havia sofrido um acidente na linha do trem. “O cadáver estava condicionado numa gaveta e partido ao meio. Gerou uma cena muito triste e de muita comoção. Emocionado, abracei o rapaz e ficamos em silêncio. Tenho facilidade para lidar com a situação porque faz parte do meu ofício. Sempre sou solicitado para comparecer aos velórios”, afirmou. Segundo o pastor, os cristãos evangélicos não temem tocar o corpo sem vida. Diz haver uma consideração pelo cadáver, por tudo aquilo que em vida representou. Certa vez, passou horas num velório, a sós com o cadáver. Não teve medo. “O medo existe porque a morte é uma incógnita”, ressaltou. Ferrarezi acredita que essa mística que envolve o luto é muito misteriosa e desperta o medo, porque na Idade Média a morte era tratada por uma moral diferente da de hoje. Na época era proibido pesquisar cadáveres, mas, em contrapartida, permitia-se matar. Como ocorria com pessoas que eram queimadas vivas, por exemplo, a morte de Joana D’Arc, militante francesa da época medieval. “A igreja consentiu na morte de D’Arc. Mas após a morte, nada podia ser feito contra o corpo. Na moral medieval, quem morre, entra no campo do sagrado. Tornase algo misterioso, intocável. Os filósofos, a exemplo de René Descartes, roubavam os

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DOSSIÊ CORPO No cemitério da Saudade, na região leste da capital mineira, encontramos o senhor Valdemar Santana, 51 anos. Dedica-se ao serviço de coveiro e vigilante do local há trinta e um anos. Lida diariamente com o luto de pessoas desconhecidas. Percebe de longe a dor dos outros e o medo de alguns que estão perto de um cadáver. Zela pelo acesso ao cemitério e as sepulturas. Santana, que trabalhou cerca de dezesseis anos como coveiro, há quinze atua como vigilante. Cuidar da principal entrada do cemitério é sua função, mas não se esquiva do serviço que o colocava mais perto dos enlutados e, sobretudo dos cadáveres, a abertura de covas. “Quando comecei a trabalhar aqui, tinha medo de cadáver. Este medo foi aos poucos acabando, devido à minha rotina. Mas não me sinto confortável nos momentos em que tenho que participar da exumação de

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cadáveres para estudos. Atualmente vivenciamos o inverso: a moral contemporânea permite o estudo de cadáveres. Permitese a dissecação de cadáveres e proíbe-se qualquer tipo de tortura e morte, do ponto de vista do direito”, acrescentou. Para Ferrarezi, quando uma pessoa está diante de um cadáver, ela está diante de “si mesma”. “Sabemos que um dia iremos passar por esta mesma situação. Portanto, ali, diante do caixão, temos um encontro bem pessoal e particular com nós mesmos. Isso espanta. Pensar que estaremos diante de alguém que amamos muito,” frisou. Casos de cadáveres que se comportaram de maneira inesperada durante o velório, expelindo ar ou emitindo sons e fazendo alguns leves movimentos, ajudam a alimentar nas pessoas esse tipo de medo. Mas tudo isso não passa de reações do processo de decomposição do corpo morto.

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um cadáver. O corpo fica de uma forma diferente e assustadora”, opina. Certa vez, quando Santana fazia sua ronda noturna, uma mulher pulou à sua frente, vestida de branco e dizendo: “Ele está vivo”. Após o susto, o vigia perguntou: “Ele quem? Quem está vivo?” A moça respondeu que era o padre, a quem vira rezando o terço. Santana foi até o local e só viu um terço batendo na sepultura do padre.

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A palavra da ciência Segundo a psicóloga Neusa Corassa, do Centro de Psicologia Especializada em Medos, em Curitiba, o medo tem papel fundamental na adaptação humana. “Alguns tipos de medo, que têm grande magnitude para situações desencadeantes, são chamados de fobias. A fobia é um dos distúrbios psicológicos mais extensamente pesquisados. Há casos em que é recomendado o acompanhamento profissional”, afirma. A psicóloga argumenta que desde a infância as pessoas crescem ouvindo que não devem sentir medo. Daí a dificuldade de nos abrirmos uns com os outros. Tal comportamento seria interpretado como uma fraqueza e desta forma ocultamos algo que, se externássemos, poderia nos libertar. Corassa diz que o medo é uma emoção natural do ser humano. Então seja qual for o seu medo, o ideal é conversar com alguém e, se necessário, deve-se procurar um especialista.

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FÁBRICA

DE MÚSCULOS Os alicerces para construir um corpo mais saudável Luísa Aguineli • Melina Capila Seis da matina. O garoto com braços largos e fortes, cabeça raspada, levanta e começa seu dia na academia, a fim de malhar o corpo. De tão enorme que é, Paulo Sérgio sente-se bem em não se enquadrar na câmera fotográfica. Diz-se monstro. Aos 23 anos, é estudante de Educação Física e sonha em um dia se tornar um bodybuilder. A prática de bodybuilding, ou fisiculturismo, significa moldar o corpo levando em consideração conceitos como estética, definição, força, tamanho e proporção dos músculos. Para que isto aconteça, é preciso seguir três fundamentos essenciais: alimentação, treino e descanso, de modo a construir o corpo de forma saudável. Ao levantar o primeiro peso, uns 60 quilos no supino, os músculos enrijecem e as primeiras gotas de suor demonstram sua força de vontade. Força esta capaz de motivar quem treina a seu lado. Rosto, costas e braços reluzem à grandeza da dedicação, após uma série de levantamentos. Dez quilos são amontoados em dois grupos de quatro,

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Vencer a si próprio é o maior desafio para a saúde totalizando 80 quilos, sustentados por uma barra de ferro, levantados pelo garoto. O suor escorre e inunda sua blusa cinza. Paulo tem braços realmente muito fortes.

Trabalho em etapas A Federação Mineira de Bodybuilding (FMBB), responsável por apresentar o trabalho dos atletas nas competições em Minas Gerais, ressalta que não é fácil transformarse em atleta da modalidade. O presidente da FMBB, Cláudio Vidal, destaca que, para se tornar um profissional, há diversas etapas a serem conquistadas. “O atleta deve passar pelos processos seletivos estadual, brasileiro e internacional. No estadual e brasileiro, ele tem de ficar entre os três primeiros. Já no internacional, precisa conquistar ouro em sua categoria, tornando-se um autêntico bodybuilder”, pondera.

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O primeiro pilar é a alimentação. O garoto come, diariamente, treze bananas. Como a ingestão de determinado alimento enjoa, Paulo busca revezar seus lanches, de forma a suprir todas as necessidades, seguindo a ficha feita pelo nutricionista. A proteína é de extrema importância para o atleta que pretende construir o corpo. É isso que a nutricionista atlética Kellen Aleixo enfatiza. “Boas fontes de proteína possuem alto valor biológico, especialmente em aminoácidos essenciais, aqueles que o corpo não é capaz de produzir ”, revela. Quem quer construir o corpo para competir em eventos de fisiculturismo deve ser bem paciente, uma vez que quanto mais próximo das competições, mais restritiva a alimentação. Contudo, segundo Kellen, é um grande mito imaginar um fisiculturista que só come batata doce, ovo e frango.


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DOSSIÊ CORPO “Na verdade, quanto mais variedade na alimentação, melhores os ganhos”. Segundo a nutricionista, na fase de pré-competição, as restrições a alimentos e/ou nutrientes costumam ser mais altas. “As quantidades e proporções de alimentos específicos também se modificam de acordo com as necessidades”, completa. O almoço do garoto mais parece uma montanha; um quilo é o que marca na balança. No almoço de uma pessoa “normal”, 300 gramas servem bem. Obrigado! Quem pretende tornar-se profissional do bodybuilding deve pensar em curto e longo prazos, pois o caminho para atingir o nível de competição não é rápido, e algo que pode representar uma grande barreira é o rigor da alimentação. “Sentimos prazer em comer bem, não importa o quê. Uma dieta restrita pode causar deficiências nutricionais. Portanto, uma alimentação equilibrada deve ser sempre a preferência. Deve-se permitir restrições bruscas apenas em casos específicos, como o de competição”, orienta Kellen.

“Na fase de hipertrofia, na qual os atletas se preocupam em ganhar massa muscular e volume, é necessário treinar pesado. Depois, o objetivo é queimar o máximo de gordura corporal e continuar treinando para manter a forma” A psicóloga Simone Matias Santos defende que, na sociedade, pensa-se em curto prazo, em busca de prazer imediato. “Tal ideia está estritamente ligada ao conceito básico da Psicologia, que diz que todas nossas ações são tomadas levando em conta a relação entre dor e prazer ”, declara. Por esse motivo, a busca pela carreira de bodybuilder exige disciplina. É o que confirmam frases como “Não espere o incentivo dos outros. O primeiro a acreditar em seu sonho é você!”, escritas nas paredes da academia em

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DOSSIÊ CORPO que Paulo Sérgio treina. Nem só de dieta e treino vive Paulo, porém! Afinal, são três os pilares para a construção do corpo. O descanso também é de extrema importância. Segundo a Associação Mundial de Medicina do Sono, 45% da população dormem mal, durante menos de 8 horas por dia. Apesar da rotina corrida, Paulo Sérgio tenta cumprir todas as horas de sono, mas nem sempre isso é possível. Ele nunca abre mão do descanso de 30 a 90 segundos entre cada exercício. Outro elemento que o rapaz não dispensa é a garrafa de água, essencial para manter o corpo hidratado. A cada gota de suor que cai, uma garrafa hidrata o garoto para o próximo exercício. Afinal, a pausa nos treinos não serve apenas para des-

cansar. Duas horas diárias de treinamento são suficientes para que ele se assemelhe a um monstro.

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Agora, eis o instante de acompanhá-lo em outra atividade: comprar suplementos. A loja de artigos naturais oferece vários. Entre vitaminas e colágenos, uma lista de produtos que só devem ser consumidos de acordo com a orientação de um profissional. Os suplementos alimentares são necessários a partir do momento em que a dieta não supra as necessidades nutricionais. Dentre os vários produtos disponíveis no mercado, alguns, como os esteroides anabolizantes, são prejudiciais à saúde. Seus efeitos não demoram a aparecer e seu uso contínuo pode causar hipertrofia, queda de produção hormonal e dependências psicológicas. A fisioterapeuta Denise Schultz explica que o uso de hormônios pode gerar a hipertrofia, que é o aumento do diâmetro do músculo. “A hipertrofia muscular decorrente de treinos adequados não traz malefícios à saúde. O problema é quando ela decorre de anabolizantes e do uso de suplementos proteicos acima das necessidades de cada um”, reforça a fisioterapeuta. De volta à academia, já em seu tempo de descanso, Paulo Sérgio fala da tão sonhada hipertrofia. Enquanto treina, as veias saltam dos braços e mostram a força exercida para alcançar aumento de massa muscular.

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Suplementos


DOSSIÊ CORPO O personal trainer e especialista em musculação Paulo Henrique Moreira explica que existem três fases importantes para quem busca o aumento da massa muscular. “A primeira é a de hipertrofia, na qual os atletas se preocupam em crescer a musculatura, ganhar massa muscular e volume, não se atentando para o inevitável ganho de gordura corporal. É necessário treinar pesado nesta fase”, explica. É exatamente isso o que Paulo faz. A segunda fase é a da definição. “O objetivo é queimar o máximo de gordura corporal”, diz. A última etapa é a de transição, na qual o atleta treina para manter a forma. Na busca pela construção do corpo, é necessário levar em consideração que cada pessoa é diferente. “Todas as pessoas têm um limite genético natural para o desenvolvimento muscular. Quando o atleta faz

uso dos anabolizantes, rompe esse limite,” garante a fisioterapeuta. Assim, de forma saudável, com foco e determinação, é possível alcançar o corpo desejado.

Você pensa no futuro? Paulo Sérgio, atualmente, só pensa em uma coisa: tornar-se competidor bodybuilder. Mas será que ele pensa no que virá? E você? Pensa em seu futuro e em seu físico quando ficar mais velho? O tempo chega para todos. E não adianta teimar. Um exemplo é o ator e fisiculturista profissional Arnold Schwarzenegger. Aos 68 anos, o exterminador do futuro é referência e inspiração para muitos jovens e homens experientes, apesar de não manter o físico do passado. Que o diga o ex-treinador Orlando Suzano de Farias, que é mais do que experien-

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Os exercícios aprimoram os corpos sarados

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Orlando e seu ídolo, Arnold Schwarzenegger te. Aos 61 anos, seus cabelos grisalhos já se diferenciam muito da volumosa cabeleira preta do homem que, vigorosamente, posa ao lado de Arnold, em uma moldura que repousa orgulhosa em sua sala de estar. Orlando admite que a foto ao lado do homem que o inspira desde os 14 anos é um sonho realizado. Recordar esse momento faz seus olhos brilharem. Mas aquilo que

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mais o motiva é sua paixão pela construção do corpo de forma natural. Após se recuperar de um câncer, ele mantém o físico por meio de atividades regulares, feitas em casa e, também, por meio de alimentação saudável, sem alimentos gordurosos e comida fast food. Mesmo com todo esse esforço, que, para Orlando está mais ligado ao prazer, o tempo não faz questão de ajudar. Isto porque, com o passar dos anos, o corpo humano sofre com a perda de até 50% da massa muscular, como afirma a fisioterapeuta Denise Schultz. “O processo de Sarcopenia, que é a perda de massa muscular e força na musculatura esquelética, decorre do envelhecimento, mas pode ter outras causas secundárias, como sedentarismo, doenças inflamatórias ou câncer”, completa. Essa redução de massa é responsável pela diminuição da força e da densidade óssea, por lentidão nos movimentos, aumento da incidência de diabetes, desaceleração do metabolismo, dentre outras complicações a atingir, diretamente, a rotina dos idosos. Para retardar esses efeitos, o treino é um dos grandes aliados. Afinal, a vida aos 60 está apenas começando. Prova disso é que a expectativa de vida dos brasileiros aumentou 25,4 anos, passando de 48 para 73,4, em apenas 50 anos, segundo o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), publicado pela Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos. Orlando relembra que, em sua época,


DOSSIÊ CORPO não havia muitas academias, nem informações especializadas, como existem hoje. Por esse motivo, era difícil manter a forma. Mesmo assim, ele afirma que sempre improvisou equipamentos. Depois de vencer um câncer, Orlando perdeu massa muscular, mas nunca o humor, a saúde e o corpo construído ao longo dos anos. O simpático senhor tem ainda um físico de dar inveja em muito novinho por aí.

Eu já usei? Já, sim! Anabolizante é entendido como qualquer substância que contribua para o crescimento de tecido. Isso não significa que

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Opção por anabolizantes deturpa objetivos

eles sejam ruins para a saúde, ao contrário dos esteroides. Esteroides anabolizantes são apenas uma categoria de anabolizantes. Apesar da aparência inicialmente saudável, o uso de esteroides anabolizantes pode desenvolver danos à saúde, e deixar marcas para a vida toda. Mas a popularidade da substância entre os adeptos do bodybuilding se dá pela capacidade de o hormônio, usado apenas sob prescrição médica, fazer o corpo ganhar massa muscular. De acordo com dados dos pesquisadores dos laboratórios Parkinson AB e Evans NA, no artigo Anabolic androgenic steroids: a survey of 500 users, publicado na revista Med Sci Sports Exerc, de 2006, dentre os efeitos colaterais do uso de esteroides, dos usuários que participaram do teste, estão: atrofia testicular, aparecimento de acne; insônia; estrias; alteração do humor; disfunção sexual e ginecomastia. Outra forma de anabolizantes são os suplementos usados para ganho de massa muscular. “Para os fisiculturistas, os suplementos podem ser interessantes para auxiliar a alimentação, uma vez que as quantidades requeridas de nutrientes são extremamente elevadas e quase nunca supridas apenas pela dieta,” afirma Kellen. Mesmo assim, quem deseja usar os suplementos para a construção do corpo precisa ficar atento. Apesar de serem mais seguros que os esteroides anabolizantes, o uso em excesso pode causar sobrecarga nos rins e no fígado.

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DOSSIÊ ENTREVISTA CORPO

de corpo

ABERTO Usuários de redes sociais fazem da auto exposição uma rotina Amanda Costa • Rafaela Martins • Paulo Víctor Celular na mão, câmera frontal ligada, braço esticado, expressão facial definida e corpo à mostra. Basta um pouco de desinibição para tirar uma selfie. Após adicionar efeitos e fazer edições, ela está pronta para ser postada. Likes. Popularidade. Compartilhamento. Exposição. Ações como essas são parte da rotina de usuários que fazem das redes sociais um diário repleto de imagens do próprio corpo. O último relatório anual divulgado pela União Internacional de Telecomunicações (UIT), agência da ONU responsável por padronizar as ondas de rádio e telecomunicações, apontou que o mundo possui,

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O,

CUIDAD

HOMENS ANDO TRABALH


WILLIAM ARAÚJO

DOSSIÊ CORPO atualmente, 3 bilhões de usuários de Internet – cerca de 40% da população mundial. Só em 2014, o número de pessoas conectadas ao mundo digital aumentou 6,6%, e, com isso, cresceu também o número de pessoas que usam as possibilidades da internet para motivar e informar por meio do compartilhamento de fotos. Em redes como Instagram, Facebook e Snapchat, é possível acompanhar, diariamente, imagens de pessoas se exercitando, exibindo a evolução do corpo, mostrando tudo aquilo que comem e, até mesmo, vestindo roupas íntimas ou trajes de banho. Pessoas nuas e seminuas também não são raridade, a exemplo da recém-criada e já popular hashtag #aftersex, que conta com milhões de fotos de casais realizadas logo após o ato sexual. Para a psicóloga Simone Santos, esse tipo de exposição exagerada faz parte de uma necessidade de autoafirmação ou de inclusão em um grupo. “As redes sociais representam, hoje, um espaço para interagir e se relacionar, assim como o foram o clube e a praça há algumas gerações. Para ganhar popularidade e importância, as pessoas criam artifícios, a fim de se destacar entre os demais, chegando, muitas vezes, ao nível máximo da exposição”, afirma. O entendimento da internet como espaço público foi confirmado por uma pesquisa encomendada pela multinacional Cisco Systems, em 2012. O estudo constatou que 60% dos jovens nascidos entre

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DOSSIÊ CORPO Um exemplo recente é o da modelo Paola Antonini, que teve uma das pernas amputadas após ser atropelada na Avenida Raja Gabáglia, em dezembro do ano passado. Ela compartilhou cada passo de sua recuperação com os mais de 80 mil, seguidores de seu perfil no Instagram. Sempre com bom humor e muito carisma, Paola acabou se tornando referência para outros amputados e para pessoas que buscam se inspirar em um exemplo de superação. A onda de redes sociais fitness , que incentivam pessoas a se aceitar e a cuidar da saúde do corpo, também não para de crescer e está se tornando cada vez mais rentável. Perfis como o da blogueira Ga-

Necessidade de se expor substitui privacidade

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PAULO VÍCTOR

1980 e 2000 checam compulsivamente as atualizações de conteúdo em seus smartphones, incluindo as informações relativas às imagens postadas. No Brasil, o número é maior: 73%. Um dado que chama a atenção para o estudo é que 33% dos entrevistados consideram que a internet é um recurso essencial para a sobrevivência humana, assim como ar, água, alimento e moradia. Embora a psicóloga defenda que as redes sociais possam potencializar problemas psicológicos e serem usadas de forma patológica – e, muitas vezes, criminosa –, ela afirma também que é possível enxergar na plataforma um veículo para incentivar, dividir experiências e elevar a autoestima.


DOSSIÊ CORPO briela Pugliesi e da ex-panicat Nicole Bahls chegam a faturar R$ 70 mil para publicar fotos com algum produto – sempre relacionados a um estilo de vida saudável. Em Belo Horizonte, a estudante de nutrição Ana Reis ganhou fama após criar o Projeto Viva Bonita, um reality show de emagrecimento, selecionando usuárias de redes sociais para um programa intensivo com profissionais das áreas da saúde e Educação Física. A rotina das candidatas e a evolução de cada uma podem ser acompanhadas em vídeos no YouTube e no Estação Viva Bonita, encontro periódico realizado em praças públicas para incentivar a prática de exercícios ao ar livre e sem o uso de aparelhos. Aninha, como prefere ser chamada, possui contas no Instagram e no Facebook vinculadas ao projeto, nas quais compartilha sua rotina de atividades físicas, suplementação, alimentação saudável, receitas e dicas de beleza e moda. “A ideia é motivar e incentivar as pessoas por meio da minha história, mostrando minha rotina e levando informação até elas”, diz. O personal trainer Guto Brasil, parceiro do projeto, explica que as redes sociais são grandes aliadas para os que desejam uma mudança no estilo de vida. “As pessoas se sentem próximas e se identificam umas com as outras. Isso acaba motivando quem está sem forças ou motivos para começar”, explica. Ele lembra que, certa vez, Ana compartilhou uma série de vídeos em que

ela pulava corda. “Recebemos mais de mil mensagens de meninas que começaram a pular corda, também”, conta. Diante de resultados assim, Aninha sente que já serve de referência para outras pessoas e explica que isso a motiva a continuar buscando uma vida saudável. Com 65 mil seguidores no Instagram e mais de 3 mil curtidas no Facebook, a estudante garante que não se sente inibida ao mostrar o corpo, já que trabalha como modelo nas horas vagas e acredita que toda exposição faz parte de um objetivo maior. “O foco do Instagram não é na Ana e, sim, no bem -estar que a atividade física proporciona. Eu sou apenas uma protagonista que também vive em busca do equilíbrio, de leveza do corpo, da alma e da mente”, afirma a idealizadora do projeto. O mesmo objetivo levou Eduardo Kaadar, modelo fitness, bodybuilder, publicitário e promotor de eventos, a usar o Facebook para mostrar as transformações do seu corpo. Seus 8.478 amigos na rede social visualizam fotos de sua alimentação, das competições e dos treinos na academia com o corpo sempre à mostra. “Queria inspirar outros a se aperfeiçoar e a buscar seus objetivos, assim como eu busquei os meus, que eram ser modelo fitness e atleta”, conta Kaadar. Mas, ao contrário de Aninha Reis, Kaadar teve dificuldades para alcançar a desinibição. “Ainda fico um pouco ansioso para postar fotos do meu corpo, mas, com o

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DOSSIÊ CORPO tempo, você se torna mais desinibido. Antes, ficava com um frio na barriga, com medo do que iriam achar. Sou uma pessoa naturalmente tímida, mas me forçava a postar ”, recorda o competidor. Sobre os feedbacks dos usuários, Aninha e Kaadar concordam que a exposição atrai tanto admiradores quanto críticos, e que o importante é saber lidar com os dois tipos de seguidores. Aninha garante que os elogios são predominantes em sua rede, especialmente, por ter transformado a mídia digital em algo positivo. “Recebo muitos retornos de seguidores relatando a mudança que obtiveram após acompanharem o projeto”. Nos comentários das páginas, é possível encontrar falas como “você nos incentiva” e “aprendemos muito com você”.

“Muita gente diz que começou a fazer dieta e voltou para a academia por minha causa. Outros veem meu antes e depois e se motivam.” Já Eduardo Kaadar sofre com certos comentários críticos. “Pessoas que nem me conhecem pessoalmente me julgam, falam que quero aparecer, me chamam de exibido e metido”, relata. Por outro lado, os comentários positivos o levam a continuar, assim como as pessoas que o têm como referência aumentam o sentimento de responsabilidade. Ele ficou alguns dias sem fazer postagens e um desconhecido o procurou para perguntar o motivo, dizendo que precisava acompanhá-lo diariamente. “Muita gente diz que começou a fazer dieta e voltou para a academia por minha causa. Outros veem meu antes e depois e se motivam. Fiz um vídeo estufando e contraindo a barriga, brincando que era um ‘tapa no shape’. Um dia depois, várias pessoas fizeram igual, incluindo atletas famosos”, revela Kaadar.

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misoginia na

VITRINE

Daniel Prado Cosenza • Maíra Duarte Silva • Maria Beatriz de Castro

O Brasil é a nação que mais usa redes sociais e banaliza a prática do revenge porn

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“Eu vou jogar na internet, mesmo que você me processe. Eu quero ver a sua cara, quando alguém te mostrar, quero ver você dizer que não me conhece”. O trecho é da música “Eu vou jogar na internet”, da dupla sertaneja Max & Mariano, publicada com um videoclipe no Youtube. Os usuários da rede social se mostraram ofendidos com o vídeo e, após receber pouco mais de 50 mil visualizações, o clipe saiu do ar. A reação dos internautas sobre a letra do videoclipe contrasta, no entanto, com os números de ocorrência de revenge porn


DANDARA DELOLINDA

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DOSSIÊ CORPO (ou pornografia de vingança) na web. Segundo dados disponibilizados pela ONG End Revenge Porn, um em cada dez ex-parceiros já ameaçaram expor fotos íntimas online. 90% das pessoas que sofreram essas ameaças foram mulheres. A socióloga Luciana Coelho afirma que o machismo é o fator crucial para que esse tipo de exposição atinja mulheres. “No Brasil, a grande maioria das pessoas tem dificuldade em assimilar que uma mulher que mantém uma vida sexual ativa não é uma criminosa”, aponta. No Brasil, os números sobre o assunto são escassos, mas as notícias não. Casos como o de Julia Rebeca, uma adolescente de 17 anos que suicidou após ter vídeos íntimos vazados no Whatsapp, não são isolados. Na internet, onde a palavra de ordem é o compartilhamento, os adeptos da pornografia de vingança encontram um prato cheio. Foi a partir do Whatsapp que, hoje com 15 anos, E.M.F. passou pelo trauma do revenge porn. Natural de Sacramento (MG), a menina viu sua vida se transformar drasticamente ao se mudar, há dois anos, para Fortaleza (CE), quando sua mãe se casou novamente. “A idade já é de uma fase complicada. E ela teve que se adaptar a uma nova vida, uma nova escola”, explica a mãe, V.F.B. No final do ano, mãe e filha foram passar as festas com a família e a adolescente ganhou um celular. De volta a Fortaleza, a mãe resolveu fazer uma limpa nos aplicativos do Facebook e Whatsapp de E.M.F., quando se deparou com os primeiros indícios. “Percebi mensagens estranhas em alguns grupos do Whatsapp. Ela pedia para um amigo: ‘pelo amor de Deus, não faz isso comigo, não! Meus irmãos podem ver’. Todos eram de Sacramento”, afirma V.F.B. Na época, a filha contou para a mãe sobre a brincadeira no grupo: quem não quisesse responder uma pergunta no jogo da “verdade ou consequência” deveria colocar uma foto no perfil do grupo por dez minutos. Foi tempo suficiente para alguém salvar a imagem.

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DOSSIÊ CORPO “Conversei com ela. Perguntei se havia mais fotos. Ela negou até a última gota”, conta a mãe. Em fevereiro de 2014, porém, V.F.B. recebeu ligações desesperadas de sua mãe e de seu ex-marido, pai de E.M.F. Fotos da adolescente completamente nua rodavam a cidade. Os registros eram da mesma época da primeira imagem. Segundo dados da McAfee’s Love, Relationship and Technology Report, 37% das pessoas que enviaram mensagens íntimas pediram para que elas fossem excluídas. Porém, 50% das pessoas possuem mensagens de conteúdo sexual arquivadas no celular.

“37% das pessoas que enviaram mensagens íntimas pediram para que elas fossem excluídas. Porém, 50% das pessoas possuem mensagens de conteúdo sexual arquivadas no celular ” A adolescente, que ainda é introspectiva e não gosta de falar no assunto, explica que, na época, sentiu confiança para remeter as fotos: “Quando enviei as fotos, eles me elogiavam muito e levantavam minha autoestima. Eu me senti bem, sentia que podia confiar ”. No entanto, após o vazamento, seu sentimento mudou: “Senti raiva e também me senti traída. Tive nojo de mim mesma e me sentia rejeitada”. A mãe confessa que foi uma fase difícil, principalmente por ser mãe solteira. “Bati muito nela, a ponto de não conseguir ir trabalhar no dia seguinte”, diz. A psicóloga Rafaela Bitencurt defende o acompanhamento psicológico e, possivelmente, psiquiátrico, também para a família. “Em alguns casos, há a necessidade de acompanhamento psicológico também para parentes de primeiro grau, pois o equilíbrio da família pode ser abalado”, explica. Por outro lado, V.F.B. acredita que a filha já estava depressiva e vulnerável. “Essa vontade de receber elogios e

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DANILO SILVEIRA

DOSSIÊ CORPO ser admirada era um reflexo do momento difícil que passava. Eles se aproveitaram disso”, relembra. Eles, os meninos que vazaram as fotos, seriam dois rapazes por volta dos 20 anos. Um deles criou um grupo apenas para os três, intitulado com o nome da filha. Já a estudante de Direito B.V.N., 20 anos, não chegou a ser exposta, mas sofreu ameaças. No final de abril deste ano, seu ex-namorado ameaçou revelar fotos suas nuas. “Ficamos juntos por dois anos e havíamos passado por um término há três meses. Acredito que queria chamar minha atenção”, afirma. Nos dados da ONG End Revenge Porn, consta que, dos ex-parceiros que ameaçam divulgar conteúdo íntimo, 60% seguem em frente. Porém, no caso de B.V.N, as ameaças não se concluíram. Ao contrário da estudante de Sacramento, B.V.N. não se culpou quando recebeu as mensagens. “Eu fiquei arrasada, não acreditei que ele seria capaz de fazer isso. Mas não me senti culpada em nenhum momento. Eu tinha confiança nele para enviar aquelas fotos íntimas, em nossos momentos. Nós namoramos por muito tempo. Sempre soube que a culpa era dele”, diz.

Casos na justiça “Fiquei chocada quando a ficha caiu de que nada seria feito. Um está em Uberaba, fazendo faculdade. Outro está em Sacramento, repetindo no colegial. Mas também fica difícil provar, pois quando peguei o celular, ela já havia excluído tudo. As imagens,

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DOSSIÊ CORPO mensagens. Depois de vazar, a vítima, no desespero, apaga. Então fica mais difícil ainda de provar ”, conta a mãe da jovem de 15 anos, que registrou boletim de ocorrência em Fortaleza e não viu o caso ter nenhum encaminhamento. A estudante B.V.N. também procurou a advogada no mesmo dia em que recebeu a mensagem com ameaças do ex-namorado. “Minha advogada me ajudou muito e me aconselhou a esperar a ameaça se concretizar. Como ele desistiu, não registrei boletim de ocorrência”, afirma.

Danos emocionais “Ao mesmo tempo em que vem superando tudo, minha filha se priva de muita coisa. Às festas de 15 anos, que começam a pipocar agora, ela não quer ir a nenhuma”, diz a mãe de E.M.F. Segundo dados da End Revenge Porn, 93% das vítimas da exposição indesejada sofreram com problemas emocionais. A psicóloga Rafaela Bitencurt avalia os principais impactos do revenge porn. “Os efeitos podem ser múltiplos. Os mais comuns são a baixa autoestima, pois o corpo é exposto de forma indesejada. A vítima também pode entrar num ciclo de culpabilização que é muito perigoso. A depressão também é recorrente”, explica. E qual seria a explicação, do ponto de vista da psiqué, para homens que praticam o revenge porn contra mulheres? Existem dois caminhos, segundo a psicóloga. “O primeiro é a patologia. O agressor talvez tenha problemas com taras sexuais e não possa distinguir o que é aceitável do que não é. A segunda opção seria a possibilidade do agressor ter uma personalidade psicopática ou sociopática. Excluídos estes casos, só seria cabível o julgamento jurídico”, afirma. Para os agressores que não se enquadram na avaliação psicológica, a motivação pode surgir de vários vetores. A misoginia (ódio ou aversão ao sexo feminino) seria o principal, segundo a psicóloga Luciana Coelho. “É necessário

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DOSSIÊ CORPO desprezar profundamente o sexo feminino para fazer e considerar normal a existência de sites especializados em reunir vídeos de quem caiu na rede”, conta. Coelho afirma que os meios de comunicação também têm sua parcela de culpa. “A mídia contribui para o revenge porn na medida em que divulga valores que reforçam o duplo padrão para a sexualidade masculina e feminina. No entanto, também reflete a sociedade. Mudar os meios de comunicação é algo que deve ser pauta dos movimentos sociais e não do Judiciário”.

Combate à vingança No Brasil, não existem leis que tipificam a pornografia de vingança. Em 2013, quatro propostas semelhantes que abordam o combate a condutas ofensivas contra a mulher na internet foram apresentadas à Câmara. No entanto, passados dois anos, os Projetos de Lei ainda tramitam na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF). De acordo com o promotor Mário Higuchi, coordenador da Promotoria Estadual de Combate aos Crimes Cibernéticos, um dos projetos em tramitação é o PL 5555/2013, de autoria do deputado federal João Arruda (PMDB/PR), que visa à alteração da lei Maria da Penha, sancionada em 2006. Se o projeto for aprovado, representará um avanço no combate aos crimes contra a mulher na internet, criando mecanismos de defesa para a mulher na web e na mídia em geral. Projeto do senador Romário de Souza (PSB/RJ), o PLS 63/2015 visa acrescentar um artigo ao Código Penal, onde tipifica o revenge porn como crime e aponta uma pena de detenção de um a três anos para o agressor. No entanto, o PLS está parado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania do Senado (CCJC). Mas o Marco Civil e a lei Maria da Penha não representariam avanços nessa questão? Higuchi explica que as iniciativas auxiliam o processo, mas não o resolvem, pois são focadas, respectivamente, na

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remoção das imagens não autorizadas da internet e nos crimes de violência doméstica contra a mulher. Para a socióloga Luciana Coelho, uma das maiores dificuldades do país em adotar leis que tipificam o revenge porn “está em sua complexa estrutura política de barganha, marcada pela constante relação de troca de favores entre partidos e o poder executivo”.

DANILO SILVEIRA

DOSSIÊ CORPO

Depois dos traumas Após todos os acontecimentos, V.F.B. excluiu seu perfil do Facebook e não voltou às redes sociais. Porém, a filha tem superado o assunto a seu tempo. “Muita coisa mudou. Muitas pessoas me julgaram sem saber a verdadeira história, mas amadureci muito. Antes eu era uma criança, bem inocente. Não via malícia nas coisas e nas pessoas. Hoje tenho uma cabeça mais formada em relação a tudo: ao que é certo e o que é errado, e, principalmente, ao meu futuro”. Questionada sobre o seu sentimento pelos agressores, a jovem afirma que não tem mais raiva, apenas dó. “Percebo, hoje, o quão insignificantes são. Amadureci e vejo como sou uma pessoa muito melhor que eles”, diz. B.V.N. é otimista com o debate sobre revenge porn no Brasil. “Acho que estão começando a colocar a culpa em quem realmente merece: que são esses caras que jogam as fotos na internet. É uma sensação horrível saber que todas as pessoas que você conhece podem ver sua intimidade”, finaliza.

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CULTURA

escurinho

do

CINEMA

Como as salas de exibição resistiram à acão do tempo Bárbara Guimarães • Guilherme Pacelli • Lilian Érica • Matheus Ferraz • Nayara Morais

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NAYARA MORAIS

CULTURA O início No Brasil, o primeiro registro de uma exibição cinematográfica aconteceu no Rio de Janeiro, em 8 de julho de 1895, aproximadamente 7 meses após a exibição dos Irmão Lumière em Paris. No ano seguinte, Paschoal Segreto e José Roberto Cunha Salles inauguraram, na Rua do Ouvidor, a primeira sala fixa de cinema no país, chamada “Salão de novidades Paris”. Os primeiros filmes nacionais foram rodados entre 1897 e 1898, quando Afonso Segretto exibiu imagens em movimento da Baía de Guanabara. Logo as salas de cinema se espalharam por São Paulo e Rio de Janeiro e produções nacionais como “Procissão do Corpo de Deus”, “Rua Direita”, “Sociedade Paulista de Agricultura”, “Ascensão ao Pão de Açúcar ” e “Bombeiros” foram exibidas junto aos muitos filmes estrangeiros que chegavam a nossas terras. Em 1898, Belo Horizonte ganhou sua primeira sala de cinema, apenas um ano depois da inauguração da própria cidade, conta o crítico de Paulo Augusto Gomes. Em julho daquele ano o comerciante local Oscar Trompowski pediu a prefeitura do município para que o exibidor William Mardock pudesse mostrar ao público o Cinematógrafo de Thomas Edison. A exibição aconteceu depois de oito dias em uma casa na Rua Goiás, pertencente ao Dr. Hermínio Alves. Na primeira metade dos anos 1910, BH assiste a uma proliferação de cinematógrafos – máquinas que filmavam e projetavam

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ARQ. PÚBLICO BH

CULTURA

A sétima arte emociona o homem moderno filmes. Ainda segundo Paulo Augusto Gomes, um deles já estava em funcionamento em 1906, num anexo do teatro Paris, localizado na Rua da Bahia, assim como o Cine Central, que foi inaugurado no mesmo ano e também funcionava na mesma via. Em 1911, a capital mineira já contava com uma diversidade de salas de cinema, como a Colosso, a Ideal, a Comércio, a Familiar, a Parque Cinema Bahia e a Pavilhão de Variedades.

BH na era dos grandes cinemas Em 1927, Hollywood lançava o primeiro longa falado da história: O cantor de jazz.

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Em poucos anos, o cinema mudo foi substituído pelas obras sonorizadas. Na década de 1930, o cinema exibido no Brasil já era predominantemente norte-americano e o público brasileiro já se acostumava com a leitura de legendas e a se familiarizar com as estrelas hollywoodianas da sétima arte. Com capacidade para 1.800 pessoas, o Cine Theatro Brasil foi inaugurado em 1932 para abrigar grandes eventos teatrais e produções cinematográficas. Prédio mais alto da cidade, ele foi aberto ao público com o musical Deliciosa (1931), estrelado por Janet Gaynor e pelo astro brasileiro Raul Roulien,


ARQ. PÚBLICO BH

CULTURA que veio à capital mineira para acompanhar duas sessões, com lotação máxima. O cinema se consolidava como uma das principais formas de socialização.

O auge

ACERVO CINE BRASIL

Entre a década de 1930 e 1940, surgiram várias outras salas de grande capacidade em BH. O Cine São Carlos, um dos primeiros fora dos limites da Avenida do Contorno, no bairro Padre Eustáquio, foi aberto em 1939, com capacidade para mil pessoas. Em 1942, a cidade ganhou o Cine Metrópole, construído no local do antigo Teatro Municipal, com capacidade para 1.300 espectadores. Foi inaugurado com a exibição do filme Tudo isto e o céu também. No fim da década de 1940, surgiram outras salas emblemáticas. Em 1947, o bairro Floresta ganhou o Cine Odeon, com mil assentos. No ano seguinte, surgiu o Cine Pathé, na Savassi – o primeiro da zona sul da capital, com 750 lugares. O filme de abertura foi Devoção (1946), estrelado por Ida Lupino. O Centro ganhou ainda o Palladium (1.300 lugares), em 1963, e o Jacques (1.800 cadeiras), antigo Tupi.

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ARQ. PÚBLICO BH

CULTURA

O declínio Após a década de 1970, começa a decadência dos cinema de rua em BH. O crescimento não planejado da capital acarreta problemas sociais, como o aumento da violência, no Centro. A concorrência com a televisão, que já estava no Brasil desde 1950, mas que se massifica somente nos anos 1970, e que exibe filmes gratuitamente no conforto dos lares, também retira o público dos cinemas. No fim da mesma década, duas inaugurações marcantes acontecem em Belo Horizonte. Em 1978, surgiu o Cine Humberto Mauro, localizado dentro do Palácio das Artes, e que até hoje é uma das principais salas dedicadas a filmes de arte e produções fora do circuito comercial. Já em 1980,

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a cidade ganhou suas primeiras salas de cinema em um shopping center, o BH Shopping – dando início a proliferação destes estabelecimentos que hoje em dia abrigam quase a totalidade das salas da capital. Os anos 80 representaram um marco para a indústria de exibição cinematográfica. O número de cinemas no país demonstra queda ano após ano. Segundo dados da Ancine, entre 1980 e 1990 o número de salas no Brasil cai 37%. Tradicionais locais passaram a exibir filmes pornográficos ou fecharam as portas em Belo Horizonte, dando lugar a pequenos estabelecimentos que também se dedicavam a produções adultas. Durante a década de 1990, o processo continuou. Em 1995, três dos cinemas de rua que ainda restavam em Belo Horizonte

GUILHERME PACELLI

Com poucas opções, o cinema era sucesso


ARQ. PÚBLICO BH

CULTURA também foram fechados para dar lugar a estabelecimentos com outros fins. O Roxy, na Avenida Augusto de Lima se converteu em uma galeria de lojas no Barro Preto. Já o Odeon, no Floresta se tornou uma sauna masculina, enquanto o Royal, na Afonso Pena, em templo da Igreja Universal do Reino de Deus.

A modernidade Na mesma década, a maioria dos shoppings centers de Belo Horizonte surge, todos equipados com seus múltiplos cinemas, que mesmo assim não conseguiram contrabalancear a quantidade de salas que haviam fechado nos últimos anos. Atualmente, Belo Horizonte possui 87 salas de cinema. Destas, 82 são em shopping centers – até os anos 1970 eram 110. Segundo a Agência Nacional de Cinema (Ancine), em 1975 o Brasil tinha 3.300, uma

para cada 30 mil habitantes. Atualmente, segundo a entidade, são 2.200, uma para cada 100 mil pessoas.

Mudança de hábitos De acordo com o historiador Ataídes Braga, nos primórdios, cada uma das salas de cinema em Belo Horizonte tinha uma particularidade. Entre os anos 1930 e 1940, tanto o Metrópole quanto o Cine Brasil eram salas dedicadas a exibir as maiores produções das cinco grandes produtoras norte-americanas da época, Metro Goldwyn Mayer, 20th Century Fox, Warner Bros., Paramount e Universal. Alguns anos depois, “Os romances você podia ver no Palladium, as aventuras no Cine Jaques ou Tamoios, as comédias no Cine Brasil. Cada sala tinha um público específico, isso, para a formação e relação que se estabelece com o público do filme é incomparável”, diz.

GUILHERME PACELLI

Além do lazer, o cinema é fonte de cultura

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A saudade O produtor musical Bob Tostes foi ao cinema pela primeira vez na década de 1950 assistir Cantando na Chuva (1952). Aos 67 anos, ele afirma nunca ter esquecido a experiência. “Hoje em dia, dentro do shopping, ir ao cinema faz parte de só mais um programa complementar. Já fui em cinema de shopping, me desculpem os adolescentes, mas eles faziam uma barulhada, como se estivessem em casa”, diz. A servidora pública Cristiane Dutra, de 44 anos, frequentou os antigos cinemas de rua na adolescência. Segundo ela, eram bem mais acessíveis. “Eu ia muito com meus cole-

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gas da escola. O cinema era muito mais barato, então a gente tinha condições mesmo não ganhando mesada. Os meus preferidos eram o Pathé, o Palladium, e o Nazaré, na Guajajaras”, conta. “Na década de 1990, compramos o primeiro aparelho de VHS. Alugávamos cinco, seis filmes por fim de semana e acabávamos ficando em casa assistindo. Aí veio o DVD e a TV a cabo que mudaram o programa da rua para casa. Hoje, para ir ao cinema você tem que ir ao shopping. E isso gera gastos, há o deslocamento, o estacionamento, os lanches. Ficou mais caro, afirma.” Para o professor e crítico Rafael Ciccarini uma série de fatores, com destaque para a mudança de hábito das pessoas, contribuiu para a migração das salas de rua para os shoppings. “O shopping é uma lógica da sociedade, um processo de elitização geral, essencialmente do consumo, onde se celebra a forma de vida burguesa que tem

VICTOR SHWANER

Além disso, frequentar o cinema era um evento social importante. Num cartaz de divulgação da sessão inaugural do Cine Metrópole, em 1942, com o filme Tudo Isto e o Céu Também se dizia, inclusive, o tipo de roupa que se devia vestir.

GUILHERME PACELLI

ACERVO CINE BRASIL

CULTURA


GUILHERME PACELLI

CULTURA CIÊNCIA no consumo seu lugar privilegiado. O Matheus Henrique, de 19 anos, que apesar de achar os ingressos caros, não deixa de frequentar o cinema dos shopping centers. “Normalmente, vou duas ou três vezes por mês. Tenho amigos que preferem baixar filmes pela internet, justamente pelo preço da entrada”, conta.

Novas propostas Fechados em 1999, dois dos maiores cinemas de rua que Belo Horizonte já teve, acabaram tendo um final bem mais feliz. Tanto o Cine Teatro Brasil, quanto o Palladium foram restaurados e renasceram após um período sem atividades, com propostas diferentes. O Sesc Palladium, antigo Cine Palladium,

foi inaugurado em 2011, após restauração feita pelo novo proprietário, o Sistema Fecomércio Minas. Atualmente, o local é um espaço multiuso, que funciona como teatro para shows, peças, performances, além de receber exposições. Curioso ressaltar que, hoje, o Palladium também abriga mostras de cinema. Já o Cine Teatro Brasil, foi reaberto em 2013, após restauração feita pela Vallourec, nova proprietária, que captou recursos junto a Lei Ruanet, que somaram mais de R$ 40 milhões. De acordo com José Paulo Agrello, supervisor de artes integradas do Cine Brasil “O prédio foi todo blindado acusticamente. Apesar de estar no coração de Belo Horizonte, não temos interferência sonora alguma”, conta.

VICTOR SHWANER

Os cinemas de rua sofreram transformações

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CULTURA Atualmente

No escurinho

O Cine Teatro Brasil Vallourec é um espaço multiuso. Recebe peças teatrais e shows. Porém, segundo José Paulo, a antiga vocação do local pode ganhar algum projeto para 2015. “Estamos estudando um projeto para cinema que busque resgatar esse lado, paralelamente às outras atividades que o espaço recebe, tanto no grande teatro, quanto no teatro de câmara, que é um novo espaço criado com a reforma, e que possui capacidade para 200 pessoas”, afirma.

Assistir a um filme que usa como cenário uma sala de cinema pode ser uma experiência curiosa, e muitos cineastas fizeram uso disso. Em 1959, William Castle lançou Força Diabólica, película de horror onde um monstro atacava no escurinho do cinema. Castle instalou equipamentos elétricos nas poltronas, dando pequenos choques na plateia para fazê-la acreditar que o monstro havia saltado da tela para o mundo real. Nos anos 90, dois filmes de horror/comédia prestaram tributo ao filme de Castle: Matinee - Uma Sessão Muito Louca (Joe Dante, 1993) e Popcorn (Mark Herrier, 1991). Em Taxi Driver (Martin Scorcese, 1976), o taxista vivido por Robert De Niro sabota suas chances de viver um romance ao levar Cybil Sheperd para um encontro num cinema pornô. O nacional A Dama do Cine Shangai (Guilherme de Almeida Prado, 1987) traz uma trama noir que tem início num cinema de São Paulo. Em Bastardos Inglórios (Quentin Tarantino, 2009) um pequeno cinema francês é palco de um desfecho inusitado para a Segunda Guerra Mundial. Já Cine Majestic (Frank Darabont, 2001) e Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore, 1988) mostram de forma afetiva salas de cinema que trazem profundas mudanças na vida de pequenas cidades. Uma coisa todos esses filmes têm em comum: o amor pela sétima arte e pela experiência de se desligar do mundo e apreciar um filme na tela grande.

RODRIGO CLEMENTE

Cine Brasil, ponto de encontro dos cinéfilos mineiros

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SOCIEDADE

amor sem

DIMENSÃO Adotar uma criança é muito mais que a realização de um sonho Júnia Ramos • Felipe Paz • Gleison Flávio • Manoela Bomyng Muitas crianças e adolescentes sonham em ter uma família. A cada dia, este desejo parece estar mais próximo da realidade. O panorama da adoção no Brasil tem mostrado significativo crescimento diante da disposição de casais em viver tal experiência. Dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2008, apontam 32.716 pessoas cadastradas para adoção, aumento de 21,17% nos três últimos anos. Por outro lado, o total de crianças e

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ARQUIVO LAB. JORNALISMO IMPRESSO

SOCIEDADE adolescentes aptos a ganhar um lar aumentou 16,3%, chegando a 5.649 cadastrados no fim de 2014. A maior disposição para adotar está em São Paulo, com 8.217 pretendentes, seguido por Rio Grande do Sul (4.945) e Minas Gerais (3.955). Os três estados têm, também, a maior disponibilidade de crianças. Mas quem tem mais chances de conseguir pais adotivos? Os dados nacionais mostram que quase metade dos futuros pais se dizem indiferentes quanto à raça das crianças e adolescentes: 44,5% dos cadastrados não têm preferência. Em relação à idade, 56% das pessoas desejada adotar crian;as na faixa de 0 a 3 anos. Isto mostra como é difícil a situação de mais de metade dos possíveis adotados, que têm entre 14 e 17 anos. Em Belo Horizonte, o panorama não é muito diferente. Segundo a assistente social do Juizado Cível da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) Lúcia Helena de Souza, existem, atualmente, mais de 200 pessoas na fila para adoção, sendo a maioria (97%) casais, conforme dados de 2013. Segundo Lúcia Helena, as crianças vêm de várias instituições de acolhimento. Geralmente, são abrigos que têm convênio com a prefeitura, ligados à igreja ou às ONGs.

Vínculos diversos Apadrinhamento afetivo é fruto de parceria que o TJMG mantém com o Centro de Voluntariado de Apoio ao Menor (Cevam),

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ARQUIVO PESSOAL

SOCIEDADE

Manoela não guarda rancor da mãe biológica ONG com sede em Belo Horizonte. Nesta institituição, as pessoas não querem adotar, mas apadrinhar. Em outras palavras, desejam cuidar da criança, dar assistência e ajudá-la por um período. Geralmente, isso ocorre no fim do ano. Há casos em que o apadrinhamento pode se transformar em adoção definitiva. A preferência, porém, é sempre de quem está cadastrado. No caso daquele que apadrinha, o direito só vale se comprovada uma vinculação afetiva com a criança.

Acima dos desafios A experiência da adoção de crianças, normalmente, é a convergência do sonho do casal de ter filhos e da dificuldade de fertilização, por questões biológicas, tanto do homem, quanto da mulher. A história de Daniela Silva, 35 anos, e Wilton Lima Silva, de 42, que há um mês adotaram Maria Fernanda, com apenas uma semana de

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vida, começou a ser escrita após a cirurgia de varicocele, uma dilatação anormal das veias testiculares, pela qual passou Wilton e que o deixou menos fértil: “Os médicos nunca descartaram a possibilidade de ela engravidar, mas há muito tempo tínhamos dificuldades e decidimos não esperar mais”, revela o marido. Dois anos após a cirurgia, seguindo a linha de outros casais que buscam uma criança que se identificasse com os pais, Daniela e Wilton optaram por adotar um bebê saudável do sexo feminino, com idade de até dois anos, de cor parda ou negra. “A vida caminha dentro da normalidade”, relata o casal, que já tem a guarda da menina. Segundo informações do juiz responsável, Daniela e Wilton não terão que esperar mais do que seis meses para terem o registro definitivo de Maria Fernanda: “Agora, é só alegria. Para você ver como tratamos nossa filha, meu marido dá mais atenção a ela do


SOCIEDADE

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que a mim”, conta Daniela. A aposentada Áurea Benedicta Cintra, de 65 anos, foi vítima de um câncer no útero ainda jovem e enfrentou grandes desafios, que a impossibilitaram de engravidar, mas não lhe tiraram o sonho de ser mãe: “Deus não permitiu que eu tivesse um filho da minha própria barriga, por isso resolvi adotar ”, conta Áurea. O caminho para isso foi um pouco diferente. Um tio dela, que era médico, certo dia fez o parto de uma jovem, que havia dado à luz um casal de gêmeos. Por motivos financeiros, a mãe, sem condição de criá-los, decidiu entregar as crianças a uma família ou a alguém que lhes desse uma vida mais digna. Quando ficou sabendo do caso, Áurea correu até à maternidade. Mesmo solteira, resolveu adotá-los, já que possuía boa condição financeira: “Fui mãe e pai para eles”, conta. Áurea sempre fez questão de que os filhos soubessem que eram adotados: “Não

queria que sentissem raiva de mim. Não queria que soubessem só com 15 ou 20 anos. Afinal, mãe é quem cria”, conclui. A estudante de jornalismo Manoela Chaves revela que, quando criança, não entendia bem a questão da adoção e sempre fazia muitas perguntas: “Com o tempo, vi o que acontecia com o mundo, a questão da fome, da miséria. E comecei a entender melhor tudo isso”, explica. Apesar de não conhecer a mãe biológica, Manoela não guarda rancor: “Sou grata pela minha mãe, pois tudo que ela fez foi para o nosso bem”.

Necessidades especiais A servidora pública Ana Maria Silveira, de 38 anos, adotou um menino quando era solteira, ainda com 25 anos. O garoto de três anos, que sofre de autismo e microcefalia, que causa paralisia cerebral leve, fora abandonado por sua mãe no hospital, logo após o parto: “Não podia mais fugir. Senti que minha vida não teria sentido sem ele. Ana Maria: adoção por amor e não piedade

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SOCIEDADE Não foi piedade, mas amor ”, conta. O primeiro desafio de Ana foi superar a preocupação de sua mãe, que temia que a situação fosse somente uma empolgação passageira da filha. Com o tempo, porém, a avó também se apegou à criança e passou a ajudar em tudo, com total dedicação. Ana se diz gratificada pela adoção: “Ele me dá muito mais do que eu. Por causa dele, revi minha vida, fiz faculdade e, hoje, tenho um emprego estável”, revela. Todas as histórias de adoção são histórias de amor e desafio. Júlio e Érica adotaram o pequeno Daniel, de apenas nove meses, portador de paralisia cerebral. Nada disso estava nos planos do casal. Júlio conta

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Daniel reforçou a união dos pais adotivos

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que, durante as entrevistas, foram questionados sobre as características da criança que queriam. Érica não apresentou restrição a idade, cor ou limitações físicas: “Eu lembro que, quando me perguntaram se aceitaria uma criança com alguma deficiência, apesar de me sentir muito egoísta, respondi que não aceitaria”, relata Júlio. Eles lembram com emoção do dia em que estavam na reunião com a psicóloga e a assistente social falando do pequeno Daniel: “Elas nos perguntaram se gostaríamos de ir ao abrigo conhecê-lo, antes de tomar qualquer decisão. Dissemos que, se fôssemos, não iríamos para conhecê-lo e avaliá-lo, mas para buscar nosso filho. Foi o que fizemos, graças a Deus”, relatam. Eles acreditam que não foram informados antecipadamente sobre a paralisia cerebral para não haver resistência, principalmente, de Júlio, pois Érica sempre teve o coração aberto: “Talvez, se não fôssemos lá, perderíamos a maior oportunidade de nossas vidas. Sempre que paramos para pensar na nossa história com o Daniel, vemos claramente como Deus nos amou, ao nos reunir como família, pois sabemos que Daniel não nasceu de nós, mas para nós”, conclui Érica. Essas e outras tantas histórias nos ensinam que, quando o amor é maior, não existem barreiras. Muitas vidas podem ser mudadas pelo acolhimento, que forma uma nova família, dando nova chance a quem já não tinha muitas perspectivas.



MÍDIA

PRAZER,

jornalismo Mas o que pensam, desejam, falam, fazem e esperam de mim?

Geraldo Augusto Correia Silva

O que pensaria uma pessoa ao ouvir, pela primeira vez, o termo “Jornalismo”? As definições sobre Jornalismo são feitas a partir da visão de fora (pessoas – ainda que estudiosas sobre) para dentro. Toda sorte de análises, sob distintas perspectivas, estimula inusitadas experiências de enxergar e transmitir Jornalismo. Como experimentação social, tal exercício é incapaz de encerrar a discussão, pois as mesmas características que esculpiram o modelo norteador da prática jornalística também moldam a opinião

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REPRODUÇÃO

MÍDIA

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MÍDIA a oportunidade de falar sobre a condução que os profissionais e amadores têm dado a sua “vida”. Está aberta uma nova categoria: “Jornalismo Introspectivo: o olhar sobre a perspectiva do que motiva a olhar ”. “Às vezes, a vida nos impõe um freio”. Uma parada, um tempo pra pensar. Mas, quando o papel de nortear pensamentos é sua principal função, e, sobretudo, a construção dos marcos norteadores não se dá por si própria, essa função é torturante. Vivo o mundo. Relato o mundo. Portanto, parar, tirar um tempo não é comigo. Apenas registro o tempo, não o manipulo. Mesmo

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das pessoas que o analisam. Recorte social que é, o Jornalismo também foi recortado e segmentado em gêneros (opinativo, interpretativo, informativo, diversional), em intermináveis editorias (esporte, moda, comportamento, cidades, economia, política – aahhh, política! –, veículos, classificados...). Experimentação social que é, o Jornalismo permite criação e manifestação livres. Mas quando o Jornalismo terá “voz”? Aliás, ele terá voz? Agora? Agora! Chegou a hora! O Jornalismo deita no divã tupiniquim relata suas experiências, frustrações, e tem

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MÍDIA que o fizesse, não o teria para mim, pois quem registraria tal feito? Assim, sigo o curso das coisas. O tempo é meu aliado! O tempo me liberta. Por ele, sou exercido. Falam, opinam, formulam por meio de mim. O tempo é meu inimigo! O tempo me aprisiona. Por ele, sou exercido. Falam, opinam, formulam por meio de mim. Colocado num divã, a indagação mais lógica, incrivelmente, se transforma na mais devastadora: “O que sou eu?.” Bem sei que sou “atividade profissional que visa coletar, investigar, analisar e transmitir periodicamente ao grande público, ou a segmentos dele, informações da atualidade, utilizando veículos de comunicação de massa para difundi-las”. Por esse viés, cumpri – ou cumpriram por mim – esse papel. Relatei fatos históricos sobre os mais diferentes povos e nações desde a criação das primeiras ferramentas: palavra, papel e grafite. Bastava um fato consumar-se que lá estava, tipificado por minha função – ou não!

Evangelho Estou na Bíblia com o evangelista Marcos, considerado o evangelho mais jornalístico, graças à riqueza de detalhes, à forma de construção e à estrutura do texto. E olha que, naquele tempo, nem se sonhava com smartphones, gravadores, câmeras... Moisés usou duas tábuas de pedra e Deus mandou suas palavras em língua de fogo. Imagina o calorão que senti, tanto físico quanto espiritual! Em tempos de escassez tecnológica, as comprovações eram feitas pelos relatos de pessoas em diferentes gerações. Grandes pensadores, como Sócrates, transmitiam seu legado aos alunos, que relatavam aos próximos as experiências vividas. A veracidade era comprovada pelos depoimentos, o que perdura até hoje, já com outras metodologias de comprovação. Eu me virava pra dar conta de tudo. Ao longo de minha jornada, ganhei afagos de pessoas que ajudaram a me tornar grande. O igualmente gigante

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MÍDIA

Gabriel Garcia Márquez disse que sou “uma paixão insaciável, que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade. Quem não sofreu essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida não pode imaginá-la. Quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são”. Gente, dá pra imaginar? O jornalista tem (?) esse perfil: ávido, compenetrado, inconformado. A paixão não lhe impõe limites. É subir morro debaixo de tiro e descer se tiver sorte, correr atrás da polícia que “tá correndo atrás de bandido, entrar onde todo mundo quer sair, como prédio caindo ou

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pegando fogo, ônibus sucateados, carros que vão para estradas chamadas carinhosamente de ‘rodovia da morte’”, tudo isso pelo inenarrável prazer de ver o trabalho estampado, escancarado, em jornais, revistas, sites. E disse mais: “Ninguém que não tenha nascido para isso, e esteja disposto a viver só para isso, poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte”. Lindo, né? Viver a mim é mesmo um exercício de amor. Mas, gente, não por minha culpa. Você acha que gostei de ver todos esses jornalistas mortos mundo afora? Sei que sou uma das profissões mais estressantes e perigosas, mas toda paixão implica riscos. Apaixonados se jogam!

Sou muitos Claro que existem outras definições para mim. Geoge Orwell, nosso amigo inglês, disse que “Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade”. Ele tem razão! Matérias doces e floridas todo mundo gosta de ver a seu respeito. Mas o que é verdade em Jornalismo senão o que se quer esconder? Ora, se sou definido por buscar, ou, em alguns casos, como no do Watergate – em que os jornalistas Bob Woodward e Carl


MÍDIA Bernstein, do Washington Post, provaram envolvimento do presidente americano Richard Nixon em casos de corrupção, culminando com a renúncia de Nixon –, por garimpar algo anos a fio, até que a verdade apareça, não será qualquer chá das cinco que lhe renderá um Prêmio Esso. Sou bipolar, sem dúvida! Trata da extrema tristeza e da vergonha, mas posso levar mensagens de esperança e alegria. Apesar de ser essa minha sina, é impossível não pensar em uma maneira de contar apenas a parte boa disso tudo. Porém, se assim o fizesse, seria uma simples história de ficção ou de literatura – minha irmã mais próxima. Desde a descoberta do fogo, tem sido assim: fiz saber sobre a invenção da roda, da penicilina, da aspirina; vi e fiz ver, com alegria, o nascimento do avião, e, descontente, sua aplicação como arma de guerra. Também vi, com alegria, as quedas de Hitler ’s, Hussein’s, Laden’s e Bush’s, não sem antes ter conhecido o quão devastadores eles conseguiriam ser. Sem contar nos Costa e Silva’s, Castelos Branco’s, Médici’s e demais generais, que impuseram suas ideologias a base de morte.

Honra Nada se compara ao que retratei décadas depois. Entre 50 e 70 milhões de mortes, ataques contra civis, 100 milhões de militares mobilizados. Entre os anos de 1939 e 1945, o homem mostrou sua pior face ao produzir o conflito mais letal da história. Como se não bastasse, fui obrigado a dar voz ao uso de armas nucleares e ao holocausto. Assistiram por mim às vitórias dos Panteras Negras contra a Alemanha nazista e seus aliados. Assisti ao poder transformador do esporte e sei e fiz saber que a determinação é capaz de transformar vidas, resgatar honra, dignidade e respeito. As Olimpíadas e seus heróis, o ardor de se ganhar uma medalha e as lágrimas incapazes de consolar uma derrota. A vitória do homem pelo próprio homem, diferente

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CIÊNCIA MÍDIA do que ocorreu, e ainda ocorre, nesta corrida armamentista desenfreada e descabida. Mas nem sempre pude ser tão falastrão assim. As ditaduras militares ao longo da história tolhiam o direto que é a essência da minha existência, assim como é o oxigênio de vocês: a liberdade de expressão. Vi muitos filhos meus serem mortos por darem conhecimento ao que a bolha ditatorial escondia. Derramaram e derramam meu sangue na Coreia do Norte, derramaram e derramam meu sangue no Brasil, derramaram e derramam meu sangue na França, derramaram e derramam meu sangue no Oriente Médio. Derramaram e derramam, derramaram e derramam, derramaram, derramam!.

E o futuro? Sou uma árvore com cerca de 80 mil frutos – muitos deles, mas longe de ser a maioria – podres! O problema, meu brother, é que esses caras têm manchado a minha reputação. Não. Nada de falar bonitinho, agora. O papo é reto. Avisei que era bipolar. Então, passada a hora do mel, chegou a vez do fel! O trem “tá” perdendo o rumo. Sempre vi os avanços tecnológicos como parceiros. O papel veio para substituir a memória e documentar minhas palavras para a posteridade. Lindo! Com o rádio, um número maior de pessoas conseguia me ouvir e replicar o que diziam por mim. A voz que me davam era lei! Reconheci a importância do papel, mas não desconsiderei a necessidade dos mhz´s. Embora dissessem que o rádio acabaria com o jornal, nunca os vi como concorrentes. São tão complementares um ao outro quanto a TV aos dois. Disseram, aliás, que a TV acabaria com o rádio, mas isso também não se confirmou. O que vem acabando com o rádio (e está em processo de expansão na TV) é o loteamento de frequências e espaços. Agora, tudo tem virado

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gospel. Nada contra, pelo contrário. A culpa não é dos “irmão”, mas dos latifundiários da comunicação que tão f... facilitando demais essa situação. Mais uma vez, surge uma plataforma para pôr seus antecessores de joelhos. Só que não! A internet transformou a maneira de me pensar e me fazer. Não se pensa mais em um Jornalismo para rádio, outro para TV, outro para jornal e outro para internet. Viu o trabalhão que dá só de ler? Entrei na “era da convergência”! Agora, parte dos meus 80 mil frutos produzem textos-base passiveis de uso em quaisquer plataformas. Mas essa tal de internet “tá” me dando muita dor de cabeça! Ela é escrachada demais. Qualquer um inventa de publicar o que quiser nela sem nenhuma responsabilidade... Fala que isso sou eu e fica por isso mesmo? Não pode! Estão me matando. Entendo que a culpa não seja só dela. Na verdade, nem sei de fato se é ela a culpada (olha a bipolaridade aí de novo), mas ela deixa... Deixa, não. Aceita. Assim como eu, é passiva.

Doa a quem doer Das dez profissões mais estressantes, quatro se relacionam a mim: radialista, apresentador, repórter fotográfico e repórter. Exagero! É ótimo enfrentar tiro, fogo, terremoto, foguetes, blackbocks, cachorros da polícia... Desse jeito, eu morro mesmo! Eu precisava desabafar! Se pudesse agir por mim, as coisas a meu respeito não esta-

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vam assim. Gosto de matérias com começo, meio e fim. De ouvir diversas fontes e de escolher a que apresentar maior possibilidade de enriquecimento ao texto. De ouvir especialistas com opiniões divergentes, de usar a tecnologia para contextualizar, de informar ao máximo, para que o leitor forme sua opinião e seu caráter. Detesto a ideia de que jornalista é formador de opinião. Temos até muitos jornalistas competentes para isso, mas cada um deve formar as próprias opiniões. E quem disse que a opinião do jornalista é a correta? Tratam-me com muita superficialidade. Qualquer texto é compreendido como jornalístico, e, então, atribuem-me as mais descabidas invencionices. Os políticos fa-

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zem isso da pior maneira: induzem o povo a achar, por exemplo, que só existem dois partidos, que se afundam num mar de podridão. Quem sai perdendo é o Brasil. Isso me enfraquece e tira o direito do cidadão de ter informação de qualidade. Devo ressaltar que isso não é um problema só de produção. Sinto que o pessoal anda meio relapso em relação a mim. Em sua maioria, não querem um Jornalismo forte, que escancare verdades, doa a quem doer. Querem um Jornalismo de interesse, que só lhes favoreça. Por isso, as redações que ainda resistem ganham ares de assessoria de imprensa. Todo mundo sabe escolher o jornal que fala mal de fulano, assistir ao programa que enaltece cicrano, ouvir a explanação que denigre e distorce informação para beneficio dos seus. Isso me entristece! Mas eu sei que é só uma fase. Quero acreditar que seja. Já vi

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o mundo se transformar, e me transformei com ele. Vi, vivi e registrei eras, períodos, governos... Sei que tenho tudo isso a viver de novo. Quero estar certo em relação aos que estão chegando: que eles venham com o objetivo de redefinir e reafirmar meu papel na sociedade. Desejo que eles me revolucionem mais uma vez, mas certos de que o jornalista apenas narra os fatos, não os distorce, não os inventa, não os diminui, nem os aumenta. Que a mentira fique cada vez mais longe de mim. Ela é meu câncer! Eu só precisava desabafar, externar situações que me incomodam. Sou a voz de muitos, mas ouvir minha voz não é interesse de todos. Sou complexo, fascinante e detestável, amado, amável, odiado, odioso. Não crio a sociedade. Sou criado por ela. A culpa não é minha! Sou apenas o espelho. Ao olhar para ele, o que você vê?


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