Porto Alegre, Novembro de 2012 | 1a edição
M236 Mal-estar na cultura: visões caleidoscópicas da vida contemporânea / organizado por Enéias Tavares; Kathrin Rosenfield; Sinara Robin – Porto Alegre : Paiol / Departamento de Difusão Cultura, 2012. 268p. ISBN 978-85-86880-22-3
1. Filosofia – Arte – Modernidade. I. Tavares, Enéias. II. Rosenfield, Kathrin. III. Robin, Sinara. IV. Título.
CDU 1:703.6
Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto – CRB 10/1023
Departamento de Difusão Cultural
Editora Paiol
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VISÕES CALEIDOSCÓPICAS DA VIDA CONTEMPORÂNEA
Reitor Carlos Alexandre Netto Vice-Reitor e Pró-Reitor de Coordenação Acadêmica Rui Vicente Oppermann Pró-Reitora de Extensão Sandra de Fátima Batista de Deus Vice Pró-Reitora de Extensão Jussara Porto Diretora do Departamento de Difusão Cultural Claudia Boettcher Equipe do Departamento de Difusão Cultural Carla Bello Edgar Heldwein Juliana Mota Lígia Petrucci Sinara Robin Tânia Cardoso Bolsistas Cristina Barbieri Laura Spritzer Galli Renan Sander Renato Bonatto Jr.
Curadoria do Evento Kathrin Rosenfield Arte do Logotipo do Evento Manoela Leão Organização do Livro Enéias Farias Tavarse Kathrin H. Rosenfield Sinara Robin Revisão dos Textos Enéias Farias Tavares Juliana de Abreu Werner Tradução dos Textos Carlos Roberto Ludwig Enéias Farias Tavares Juliana de Abreu Werner Vanderlene Rolim Dutra Projeto Editorial e Edição de Imagens Natalia Lassance Impressão Gráfica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Conselho Editorial da Paiol Affonso Romano Sant’Anna, Brasil Beatriz Sarlo, Argentina Henri-Pierre Jeudy, França Kathrin Holzermayr Rosenfield, Brasil Maria de Lourdes Monaco Janotti, Brasil Roger Chartier, França Zilá Bernd, Brasil Zilda Gricoli Iokoi, Brasil
Sobre a experiência na curadoria do evento Mal-estar na Cultura Kathrin H. Rosenfield
Organizar eventos multidisciplinares é sempre um risco. Quando abrimos mão da especialização e das pesquisas aprofundadas num determinado campo para trocar ideias, nunca temos certeza de encontrar os parceiros certos e os interlocutores que se dispõem a serem interrogados e a abrirem-se às questões vindas de outros domínios. Não foi diferente com o evento Mal-estar na Cultura, que se desenrolou ao longo do ano de 2010. Como passar da ideia do “mal-estar”, diagnosticada em 1930 pelo pai da psicanálise, para as definições atuais de crises típicas do terceiro milênio? O tema proposto foi tão estimulante quanto delicado para a abordagem acadêmica: abrangente demais para caber nos programas de cursos e nas linhas de pesquisa específicas dos PPGs, essa reflexão sobre a identidade da cultura contemporânea exigia a cooperação ativa de inúmeros departamentos e de profissionais de áreas tão diversas quanto as artes plásticas e as terapias corporais, a filosofia e a dança, a antropologia e as novas mídias. A intenção era a de partir da reflexão de Freud em torno dos efeitos nefastos da repressão sexual, para repensar onde se situam hoje os focos de mal-estar. Para onde migraram os sentimentos de crise e desconforto? Uma vez desmistificadas e (teoricamente) resolvidas, aonde foram as fontes de insatisfação dos tempos de Freud? Num país como o Brasil, logo vem à mente o mal-estar provocado pelos desníveis crassos de renda e educação, assim como os embaraços decorrentes das enormes diferenças étnicas, econômicas e culturais que separam as regiões do norte ao sul, e dividem os centros urbanizados dos vastos espaços interioranos. Esses problemas, legados pela nossa história (pós) colonial, motivaram a associar a reflexão sobre Freud, pensador europeu, com a investigação da obra de J. M. Coetzee, sul-africano de origem holandesa e inglesa que reflete sobre a emancipação de seu país, dividido pelos pré-conceitos herdados de um passado opressivo. Coetzee afirmou em entrevista ao Estado de São Paulo que desejaria um futuro 8
brasileiro para o seu país, o que indica que Coetzee considera os compromissos da miscigenação brasileira como etapas positivas para a solução dos preconceitos e ódios raciais. E como pensamos, hoje, no Brasil, essas questões? Concordaríamos com Coetzee, ou não? Significativamente, o último livro de Coetzee, Summertime, introduz uma bailarina brasileira, uma personagem que “pensa através do corpo”, cuja forma de expressão é totalmente diferente e avessa àquela do professor de Inglês (personagem que tem alguns traços do autor), que admira a bailarina bem mais madura que ele, embora seja rejeitado por ela.
Apesar do desenvolvimento da psicanálise e da psicologia, das práticas alternativas e da vasta literatura de auto-ajuda, pouco se desenvolveram (pelo menos no âmbito universitário) as reflexões sobre corpo, as práticas e as terapias corporais. Com poucas exceções – entre as quais o magnífico livro de Richard Shusterman, Body-Consciousness –, reflexões teóricas-e-práticas sobre a reciprocidade de corpo, alma e mente não receberam a atenção merecida. Eis a razão pela qual escolhemos alguns autores âncora – Shusterman e Sloterdijk, Leroy-Gourhan e François Jullien – afim de explorar esse elo perdido da investigação acadêmica.
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O romance de Coetzee toca num problema ainda pouco discutido. Como conectar novamente (ou de outras maneiras) a oposição corpo e mente, sensibilidade e intelecto, que se manifesta nos desencontros desses dois personagens de Summertime, que encarnam posturas culturais tão heterogêneas quanto a expressão corporal-dinâmica e a reflexão discursiva? É bom lembrar que a revolução freudiana surgiu de dentro de práticas corporais – massagens, banhos, depois a hipnose – e somente num segundo momento transformou-se em talking cure, para tomar as formas intelectualizadas e filosóficas apenas nas últimas décadas, vinculando-se cada vez mais à linguística, à lógica, às topologias e fórmulas matemáticas e, finalmente, à gramatologia e à escrita.
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10 Freud viveu e escreveu numa cultura multi-étnica cheia de potenciais interessantes, rodeado de figuras como Groddek, Fliess ou Laban, Adler e Ferenczi, Otto Gross e Wilhelm Reich, seguidores cujas abordagens estavam bem mais voltadas para considerações envolvendo as relações complexas entre a expressão discursiva e as linguagens pouco exploradas do corpo. Na literatura, a obra de Robert Musil, O homem sem Qualidades, é um testemunho falante do despertar de novas consciências corporais e de novas formas de comunicação na sociedade de massas. Formas totalmente inéditas de relacionamento manifestam-se, por exemplo, nos entusiasmos pelo esporte, pela velocidade e pela violência puramente física (ciclismo, corrida de cavalos, boxe). Pouco se refletiu ainda a respeito da evidente falta de integração das aptidões altamente especializadas, tanto mentais, como físicas e emocionais, em formas sociais, artísticas e culturais relevantes. O que distingue o modo de pensar com conceitos da reflexão, nas imagens e metáforas? É possível “pensar” com o corpo? Que valor tem a expressão rítmica no gesto, na dança, diante da leitura e da escritura ou da reflexão abstrata? O
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Mal-estar na Cultura abriu espaços para abordar essas perguntas incomuns, trazendo à baila palestrantes e autores tão diversos quanto o filósofo Richard Shusterman e o coreógrafo Tadej Brdnik, debatendo os livros de Peter Sloterdjik e André Leroy Gourhan, tecendo diálogos em torno de mundos (quase) desconhecidos como a China das Transformações Silenciosas de François Jullien. Mais do que isto, envolveu não somente acadêmicos, mas grupos de diferentes ordens: diversos departamentos da UFRGS, ONGs de artistas independentes e associações em Porto Alegre, no Brasil e no exterior. Os temas levantados desdobraram-se em debates (eletrônicos e presenciais) com interlocutores dentro e fora do país. Diferente dos projetos de pesquisa convencionais,
não visou resultados palpáveis além do diálogo em alto nível entre acadêmicos e a sociedade, numa rica e gratificante troca de ideias.
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Esses dois temas, o do horror exibido e o da trivialidade literalmente reproduzida, certamente devem ser tratados separadamente. Há aqui matéria para análises distintas, que recorrem a exemplos completamente diferentes, até porque o trivial seria finalmente um mal benigno se comparado com o horror propriamente dito. Entretanto, esses dois temas são propostos juntos, como dois casos fundamentais do atual mal-estar que a arte traz para a cultura.
Horror e trivialidade são suportáveis graças à capacidade da arte, em suas representações, de colocar em evidência aquilo que é tido como fictício ou do que é, em todo caso, ausente na atualidade. A arte contemporânea, pelo contrário, tende a banir o princípio da representação por realçar a realidade material do que mostra. A fotografia jornalística, quando apresenta cenas de massacres, fugas em massa ou miséria absoluta, pretende fazer crer que tais cenas são reais e que ocorrem no momento presente. Ora, em muitos casos, revelam também o acesso a imagens aterrorizantes que ascendem ao status de obras de arte que serão compradas e exibidas nos melhores museus. Está a arte no caminho da autodestruição, quando ela apresenta dessa forma o insuportável? E, num outro registro, estaria ela inexoravelmente fadada a desaparecer quando suas obras não se distinguem dos objetos mais triviais da vida comum?
A História da Arte apresenta muitos exemplos da possível aliança entre a beleza e o que lhe é mais antitético: não só a feiúra, como também o horror e a trivialidade. O teatro grego antigo pôs em cena situações horríveis. A pintura cristã mostra incansavelmente os mais terríveis suplícios. A escultura – seja ela africana, mexicana antiga ou a do Pacífico – preza pelas figuras assustadoras. Quanto à trivialidade, isto é, aquilo que é aparentemente banal e até vulgar, é ela que tempera o teatro de Shakespeare, a pintura da Era de Ouro espanhola e toda a história da literatura romanesca.
Mal-Estar na Cultura: Horror e Trivialidade na Arte Contemporânea Jean Galard
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Publicado originalmente em Acheronta – Revista
de Psicoanalisis y Cultura no. 16 ISSN 0329-9147 Dezembro de 2002, Psicomundo: Buenos Aires. Acheronta, Buenos Aires, v. 16, 2002.
A Literatura de Horror e o Doppelgängerscheu (Temor Ao Duplo) Pedro Heliodoro de Moraes Branco Tavares “(...)Vio su sombra tendida y quieta en el blanco diván de seda. Y el joven rígido, geométrico, com un hacha rompió el espejo. Al romperlo, un gran chorro de sombra inundó la quimérica alcoba” Federico García Lorca – (Suicídio)
Estabelecer paralelos entre a Arte e a Psicanálise nos faz trilhar caminhos tortuosos. Fato é que a psicanálise se coloca como uma forma de saber/fazer singular, “não se situando (epistemologicamente) em continuidade com saber algum, apesar de arqueologicamente estar ligada a todo um conjunto de saberes sobre o homem” (Garcia-Roza, 1998), o que não nos livra das tentações de aproximá-la das demais formas, buscando, sobretudo como Lacan, aprimorar o entendimento e a prática desta. A Psicanálise se estrutura como um campo de saber que não é da ordem da Religião, mas segue seus próprios “dogmas”; não é da ordem da Filosofia, mas se propõe à uma crítica de seus próprios dogmas, sendo dogmático-crítica como definiria Freud (Freud, 1919). Não é da ordem da Ciência, apesar de um compromisso com uma verdade, a verdade do sujeito. Também não é a psicanálise uma categoria artística apesar de ser “um fazer criador que engendra realidades, ou sentimentos de realidade” e é à noção de “engendrar“ que virei a me remeter adiante (Kon, 1996). É a criação de realidade fato notório, sobretudo na beletrística. Nesse espaço entre Ciência e Arte, Lacan propõe, em se tratando da temática, a preocupação com um “... terceiro que não está ainda classificado, que se apoia na Ciência por um lado e se inspira na Arte por outro” (Lacan, 1974). Pode-se dizer, portanto, que as relações frutíferas que podem ser estabelecidas entre a Psicanálise e outros campos do saber seriam da ordem da polifonia (clave intertextual), onde nos interessam as “consonâncias” existentes entre estes em 16
prol da teoria e clínica psicanalítica. No tocante à Arte e mais exatamente à literatura de ficção, essas consonâncias nos remetem a um aficcionado por literatura que citava longos extratos de Goethe ao longo de sua obra. Era ele seu herói particular, e a ele, Freud, foi conferido um prêmio com o nome do poeta. Mérito conferido ao talento literário manifesto em sua ensaística. Freud atribui ao “Ensaio sobre a Natureza” que hoje sabemos não ser de Goethe, sua opção pelos estudos médicos (Freud, 1924-25).
Mas de que Duplo pode ele estar falando? Bom, o de que falo é o Duplo trazido em “Das Unheimliche” artigo para qual esse trabalho converge. “O duplo originalmente era uma garantia contra a queda/ocaso (Untergang) do Eu, um enérgico desmentimento do poder da morte” (Freud, 1919a) Isso, ressalta Freud, é o que se dá originalmente mas, superado o narcisismo primário, este outro volta-se contra o sujeito de forma assustadora. Chegamos aqui a um ponto onde não avançaríamos sem mencionar o advento do eu (je) em vista do estágio do espelho. Ora é no espelho justamente que temos a entificação do duplo, não seria ao acaso que Freud o cita em sua experiência na cabine do trem (Freud, 1919a). O espelho é o fornecedor da imago fundamental do eu. Lacan define este estágio como um “drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, os fantasmas que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma que chamaremos de ortopédica” (Lacan, 1966).
Refiro-me respectivamente à Interpretação dos Sonhos, obra mestra de Freud e à Novela do Sonho de Arthur Schnitzler. Esta última, um de seus principais romances, foi recentemente filmada por Stanley Kubrik sob o título de Eyes Wide
Shut (De Olhos Fechados).
Bem
Tavares
Em se tratando de artistas da pena, além de Goethe, torna-se curioso e digno de investigação o temor ao duplo (Doppelgängerscheu) expresso por Freud em carta a Arthur Schnitzler, escritor e dramaturgo, seu contemporâneo (Kon, 1996). Por que duplo? Bom, não eram poucas as semelhanças entre o autor da Traumdeutung e o da Traumnovelle; com seis anos de diferença, Schnitzler era judeu, vienense, médico, e controvertido escritor (Kon, 1996). Na carta, Freud afirma seu espanto ao perceber na prosa de Schnitzler, que este trata de modo intuitivo aquilo que ele mesmo percebe: “...sob a superfície poética, as mesmas suposições antecipadas, os interesses e conclusões que reconheço como meus próprios.” Ele continua dizendo tocar-lhe com uma “familiaridade estranha” (unheimlichen Vertrautheit) “sua profunda apreensão das verdades do inconsciente, da natureza pulsional do homem, a ruptura das certezas convencionais-culturais, o apego de seus pensamentos sobre a polaridade do viver e morrer...” (Kon, 1996).
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Na ânsia de estruturar sua personagem há algo que resta do sujeito, algo que retorna engendrado como um estranho, porém é justamente esse “estranho”, que determina seu ser e fazer. Vê-se que o duplo, cuja primeira aparição se faz na ideia de alma (Freud, 1919a) é algo do sujeito que se volta contra ele como horrendo que vem nos assombrar. Poderíamos dizer que a alma, o duplo tão heimlich (familiar, doméstico, natal, pátrio), torna-se o fantasma, a assombração, algo umheimlich (inquietante, sinistro, lúgubre, medonho, numinoso) (Irmen, 1968). Cabe aí ressaltar que o processo identificatório passa, primariamente, pelo Eu ideal (fruto do narcisismo) e, secundariamente, pelo Ideal do Eu (ligado às figuras parentais, no que aqui nos toca, principalmente ao pai) (Roudinesco & Plon, 1998). O duplo não pode estar isento destas duas instâncias. Em se tratando das personagens de literatura, vemos isto no tão citado Hamlet, no fantasma de seu pai. Ali estão magistralmente fundidas, a imago paterna e a própria imagem do príncipe dinamarquês nesta assombração que retorna após a morte (Shakespeare, 1937). É certo que o fantasma aí não assusta, mas atormenta. Num artigo que trata da temática das personagens psicopáticas Freud traz que “...os heróis são rebeldes que se voltaram contra um Deus” (Freud, 1942). Deus que, em Freud desde Totem e Tabu é o Pai que matamos (Freud, 1913). Um engendramento de uma personagem, esse Deus, por que não dizer? Confortante isso? Talvez num primeiro momento, mas não esqueçamos que “Deus e o Demônio eram originalmente idênticos, uma única Gestalt – uma figura posteriormente decomposta em duas com características opostas” (Freud, 1923). O demônio, pai das figuras de horror, é o anjo caído (que cayó bajo la repression), pois o unheimlich do duplo é o horror, o estranhamento ao familiar que foi recalcado (Harari, 1998). Na palavra “Unbewußt”, Lacan vê o prefixo de negação “un” como a entificação do reprimido, é o que marca a cisão (Lacan, 1974a). Sabemos que na neurose, criam-se, engendram-se fantasmas, já o escritor pela sublimação engendra-os sobre a folha, no caráter e nas atitudes de suas personagens. “O artista afastara-se, assim como o neurótico, de uma realidade insatisfatória para esse mundo da fantasia/fantasma (Phantasie); mas, diferentemente do neurótico, encontrou o caminho de volta deste para mais uma vez
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alcançar um firme apoio na realidade. Suas criações, obras de arte, eram satisfações de fantasias de desejos inconscientes, da mesma forma que os sonhos, com os quais tem em comum o caráter de compromisso” (Freud, 1924-25). O escritor encontra, por assim dizer, um meio de savoir y faire diverso da análise, para lidar com seus fantasmas. “Como o neurótico, angustiado por seu sintoma recorre ao psicanalista, assim o escritor, querendo livrar-se dessa placa retida, começa suas campanhas de redações não impelido, mas atraído pelo desejo” (Willemart, 1993). Freud se utiliza da figura do Sandmann, o Homem da Areia de E. T. A. Hoffmann, o precursor da literatura fantástica ou de horror, para abordar o tema do unheimlich (Freud, 1919a). Mas autores britânicos da época criaram entes que fixaram-se no nosso imaginário de tal forma que não podemos negar sua importância para a compreensão de nosso psiquismo (Stevenson, Stoker, Shelley, 1978). A primeira personagem de horror em que vemos as marcar dessa Spaltung é a figura cindida de Dr. Jekyll & Mr. Hyde de R. L. Stevenson. Onde o respeitável e exemplar médico oculta em si o temível monstro, capaz das maiores atrocidades. Esse monstro recebe o nome de Hyde, não por acaso, homófono a hide ocultar em inglês, heimlich halten em alemão – (If he be Mr.Hyde, I shall be Mr. Seek. – Dr. Jekyll and Mr Hyde, Stevenson). É o testemunho da cisão que vemos também no misterioso Dracula, the Un-dead (não-morto) de Bram Stoker. Não só uma personagem, mas um ente folclórico, este que recalca a morte, é imortal pelo fato de não-viver, mortificando seu desejo. É o fantasma do obsessivo personificado perguntando “Quem sou? Estou vivo?” E tendo o desejo condicionado ao contrabando (Quinet, 1991), sorrateiramente sugando a vitalidade, o sangue, e anulando o desejo do Outro (Quinet, 1991). Este nobre conde, atraente, de alta estirpe, encarna na mesma figura o animal hematófago, asqueroso. É um sedutor-repugnante, um bruto-civilizado, fascinante-odiável, como a maioria destas figuras da ficção fantástica o são. Paradoxos estes, que não são incompreensíveis desde a Interpretação dos Sonhos onde Freud diz que no que se refere à categoria de contrários e contradições, essas tendem a ignorar o “não” combinando contrários numa unidade (Freud, 1900). Essa temática é retomada no artigo sobre a significação antitética das palavras primitivas, o que se manifesta, as avessas, no unheimlich (Freud, 1910).
É digno de nota, a partir daqui, o fato da Escola Francesa utilizar as palavras fantôme/ fantasme (fantasma) como traducão da Phantasie (fantasia) de Freud.
“Sendo ele o Sr. Hyde (esconder), serei pois, o Sr. Seek (procurar)”.
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20 No Frankenstein de Mary Shelley, no entanto, fez-se uso de duas personagens, o criador e o monstro, para a polarização. O determinado cientista é o desaventurado herói, o gênio que cria o monstro bizarro de “corpo esfacelado” (tal qual nossa identificação imaginaria primitiva) (Lacan, 1966). Por falar em “Monstro” seria interessante uma incursão pela etimologia da palavra. Do latim temos (Ferreira, 1873): Monstro: mostrar com o dedo, ensinar, declarar, manifestar, acusar, delatar, malsinar, denunciar Monstrum: o monstro, prodígio, a coisa extraordinária, ou contra a natureza Monstruosus: deformado Pois ao longo do romance, o que testemunhamos é o monstro demonstrando, acusando incansavelmente a falta, a imperfeição no cientista, tal qual faz uma histérica com seu amo sobre o qual passa a reinar (Quinet, 1991). O criador vê-se assujeitado à criação. O que horroriza é por fim o que “nos de-monstra a nós” ainda que sobre o disfarce da alteridade. L’enfer sont les autres (O inferno são os outros) disse o romancista do existencialismo, talvez poderíamos inferir que são os non-autres ou, les nôtres, os nossos, nossos próprios fantasmas.
21 Referências FREUD, Sigmund, Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet, Frankfurt am Main ALEMANHA; Fischer Verlag, 1999: - Band II / III - Die Traumdeutung (1900) - Band IX - Totem und Tabu (1913) - Band XII – Das Unheimliche (1919a) - Band XIII – Eine Teufelsneurose im siebzehnten Jahrhundert (1922-23) - Band XIV – Selbstdarstellung (1924-25) FREUD, Sigmund, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas; Rio de Janeiro, Imago, 1996 - Volume - VII – Personagens Psicopáticos no Palco (1942 {1905-06}) - Volume – XVII - Sobre o Ensino da Psicanálise nas Universidades (1919) LACAN, Jacques - Escritos, Rio de Janeiro; Jorge Zahar Ed., 1966 [1998] LACAN, Jacques - O Seminário – Livro 2 – O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise, Rio de Janeiro; Jorge Zahar Ed., 1985 LACAN, Jacques - O Seminário – Livro 21 – Les Non-Dupes Errent, (Inédito) 1974 LACAN, Jacques - O Seminário – Livro 24 – L’insu que Sait de l’une-Bevue s’aile à Mourre, (Inédito), 1974a GARCIA-ROZA, Luiz, Alfredo – Freud e o Inconsciente, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.22 KON, Noemi Moritz – Freud e seu Duplo: Reflexões sobre Psicanálise e Arte, São Paulo: Edusp, 1996 QUINET, Antonio – As 4+1 Condições da Análise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1991 ROUDINESCO, Elisabeth & PLON, Michel – Dicionário de Psicanálise, Verbete: “Ideal do Eu” Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., !998 WILLEMART, Universo da Criação Literária, São Paulo, Edusp, !993 em Insight, São Paulo, Lemos Ed. Ano X -Número 110 – Setembro de 2000 STEVENSON, Robert Louis; STOKER, Bram & SHELLEY, Mary – Three Classics of Horror – Frankenstein, Dracula & Dr Jekill and Mr Hyde, Londres INGLATERRRA, Penguin Books, 1978 SHAKESPEARE, William – Hamlet, Londres, INGLATERRA, Penguin Books, 1937 HARARI, Roberto – Polifonías del Arte en Psicoanálisis, Barcelona, ESPANHA: Ediciones del Serbal, 1998 IRMEN, Friedrich – Langenscheidts Taschenwörterbuch – Portugiesisch ALEMANHA, Langenscheidt KG, 1988 FERREIRA, Emmanuelis Josephi – Magnum Lexicon Novissimum Latinum et Lusitanum, Paris: FRANÇA Emmanuellis Josephi Ferreira, 1873
Desonra: A Experiência-Limite De J. M. Coetzee Rejane Pivetta de Oliveira
Desonra, tradução brasileira de Disgrace (1999), título original do romance de J. M. Coetzee, descreve a trajetória de desgraça e humilhação de suas personagens, submetidas a uma experiência-limite, nos termos em que Blanchot a define: a resposta que encontra o homem quando decidiu se por radicalmente em questão. Segundo ainda o autor, “essa decisão que compromete todo ser exprime a impossibilidade de jamais deter-se em qualquer consolação ou em qualquer verdade que seja, nem nos interesses ou nos resultados da ação, nem nas certezas do saber e da crença” (2007, p. 185). O comportamento de risco assumido pelas personagens as coloca em estado de vertiginosa penetração em si mesmas, escapando às coerções sociais e morais instituídas pela civilização burguesa. Além disso, afirma a impossibilidade de bem-estar, colocando sob suspeita as promessas emancipatórias da razão, sustentadas em modelos prévios de compreensão da realidade, alheios às contingências físicas e emocionais próprias do humano. A densa reflexão do romance quanto à instrumentalização da racionalidade e da própria experiência é atravessada pelo trabalho de criação de uma ópera, que tem como tema a vida de Byron, poeta romântico conhecido por seus escândalos amorosos e por levar ao limite a vinculação da escrita com a autêntica emoção pessoal. O drama sobre Byron estabelece contraponto com as intensidades do desejo do próprio protagonista, Lurie, autor da peça, expulso da universidade mediante a acusação de assédio sexual a uma aluna. De outra parte, correlaciona-se com a violência do estupro da filha Lucy, praticado por saqueadores, no contexto africano pós-apartheid, marcado por suas graves feridas coloniais. Essa arquitetura autorreflexa e divergente do romance, em que cenas se replicam e ao mesmo tempo se repelem, à medida que podem ser aproximadas, mas não unidas pela mesma explicação, fazem da própria operação hermenêutica um risco. No entanto, exatamente por isso, o romance nos convoca de maneira inelutável à reflexão sobre a autoconsciência do pensamento – não à maneira cartesiana, afirmando a certeza do sujeito cognoscente; nem em moldes kantianos, limitando o conhecimento às possibilidades racionais. 22
Coetzee filosofa por meandros mais complexos, em que a razão perde o interesse por qualquer resultado que seja. Não há fundamentos apriorísticos para a verdade, pois esta não existe fora de uma relação empática com o outro – o que significa a recusa de qualquer dominação ou a redução do ser a uma mente ordenadora. A razão posta em tela por Coetzee denuncia a falsa unidade dos sistemas de pensamento, fazendo emergir a unidade viva e essencial do fenômeno, que resiste à abstração do conceito – conforme encontramos na epistemologia benjaminiana. Senão, de que outra forma poderíamos explicar a radical entrega de Lurie ao trabalho na clínica veterinária, abarrotada de cachorros abandonados, dando a eles uma morte menos cruel e cuidando para que seus corpos não fossem maltratados? De que outra forma poderíamos ainda compreender a humilhação e desonra extremas das personagens, senão como a condição de total anulação da autosuficiência do sujeito, que implica o abandono da identidade autocentrada, impondo um novo reconhecimento de si em face à alteridade? A desonra, mediante violação física, destituição de direitos, propriedade e liberdade anula as bases sobre as quais a civilização moderna moldou as ideias de indivíduo e humanidade. Lucy, humilhada até o mais íntimo de sua alma, assim reflete sobre sua condição:
Diante dos fatos em sua irremediável crueza, Lucy opta por construir uma nova imagem de si, colocando-se em um outro lugar da linguagem, não exatamente comunicativo, mas talvez tradutório, um “entrelugares” (Bhaba, 2003) – um lugar neutro de negociação entre diferenças. A obra de Coetzee nos situa em um outro horizonte do humano e da linguagem, que desafia “os limites da capacidade representacional do intelecto identificante”, como salienta Ricardo Timm de Souza, referindo-se à ética implicada na relação com os animais. Também na criação
Oliveira
É, eu concordo, é humilhante. Mas talvez seja um bom ponto para começar de novo. Talvez seja isso que eu tenha de aprender a aceitar. Começar do nada. Com nada. Não com nada, mas... Com nada. Sem cartas, sem armas, sem propriedade, sem direitos, sem dignidade. (Coetzee, 2000, p. 231)
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24 literária é possível viver esse deslocamento do ser em direção à alteridade, uma vez que nela, conforme a reivindicação romântica, opera uma “linguagem natural”, tão pouco refletida que “poderia exprimir a interioridade da consciência tão imediatamente quanto o rosto trai, através dos signos naturais, o curso da emoção”, conforme assinala Bento Prado Júnior no prefácio ao Ensaio sobre a origem das línguas, de Rousseau (2003, p. 25). A ideia de que “a sociedade humana criou a linguagem para podermos comunicar nossos pensamentos, sentimentos e intenções” (Coetzee, 2000, p. 10), conforme indicava a ementa da disciplina de Comunicações que David Lurie era obrigado a ministrar na universidade, contrapõe-se ao lugar que a linguagem ocupa na expressão poética, como fala que se origina no canto, “e as origens do canto, na necessidade de preencher com som o vazio grande demais da alma humana.” (Coetzee, 2000, p. 10). Segundo uma visão comunicativa da linguagem, o sujeito exerce um poder de objetivação do mundo; sendo, por outro lado, originária do canto, a linguagem retorna à sua fonte primitiva, anterior ao logos, perspectiva apontada por Rousseau: “as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas” (2003, p. 106). A escrita de Coetzee, límpida e incisiva, assume o poder vivificante da palavra primitiva, situando-nos no cerne da vigorosa materialidade das coisas. Por acentuar internamente conflitos que expõem dilemas éticos irredutíveis a explicações fáceis, o romance oferece-se como crítica à abstração do sentido, quando este, descolado da inquietação dos fenômenos, nos distancia do “sangue vigoroso da empiria” (Benjamin, 2004) e nos impede de ver e sentir na carne a “marca humana” – para citarmos o título do romance de Philip Roth, com quem Coetzee dialoga de perto na reflexão sobre a nossa condição contemporânea de mal-estar.
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horozonte: Editora da UFMG, 2003. BENJAMIN, Walter. Prólogo epistemológico-crítico. In: A origem do drama barroco alemão. Lisboa: Assírio&Alvim, 2004. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 2: a experiência limite. São Paulo: Escuta: 2007. COETZEE, J. M. Desonra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. ROTH, Philip. A marca humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. SOUZA, Ricardo Timm. Ética e animais – reflexões desde o imperativo da alteridade. Disponível em http://www.pensataanimal.net/artigos/131-ricardo-timm-de-souza.
Referências
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Um diálogo entre Kathrin H. Rosenfield, Robert Davreu e Wajdi Mouawad
No início do ano 2010 começou uma conversa sobre a tragédia antiga. Como traduzi-la e compreendê-la hoje, numa época de pouca afinidade com gestos trágicos? Como transpor a grandeza heróica para o palco do teatro? Via e-mail, Kathrin H. Rosenfield dialoga com o poeta e tradutor Robert Davreu (Paris) e o diretor de teatro Wajdi Mouawad (Ottawa).
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Kathrin H. Rosenfield
Por isso, a proposta de uma filosofia do corpo é ainda algo surpreendente para nós ocidentais. Não costumamos vincular educação filosófica e física, e quem preza o intelecto e a ciência acredita que pode tranquilamente dispensar a inteligência corporal. No entanto, existe também no ocidente um vigoroso movimento de emancipação do corpo como ser inteligente, além dos esforços
Onde está o corpo na cultura contemporânea? De um lado, ele é onipresente, de outro, ausente – ou terra ignota. Da propaganda ao esporte e da política à moda – em tudo reina a imagem de corpos hiper-erotizados. A tal ponto, que encontramos dificuldades de lidar com os nossos próprios corpos, de sentir suas demandas mais íntimas, ou de admiti-las. Poucos notam o quanto a simples postura, ou qualquer sensação física, mesmo as que não registramos conscientemente, influem sobre nossa disposição mental e nosso desempenho, sobre nossa postura ética e afetiva. Pouco praticamos esses elos mais sutis entre corpo e mente. Não temos uma filosofia, nem uma medicina tão intimamente voltadas para o corpo físico como os chineses. Na China pós-revolucionária havia um projeto de abolir a filosofia, considerada ultrapassada e nociva ao novo regime. No entanto, medicina e filosofia entretecem-se a tal ponto na cultura chinesa que nada restaria das artes médicas sem a trama filosófica e vice versa. Mas esses elos não são óbvios na cultura ocidental.
Filosofia de arte, corpo e mente
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Rosenfield
No Brasil, em princípio, estaríamos bem situados para essa abertura às capacidades de notar e discriminar o que não se processa na consciência e no discurso. Estamos num país multi-étnico que conservou muitas práticas corporais e espirituais, terapias e rituais totalmente erradicados em outros países. O rápido processo de modernização que se instalou nas últimas décadas, entretanto, começa a homogeneizar os costumes do planeta inteiro, nivelando e empobrecendo as práticas corporais inteligentes – ou como diria Musil: senti-mentais. Muitos consideram ultrapassados os esforços holísticos dos anos 1950 e 60. A psicanálise e a psicologia conheceram desdobramentos altamente intelectualizados e científicos. Seguindo as tendências e o esquecimento do corpo eles tendem a privilegiar o corpo falado, com notáveis exceções, evidentemente. A grande
O filósofo francês e especialista em nova mídia, Bernard Stiegler, dedica boa parte de sua obra à releitura do paleontólogo Leroy-Gourhan, que foi pioneiro na descoberta do elo indissociável da sensibilidade estética, da técnica e da linguagem. E o filósofo israelense, Richard Shustermann, faz sucesso no mundo inteiro com sua proposta de re-ligar práticas corporais inteligentes com a tradição filosófica (Body Consciousness, Cambridge University Press, 2006). Mesmo para o leitor iniciado, é uma surpresa descobrir essa veia sempre apagada ou esquecida da nossa tradição filosófica.
de emancipação (intelectual e social) pelo corpo. O filósofo Peter Sloterdijk acaba de dedicar um imenso livro ao tema do “planeta dos praticantes”, investigando a evolução e transformação histórica dos exercícios físicos-e-espirituais que acompanharam as grandes mutações da humanidade e a transformação das antigas práticas religiosas em técnicas e tecnologias desacralizadas (Du musst dein Leben ändern, Suhrkamp, 2009). J. M. Coetzee, no seu último livro Verão (Summertime), dedica um capítulo às relações de (in)compreensão que separam o escritor-pensador do modo de mal-estar/pensar, encarnado pela bailarina brasileira.
92 Seria ingênuo ou fantasioso, portanto, acreditar nos benefícios das diversas técnicas e terapias corporais que ganharam fôlego e difusão nas últimas décadas? Os métodos de Feldenkrais, Laban e Alexander, a educação somática e das cadeias musculares, o Tai Chi e muitas outras práticas mostraram que o corpo tem outra maneira de pensar, discriminar e compreender. E que essa outra maneira de ser/sentir/pensar é um bom complemento e uma boa parceria para o raciocínio intelectual e o cálculo abstrato. Um dos alvos desta reflexão é proporcionar perspectivas – filosóficas, artísticas e práticas – que permitam redimensionar as ideias e os usos que fazemos dos nossos corpos.
Estamos hoje no meio de duas correntes poderosas – uma, que entrega o corpo aos impressionantes dispositivos científicos e tecnológicos (da medicina à nova mídia), a outra, que recupera velhas-novas práticas, adaptando-as ao conhecimento científico da antropologia e das neurociências modernas. Não é fácil orientar-se nesse labirinto de conhecimentos complexos que tanto podem ser usados para práticas grupais pseudo-religiosas, terapias ocupacionais e de autoajuda, como para notáveis pesquisas que revolucionaram os tratamentos para problemas incuráveis, como o autismo e a esquizofrenia. Existe um grande bloqueio para o desenvolvimento de práticas senti-mentais que cuidam do delicado entrelaçamento da inteligência física e da discursiva: é difícil admitir e praticar as três formas de estar no mundo – a racional, a estética e a ética. Desde o romantismo e o modernismo, os grandes poetas, pensadores, artistas e filósofos debruçaram-se sobre esse problema, mas os avanços incrivelmente rápidos da tecnologia e da nova mídia tornam quase impossível a elaboração afetiva e mental sempre lenta destas mutações imaginárias e reais (demasiadamente reais, aliás).
psiquiatra-psicanalista Gisela Pankow, por exemplo, ajudava seus pacientes com trabalhos manuais e corporais a reintegrar os fragmentos perdidos do inconsciente. Era uma grande dama, admirada em Paris e no mundo – porém uma dama exótica no panorama da psicanálise muito teórica e intelectualizada dos anos 1970 e 80.
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Publicado originalmente na Self & Society, a revista da Associação de Psicologia Humanista (Inglaterra), Abril / Maio de 2002. Linda Hartley © 2002.
Uma pesquisa sobre a experiência direta: Movimento Autêntico e os cinco skandhas Linda Hartley Meu questionamento é sobre o que significa experimentar a vida diretamente – não filtrada pela névoa de expectativas, lembranças, projeções, fantasias, medos e crenças a respeito de como as coisas são ou deveriam ser –, e sim direta e simplesmente a respeito de como a vida se apresenta para mim neste exato momento, depois de anos de engajamento com a meditação budista e o Tai Chi Chuan, com o Movimento Autêntico e o Body-Mind Centering®. Os dois primeiros, caminhos antigos, trajetos bem traçados, convidam minha mente ao descanso no momento presente, dentro do meu corpo, no lugar atual. Os posteriores, disciplinas inovadoras, desenvolvidas nos campos contemporâneos da exploração corpo-mente, oferecem métodos para explorar o diálogo entre forma e sentido, a interface entre matéria e consciência, em um espírito de concordância e de constante pesquisa. Na prática dessas disciplinas, pergunto-me “o que significaria estar presente, totalmente presente em cada momento?”, “O que seria essa experiência direta?”, “O que me afastaria de tal experiência?”, e “O que me encorajaria ou me atrairia a ela?” Para mim, o sentir corporal é o caminho mais direto para vivenciar o momento, tal como ele é, de forma elementar, sem elaboração. Quando me voltei aos meus sentidos e prestei atenção às impressões que adentravam à minha consciência através da passagem dos meus órgãos sensitivos, tornei-me presente, aqui, agora. Nos anos 60 e 70, o mantra “esteja aqui agora” foi a máxima do período. Mesmo tendo levado muitas vezes a uma indulgência hedonista, a uma relutância em aceitar a responsabilidade individual, a máxima foi, todavia, de imenso valor. É muitas vezes nos períodos difíceis, quando olhar para o passado evoca sentimentos de depressão e desespero pelas derrotas, fracassos e humilhações da vida, e quando olhar para o futuro resulta em ansiedade e medo, que podemos aprender mais diretamente quanto se prender ao presente pode resultar em enorme alívio, até mesmo em felicidade. Quanto prestei atenção ao mundo sensorial ao meu redor e para dentro de mim, me voltei para o corpo, para este lugar, para o momento
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presente. Ao tornar-me presente, e a partir dessa experiência de sentir-se presente, sentimentos de ansiedade e desespero afrouxam seu domínio. Isso não é o mesmo que fazer o que eu quiser porque o passado e o futuro não importam. Antes, significa estar aberto e aceitar a plenitude do momento, tanto sua dor como também sua alegria, significa aceitar a vida como ela é. Ainda fico maravilhada quando sou agraciada com essa experiência, por seu poder de curar, de abrir e de conectar, de trazer claridade e paz. Desenvolvendo o distanciamento da experiência A psicologia nos presenteia com um mapa de como, enquanto infantes e jovens, começamos a nos distanciar da proximidade do momento. Experiências corporais precoces, eventos sensoriais que vivenciamos. Através do corpo nós tocamos e somos tocados em toda sorte de caminhos; nos movemos e somos movidos. A vida é experimentada através do movimento e sensações, e por meio disso começamos a conhecer a nós mesmos, a desenvolver um sentido do que somos (Juhan, 1987). Algumas dessas sensações são agradáveis, outras não. Aprendemos sobre prazer e dor através de sensações corporais, começando a diferenciar o que gostamos do que não gostamos. Nesse estágio, não há nomes, nem categorias, somente o gostar ou não, ou a indiferença.
Nesse momento, esboçamos alguma forma de experimentar a vida diretamente; começamos a solidificar o momento desses desejos e aversões, e então a classificar as experiências em boas ou ruins. A totalidade e simplicidade do momento tem se
Hartley
A vida emocional começa a distinguir o que está fora dessa corporeidade: alegria, frustração, medo, raiva, excitação e satisfação são experimentados. Gradualmente começamos a associar certas atividades com determinadas sensações específicas e sentimentos dos quais gostamos ou não, e começamos a aprender caminhos para provocar aquilo que queremos, e evitar o que não queremos.
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tornado fraturada. Esse processo leva a um considerável salto quanto ao desenvolvimento das faculdades mentais e da linguagem. A linguagem é um processo maravilhoso que nos habilita a comunicar pensamentos complexos e sentimentos que não poderíamos expressar de forma puramente corpórea. Mas também pode nos distanciar para além da totalidade da experiência; quando categorizamos, nomeamos e damos linguagem à experiência devemos selecionar, discriminar, descartar alguns aspectos da experiência em favor de outros. O particular e repudiado eu (Stern, 1985) nasceu, e o presente momento é adicionalmente rompido no que pode ser conscienciosamente aceito e expresso, e no que não pode. É lógico, esse processo é necessário para o desenvolvimento saudável do ego, necessariamente se vivemos em sociedade, contribuindo e nos comunicando com nossos companheiros humanos. Esse é também o desenvolvimento natural, assim como as células cerebrais forjam novas conexões sinápticas, nos capacitando a compreender e controlar nosso mundo. Mas é importante reconhecer que temos perdas assim como ganhos. O que perdemos é a simples e direta experiência de vida, momento a momento, sem expectativas, categorias, julgamentos, exclusões – vida experimentada plenamente, no corpo, através das sensações, no momento. Enquanto crescemos, esse processo continuará a ampliar-se de maior ou menor forma. Podemos ser educados e condicionados a rejeitar todas as áreas de experiência e nossa vasta e rica vida interior pode não encontrar caminhos para acessar nossa mente e consciência. A inadmissão, aspectos não vividos da nossa experiência podem viver no corpo, escondidos da consciência – sensações e sentimentos vivenciados apenas como sintomas corporais importunos ou imagens fantasiadas, emergindo do corpo inconsciente.
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Os cinco Skandhas A psicologia budista também oferece um mapa do desenvolvimento do ego que parece ter aproximações paralelas com o entendimento da psicologia ocidental, embora o contexto tenha níveis adicionais de significados que não estão presentes em nosso modelo. Do ponto de vista budista, todos os fenômenos parecem ter uma sólida e permanente existência, incluindo nosso senso do eu, relacionado com a função do ego. (Os termos “eu” e “ego” são frequentemente usados de forma intercambiável na doutrina budista). Ego, e nosso apego a ele, é a fonte de todo nosso sofrimento, por nos fixarmos a ele separamos a nós mesmos da imensidão da nossa verdadeira natureza e unidade da vida. Desse ponto de vista, o desenvolvimento do ego é um processo pelo qual nos entrelaçamos cada vez mais profundamente na dor, confusão e isolamento. As técnicas Abhidharma contemplam a descrição do desenvolvimento do ego em cinco estágios, ou skandhas. Essa é uma complexa e profunda descrição. Vou falar disso aqui em um nível muito simples, de acordo com as limitações do espaço e do meu próprio entendimento. O primeiro estágio é chamado forma (configuração) e esse é o primeiro passo na criação das fronteiras do ego, como um senso individual do eu, fora do espaço aberto do estado consciente. Inclui todos os fenômenos – formas, imagens, projeções – perceptíveis através dos sentidos e da mente. Nossa percepção da realidade é filtrada por certa falta de esclarecimento, confusão ou ignorância, que causa em nós um princípio de solidificação do estado consciente e de percepção dele, como uma forma isolada e sólida de existência. Esse processo torna as coisas mais tangíveis, e posteriormente mais manuseáveis; ele nos dá um certo senso de importância, segurança, permanência em um mundo que realmente não possui essas características. No segundo skandha, sensações/sentimentos, esse processo solidificador ocorrerá um pouco mais profundamente; começamos a identificar as experiências dos sentidos e da mente, as formas de projeções criadas no primeiro estágio, como aprazível e amigável, doloroso e hostil, ou neutro. Dessa forma aprofundamos nosso ponto de vista dualístico. Porque sensações e sentimentos são inconstantes, e a essência da nossa felicidade e sofrimento, nos quais eles se baseiam, também são inconstantes. Se não entendemos isso, desenvolveremos interesses e/ou aversões a coisas que não têm existência real ou contínua. 97
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A Cidade: Mal-Estares Tornados Concretos Charles B. Duff
À medida que a população mundial atinge um nível insustentável, nos tornamos mais e mais espécies urbanas. Encontramo-nos numa época de megacidades, sendo sua maioria mal planejada e descapitalizada. O que nossas cidades dizem sobre nós mesmos? O que precisamos e o que queremos fazer nas cidades? Como podemos fazer nossas cidades oferecer lugares para a vida e o trabalho humano? 1. Cidades como Função e Forma
Duff
Cidades são uma tecnologia para a aproximação das pessoas. Muito da história urbana é melhor abordado quando se pergunta qual é a função de grandes grupos em um tempo e lugar específicos. Sociedades antigas, por exemplo, usavam cidades para atividades coletivas de adoração e preparação para guerra. A Europa medieval e a do início da era moderna desenvolveram cidades de comércio e indústria. Nós estamos no terceiro período da história urbana, período de contornos ainda vagos. Em países ricos, o trabalho prático é digitalizado, e as cidades estão se tornando palcos para a encenação pública da vida privada, em especial para namoro e aposentadoria. Em alguns países pobres, cidades estão se tornando depósitos de pessoas supérfluas. Aonde quer que estejamos, quando olharmos para qualquer cidade, precisamos aprender a perguntar: “Pra que isso?” Apenas quando soubermos o que uma cidade está tentando fazer – ao invés de, o que milhares de pessoas estão tentando fazer através da cidade – é que poderemos julgar se uma cidade está fazendo seu trabalho de forma eficaz ou não. Só quando, também, pudermos contar o que uma cidade não está fazendo é que poderemos pensar o que poderia ser feito.
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2. Cidades como Arenas para a Vida Humana Cidades podem ser motores de crescimento econômico, criatividade artística e realização intelectual e emocional. Elas também podem ser inevitáveis e horrendas distopias. Cidades podem ampliar a imaginação de milhões, dar confiança aos tímidos e resultar em colaborações frutíferas. Elas também podem esmigalhar os corpos e os espíritos de milhões, magnificar a violência e a desordem, além de facilitar a injustiça. Muitas cidades têm partes boas e ruins, e em especial as cidades brasileiras parecem oferecer com incomum clareza exemplos do melhor e do pior no que diz respeito ao urbanismo mundial. Precisamos olhar a realidade urbana do Brasil – como ela veio a ser, como ela está evoluindo, como ela funciona ou não funciona para os seus habitantes.
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3. Cidades e Culturas Diversas China, Brasil, Dubai e os EUA são lugares vastamente diversos, com diferentes estruturas familiares, com diferentes atitudes para com estrangeiros, com diferentes conceitos de liberdade e de inclusão. Mas as paisagens urbanas nessas quatro culturas são indistinguíveis. A construção de cidades está se tornando um negócio multinacional, fornecendo uma única resposta a uma multiplicidade de questões culturais. O que de fato está acontecendo? Haveria outros modos?
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4. Cidades e Meio Ambiente Mundial Nova-iorquinos usam menos energia per capita do que quaisquer outros americanos. As cidades são a forma mais eficiente em termos energéticos de acomodar pessoas e um mundo que está ficando sem energia se voltará mais e mais para as suas cidades. Todavia, as cidades dificilmente estão preparadas para oferecer salvação ecológica. Onde estamos? O que precisamos fazer?
6. Cidades e um Mundo Móvel Transporte barato, economias em desenvolvimento, corporações globais, comunicação de massa, deslocamentos de guerra e oportunidades de paz – todos esses fatores, entre outros, estão causando ondas de emigração e imigração desconhecidas desde a colonização da América do Norte e do Sul. As cidades são o foco desses movimentos populacionais e a prova de fogo dos conflitos e da criatividade resultante. Como funciona este processo? Quando ele deixa de funcionar, quando ele falha? E seriam as cidades o melhor fórum para a assimilação pacífica da diferença humana?
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5. Cidades para Ricos e Pobres As cidades são frequentemente faróis de progresso, mas poucas cidades podem criar suas próprias organizações sociais. Nações-estado e corporações multinacionais definem as regras básicas: a distribuição de renda e riqueza, a distribuição de poder entre raças, religiões e sexos, além dos conceitos básicos de liberdade e de significado. Como as cidades espelham as sociedades ao redor delas? Como as cidades mudam as sociedades ao seu redor? Qual o limite das realizações de uma cidade?
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Guilherme Wisnik
No Brasil, como em quase todas as regiões do Novo Mundo que se “civilizaram” dentro de um regime colonial, as cidades se desenvolveram numa batalha contra o meio natural. Daí que a maioria delas tenha crescido de costas para os seus rios, tratados simbolicamente como os fundos de quintal (áreas técnicas e de serviço) dessas imensas casas, que são as cidades. Relação que, evidentemente, se agravou quando essas passaram pelo processo de modernização industrial, na segunda metade do século 20. Os rios urbanos são, nesse sentido, típicos “não-lugares”. Isto é, locais margeados por pistas de tráfego expresso e/ou espaços residuais, estéreis e impessoais. Mas, por isso mesmo, suas orlas são ainda enormes reservatórios de urbanidade no coração dessas mesmas cidades, sobretudo se tomarmos como referência as orlas marítimas. Haveria exemplo mais emblemático de um espaço público vital, no Brasil, do que o calçadão de Copacabana?
Os rios têm, historicamente, funções múltiplas e vitais na formação e na organização das cidades, sejam elas ligadas à economia e à cultura, ao lazer, ou à infra-estrutura. Vistos na escala do país – e, mais ainda, do continente –, os rios e suas bacias compõem um elo territorial que integra as cidades em um sistema unitário: uma rede feita de pontos estáveis e de fluxos. E, simbolicamente, trazem consigo a discussão acerca da sustentabilidade de modo amplo, tanto em relação à água como recurso natural, quanto em relação ao transporte fluvial como um instrumento de integração e soberania nacional.
Margem
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Wisnik
Se a Amazônia promete ser a vanguarda do mundo, como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, ela é também, por outro lado, o eterno emblema de um lugar à margem da História, como escreveu Euclides da Cunha. Ao enfocar os rios urbanos, o projeto “Margem” traz à tona tanto o Brasil urbano-industrial, de córregos canalizados, vias expressas e linhas férreas, quanto um Brasil anfíbio, de ribanceiras e palafitas, de territórios moventes feitos de secas e cheias, de florestas, mangues e charcos, e de sertões. Em outros termos: a história e suas margens, dobrados através da constante geográfica. Grande parte da arte contemporânea mundial, em contexto urbano, tem tematizado situações de conflito e segregação, sejam sociais, geopolíticas, identitárias, memorialísticas ou institucionais. Por essa linha, são, em geral, ações pautadas por um enfoque eminentemente culturalista, que supõem uma sociedade de pleno direito e bem constituída, uma esfera pública consolidada, uma história sedimentada, uma memória que se reatualiza no presente, em cidades que trazem consigo uma longa tradição de monumentos artísticos. Algo, portanto, muito distante da nossa realidade, que parece estar em permanente formação, ao mesmo tempo que já fadada à ruína precoce, como percebeu Lévi-Strauss nos anos 50. Em termos de arte, é evidente que boa parte do ímpeto construtivo das nossas vanguardas concretas procuraram responder a tal questão, reagindo a essa carência brasileira de modo a opor-lhe uma resistência formal e fenomenológica, por meio do próprio “corpo” da obra. Da mesma forma, a virada contracultural dos
É exatamente esse potencial que parece estar sendo percebido e valorizado hoje, de modo ambíguo, em algumas cidades do país, nas quais se nota uma corrida recente do poder público e do mercado imobiliário para as orlas fluviais, projetando e construindo nelas centros turísticos, comerciais ou condomínios de luxo. Há, portanto, sinais contraditórios de uma recente revisão desse legado histórico em um contexto dito pós-industrial e globalizado, embora ainda na periferia do capitalismo. Em que termos essa revisão crítica se dará? Superando o legado colonial, ou aprofundando o seu caráter predatório e exclusivista?
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180 Explodindo o seu suporte, ganhando o espaço circundante, construindo ambientes, abrindo-se à participação do espectador, e agindo diretamente no mundo da vida, a arte contemporânea conquistou um território antes restrito à arquitetura e ao urbanismo – tanto em temática quanto em escala –, misturando-se a ele. Liberada, porém, de qualquer compromisso restaurador ou edificante, e podendo assumir, ao contrário, um ângulo essencialmente crítico e negativo. Assim, os rios e suas margens não são, para esse projeto, metáforas nostálgicas de uma urbanidade perdida. Mas, talvez, chaves de uma urbanidade recalcada e latente no coração decrépito, e ainda mal formado, das cidades brasileiras. Chaves que hoje, em novo registro, aparecem como centrais no conflituoso processo de reconfiguração urbana que se dará, nestas cidades, em um futuro próximo.
anos 60 representou uma reversão daquela aspiração construtiva, incorporando a contingência, a precariedade e a improvisação como dados de formação inalienáveis; portanto armas de violência estética sob uma ótica terceiro-mundista. Do paradigma de Brasília, protegido e civilizado, passávamos ao do universo informe das favelas, em cidades que cresciam de modo endêmico e precário.
Atritos políticos e imaginários na publicação de Disgrace na África do Sul Lawrence Flores Pereira Publicado em 1999, apenas cinco anos após o fim do regime racista do apartheid, Disgrace, desde Abril de 2000, era colocado no centro da arena inflamada das discussões sul-africanas sobre as relações entre liberdade de expressão e racismo, racismo e literatura. Numa sequência de investidas, setores do Congresso Nacional Africano acusaram o livro de Coetzee de defender a ideia de que os chamados “temores brancos” estavam ainda vivos na consciência da população branca sul-africana. Levantavam-se assim dúvidas sobre a integridade ética do romance e, por extensão, do próprio autor. A suspeita não se originava, aliás, apenas do Congresso Nacional Africano (CNA). Colegas escritores de Coetzee expressariam dúvidas semelhantes. Nadine Gordimer declararia numa entrevista, em Johannesburg, em 2006, que “no romance Disgrace, não há uma única pessoa negra que seja um ser humano”. Ela ainda acrescentou achar “difícil acreditar, na verdade mais do que difícil, tendo vivido aqui toda a minha vida e sendo parte de tudo o que aconteceu aqui, que uma família negra proteja um estuprador porque ele é um deles”. “Se essa é a única verdade que ele pôde encontrar na África do Sul pós-apartheid, sinto muito por ele [pensar assim]”. Alguns autores foram mais peremptórios. Chris van Wyk, autor de inúmeros livros, inclusive um sobre sua vida em uma localidade “coloured” (na África do Sul: de mestiços), declarou: “Acho que Disgrace foi um livro racista”. “Os personagens brancos são largamente apresentados (fleshed out), e os malfeitores negros, não” (Ibidem).
Africa National Congress. “ANC submission to the Human Rights Commision Hearings on Racism in the Media”. African national Congress. South Africa’s national Liberation Movement, abril 5, 2000. http://www.anc.org.za/2674.
Usarei ao longo do texto a abreviatura “CNA” para “Congresso Nacional Africano”.
Donadio, Rachel. “Out of South Africa”. The New York Times, dezembro 16, 2007, seç. Books / Sunday Book Review. http:// www.nytimes.com/2007/12/16/ books/review/Donadio-t.html.
romance, estaria sugerindo a ideia de que “cinco anos após sua liberação, a África do Sul branca continua a crer num estereótipo particular do africano, que o define como: imoral ou amoral; selvagem; violento; desrespeitoso em relação à propriedade privada; incapaz de refinamento através da educação; e inclinado a impulsos hereditários negros e satânicos”. Essa leitura se baseava em passagens do romance, particularmente a cena do “farm attack” (ataque contra fazenda), perpetrado por três jovens negros que culmina no estupro de Lucy, filha de David Lurie, o professor universitário “desgraçado”. Outro aspecto que chamou atenção
Pereira
Na submissão que o CNA (Congresso Nacional Africano) dirigiu à Comissão Sul-Africana de Direitos Humanos (HRC) alegava-se que J. M. Coetzee, no
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do CNA, como passagem supostamente racista, é aquela na qual David Lurie e Lucy discutem a condição e a situação de Petrus, o vizinho negro de Lucy, encarnação da nova classe de agricultores nativos empreendedores na África do Sul. A Submissão do CNA impressionava pelo seu tamanho: possuía ao todo 107 artigos, o que refletia o interesse público geral pelo bombástico romance de Coetzee. Pressões políticas: a media e o CNA e a querela da imprensa e do governo A submissão do CNA não era exclusivamente um ataque a Coetzee. Seu nome era ali apenas o deflagrador, o chamariz para um documento que não estava livre de certa retórica. O que muitos leitores estrangeiros de Disgrace desconhecem hoje é que o ataque se originava e se relacionava, de modo muito mais concreto e imediato, com os embates políticos que, no final dos anos 90 e início dos anos 2000, punham frente a frente os novos governos do pós-apartheid e a media do país. Com um lugar de frente no processo de transformação política na África do Sul, o CNA interessara-se, desde 1995, em elaborar documentos que explicitassem diversos problemas relacionados ao poder da media. O assunto incluía inúmeras questões: problemas de propriedade (negra ou branca) das grandes corporações, de inclusão de homens negros em postos de destaque na mídia assim como preocupações com o conteúdo e a estrutura do noticioso e de outras formas mediáticas sul-africanas.
Adrian Hadland, “The Souh African print 194-2004” (Doctorate, University of Cape Town, 2007), 109, www.hsrc.ac.za/moduleKTree-doc_request-docid-1339.phtml.
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Em 1995, a Comissão de Verdade e Reconciliação examinou detalhadamente o papel da media sob o apartheid e concluiu que a maior parte da media havia de vários modos contribuído, implícita ou explicitamente, com o apartheid. Durante o processo, a comissão conduziu diversas entrevistas com representantes de jornais, tanto jornalistas como proprietários. Muitos dos entrevistados à época pediram perdão pelas suas ações durante o regime racista (Ibid., 109). Já em 1997, o CNA, num primeiro passo em plena comoção nacional com o espetáculo dos testemunhos da repressão, submeteu ao Truth and Reconciliation Commission um documento denunciando os problemas raciais e políticos na media herdados do longo período de exclusão racial e segregação na África do Sul (Ibid.). Submissões como essa levaram a diversas investigações e a diversos relatórios produzidos tanto pelo Truth and Reconciliation Commission assim como pelo Human Rights Commission.
183 O processo de crítica à censura do apartheid parecia inexoravelmente encaminhar a África do Sul à adoção de uma política de liberdade de imprensa extensiva. Cedo, contudo, ficou aparente que a crítica à censura e à parcialidade ideológica do apartheid não redundaria, da parte dos novos governos, numa política de defesa universal da liberdade irrestrita da imprensa. Ken Owen, antigo editor do Sunday Times lembra que o congresso constitucional “baulked at entrenching free speech organizing it anything like the weight which it enjoys under the First Amendment of the American Constitution” (Ibid., 86–87). Isso ficou também evidente quando o governo democrático deixou de se esforçar em abolir legislações secundárias que haviam sido empregadas sob o apartheid e que serviam no controle da imprensa. A nova constituição sul-africana trazia muitas brechas que podiam potencialmente abrigar contratendências anti-imprensa. Leis retrógradas do apartheid, como o Armaments Development and Production Act e o Protection of Information Act, dotadas de restrições anti-imprensa profundas, foram uma das leis que o novo governo evitou abolir (Ibid., 87). Dentre elas está a retrógrada ideia de que um jornalista está obrigado a revelar as identidades das fontes. Outra cláusula prevê a possibilidade e poder da parte de agências dos governos de impedir a publicação de artigos em jornais ou em outros meios. Quando o movimento reformista constitucional ganhou corpo, a relutância de setores do governo de reformar tais leis inaugurou alguns embates entre imprensa e governo, levando a inúmeras reuniões entre figuras do seu alto escalão e representantes da imprensa (Ibid.). A história dos atritos com a imprensa é difícil de analisar na África do Sul porque o político (no sentido do embate imediato da política sul-africana com todas as suas contingências, seus casuísmos de momento) está entrelaçado não apenas aos fatos verídicos relacionados com a herança racial e colonial mas também com os fatos fantasiosos que se enxertam constantemente na realidade e na percepção da realidade: é um país nesse sentido com “vários estratos” fenomênicos em que qualquer sonho iluminista de distinguir o real do fantasioso está, a exemplo de diversos outros países, fadado, senão ao fracasso, pelo menos a uma longa história de ajustes. Um caso típico desse sutil deslizamento – que inclui realidade e fantasma paranóico – foi a tendência entre muitos de palmilhar às vezes de modo atabalhoado o caminho que leva de uma avaliação sobre o colaboracionismo da imprensa durante o apartheid (passado recente) para uma investigação mais de fundo (voltada às razões “subjetivas”) do papel da media no momento presente e
Charles B. DUFF Ciane FERNANDES François JULLIEN Guilherme WISNIK Hans Ulrich GUMBRECHT Jean GALARD José Roberto GOLDIM Kathrin H. ROSENFIELD Lawrence Flores PEREIRA Lilia Moritz SCHWARCZ Linda HARTLEY Manoela LEÃO Márcio SELIGMANN-SILVA Miguel Reale JUNIOR Pedro Heliodoro de Moraes Branco TAVARES Rejane Pivetta de OLIVEIRA Ricardo Benzaquen de ARAÚJO Richard SHUSTERMAN Robert DAVREU Wajdi MOUAWAD