Livro Manoel de Barros

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Manoel de Barros um poeta de raĂ­z



Manoel de Barros um poeta de raĂ­z



Manoel de Barros um poeta de raĂ­z



Manoel de Barros, poeta das coisas insignificantes e inventor de objetos sem utilidade, tornou-se um “vagabundo profissional” - como o próprio intitulava-se por viver a disposição da poesia - ao ser escolhido pelas palavras para que se apropriasse delas. Sua atenção era sempre voltada para o pequeno, para aquilo que passava despercebido ao olhar das outras pessoas. O vazio, o nada e o silêncio, apesar de coisas “repletas de ausências” constituíam o conteúdo de muitos de seus poemas. Nascido no Pantanal, passou a maior parte da sua vida cercado de pedras, árvores e aves, as quais serviram de inspiração para seu fazer poético. Apesar da importância atribuída ao seu “quintal”, Manoel afirmava: “sou poeta da palavra, não da paisagem”. Era com essas, as palavras, que ele brincava, desconstruindo-as e criando novos significados. Além disso, era um ótimo inventor. Criava inutensílios - o que pode-se entender como coisas que não têm necessariamente um propósito - e também memórias à respeito da própria vida. “Tenho uma confissão a fazer: noventa por cento do que escrevo é invenção só dez por cento é mentira.”



uma breve biografia

tragetória literária relação das obras publicadas

poemas



Venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas. Meu pai teve uma venda no Beco da Marinha, onde nasci. Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão, aves, pessoas humildes, árvores e rios. Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos. Já publiquei 10 livros de poesia: ao publicá-los me sinto meio desonrado e fujo para o Pantanal onde sou

Auto-Retrato Falado

abençoado a garças. Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo que fui salvo. Não estou na sarjeta porque herdei uma fazenda de gado. Os bois me recriam. Agora eu sou tão ocaso! Estou na categoria de sofrer do moral porque só faço coisas inúteis. No meu morrer tem uma dor de árvore.

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“Não saio de dentro de mim nem para pescar”.

manoel wenceslau leite de barros, entortador de palavras, poeta que tem um abridor de amanhecer, nasceu em Cuiabá, Mato Grosso, em 19 de dezembro de 1916 e mudou-se para Corumbá, Mato Grosso do Sul, onde se fixou de tal forma que chegou a ser considerado corumbaense. Falece em Campo Grande, aos 97 anos, em 13 de Novembro de 2014. Nequinho, como era chamado carinhosamente pelos familiares, cresceu livremente, em uma fazenda no Pantanal. No derradeiro texto do “Livro das Ignorãças”, 1993, “Retrato falado”, Manoel confessa:

“Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão, Aves, pessoas humildes, árvores e rios. Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos.” Estudou num colégio interno em Campo Grande, e depois no Rio de Janeiro. Aluno medíocre que descobriu o prazer pela literatura através dos textos do padre Antônio Vieira:

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“A frase para ele era mais importante que a verdade, mais importante que a sua própria fé. O que importava era a estética, o alcance plástico. Foi quando percebi que o poeta não tem compromisso com a verdade, mas com a verossimilhança. [...] descobri que servia era pra aquilo: ter orgasmo com as palavras”. Aos dezoito anos, entrou para a Juventude Comunista e escreveu o seu primeiro livro, “Nossa Senhora de minha escuridão”, que embora não fora publicado, salvou-o da prisão. Manoel havia pichado “ Viva o Comunismo” numa estátua. A polícia foi buscá-lo na pensão onde morava. A dona da pensão o defendeu, afirmando que o menino era um poeta e que havia até escrito um livro. O policial pediu que provassem, em seguida, levou o rascunho de “Nossa Senhora de minha escuridão” e deixou Manoel livre. Quando Luiz Carlos Prestes foi libertado, após dez anos de prisão, Manoel esperava uma represália do líder contra o que os jornais comunistas chamavam de “o governo assassino de Getúlio Vargas.” No entanto, após ouvi-lo apoiando Getúlio, o mesmo Getúlio que entregou sua mulher, Olga Benário, aos nazistas, decepcionou-se profundamente com o Partido.

“(...) Não aguentei. Sentei na calçada e chorei. Saí andando sem rumo, desconsolado. Rompi definitivamente com o Partido e fui para o Pantanal”.

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Manoel ficou pouco tempo no Pantanal. A ideia de se tornar fazendeiro ou trabalhar num cartório local não o convenciam e o poeta viajou ao exterior. Passou um tempo na Bolívia e no Peru e, depois seguiu para Nova York, onde morou um ano. Fez curso sobre Cinema e sobre Artes Plásticas no Museu de Arte Moderna. Picasso, Chagall, Miró, Van Gogh, Braque reforçaram a sua busca de liberdade. Entendeu então, que “uma árvore não seja mais apenas um retrato fiel da natureza: pode ser fustigada por vendavais ou exuberante como um sorriso de noiva” e sentiu que “os delírios são reais em “Guernica”, de Picasso”. Sua poesia sofreu, na época, influências de quadros e filmes: Chaplin por sua despreocupação com a linearidade; Fellini; Akira Kurosawa, Luis Buñuel e, entre os mais novos, o americano Jim Jarmusch. De volta ao Brasil, conheceu a mineira Stella, no Rio de Janeiro e casaram-se em três meses. Tiveram três filhos, Pedro, João e Marta e, até hoje Manoel a chama de “guia de cego”, pois quando a conheceu, o poeta-advogado estava totalmente desorientado. Em 1949 retornou para o Pantanal, para tomar conta da fazenda deixada pelo pai.Manoel de Barros, embora tenha vivido em metrópoles da América e da Europa, a matéria prima de sua obra circunscreve-se ao chão pantaneiro. 12


Cronologicamente vinculado à Geração de 45, mas formalmente ao Modernismo brasileiro, Manoel de Barros criou um universo próprio subvertendo a sintaxe e criando construções que não respeitam as normas da língua padrão, marcado, sobretudo, por neologismos e sinestesias, sendo, inclusive, comparado a Guimarães Rosa. Em 1986, o poeta Carlos Drummond de Andrade declarou que Manoel de Barros era o maior poeta brasileiro vivo. Antonio Houaiss, um dos mais importantes filólogos e críticos brasileiros escreveu:

“A poesia de Manoel de Barros é de uma enorme racionalidade. Suas visões, oníricas num primeiro instante, logo se revelam muito reais, sem fugir a um substrato ético muito profundo. Tenho por sua obra a mais alta admiração e muito amor”.

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Manoel de Barros publicou o seu primeiro livro de poemas em 1937, “Poemas concebidos sem pecado” concebido artesanalmente por vinte amigos, numa tiragem de vinte exemplares e mais um, que ficou com ele. Depois vieram outros, entre os quais, “Compêndio para uso dos pássaros” (1961), “Gramática expositiva do chão” (1969), “Livro de pré-coisas” (1985), “O guardador de águas” (1989), “Concerto a céu aberto para solos de ave” (1991), “O livro das ignorãças” (1993), “Livro sobre nada” (1996) e “Retrato do artista quando coisa” (1998). Pelos títulos das obras, o leitor percebe a afinidade entre o poeta e o chão, entre o poeta e a ave, entre o poeta e a natureza, entre o poeta e as coisas, enfim, entre o poeta e ...o nada. A poesia de Manoel de Barros passou a ser amplamente conhecida a partir da década de oitenta, embora ela já tenha tido o reconhecimento de Mário de Andrade e de Guimarães Rosa desde a década de quarenta, que comparou os textos de Manoel a um “doce de coco”.

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Millôr Fernandes postou as poesias de Manoel de Barros, em suas colunas nas revistas “Veja”, “Isto é” e no “Jornal do Brasil”, afirmando que a obra do poeta era “única, inaugural, apogeu do chão.” Enquanto que, o escritor João Antônio declarou que a poesia de Manoel vai além: “tem a força de um estampido em surdina. Carrega a alegria do choro.” Outros fizeram o mesmo, entre eles: Fausto Wolff, Enio Silveira e Rubem Alves. Segundo Geraldo Carneiro:

“Viva Manoel violer d’amores violador da última flor do Lácio inculta e bela. Desde Guimarães Rosa a nossa língua não se submete a tamanha instabilidade semântica”. Também críticos debruçaram sobre o texto manuelino, como Berta Waldman, Lúcia Castello Branco e Renato Nésio Suttana, que escreveu uma dissertação sobre a “poética do deslimite” de Manoel. Manoel de Barros foi também comparado a São Francisco de Assis, pelo filólogo Antônio Houaiss, “na humildade diante das coisas. (...)” Manoel, o tímido Nequinho, se diz encabulado com os elogios que “agradam seu coração”. Os intelectuais iniciaram, através de tanta recomendação, o conhecimento dos poemas que a Editora Civilização Brasileira publicou, em quase a sua totalidade, sob o título de “Gramática expositiva do chão”. 16


Manoel foi agraciado com o “Prêmio Orlando Dantas”, em 1960, conferido pela Academia Brasileira de Letras ao livro “Compêndio para uso dos pássaros”. Em 1969 recebeu o “Prêmio Fundação Cultural do Distrito Federal”, pela obra “Gramática expositiva do chão” e, em 1997, o “Livro sobre nada” recebeu o “Prêmio Nestlé”, de âmbito nacional. Em 1998 recebeu o “Prêmio Cecília Meireles” (literatura/ poesia), concedido pelo Ministério da Cultura. Hoje Manoel de Barros é reconhecido nacional e internacionalmente como um dos mais originais do século e mais importantes do Brasil. O poeta afirma que o anonimato foi “por minha culpa mesmo. Sou muito orgulhoso, nunca procurei ninguém, nem frequentei rodas, nem mandei um bilhete.” E, conclui que não perdeu o orgulho, mas a timidez parece cada vez mais diluída. Ri de si mesmo e das glórias que não teve.

“Aliás, não tenho mais nada, dei tudo para os filhos. Não sei guiar carro, vivo de mesada, sou um dependente”. [...] Os rios começam a dormir pela orla, vaga-lumes driblam a treva. Meu olho ganhou dejetos, vou nascendo do meu vazio, só narro meus nascimentos.”

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1982

Matéria de poesia

arranjos para assobio Livro de pré-coisas

1989

Ilustração da capa de Martha Barros

o guardador das águas

Poesia quase toda

1991

1942

gramática expositiva do chão

1974

1966

Compêndio para uso dos pássaros

1960

poesias

1985

1956

Face imóvel

concerto a céu aberto para solos de aves

1990

1937

poemas concebidos sem pecado


O fazedor de amanhecer

2001

poeminhas pescados numa fala de joão

2001

2001

ensaios fotográficos

2000

Exercícios de ser criança

Tratado geral das grandezas do ínfimo Ilustrações de Martha Barros

memórias inventadas - a infância Ilustrações de Martha Barros

2003

1999

Ilustrações de Millôr Fernandes

1998

Ilustrações de Wega Nery

retrato do artista quando coisa

2003

1993

Livro sobre nada

Cantigas para um passarinho à toa poemas rupestres Ilustrações de Martha Barros

2004

1996

o livro das ignorãças



Árvore

Um passarinho pediu a meu irmão para ser sua árvore. Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho. No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de sol, de céu e de lua mais do que na escola. No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para santo mais do que os padres lhes ensinavam no internato. Aprendeu com a natureza o perfume de Deus. Seu olho no estágio de ser árvore aprendeu melhor o azul. E descobriu que uma casca vazia de cigarra esquecida no tronco das árvores só serve pra poesia. No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores são vaidosas. Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se transformara, envaidecia-se quando era nomeada para o entardecer dos pássaros E tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos brejos. Meu irmão agradecia a Deus aquela permanência em árvore porque fez amizade com muitas borboletas. 23


É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez. Tudo que não invento é falso. Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira. Tem mais presença em mim o que me falta Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário. Sou muito preparado de conflitos. Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou. O meu amanhecer vai ser de noite. Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção. O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo. Meu avesso é mais visível do que um poste. Sábio é o que adivinha. Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições. A inércia é meu ato principal.

O livro sobre nada

Não saio de dentro de mim nem pra pescar.

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Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore. Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma. Peixe não tem honras nem horizontes. Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.


Eu queria ser lido pelas pedras. As palavras me escondem sem cuidado. Aonde eu não estou as palavras me acham. Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas. Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja. A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos. Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos. Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim. Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus. Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade. O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito. Por pudor sou impuro. O branco me corrompe. Não gosto de palavra acostumada. A minha diferença é sempre menos. Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria. Não preciso do fim para chegar. Do lugar onde estou já fui embora. 25


A maior riqueza do homem é sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou — eu não aceito. Não aguento ser apenas

Retrato do artista quando coisa

um sujeito que abre

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portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai. Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas.


Tratado geral das grandezas do ínfimo

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade. Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. Fiquei emocionado. Sou fraco para elogios.

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Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira. A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. A mãe disse que era o mesmo

O menino que carregava água na peneira

que catar espinhos na água.

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O mesmo que criar peixes no bolso. O menino era ligado em despropósitos. Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos. A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio, do que do cheio. Falava que vazios são maiores e até infinitos. Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito, porque gostava de carregar água na peneira. Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira.


No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens. Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor. A mãe reparava o menino com ternura. A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta! Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens, e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

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Os deslimites da palavra

Ando muito completo de vazios. Meu órgão de morrer me predomina. Estou sem eternidades. Não posso mais saber quando amanheço ontem. Está longe de mim o amanhecer. Ouço o tamanho oblíquo de uma folha. Atrás do ocaso fervem os insetos. Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino. Essas coisas me mudam para cisco. A minha independência tem algemas.

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Sou leso em tratagens com máquina. Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis. Em toda a minha vida só engenhei 3 máquinas Como sejam: Uma pequena manivela para pegar no sono. Um fazedor de amanhecer para usamentos de poetas E um platinado de mandioca para o

O fazedor de amanhecer

fordeco de meu irmão. Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias automobilísticas pelo Platinado de Mandioca. Fui aclamado de idiota pela maioria das autoridades na entrega do prêmio. Pelo que fiquei um tanto soberbo. E a glória entronizou-se para sempre em minha existência.

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Uma didática da invenção

I Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber: a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos f) Como pegar na voz de um peixe g) Qual o lado da noite que umedece primeiro. etc. etc. etc. Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios. II Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha. Usar algumas palavras que ainda não tenham

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idioma.


III Repetir repetir — até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo. IV No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito: Poesia é quando a tarde está competente para dálias. É quando Ao lado de um pardal o dia dorme antes. Quando o homem faz sua primeira lagartixa. É quando um trevo assume a noite E um sapo engole as auroras. V Formigas carregadeiras entram em casa de bunda. VI As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças. VII No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não 33


funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos — O verbo tem que pegar delírio. VIII Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh. IX Para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal de lagarto às 3 horas da tarde, no mês de agosto. Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer em nossa boca. Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato sair na voz . Hoje eu desenho o cheiro das árvores. X Não tem altura o silêncio das pedras.

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Prefácio

Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) — sem nome. Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé. Insetos errados de cor caíam no mar. A voz se estendeu na direção da boca. Caranguejos apertavam mangues. Vendo que havia na terra Dependimentos demais E tarefas muitas — Os homens começaram a roer unhas. Ficou certo pois não Que as moscas iriam iluminar O silêncio das coisas anônimas. Porém, vendo o Homem Que as moscas não davam conta de iluminar o Silêncio das coisas anônimas — Passaram essa tarefa para os poetas.

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Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado

O apanhador de desperdícios

para gostar de passarinhos.

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Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios.


Difícil fotografar o silêncio

Difícil fotografar o silêncio. Entretanto tentei. Eu conto: Madrugada, a minha aldeia estava morta. Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa. Eram quase quatro da manhã. Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado. Preparei minha máquina. O silêncio era um carregador? Estava carregando o bêbado. Fotografei esse carregador. Tive outras visões naquela madrugada. Preparei minha máquina de novo. Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado. Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra. Fotografei a existência dela. Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão. Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre. Foi difícil fotografar o sobre. Por fim eu enxerguei a nuvem de calça. Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com maiakoviski – seu criador. Fotografei a nuvem de calça e o poeta. Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa Mais justa para cobrir sua noiva. A foto saiu legal. 37


Aprendimentos

O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura é o caminho que o homem percorre para se conhecer. Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim falou que só sabia que não sabia de nada. Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas das árvores servem para nos ensinar a cair sem alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente aprender o idioma que as rãs falam com as águas e ia conversar com as rãs. E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver,

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no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar. Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens. Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite! Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles — esse pessoal. Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova. Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis linguísticos que achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam que o fascínio poético vem das raízes da fala. Sócrates falava que as expressões mais eróticas são donzelas. E que a Beleza se explica melhor por não haver razão nenhuma nela. O que mais eu sei sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.

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