CESA 9

Page 1

Acervo fotográfico – ABr

Odair Leal/Folha Imagem (Cód. Fot: 1517)

CAPA |

Duas décadas de democracia

Em 20 anos, a Constituição da República Federativa do

Guilherme Bergamini/ ALMG

Brasil representou conquistas, mas ainda enfrenta desafios

No dia 5 de outubro de 008, a Constituição da República Federativa do Brasil completou 0 anos. Marco da transição democrática, a Carta Constitucional é o símbolo de almejadas conquistas civis, como a liberdade de expressão e o voto direto, mas seu texto nunca foi sinônimo de unanimidade. Os mesmos artigos que lhe renderam a alcunha de Constituição Cidadã, utilizada pela primeira vez pelo presidente da Assembléia Constituinte Ulysses Guimarães, lhe proporcionaram, também, as críticas de ser utópica e irrealizável. Cláudio Lembo, professor titular de direito constitucional e de direito processual civil da Universidade Presbiterina Mackenzie, classifica a Carta Constitucional de 1988 como imensamente superior às demais e diz que os direitos da pessoa repreRevista

sentam o seu principal avanço. Luiz Alberto Davi de Araújo, professor titular de direito constitucional da graduação e da pós-graduação da PUC-SP, aponta outros méritos da Lei Maior, como o mandado de segurança coletivo. Esse instrumento representou, segundo ele, o alargamento da legitimidade, que ficava na mão do procurador-geral da República e hoje vai ao presidente e à OAB, por exemplo. “Os ideais democráticos, depois de anos de ditadura, foram alcançados”, ressalta Roberto Rosas, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC). A Constituição de 1988 tem, portanto, uma série de virtudes a serem reconhecidas, o que não a exime, porém, de ser fonte de alguns problemas. A extensão da Carta Constitucional, que conta

Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008

com 50 artigos e mais 95 de Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, é um deles. Roberto Rosas afirma que alguns dispositivos deveriam ter sido objeto de lei infraconstitucional. Há, ainda, quem critique as medidas provisórias que, segundo Bernardo Cabral, que foi relator da Assembléia Nacional Constituinte, só faria sentido se o sistema parlamentarista de governo tivesse sido aprovado. Outra crítica constante diz respeito a uma série de dispositivos que foram deixados para serem regulamentados posteriormente, sendo que muitos deles continuam, 0 anos depois, sem tal regulamentação. A ministra do STF Cármen Lúcia ressalta que até meados ou final da década de 1990 muitas das normas constitucionais deixaram de ser aplicadas porque dependiam de uma regu-

5


lamentação que ainda não existia. Recentemente, o STF lançou mão do mandado de injunção para suprir a falta dessa regulamentação. José Sarney, presidente da República à época da promulgação da Constituição, foi um crítico mordaz da Carta Constitucional que era desenhada e assim continua. Em entrevista publicada no jornal Folha de S.Paulo no dia 18 de fevereiro de 008, chegou a afirmar que, “depois de termos saído do regime autoritário, nós tivemos a grande oportunidade de construir estruturas modernas para nosso sistema democrático, mas infelizmente a Constituinte de 1988 foi uma frustração”. Segundo ele, a Constituição criou um sistema parlamentarista e, ao mesmo tempo, presidencialista, com o instrumento das medidas provisórias, que faz com que o Parlamento não legisle e transfere ao Executivo essa função. “Nesses 0 anos, não se pode deixar de lembrar em que contexto a Constituição de 1988 foi redigida”, lembra Bernardo Cabral. O Brasil do fim da década de 1980 era uma nação recém-saída da ditadura em um mundo que ainda vivia o fim da Guerra Fria. Esse contexto favoreceu a criação de

6

O mandado de segurança coletivo é citado por Luiz Alberto Davi de Araújo como um dos méritos da Constituição.

História Bernardo Cabral, relator da nova Constituição, diz que “o trabalho dos constituintes foi meritório porque essa Constituição foi a primeira que não dispôs de um esboço prévio”. Ao contrário, afirma o relator, “nasceu do nada, pedra sobre pedra, tijolo a tijolo, aí incluídas as emendas populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas”. O anteprojeto escrito pela Comissão Afonso Arinos, assim denominada em homenagem a seu presidente, não chegou a ser entregue ao Congresso e não foi, portanto, utilizada pela Constituinte.

Apesar disso, o trabalho da comissão formada por 50 juristas – que havia sido convocada pelo então presidente da República José Sarney pelo Decreto n° 91.450 de 18 de julho de 1985 – exerceu influência sobre os constituintes. A ministra Cármen Lúcia diz que, em alguns pontos, os parlamentares constituintes aproveitaram muito o trabalho dos juristas. O desenho do Ministério Público é, segundo ela, um exemplo. “O seu esqueleto já estava no que a comissão apresentou ao Governo José Sarney”.

“Ainda não foi desta vez que a sociedade brasileira, a maioria dos marginalizados, vai ter uma Constituição em seu benefício.” Luis Inácio Lula da Silva 22 de setembro de 1988

Revista

Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008

CEDI – Câmara dos Deputados

Para Cláudio Lembo, a Constituição de 1988 é imensamente superior às demais.

uma Carta Constitucional que pretendia garantir todos os direitos dos cidadãos e favoreceu, portanto, o nascimento dos constantemente aclamados direitos fundamentais. A ânsia de abarcar todas as garantias, entretanto, acabou por levar a Carta Constitucional a abraçar dispositivos considerados infraconstitucionais por especialistas como Roberto Rosas. Outras virtudes e defeitos são, como esses, fruto de um período evolutivo a partir de uma passagem autoritária da nossa história, como ressalta a ministra Cármen Lúcia.

Hamilton Penna

Hamilton Penna

Duas décadas de democracia


Hamilton Penna

Arquivo pessoal

Duas décadas de democracia

Bernardo Cabral foi o relator da Constituição de 1988 e diz que havia disposição entre a liderança para acordo em algumas matérias.

Acervo fotográfico - Abr

Oficialmente, porém, os parlamentares deram início aos trabalhos sem partir de outros documentos, como ressaltou Bernardo Cabral. Para possibilitar esse nascimento, eles se colocaram em permanente disputa, acentuando em cada proposta e pronunciamento as divergências entre esquerda e direita. Bernardo Cabral afirma que havia disposição entre as lideranças para o acordo em algumas matérias. A disputa era acirrada em outros temas, e, segundo Cabral, quando não se tornava possível o acordo, o

caminho era a votação. Algumas dessas votações, segundo ele, eram precedidas de calorosas discussões. “A realidade é que nenhuma das duas correntes dispunha de força suficiente para impor o seu desejo”, avalia. Relatos das reuniões da Assembléia Constituinte, porém, mostram que esse equilíbrio de forças foi levemente desestabilizado a favor da direita com a criação do chamado Centro Democrático, o Centrão, em janeiro de 1988. Sua criação foi a reação das forças conservadoras insatisfeitas com as regras impostas pelo regimento interno – que dificultavam alterações no texto aprovado pela Comissão de Sistematização. O Centrão – formado pelo PFL, PDS e PTB, alguns outros partidos menores e uma parcela dos parlamentares do PMDB – conseguiu alterar o regimento, invertendo o ônus do quorum para a manutenção do texto aprovado na Comissão. A partir de então, esse grupo, apoiado pelo Poder Executivo, conseguiu influir decisivamente na regulamentação dos trabalhos da Constituinte e no resultado de votações importantes, como a extensão do mandato de Sarney, a questão da reforma agrária e o papel das Forças Armadas.

“Será a Constituição Cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros.” Ulisses Guimarães 27 de junho de 1988

Revista

Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008

“Os ideais democráticos, depois de anos de ditadura, foram alcançados”, afirma Roberto Rosas.

O embate da direita e da esquerda, contudo, permaneceu acirrado até a promulgação da Carta Constitucional. Os discursos dos parlamentares evidenciam as divergências nas opiniões. Dias antes da aprovação do texto, em de setembro de 1988, o então deputado Luiz Inácio Lula da Silva fez um pronunciamento no qual afirmava que ainda não seria daquela vez que a maioria marginalizada teria uma Constituição em seu benefício. Ele disse que os representantes do PT entraram na Assembléia Constituinte reivindicando 40 horas de trabalho semanais e sairiam com 44, queriam férias em dobro e conseguiriam apenas um terço a mais do salário para gozar desse direito. Em discordância com a opinião de Lula, Ulisses Guimarães afirmou, em seu discurso de abertura do segundo turno de votação, que a Constituinte cooperaria para reversão da instável pirâmide social brasileira de 1 0 milhões de habitantes carentes. “Será a Constituição Cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros”, profetizava o presidente da Constituinte. Essas opiniões, colocadas lado a lado, simbolizam a pouca, senão nenhuma, unanimidade em

7


João Queirolo

Duas décadas de democracia

A ministra ressalta que a Constituição se realizou depois de uma passagem autoritária, o que pode ser a raiz de alguns dos excessos. Bernardo Cabral concorda e diz que “estávamos saindo de uma excepcionalidade institucional para um reordenamento constitucional e, por essa razão, acabaram sendo incluídos no texto matérias nitidamente de legislação infraconstitucional”. Um dispositivo constantemente citado por juristas como exemplo de norma indevidamente incluída na Carta Constitucional é o parágrafo ° do artigo 4 , que determina que o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, deve ser mantido em órbita federal.

A ministra Cármen Lúcia acredita que muitas das críticas à Constituição se devem à má vontade em sua interpretação.

João Queirolo

torno do texto da Carta Magna. “A Constituição tem a diversidade daqueles dois mundos, o da direita e o da esquerda, porém é produto de um momento e deve ser interpretada como tal”, diz o professor da Universidade Presbiterina Mackenzie Cláudio Lembo. Para ele, o Brasil tem tradição de conciliação e a Constituição de 1988 é um dos melhores momentos da conciliação nacional.

Para Luís Roberto Barroso, o principal defeito da Carta Magna é ter constitucionalizado matérias demais e de modo excessivamente detalhista.

8

Constituição analítica

Duas décadas depois da promulgação da Lei Maior, Bernardo Cabral avalia que essa é a Constituição mais democrática que o Brasil já teve e a única com primazia absoluta das garantias individuais e dos direitos fundamentais. “Dizia-se que os direitos não seriam garantidos e que a Constituição não duraria seis meses. Eram as especulações desairosas que faziam alguns apressados, cultores da catástrofe”, diz o relator da constituinte sobre as críticas recebidas na ocasião. Cármen Lúcia, que à época era procuradora de Minas Gerais e ia constantemente a Brasília auxiliar nos trabalhos da Constituinte, cita Pontes de Miranda ao falar dessas críticas. Esse jurista dizia que é preciso, com uma lei nova, ter boa vontade, pois com má vontade não se interpreta, se combate. “Algumas pessoas de antemão já olharam com certa antipatia para essa lei”, afirma a ministra. Para ela, a Constituição pode conter excessos em algumas passagens, resultados do momento histórico da sua promulgação, mas sua avaliação geral é positiva. Revista

Luís Roberto Barroso, professor de direito constitucional da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro e do curso de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas, diz que o principal defeito da Constituição é ter constitucionalizado matérias demais e de modo excessivamente detalhista. Ele diz que matérias como o regime jurídico dos servidores públicos e o sistema tributário deveriam estar na Carta Magna, mas só em linhas gerais e não com o nível de detalhamento que a Carta de 1988 apresenta. Outros assuntos, segundo ele, nem deveriam estar na Constituição e refletem um excesso de corporativismo ao tratar de temas como magistrados, militares, advocacia pública e privada, Corpo de Bombeiros. Para Cláudio Lembo, porém, isso é reflexo da tradição brasileira, e não é um problema. “Na Constituição de 1891 concedia-se uma casa vitalícia à viúva do Benjamin Constant. Isso não altera em nada a vida política e social do país, é apenas o temor da insegurança, das mutações políticas”, diz. Cármen Lúcia salienta que tal nível de detalhamento não é apenas reflexo da ditadura, mas também de um país em que se falava de Constituição onde a maioria das Cartas

Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008


Reprodução do livro “Quércia Retratos & História”

Constitucionais tinham sido feitas dentro de gabinetes. “Claro que havia uma tendência de as pessoas requisitarem que tudo se contivesse naquela Constituição”, explica. Luís Roberto Barroso concorda e diz que era impossível conter a demanda social. “Essa é a razão pela qual a Constituição ficou extremamente casuística, mais que analítica ela é casuística, prolixa e, muitas vezes, corporativa”, diz.

Duas décadas de democracia

Participação popular Quando Carmén Lúcia cita essa “requisição popular”, ela evidencia um aspecto muito lembrado da promulgação da Carta Constitucional de 1988: a participação. A ministra diz que Tancredo Neves havia feito uma campanha que tornou popular a idéia de uma nova Constituição, e, no processo de elaboração dessa, quem teve condições de estar presente ou de mandar material, o fez. “As pessoas participaram não apenas vindo a Brasília. Brasília foi ao Brasil”, diz. Segundo ela, havia debates e discussões em todos os lugares, escolas, igrejas, comunidades. Bernardo Cabral lembra que chegaram a ser apresentadas à Mesa Diretora cerca de 1 0 emendas populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas. Dentre essas, 8 foram admitidas, segundo o então relator da Carta Constitucional. Eram, de acordo com Cármen Lúcia, quantidades imensas de papéis com todo tipo de proposta, que foram submetidas a filtros. Aquilo que era razoável e se apresentava em consonância com a espinha dorsal do trabalho que estava sendo realizado, foi, segundo ela, aproveitado. Dentre as propostas populares que se consolidaram na Carta Constitucional, Bernardo Cabral cita o juizado de instrução, o Sistema Único de Saúde (SUS), os direitos dos consumidores, os direitos dos idosos, a iniciativa popular das leis e a aposentadoria das donas de casa. Revista

Um dos momentos mais marcantes da participação popular na redemocratização do Brasil foi o movimento das Diretas Já.

Toda essa participação foi resultado da mobilização em torno da Constituição, mas também do revigoramento de movimentos sindicais e populares desde o início da ditadura militar. A construção do Sistema Único de Saúde, por exemplo, é fruto de uma mobilização iniciada na década de 1970, coordenada pelo chamado Movimento da Reforma Sanitária, que reivindicava ampliação, melhoria e descentralização da rede pública de saúde para os bairros de periferia. Foi essa articulação social que permitiu, em 1987 e 1988, a apresentação e a aprovação da proposta do SUS. Roberto Rosas, do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC), destoa do coro e diz que o povo se fez presente menos do que

Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008

se diz. “Houve uma participação pontual de segmentos que tinham interesse, não do povo”, diz. Segundo ele, participaram pontualmente grupos de servidores, índios, representantes do Poder Judiciário. A participação popular é, de acordo com Rosas, pequena até hoje, mesmo diante das possibilidades da democracia direta, como a iniciativa popular de leis. O motivo, explica o constitucionalista, é a falta de educação e cultura políticas, sendo que mesmo as pessoas mais aprimoradas culturalmente não têm interesse. Ives Gandra da Silva Martins, ministro do Tribunal Superior do Trabalho e professor emérito da Universidade Mackenzie, também considera que a participação po-

9


Duas décadas de democracia

Hamilton Penna

A opinião de Luís Roberto Barroso corrobora mais com a visão de Cármen Lúcia e Bernardo Cabral. “Os corredores da Assembléia Constituinte eram um espetáculo antropológico. Havia pessoas de todos os seguimentos: militares, garimpeiros, empregadas domésticas, juízes, prostitutas. Todos os setores que conseguiram se articular estavam lá”, diz. O professor de direito constitucional e de filosofia do direito na Universidade Federal Fluminense, Cláudio Pereira Neto, completa dizendo que “foi um processo especialmente democrático e, portanto, nossa Constituição é uma das mais democráticas, que abarca muitas aspirações, muitas

Ives Gandra é um dos defensores da flexibilização das leis trabalhistas.

0

demandas, e também, obviamente, muitos interesses.” Algumas críticas dizem respeito a uma facilidade maior de certos grupos, em detrimento de outros, para conseguir a aprovação das suas propostas. Cármen Lúcia, porém, ressalta que somos não só um país continental, mas um povo plural e, por isso, é difícil abarcar todas as demandas. “A despeito disso, nós temos um conjunto de princípios constitucionais que retratam o que o homem brasileiro queria. A dignidade da pessoa humana, a cidadania, a democracia participativa, tudo isso foi posto na Constituição”, comemora a ministra. Garantias fundamentais Esses direitos – dignidade da pessoa humana, cidadania, democracia participativa – são alguns dos elencados entre as garantias fundamentais. A existência de tais garantias, listadas nos cinco capítulos do Título II da Constituição de 1988, é constantemente apontada como grande conquista. Os direitos humanos, por exemplo, ganharam espaço na Constituição e questões que antes recebiam pouca atenção passaram a ser tratadas de forma especial, como o racismo por parte das autoridades, que se tornou crime inafiançável. A Carta privilegiou a temática dos direitos fundamentais e tratou deles antes mesmo de abordar a organização estatal, que era o tema dos primeiros artigos da Constituição anterior. A preocupação com a prevalência dos direitos fundamentais em uma Carta Constitucional que vinha para colocar um ponto final na ditadura levou os legisladores a elevar tais direitos a cláusulas pétreas. Dessa forma, direitos como liberdade de expressão e inviolabilidade da vida privada, tão violentados durante a ditadura, foram protegidos de forma tal que a nenhum legislador é dado o poder de suprimi-los ou restringilos sem afrontar a Carta de 1988. Revista

Apesar de o legislador ter determinado essa intangibilidade das garantias fundamentais, debates suscitam a necessidade de flexibilização das leis trabalhistas, contidas no Capítulo II, Dos direitos Sociais, do Título I, Das garantias fundamentais, da Constituição da República. Em 007, uma pesquisa elaborada pelas universidades de Harvard (EUA) e McGill (Canadá) a partir de dados da Organização Internacional do Trabaho (OIT) revelou que o Brasil está em sintonia com os países mais desenvolvidos no que tange a direitos dos trabalhadores, entre os quais a Suíça, a Finlândia e a Suécia. O Brasil, porém, ainda não alcançou o estado de desenvolvimento desses países. “Teremos que nos adaptar à economia mundial, desse jeito não estamos beneficiando os empregados, mas sim gerando a informalidade. Temos que nos inspirar nos Estados Unidos, que têm uma flexibilização maior. Os direitos individuais estão no Artigo 5°, acho que eles podem ser modificados sem ferir cláusulas pétreas”, defende Ives Gandra. Luís Alberto Barroso lembra que, quando a legislação diminuiu a Ana Paula Amorim

pular foi pequena. A presença do povo foi importante, segundo ele, para o processo constituinte, com a campanha das “Diretas Já!” e as pressões sobre Sarney para convocar a Assembléia. Depois disso, porém, ele diz que o Congresso seguiu e a participação popular foi menor. Ele afirma, ainda, que a pressão da sociedade, como a que aconteceu no sentido de pedir a punição dos envolvidos com o mensalão, é importante, porém não decisiva. “Os interesses políticos prevalecem”, diz.

Cláudio Pereira Neto acredita que, por ser resultante de um processo muito democrático, a Constituição de 88 abarca muitas demandas e aspirações.

Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008


Duas décadas de democracia

proteção do locatário, houve um aumento da oferta de unidades para locação e, em razão disso, o valor dos aluguéis diminuiu. Ele diz que, de certa forma, isso corrobora com a crença de que a desregulamentação aumenta a proteção. Sobre a flexibilização das leis trabalhistas, ele afirma que é ideologicamente contra, mas que se for possível demonstrar que essa mudança trará uma melhora material, no sentido de aumentar a formalidade (ver gráfico) e as garantias reais dos trabalhadores, então, ele será a favor.

Críticas como essa, que atingem diretamente as garantias fundamentais, não são recentes. Antes mesmo da promulgação do texto aprovado em 1988, políticos e economistas já desacreditavam tais garantias. O economista Mário Henrique Simonsen, que foi ministro da fazenda na década de 1970, disse na época que o Estado não conseguiria garantir todos os direitos listados, os quais representariam um atraso para o crescimento econômico do país e levariam à explosão da carga tributária. “Ora, dizer que os direitos elencados na Constituição são a causa da elevada carga tributária é usar de sofisma”, diz Bernardo Cabral. Revista

Nesses 0 anos, o que se pode constatar é que a carga tributária brasileira saiu de algo em torno de 0% do PIB em 1988 e atingiu 7% em 008. Ives Gandra diz que essa carga não deveria ter crescido tanto. “Justo seria entre 7% e 0%, usando como referência as duas maiores economias do mundo, Estados Unidos e Japão. Chegou o momento de se repensar seriamente tudo isso”, afirma. Roberto Rosas salienta que o aumento de impostos não se deve aos direitos garantidos constitucionalmente. Afinal, muitos desses direitos nem são implementados, como ele lembra. André Ramos Tavares, professor do mestrado e do doutorado em direito constitucional da PUC-SP, em consonância com a opinião de Roberto Rosas, diz que não são os custos dos direitos sociais que irão quebrar o Estado, mas sim a corrupção, o desvio de verbas. “O excesso da carga tributária brasileira é, infelizmente, uma realidade, mas não tem servido a custear os direitos sociais, pois o que o Estado oferece ainda está muito aquém e o que ele cobra muito além”, afirma. “O Custo Brasil está mais associado à necessidade de um choque de gestão do que a um problema

Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008

de atendimento dos direitos fundamentais”, diz Luís Roberto Barroso. Segundo ele, em um país pobre, a prestação de serviços públicos essenciais de qualidade pelo Estado ou sob sua intensa regulação é uma forma indispensável de realização dos direitos fundamentais, de realização da dignidade da pessoa humana. Ives Gandra tem opinião contrária e diz que é preciso reduzir despesas. Para ele, o problema está no Hamilton Penna

Luis Alberto Davi de Araújo, professor da PUC-SP, é contra e diz que as leis trabalhistas são uma conquista e não se deve retroceder. “Quando a Constituição começou, questionavam que licença maternidade nessa extensão e horas extras de 50% quebrariam as empresas, mas nenhuma delas quebrou por isso”, lembra. A ministra Cármen Lúcia salienta que a flexibilização só poderia atingir os procedimentos, ou seja, a forma do cidadão dispor dos direitos constitucionais, mas não os direitos em si. “Uma mudança para anular direitos que foram conquistados e que são tidos como fundamentais realmente seria uma matéria, pelo menos, muito questionável”, afirma.

André Ramos Tavares rebate as críticas sobre os altos custos dos direitos fundamentais dizendo que não são eles que vão quebrar o Estado e sim a corrupção.

1


tamanho da estrutura governamental. “Não abriria mão das garantias individuais, mas dos direitos sociais, sim. Nos Estados Unidos, em 1980, a Chrysler baixou o salário de todos os operários para sobreviver e todos concordaram, até o sindicato. O acordo ficou famoso no mundo todo”, diz. Medidas provisórias Todas essas garantias citadas estão elencadas entre os artigos 5° e 17 da Constituição da República. Mais adiante, porém, no artigo 6 , reside outro tema controverso. “Em caso de relevância e urgência, o presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional” é o que diz tal dispositivo. Quando Fernando Henrique Cardoso se utilizava de tal instrumento era criticado pela oposição. Quando essa oposição chegou ao poder, utilizou-se também da ferramenta e foi alvo, também, de críticas por esse motivo.

João Queirolo

O deputado João Paulo Cunha afirma que as medidas provisórias são um instrumento importante para assegurar a governança em um ambiente que passa por transformações tão rapidamente. Ele lembra

que, inicialmente, as normas editadas dessa forma tinham validade assegurada até que fossem apreciadas pelo Congresso, o que poderia não ocorrer nunca. “Este fato provocava grande insegurança jurídica e concentrava poder no Executivo”, avalia. O instituto foi redesenhado e a medida provisória que não for apreciada no prazo, perde o seu poder normativo. Para o deputado, essa mudança foi positiva e o instrumento é importante, apesar de necessitar de aperfeiçoamento. “É necessário frisar que, apesar de ser um instrumento importante para a governança, o Executivo precisa utilizá-lo com mais parcimônia”, relativiza. Bernardo Cabral afirma que o instituto da medida provisória só faz parte da Constituição de 1988 porque as discussões do Congresso estavam voltadas para a implementação de um sistema parlamentarista de governo. Ao final, quando o regime presidencialista prevaleceu, o que Cabral considera um erro, o instituto persistiu. “E o resultado foi a transformação do presidente da República em usurpador das funções do Congresso Nacional”, diz. Para a ministra Cármen Lúcia, no entanto, esse instrumento não é, em si, antidemocrático, mas o seu abuso o é. Ela ressalta que as medidas provisórias deveriam ser utilizadas apenas em situações de relevância e urgência, como prescreve a Constituição. Situações essas que, segundo ela, existem e realmente não poderiam esperar nem mesmo a tramitação de projetos de lei em regime de urgência. O problema é que tais critérios não são observados. A Medida Provisória n° 4 7, de 9 de julho de 008, é apenas um dos vários exemplos de situações que poderiam esperar a deliberação do A ministra Cármen Lúcia lembra que o Judiciário só pode se manifestar sobre a urgência e a relevância das medidas provisórias se provocado a falar sobre algum caso específico.

Revista

Arquivo pessoal

Duas décadas de democracia

Para o deputado João Paulo Cunha, as medidas provisórias são um instrumento importante para assegurar a governança.

Congresso. O que essa medida faz é alterar as leis que dispõem sobre a transformação da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República em Ministério da Pesca e Aqüicultura, a criação de cargos em comissão, funções comissionadas do Banco Central e gratificações de representação da presidência da República. O abuso das medidas provisórias só poderia ser freado, segundo Roberto Rosas, do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, com maior atividade do Congresso. É preciso, para ele, ter independência para rejeitar ou alterar as medidas encaminhadas. João Paulo Cunha faz coro com Roberto Rosas e diz que se a matéria não é urgente nem relevante o Congresso deve, por maioria, rejeitá-la. “Aprovada a medida provisória depreende-se que a maioria considerou que tais critérios estavam presentes. Este é o jogo democrático”, diz o deputado. Além do Congresso, que demora a legislar, são responsáveis também, de acordo com Rosas, o Executivo, que abusa do instrumento, e o STF, que não discutiu em um primeiro momento os requisitos, as urgências e as necessidades. Luis Alberto Davi de Araújo diz que, se o Legislativo não tem estrutura para dizer o que realmente é urgente e relevante, então cabe ao Judiciário

Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008


Duas décadas de democracia

Eficácia limitada As medidas provisórias, apesar de toda a controvérsia, se constituem como um instrumento que tem seu funcionamento todo regulado em lei. Acontece que nem todos os dispositivos constitucionais gozam desse privilégio. Algumas das normas contidas na Carta de 1988 dependem da posterior edição de leis, sejam elas complementares, específicas ou ordinárias. São as chamadas normas de eficácia limitada. Bernardo Cabral diz que os pontos sobre os quais as lideranças não conseguiram chegar a um acordo foram deixados para regulamentação posterior. Segundo levantamento promovido no primeiro semestre de 008 pelo jornal Valor Econômico, ainda restam 51 incisos, parágrafos ou artigos não regulamentados na atual Constituição.

A demora para que a lei de acessibilidade entre em vigor é citada por Luis Alberto Davi de Araújo para exemplificar a excessiva a tolerância do Congresso em questões importantes.

O inciso VII, artigo 15 , por exemplo, dispõe sobre o imposto que deve incidir em grandes fortunas e demanda para a cobrança desse imposto, Lei Complementar. Duas décadas depois, a Lei Complementar ainda não existe. Outro exemplo é o dispositivo que deveria tratar das atribuições e prerrogativas do vice-presidente da República, que também não conta ainda com a regulamentação requerida pela Constituição. Por enquanto, o vicepresidente é apenas figurativo.

Para falar sobre a questão da regulamentação, Luis Alberto Davi de Araújo cita a lei de acesso das pessoas com deficiência, que “levou 1 anos, o decreto do presidente mais quatro anos, e ainda fixou de cinco a dez anos para que sejam feitas as adaptações para os deficientes”. Na visão dele, isso demonstra que o Congresso Nacional é tolerante com pontos nos quais deveria ser muito exigente. “Há leis de 1996 que ainda não se definiram. É preciso que o Congresso

José Cruz/ Abr

Cármen Lúcia concorda que é função do Congresso frear os abusos do Executivo, mas lembra que o Poder Judiciário só exerce a função de verificar a urgência e a relevância quando é provocado a falar sobre uma determinada medida provisória e, portanto, atua em um campo limitado. Ela diz ainda que acha difícil voltar ao veio constitucional que estabelece a necessidade de urgência e relevância para o uso desse instrumento. “Depois de um tempo fica parecendo que ele pode continuar a ser usado. Em 0 anos quase que se cria, não vou dizer uma cultura, mas um mau uso permanente desse instrumento”, afirma.

Fábio Pozzebom/ABr

fazer isso. Para ele, o STF ainda é muito cauteloso quando aprecia a questão da urgência e, “embora tenha melhorado”, ainda pode ser muito mais efetivo.

O Congresso Nacional é o responsável por regulamentar os dispositivos com eficácia limitada da Constituição e criar os mecanismos para efetivar direitos constitucionais.

Revista

Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008


Duas décadas de democracia

resolva, decida, vote e pronto. Mas há recessos, épocas de eleição e depois vem mutirão para isso e aquilo, o parlamento deveria ser menos caro e operar mais”, avalia. O deputado João Paulo Cunha diz que o problema não é a omissão legislativa. “A agenda do Congresso Nacional, normalmente, é determinada pelas necessidades imanentes ao processo social e econômico do momento, pelos programas de governo e pela ação dos grupos sociais que se reflete nos partidos políticos. Leis que não sejam produzidas como reflexo da dinâmica social tendem a ser inócuas. São as chamadas ‘leis que não pegam’”, afirma. Ele diz, ainda, que alguns temas são mais controversos e carecem de um tempo para angariar o consenso mínimo necessário para ser transformado em lei. Os responsáveis por fazer cumprir a Constituição em todos os seus dispositivos são, para Bernardo Cabral, os agentes políticos dos três Poderes da República. “Os congressistas, porque lhes cabe o dever primário, até aqui pouco cumprido, de complementar e integrar o texto da Constituição. Os magistrados nacionais, especialmente os ministros do Supremo Tribunal Federal, porque

4

muitos dispositivos da Constituição são imediata e diretamente aplicáveis, mas o Judiciário não lhes explorou as virtualidades. Finalmente, o próprio presidente da República que, lamentavelmente, até hoje mantém o vezo eventual da hegemonia do Executivo, dando-lhe ares de presidencialismo imperial, quando mais salutar seria realizar integralmente o programa normativo contido na Constituição”, afirma. O constitucionalista Cláudio Lembo diz que as regulamentações mais importantes foram feitas. “Podemos dizer que há um estardalhaço a respeito disso. Além do mais, o Legislativo não é uma fábrica de salsichas, uma lei pede debate com a sociedade, isso demora mesmo”, afirma. Cármen Lúcia concorda e salienta que a maioria dos dispositivos ainda não regulamentados já conta com projetos de lei em tramitação. Os poucos que ainda não contam com tais projetos são, segundo ela, os que foram mudados recentemente por emendas constitucionais ou alguns que realmente não chamaram a atenção do legislador. Vários projetos podem ser citados. Em tramitação no Senado, por exemplo, tem-se o PLS 50/ 008,

que pretende regulamentar o imposto sobre grandes fortunas previsto no inciso VII do artigo 15 e a PLS 96/ 008, que dispõe sobre o procedimento para a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de municípios na tentativa de regulamentar o parágrafo 4º do artigo 18. Já na Câmara dos Deputados, podemos encontrar propostas com a PLP 414/ 008, que visa regulamentar as garantias contra a despedida arbitrária ou sem justa causa de que fala o inciso I do artigo 7°. Nas comemorações de 0 anos da Constituição da República, a Câmara dos Deputados formou a Comissão dos Notáveis, com o objetivo de estudar os dispositivos ainda não regulamentados e propor regulamentações. O presidente da comissão é Michel Temer e o relator, João Paulo Cunha. As expectativas em relação à comissão, no entanto, são baixas. Roberto Rosas diz que, se os congressistas não tomaram inicitativa ao longo do tempo, não será essa pequena comissão que resolverá os problemas. Luis Alberto Davi de Araújo ironiza e diz que “vamos orar, fazer preces, e escolher bem nossos parlamentares. É mais uma comissão,

Fórum Fórum CESA CESA - ano - ano •• n.n. 98 •• p.p. 4-4 8-41 •• out./dez. jul./set. 008

Revista Revista


Duas décadas de democracia

João Paulo Cunha, relator da Comissão, diz que o ceticismo é procedente, já que nem todas as comissões terminam seus trabalhos ou atingem seus objetivos. Ele afirma, porém, que acredita que essa comissão apresentará, na sessão legislativa de 009, à direção da Câmara dos Deputados um roteiro para enfrentar cada um dos problemas e que o tempo dirá se essa direção, junto aos líderes, vai enfrentá-los. “Vale uma observação final: não são notáveis. Notável é o conjunto do parlamento”, diz. O deputado lembra, ainda, que a própria Constituição Federal dispõe de mecanismos para que o direito individual possa ser defendido ainda que o dispositivo não esteja regulamentado. Mandados de injunção Um desses mecanismos é o mandado de injunção, que fica a cargo do Supremo Tribunal Federal. Tal prerrogativa é dada pelo inciso LXXI do artigo 5° da Constituição da República, que diz que “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. Ironicamente, porém, o processo de mandado de injunção também não foi normatizado. “Nós adotamos, por empréstimo, basicamente o processo do mandado de segurança, mas isso ainda não foi regulamentado. Não se deixa de aplicar, mas há de se ter uma lei para tratar especificamente do mandado de injunção”, diz a ministra Cármen Lúcia. Revista

No dia 5 de outubro de 007, o STF decidiu, pela primeira vez, sobre um mandado de injunção. O julgamento tratava do direito de greve dos servidores públicos, que, de acordo com o inciso VII do artigo 7 deveria ser regulamentado primeiro por lei complementar e, depois, sob a nova redação dada pela emenda n° 19 de 1998, por lei específica. Na ausência dessa regulamentação, o Sindicato dos Servidores Policiais Civis do Espírito Santo (SINDPOL) levou o caso ao STF e os ministros decidiram, por maioria, aplicar ao setor, no que couber, a Lei n° 7.78 /89, que regulamenta a greve do setor privado. A ministra Cármen Lúcia diz que “chegaram os pedidos de injunção e houve uma nova compreensão constitucional no sentido de que não adianta ter normas no papel se elas não influenciam a vida das pessoas. E para influenciar é preciso exatamente que se dê seqüência e eficácia a esse instrumento integrativo de normas ainda não completadas, não integradas pelo legislador”. A ministra diz, ainda, que essa decisão reflete uma mudança significativa no papel dos cidadãos,

Fórum CESA - ano • n. 98 • p. 4-4 8-41 • out./dez. jul./set. 008 008

que passaram a reivindicar os seus direitos em todas as instâncias, até no STF, o que impulsiona o Poder Judiciário a atuar mais no sentido de dar uma resposta válida a “uma sociedade que tem o direito de exigir os seus direitos”. Nesse tipo de julgamento, no qual o STF declara a omissão do Legislativo e decide uma questão apesar da ausência de normas específicas, ou até em casos nos quais o Supremo é chamado a dar seu parecer sobre constitucionalidade de leis, é, mais uma vez, levantada a questão da separação dos poderes. Luís Roberto Barroso diz que se pode dizer que a Constituição de 1988 contribuiu para a judicialização das relações sociais no Brasil, mas que não é um crítico dessa judicialização. “A crise de representatividade, de legitimidade e de funcionalidade do Legislativo levou o Supremo a expandir a sua atuação em certos casos. Isso tem uma parte positiva: o Supremo está atendendo às demandas da sociedade. Mas tem a face negativa: revela que o Legislativo não as está atendendo, não em toda a sua extensão”, diz.

Wilson Dias/ Abr

mais um grupo de trabalho. Espero que esse tenha sucesso”. Já Cláudio Lembo diz que não gosta de comissões de notáveis e que seria melhor ouvir todos os segmentos da sociedade.

O primeiro mandado de injunção determinou a aplicação da Lei de Greves do setor privado no setor público.

5


Duas décadas de democracia

Aos críticos que dizem que o STF usurpa a função do Legislativo ao recorrer, por exemplo, aos mandados de injunção, a ministra Cármen Lúcia diz que “o Judiciário se submete à lei como todo e qualquer outro órgão do Estado. A diferença é que compete ao STF em última instância, por exemplo, dizer como se interpreta a lei, mas isso sempre do ponto de vista jurídico”, explica a ministra.

Se os legisladores que passaram pelo Congresso Nacional nesses 0 anos por qualquer motivo não regulamentaram alguns dispositivos constitucionais, muitos se interessarem por outras matérias tratadas pela Lei Maior. Apesar das limitações impostas pelo artigo 60, que renderam à Constituição a classificação de semi-rígida, dados a restrição na iniciativa dos projetos de emendas e o quorum especial de aprovação das mesmas, a Constituição de 1988 já foi emendada em mais de 50 artigos. “É certamente um recorde mundial. Esse número excessivo de emendas impede que a Constituição cumpra a sua vocação de permanência, de síntese dos valores fundamentais e duradouros”, diz Luís Roberto Barroso. Ele diz, ainda, que é o detalhamento da Constituição que causa sua instabilidade. Bernardo Cabral usa a expressão “canteiro de obras” para designar o Congresso em trabalho de edição de emendas constitucionais. “Hoje são por volta de 1.600 propostas de emenda tramitando nas duas Casas Legislativas. Não vejo na maior parte delas, nem mesmo nas já aprovadas, nenhum efeito no

Paulo Arumaá/ Vale

Ela continua dizendo que legislar é inovar a ordem jurídica, é criar algo no direito. O Supremo, salienta Cármen Lúcia, não pode e não faz isso. Para exemplificar, a ministra cita o julgamento da inclusão em listas eleitorais de pessoas sujeitas a processos. “Muitos queriam que o Poder Judiciário tivesse dito que essas pessoas não poderiam ser elegíveis. No entanto, o Supremo disse que, naquele caso, não havia nenhuma norma que se pudesse interpretar naquele sentido e, por isso mesmo, descontentou uma grande parte da sociedade brasileira”, diz. De acordo com a ministra, enquanto não vier uma lei, enquanto a ordem jurídica brasileira não tiver uma criação do legislador no sentido de tornar inelegíveis pessoas sujeitas a processos, o STF não pode inovar.

Emendas constitucionais

Pesquisar e lavrar recursos minerais deixou de ser exclusividade de empresas brasileiras de capital nacional a partir da Emenda nº 6 de 1995.

6

Revista

processo ordinário ou revisional”, diz. Cabral afirma que é preciso extrair da Constituição tudo o que dificulta sua efetividade, sem, no entanto, modificar o texto por interesses meramente circunstanciais ou momentâneos. Ives Gandra diz que as emendas foram apenas alterações tópicas, que desfiguraram a Constituição perifericamente, mas não atingiram sua espinha dorsal. Foram, para ele, mudanças necessárias para determinadas situações. “Eu diria, parafraseando o ministro Gilmar Mendes, que uma Constituição com excesso de ‘analitismo’ gera um excesso de ‘emendismo’, e a nossa é prolixa e muito analítica. Mas a estrutura e o equilíbrio dos poderes foram preservados, estão incólumes”, afirma Gandra lembrando os neologismos do presidente do STF. Cláudio Pereira, da Universidade Federal Fluminense, diz que, apesar de a Constituição não poder ser imutável, ela também não deve ser o inverso, com texto instável e profundamente alterado. Segundo ele, não é bom que a Constituição seja modificada toda hora, pois estabilidade é uma das condições fundamentais para que ela incida na realidade social. Só uma Constituição estável pode, segundo ele, provocar no povo um sentimento de adesão ao seu texto. No entanto, ele diz que, como nossa Constituição é analítica, é inevitável que ela seja constantemente alterada. “Não é bom que a Constituição seja emendada toda hora, mas temos que ver isso como um dado da realidade, como uma das características fundamentais do nosso texto constitucional”, diz. Roberto Rosas completa afirmando que, no conjunto, foi uma adaptação à realidade. “Algumas emendas são mesmo casuísticas, mas na média foram boas, reajustes necessários, por isso realizados. Sem essas modificações tornava-se inviável a eficácia da Constituição em um cenário de 0 anos.”

Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008


Duas décadas de democracia

A primeira emenda foi aprovada apenas quatro anos depois da promulgação da Carta Constitucional, no governo do presidente Fernando Collor. A emenda inaugural tratava primordialmente das questões relativas a subsídios de agentes políticos. Foi ela, por exemplo, que estabeleceu o teto para os subsídios dos deputados estaduais em até 75% do recebido pelos deputados federais. Entre a aprovação dessa emenda, em 199 , e o fim do mandado de Itamar Franco – que substituiu Collor depois do impeachmant, em 1º de janeiro de 1995, foram mais três emendas. Nesse período, porém, o Congresso se voltou para promover a revisão constitucional, prevista para cinco anos depois da promulgação da Carta Magna no artigo º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Os trabalhos, presididos pelo senador Humberto Lucena e relatados pelo deputado Nelson Jobim, resultaram em 74 projetos de emendas de revisão. Apenas seis foram aprovadas. A partir dessa aprovação, por exemplo, a dupla nacionalidade foi permitida a brasileiros em alguns casos, o rol de inegibilidades foi ampliado e o mandado presidencial foi reduzido de cinco para quatro anos. Foi a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, porém, que as emendas constitucionais passaram a ser editadas com mais freqüência no Congresso Nacional. Se em sete anos foram aprovadas quatro emendas, sem contabilizar as revisionais com previsão constitucional, de 1995 a 00 , no Governo FHC, foram 5 emendas. O teor desses dispositivos é variado, mas foi a partir deles que se tornou possível, por exemplo, a privatização de várias estatais e a entrada mais consistente de capital estrangeiro. Assim, a Emenda n° 6 de 1995 alterou o parágrafo 1° do Artigo 176 e possibilitou que qualquer empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no país pudesse pesquisar e laRevista

Emendas constitucionais Em duas décadas, os diferentes governos alteraram a Constituição em vários pontos, modificando, por exemplo, a intervenção do Estado na economia e os princípios da Administração Pública. Abaixo, o panorama geral das emendas constitucionais nos vários governos pós-88.

1a emenda aprovada

no governo de Fernando Collor (1990 a 199 )

9 emendas

no governo de Itamar Franco (199 a 1995), sendo 6 de revisão constitucional, prevista pelo artigo º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)

35 emendas

nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995 a 00 )

20 emendas

no governo de Luís Inácio Lula da Silva no período de 00 a 007.

Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008

Total: 65 emendas 7


Duas décadas de democracia Arquivo Editora Fórum

mais 0 emendas. Seu teor também é do mais variado. A Emenda n° 50 de 006, por exemplo, altera as datas de reuniões do Congresso Nacional, diminuindo as férias parlamentares. A Emenda n° 5 de 006, por sua vez, diminui de seis para cinco anos a idade dos filhos de trabalhadores urbanos e rurais com direito a garantia de assistência gratuita em creches e pré-escolas. “Essa ponderação recente, com número menor de emendas em relação aos primeiros anos, faz o barco seguir num ritmo melhor”, avalia Ives Gandra.

A Emenda nº 5 de 006 diminuiu de seis para cinco anos a idade dos filhos de trabalhadores urbanos e rurais com garantia de assistência gratuita em creches e pré-escolas.

vrar recursos minerais. Antes dessa emenda, apenas empresas brasileiras de capital nacional exploravam esse mercado. Já a Emenda Constitucional n° 5 de 1995 alterou o parágrafo ° do artigo 5 e retirou, dessa forma, a exclusividade de distribuição de gás canalizado de empresas estatais. O professor da PUC-SP Cláudio Pereira acredita que algumas pessoas consideram as emendas retrocessos, principalmente na área econômica. Ele salienta que o texto originário da Constituição de 1988 era mais nacionalista, mais aberto a intervenções, ao domínio estatal no campo econômico. As sucessivas emendas constitucionais, explica o constitucionalista, foram aprovadas em grande parte com o objetivo de reduzir esta intervenção e esse caráter mais nacionalista da Constituição. “Por essa razão, são emendas que se abrem a críticas, principalmente críticas de caráter ideológico”, diz. Foi também nesse Governo que foi editada a Emenda n° 16 de 1997, que possibilitou a reeleição, outro dispositivo controverso. O constitucionalista Luis Alberto Davi de Araújo considera tal emenda um grande equívoco, pois, para ele, foi reduzida a capacidade da oposição

8

falar qualquer coisa sobre a eleição. “Para mim é algo indigesto, ainda mais pela reeleição de quem estava no poder, no caso FHC. Isso não me pareceu nada correto”, diz. Cláudio Lembo diz que a reeleição não foi antidemocrática, mas anti-republicana. “Desde 1891, os constituintes foram precisos ao não permitir a reeleição, alegando que ela possibilitaria o uso da máquina e estimularia o caudilhismo. Foi um erro efetivo. Já a reeleição do próprio presidente da época envolveu uma questão ética”, avalia. Luis Alberto Davi de Araújo diz ainda que a Constituição sofreu um giro um pouco mais para o centro, ou para a direita, mas, segundo ele, se o povo brasileiro quis assim, pode-se até não gostar, mas não se pode dizer que está errado. “Mudanças ocorreram, mas a preservação da dignidade da pessoa humana segue firme, ou seja, a Constituição teve a essência preservada. O legislativo atua mal porque escolhemos mal, mas isso é outro problema, eles são escolhidos democraticamente. Falta uma reforma política, de fato” Ao governo de Fernando Henrique, seguiu-se o mandato do Lula. Desde que o novo presidente assumiu, em 00 , até 007, foram Revista

Cármen Lúcia salienta que, no mundo democrático, o que se adota é ouvir o povo nessas ocasiões, por meio, principalmente, do referendo popular. Assim como para elaborar a Constituição, o povo foi chamado a participar e legitimar o texto, ela lembra, os mecanismos de interação entre os parlamentares e a sociedade em geral devem ser utilizados. No Brasil, adota-se que o Congresso Nacional, por três quintos dos seus membros em dois turnos de votação, tem a prerrogativa de editar as emendas. “Mas se eu sou titular do poder, então eu é que tenho que dizer quando quero falar diretamente. Afinal, eu dei um voto pra que ele me represente, mas às vezes eu não quero me representar, eu quero me apresentar no processo”, diz a ministra. Cármen Lúcia avalia que algumas medidas aprovadas representaram avanços e eram necessárias diante das mudanças pelas quais o mundo passou depois de 1988. Em outros casos, porém, ela acredita que os parlamentares deveriam ter tido, no mínimo, o cuidado de ampliar mais o debate na sociedade, fazendo uso de Audiências Públicas. A emenda constitucional que possibilitou a reeleição se inclui, na opinião da ministra, no segundo caso. Ela ressalta, no entanto, que a edição de emendas é legítima, uma vez que os parlamentares receberam do povo a função de, entre outras atribuições, modificar a Constituição.

Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008


Duas décadas de democracia

Para falar de problemas da Constituição, José Sarney é, desde a promulgação, uma fonte promissora. Na já citada entrevista à Folha de S.Paulo em fevereiro de 008, ele afirmou que, para que a democracia se aprofunde, é necessário mudar a Constituição. “O meu sentimento é que nós temos um encontro marcado com um grande impasse político em termos de futuro se não mudarmos a Constituição”, disse. Para ele, se não for realizada uma reforma política rapidamente, assistiremos a uma “completa paralisia das funções dos poderes”. “O Congresso não funciona, o Executivo absorve funções do Congresso, o Judiciário absorve funções do Congresso. A atividade política morre, criam-se nichos de influência paralelas, o que é uma deformação do sistema democrático.” Revista

Barroso afirma que a Constituição tem problemas em matérias administrativas e econômicas. O detalhamento da Carta promulgada em 1988 produz, segundo

ele, uma dificuldade para a governabilidade por impor a necessidade de emendas constitucionais sucessivas. “Em toda parte do mundo, os partidos políticos vitoriosos em eleições governam por maioria simples, que é o quorum necessário para a aprovação de uma lei ordinária. No Brasil, como tudo está na Constituição, a política ordinária acaba tendo de ser feita por emendas à Constituição que exigem um quorum de três quintos dos membros de cada Casa Legislativa para a sua aprovação”, explica. O constitucionalista ressalva, porém, que apesar das deficiências de origem, a prática da Constituição de 1988 nestes últimos vinte anos foi muito feliz. “Nós estamos muito queixosos hoje porque passamos a ter pressa no avanço político e no avanço social. Mas Jorge Araújo (Folha Imagem)

Em 0 anos de vigência da Carta Constitucional, é preciso reconhecer as virtudes e avaliar os problemas para solucioná-los. Para falar em virtudes, é necessário lembrar que a Carta Magna promulgada em 1988 representou a volta da democracia depois de décadas de ditadura. Bernardo Cabral diz que “sem a nova Constituição, o Brasil não estaria respirando o ar saudável das liberdades públicas e civis enfim restauradas”. Ives Gandra compartilha da opinião de Cabral e afirma que o Brasil tem um equilíbrio notável entre os três poderes e que essa é uma das grandes conquistas da nossa Lei Maior. “Passamos o impeachment de um presidente, processo inflacionário elevado, crise asiática e russa, crise interna, anões do Congresso, desvalorização cambial, mensalão com 40 indiciados pertencentes ao governo e a democracia fluiu naturalmente. Foram crises estruturais da democracia e graças à Constituição passamos incólumes”, afirma Gandra.

Luís Roberto Barroso é a favor da reforma política e diz que, em sua opinião, é preciso reformar o sistema eleitoral, acabar com o sistema proporcional com lista aberta e implantar um sistema de voto distrital misto com lista fechada. Além disso, ele defende uma reforma partidária que prestigie a autenticidade dos partidos e contenha com razoabilidade a pulverização partidária. O constitucionalista defende, ainda, as reformas tributária e previdenciária, no sentido de desconstitucionalizar amplamente as matérias, de forma a deixar na Carta Magna apenas as grandes diretrizes, o que for verdadeiramente essencial.

Lula Marques/ Folha Imagem

Eficácia

Os últimos 0 anos foram marcadas por crises como a do impeachment do presidente Fernando Collor (acima) e a do mensalão (abaixo). Para Ives Gandra, o Brasil passou incólume por elas graças à Constituição de 1988.

Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008

9


Duas décadas de democracia

a quantidade de realizações importantes que nós conseguimos no Brasil nestes últimos vinte anos são notáveis. A prática dos poderes ajudou a dar vida à Constituição, inclusive superando as deficiências do seu texto em muitas situações.” A ministra Cármen Lúcia concorda que existem problemas na Carta Magna brasileira, mas afirma que “o que ela tem de bom é muitíssimas vezes maior do que o que ela tem de ruim”. Bernardo Cabral evidencia que a Constituição firmou a liberdade de expressão, a liberdade de comunicação, o acesso à informação, o sigilo da fonte, o fim da censura, dentre tantos comandos constitucionais do mais alto valor significativo. Roberto Rosas salienta outro grande avanço em sua opinião: a independência do Ministério Público e do Poder Judiciário em geral. “Muitos criticam, mas é muito importante essa estrutura do Judiciário bem aprimorada, especialmente no plano estadual. Hoje a carreira do juiz estadual não está subordinada ao Executivo”, diz.

Toda lei quando é bem interpretada e bem aplicada, segundo Cármen Lúcia, pode apresentar resultados muito melhores que uma ótima lei mal interpretada. E, segundo ela, a Constituição tem sido bem interpretada e bem aplicada. “Pelo menos se tem um Poder Judiciário, que atua muito mais com vontade de aplicar e de tornar efetivas as normas constitucionais do que talvez jamais tenha

Evelson de Freitas/ Folha Imagem

Não é suficiente, claro, uma mera declaração solene de direitos. É preciso garantir meios para que eles possam ser usufruídos. Cláu-

dio Pereira lembra que o direito de inviolabilidade do domicílio implica a prévia existência de uma casa, de uma morada. Da mesma forma, de nada vale o direito à educação, se não forem criados meios materiais para a sua realização. “A Constituição é cidadã, mas os próprios cidadãos é que precisam o ser em sua plenitude, principalmente no que tange aos direitos sociais e econômicos”, diz. André Ramos Tavares afirma que, para o cumprimento integral da Constituição, falta apenas tempo. “Vinte anos, de maneira geral, é pouco tempo para a consolidação da Constituição, que não é algo isolado da sociedade, ela é a própria sociedade e o que a envolve”, diz. É preciso, segundo ele, apenas dar continuidade ao trabalho de consolidação da Carta Constitucional.

A Lei Maior promulgada em 1988 tem como grande mérito, na avaliação de Cármen Lúcia, o fato de ter se tornado conhecida por grande parte dos brasileiros, o que, segundo ela, nunca tinha acontecido no país. Para Cármen Lúcia, deixamos de ser cidadãos que preferimos um mau acordo para não ter que ir à luta pelos nossos direitos, que aprendemos a exigir. O que falta agora, ela salienta, é fazer o mesmo compromisso em nome dos direitos daqueles que estão ao nosso lado. “Não há a possibilidade de termos um Brasil justo para todos os brasileiros enquanto todos não fizerem disso um compromisso e uma responsabilidade pessoal”, explica. A ministra diz, ainda, que a Constituição não se torna efetiva apenas pelo ato do poder público, mas pela atuação da sociedade. Ela afirma que a dignidade é um compromisso com cada um de nós assim como a solidariedade, para que o outro também seja respeitado na sua dignidade. “Se o Brasil não der certo de forma justa e democrática pra todos os outros, para nós também não estará dando certo”, diz. Seja por iniciativa do poder público ou da população, ajustes e reformas são necessárias, mas as conquistas também são inegáveis. Organização e limitação do poder político e centralização dos direitos humanos são a síntese dessas conquistas representadas pela Constituição de 1988, segundo Luís Roberto Barroso. “Não quero vender a ilusão de que nós tenhamos atingido um patamar ideal nessa matéria. Estamos, infelizmente, longe disso. Mas na vida o rumo é mais importante que a velocidade”, conclui.

Cláudio Pereira Neto lembra que é preciso garantir meios para que os direitos sejam usufruídos. De nada vale o direito à educação se não existem meios materiais para sua realização.

40

tido na sua história”, diz a ministra. Cláudio Lembo concorda com a importância do Poder Judiciário na manutenção da democracia constitucional e afirma que a Constituição permanecerá como um documento estável em razão da possibilidade de revisão e da competência do STF. “A Constituição americana tem 00 anos porque o Supremo foi a interpretando a todo o momento, alterando costumes e posições”, diz.

Revista

Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008


Duas décadas de democracia

Direitos humanos nas constituições brasileiras 1824

Foram garantidos direitos de primeira geração (civis e políticos). A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, inspiraram a inclusão de liberdade, segurança individual e propriedade como garantias constitucionais. A Declaração continha também o direito de resistência à opressão, mas esse foi omitido na Constituição de 18 4. A propriedade e a renda eram condições fundamentais para o exercício do poder político. Algumas das garantias foram: • liberdade de expressão do pensamento, inclusive pela imprensa, independentemente de censura; • igualdade de todos perante a lei; • abolição dos açoites, tortura, marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis; • exigência de lei anterior e autoridade competente para sentenciar alguém; • instrução primária gratuita; • direito de petição e de queixa, inclusive o de promover a responsabilidade dos infratores da Constituição.

1891

A nova Constituição possibilitou, formalmente, que o poder político fosse exercido independentemente do poder financeiro dos indivíduos. Seriam eleitores os cidadãos maiores de 1 anos, excluindo-se desse alistamento os mendigos, os analfabetos, os religiosos sujeitos a voto de obediência e as mulheres. O voto, entretanto, continuava a ser aberto. Além das garantias da Constituição de 18 4, acrescentou-se: • plena liberdade religiosa, com a separação da Igreja do Estado; • liberdade de associação sem armas; • assegurou-se aos acusados a mais ampla defesa; • aboliram-se as penas de galés, banimento judicial e morte; • criou-se o habeas corpus com a amplitude de remediar qualquer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder (depois restringiu-se o uso desse instrumento a casos relacionados à liberdade de locomoção); Revista

Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008

• instituíram-se as garantias da magistratura (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos), mas, expressamente, só em favor dos juizes federais.

1834

A partir de 19 4, verifica-se maior inserção dos direitos sociais (direitos de segunda geração) nas constituições brasileiras. Eles exigem do Estado mais participação para que possam ser implementados, ou seja, há a necessidade de uma atuação Estatal positiva. Em 19 4, as mulheres ganharam o direito ao voto. Acrescentaram-se os seguintes direitos: • Instituiu a Justiça Eleitoral e o voto secreto; • normas para direito penal: instituiu o mandado da segurança; vedou a pena de caráter perpétuo; proibiu a prisão por dívidas, multas ou custas; criou a assistência judiciária para os necessitados; • normas de proteção do trabalhador: repouso semanal, férias anuais remuneradas; proibiu de diferença de salário para um mesmo trabalho por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; criou da Justiça do Trabalho, salário mínimo capaz de satisfazer às necessidades normais; • direitos culturais: educação para todos, obrigatoriedade e gratuidade do ensino primário, inclusive para os adultos.

1937 A Constituição do Estado Novo fortaleceu o Poder Executivo federal e ignorou a autonomia dos entes da federação. Leis eventualmente declaradas contrárias à própria Constituição autoritária, ainda assim podiam ser validadas pelo presidente. O plebiscito para a aprovação da Carta nunca chegou a ser realizado. A Constituição declarou o país em estado de emergência e trouxe vários retrocessos no âmbito dos direitos dos cidadãos: • a magistratura perdeu suas garantias; • a liberdade de ir e vir foi suprimida; • foi estabelecida a censura da correspondência e de todas as comunicações orais e escritas; • a liberdade de reunião foi suspensa; • passou a ser permitida a busca e apreensão em domicílio. 41


Duas décadas de democracia

1946 Marcou um retorno democrático com a consolidação de um sistema político fundado na democracia representativa. A Constituição de 1946 restaurou os direitos e garantias individuais, que foram mais uma vez ampliados, em comparação com o texto constitucional de 19 4. Foram algumas das conquistas: • o princípio da ubiqüidade da justiça; • a soberania dos veredictos do júri e a individualização da pena; • normas de proteção do trabalhador: salário mínimo capaz de atender às necessidades do trabalhador e de sua família; participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da empresa; proibição de trabalho noturno a menores de 18 anos; assistência aos desempregados; obrigatoriedade da instituição, pelo empregador, do seguro contra acidentes de trabalho; direito de greve; liberdade de associação profissional ou sindical. • direitos culturais: gratuidade do ensino oficial ulterior ao primário para os que provassem falta ou insuficiência de recursos; obrigatoriedade de as empresas em que trabalhassem mais de 100 pessoas manterem ensino primário para os servidores e respectivos filhos; obrigatoriedade de as empresas ministrarem, em cooperação, aprendizagem aos seus trabalhadores menores; instituição de assistência educacional em favor dos alunos necessitados, para lhes assegurar condições de eficiência escolar. A partir do golpe de 1964, no entanto, a Constituição de 1946 sofreu múltiplas emendas e suspensão da vigência de muitos de seus artigos. Isso aconteceu por força dos Atos Institucionais de 9 de abril de 1964 (posteriormente considerados como o de n° 1) e de 7 de outubro de 1965 (Ato Institucional de n° ou AI- ).

• restrição do direito de reunião facultando à polícia o poder de designar o local para sua realização; • criação da pena de suspensão dos direitos políticos, declarada pelo Supremo Tribunal Federal, para aquele que abusasse dos direitos de manifestação do pensamento, exercício de trabalho ou profissão, reunião e associação, para atentar contra a ordem democrática ou praticar a corrupção; • manteve todas as punições, exclusões e marginalizações políticas decretadas sob a égide dos Atos Institucionais; • inovações contrárias ao trabalhador: redução para 1 anos a idade mínima para o trabalho; supressão da estabilidade como garantia constitucional e estabelecimento do regime de fundo de garantia, como alternativa; restrições ao direito de greve; supressão da proibição de diferença de salários por motivo de idade e nacionalidade. Nesta Constituição verificam-se também algumas concessões vantajosas aos trabalhadores, como o direito ao salário família, em favor dos dependentes do trabalhador; proibição de diferença de salários também por motivo de cor, circunstância a que não se referia a Constituição de 1946; participação do trabalhador, eventualmente, na gestão da empresa; aposentadoria da mulher, aos trinta anos de trabalho, com salário integral. Em contraste com as restrições sofridas durante a ditadura militar, a Constituição de 1967 determinou que era imprescindível o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário, preceito que não existia, explicitamente, nas Constituições anteriores. A eficácia desse artigo não saiu, entretanto, da teoria, dado o clima geral de redução de liberdade e a conseqüente impossibilidade de denúncia dos abusos que ocorressem.

1988

1967

A Constituição promulgada durante a ditadura militar aumentou os poderes concernentes à União e ao presidente da República, reduziu a autonomia individual, permitiu a suspensão de direitos e garantias constitucionais e reformulou os sistemas tributário e orçamentário. Alguns dos retrocessos foram: • supressão da liberdade de publicação de livros e periódicos ao afirmar que não seriam tolerados os que fossem considerados (a juízo do Governo) como de propaganda de subversão da ordem;

4

As garantias fundamentais foram tratadas logo nos primeiros artigos da Constituição e declarados cláusulas pétreas pelo Artigo 60, parágrafo 4°. Alguns importantes direitos conquistados: • livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; • o racismo passou a ser crime inafiançável e imprescritível; • proteção à vida privada, à intimidade, à honra e à imagem das pessoas; • a determinação de que propriedade deverá atender a sua função social; • o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se ao poder público e a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Revista

Fórum CESA - ano • n. 9 • p. 4-4 • out./dez. 008


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.