nos mares da representação
REPRESENTAÇÃO E PERCEPÇÃO DO ESPAÇO HABITADO
Beatriz Palmeira | Nathalia Leal
Um passeio, duas percepções, variadas representações...
E
ste é um diário de bordo que está sendo contado por duas iniciantes no velejamento, que adentraram nos mares da percepção e da representação. Nos demos conta de que esse campo é tão vasto quanto o mar e que, por existirem várias formas de passear por ele, valeria a pena o uso dessa metáfora. Parando agora, depois de algum tempo de rota partilhada, fica mais fácil compreender algumas das conversas das nossas tardes de quarta-feira. Algumas, somente. Porque, como dissemos, esse mar é imenso e não achamos que a sua compreensão poderá ser um dia tida como completa, e está aí uma das suas belezas: há sempre o Outro para ser percebido e haverá sempre uma infinidade de formas desse Outro ser representado. Dito isso, aqui serão guardadas as representações que foram tomando forma durante o nosso passeio, por meio, primeiramente, do olhar de duas percepções individuais diferentes, que em diversos pontos convergiram e assumiram uma unidade, mas sem esquecer dos demais participantes da tripulação, que tiveram um papel fundamental para que esse passeio fosse leve, bonito e cheio de aprendizado.
Tomando a primeira pessoa agora nessa história, eu, Bia, não imaginava que essa matéria pudesse ser comparada à um passeio. O começo foi complicado, os textos bastante densos e complexos, e o fato de estar fora da minha zona de conforto me fez querer desistir de permanecer na embarcação. Ao mesmo tempo, alguma coisa dizia que saindo da zona de conforto e entrando em contato com o Monstro, eu iria aprender e crescer. Permaneci, e dito e feito! Aprendi, cresci e pude passear num mar de novidades, com pessoas super agregadoras e inspiradoras! Pegando a primeira pessoa agora, eu, Nathalia, achei que talvez fosse um mergulho ousado demais se aventurar em paragens desconhecidas, assim, de onde nunca estivera próxima. Mas, apesar dos caminhos antes distantes e distintos, logo me senti à vontade em nadar por esses mares e percebi que as semelhanças eram bem maiores que as aparentes diferenças. Pois bem, o nosso conhecimento da arte de velejar é reduzido, mas comecemos por onde acreditamos que os passeios de barco costumam começar: na decisão de recolher as âncoras e começar a navegar. Recolher as âncoras é recolher um pouco das seguranças, é a decisão de entrar num mar repleto de surpresas, sem a garantia do que se encontrará ao adentrar. No nosso caso, esse momento aconteceu quando assistimos a animação “O menino e o mundo”. O recolher das âncoras aconteceu quando precisamos representar o que vimos à nossa maneira, assim, de sopetão. Um filme, nove pares de olhos que assistiram as mesmas cenas, nove formas distintas de representá-lo. Nesse primeiro contato com os mares que nos aguardavam, percebemos que o enxergar carrega em si percepções muito únicas e a mesma coisa pode ser contemplada de maneiras muito diferentes – cada olhar tem suas múltiplas facetas e segue o
seu curso até desaguar no que mais lhe pertence. Em “O menino e o mundo”, eu, Nathalia, naveguei por um universo tão múltiplo quanto as várias técnicas que compunham o visual do filme e a rica profusão de sons que alagava os nossos ouvidos. Muita coisa veio à mente ao assisti-lo e inundei várias páginas de anotações enquanto meus olhos eram invadidos pela tela. À nossa frente, uma paisagem sempre mutável - começa com o nada, branco, depois enche-se de cores, elementos, sons, flui no rio idílico da infância rural até atingir o caos da cidade consumista, degradada. Quando, antes da discussão, fomos pegos de surpresa pela tarefa de representar naquela mesma hora o filme como vinha à cabeça, foi como quando uma onda antes inofensiva na beira da praia nos derruba de supetão. A insegurança de ter que “pensar rápido” foi se entranhando aos poucos, brotando dos pequenos espaços, um olhando para o outro num riso entre apreensão e aceitar do desafio. E, assim, munidos de papel, lápis de cor e hidrocor, começamos a construir nossas representações daquele mesmo mundo múltiplo do menino. O resultado final nos mostrou pela primeira vez como nossas sutilezas individuais emergem em nossas criações e em nosso discurso, sempre permeado por significação e representação, mesmo sem querer. Uma lição prévia do que aprenderíamos com Foucault. Pensei muito no que pôr no papel, porque eram tantas as possibilidades. Resolvi deixar fluir como o próprio rio que flui no filme e dá origem à mata fértil e cheia de bichos; fluir também como o gorro do menino, que traz em si um portal entre passado, presente, memória, sentimento, desejo; ser também livre como as notas musicais representadas como esferas coloridas no ar. Deixei o receio da falta de habilidade gráfica do lado e comecei a
preencher o espaço vazio do papel que me encarava. De um lado, desenhei signos da memória idílica e afetuosa (gorro, árvores, flauta, melodia, rio límpido, chuva, o som enclausurado na lata para guardar a saudade do pai, a fênix da cultura popular). Do outro, o mundo mais sombrio da sociedade industrial, do consumo, exploração trabalhista, miséria, desigualdade de oportunidades e homogeneização (guindaste, pessoas iguais, a pirâmide social da cidade representada em suas habitações) - no meio dessa seção, o principal: o rasgo físico, queimor, buraco no peito do menino que era consumido por essa sociedade, quebra do filme que sai da animação infantil para mostrar imagens reais do mundo caótico e destrutivo em que vivemos. Pensei em deixar assim, mas pensei em tentar sintetizar de modo mais claro o que seria o conflito principal do filme, tal qual ele mesmo sinaliza em algumas cenas que ressaltam essa dicotomia.
sido rasgado e preenchi o coração do corvo com os valores sombrios de sua distopia: mídia, dinheiro, consumo, poluição, desigualdade. Ficou ainda a opção de preencher o buraco com o vazio neutro e deixar cada ave ser ela mesma por si só. Explico tudo isso melhor agora e possivelmente de uma forma pormenorizada demais, talvez para compensar a sensação de ter me afogado parcialmente nas palavras ao tentar explicá-lo pela primeira vez em sala de aula. Era um pouco difícil encarar esse primeiro mergulho sem titubear. Estávamos ainda examinando o terreno - mas a discussão que se seguiu logo depois sobre as representações dos colegas e os sentidos do filme foi determinante para entender que esses mares do representar podiam ser desbravados de um modo empolgante. Já no meu caso, Bia, senti dificuldade de representar algo que eu tinha assistido passivamente, sem mergulhar nas simbologias, sem tentar compreender os signos escolhidos. O mergulho foi pouco profundo, meu pulmão ainda não estava acostumado a adentrar tão profundamente nos signos e nas suas representações. Era tudo
Papel dobrado com lembranças e agruras, desenhei por fora e espelhadas verticalmente a fênix (que representava lembranças, cultura e ternura) e o corvo, sua antítese, símbolo da invasão estrangeira, hegemonia, poder militar, violência e destruição - a asfixia geral. No meio, persistia o buraco. Mas deixá-lo assim vazado poderia trazer uma interpretação diferente do que eu queria, já que a imagem poderia ser vista de cima ou de baixo e o vazado traria sempre a mesma imagem, nem sempre correspondente à ave certa. Utilizei a sobra de papel que tinha
como um grande Monstro, estranho, e um pouco sem sentido (pra ser sincera), no meu olhar pouco sensível à esse tipo de passeio. O olho que assistiu o filme falava muito mais de mim e dos meus valores do que tentava compreender o que estava sendo contado. Vi a dualidade do capital versus o trabalho, vi sobre os tipos de miséria, vi sobre as escolhas que fazemos, vi sobre aqueles que não tem a possibilidade de escolha, vi esse ciclo capitalista que parece ser contagioso e atrair a maioria dos corpos para o seu centro. Vi sobre todas essas coisas e, como elas mexem comigo, a representação que me veio não conseguiu ser colocada numa dimensão única, ela era tão inquietante e causava tanto movimento dentro do meu peito que a folha também precisava se movimentar
de alguma forma. Busquei representar a vida e o caminho que parece ser condicionado a todos nós. O começo da vida na inocência da criança, onde há cores e criatividade, ou onde há o branco daquilo que iremos aprender e preencher; que abriga, sobretudo, a esperança. Depois a indecisão, crescer e seguir em frente nessa correnteza que leva todo aquele que não abre os olhos durante esse mergulho que é a vida, ou guardar partes dessa criança e permanecer com os olhos abertos? As setas apontavam o caminho da correnteza, que carrega aqueles que
decidem boiar na água. Carrega e leva para o ambiente escuro, sem vida, sem sentido, que suga tudo aquilo que um dia fomos, ou tínhamos o potencial para ser. Assistir esse filme sem tanta atenção aos signos, como comentei, me fez reconhecer os signos mais semelhantes aos que me tocam atualmente, e daí surge o apelo no final da minha representação, o “ainda dá pra escolher” ser ao invés de ter é o que eu defendo e acredito e por isso me saltou tanto aos olhos enquanto assistia o filme. Algo como se precisasse falar que ainda temos tempo! De fato, um apelo.
Depois de recolher a âncora e entrar em contato com as margens deste mar, o segundo momento acreditamos ser a escolha por ir de encontro a rota traçada, iniciando a saída da margem. No contexto da disciplina, isso ocorreu com a leitura dos capítulos do livro de Foucault, “As palavras e as coisas”, que nos ajudaria a sair da margem e nos daria subsídios para avançar para águas mais profundas da percepção e representação. A dinâmica foi semelhante para os capítulos trabalhados: nós, em dupla, deveríamos somar as nossas percepções distintas e representá-las em forma de uma representação única. O fato de ter um outro observando a mesma coisa, e leia-se por esse outro um outro olhar, uma outra construção de pensamento, de interpretação, de referenciais e experiências, agregou, inspirou e contribuiu para o aprendizado! O que para um passava batido ou era banal era a joia e maior destaque para o outro e esse processo foi lindo. Trabalhar com a densidade e complexidade dos textos de Foucault foi exigente e difícil. No primeiro capítulo trabalhado, o Representar, pela falta de costume, parecia que a todo instante estávamos tentando desvendar o que estava sendo apresentado e que a nossa vista era turva como se estivessemos submersas. Eram tantas ideias articuladas (umas compreendidas, outras nem tanto) que o nosso produto final ficou bastante complexo e cheio de mensagens codificadas. Nesse começo, achamos necessário colocar o máximo de informações que tinham sido minimamente percebidas. Tentamos traduzir quase ao pé da letra, como se fosse um esquema cartesiano. Não sabíamos, porém, que nos mares da representação é o sutil e o inesperado que despertam as melhores discussões e que é através desses
mergulhos no insólito que descobrimos os maiores tesouros. Nesse primeira tentativa de representar Foucault, ainda aprendendo a nadar, optamos por fazer um tabuleiro dividido no meio, representando assim a ideia defendida pelo autor de duas épocas com distintos modos de lidar com o signo e as significações que permeiam o mundo. No esquema produzido, o quadro da esquerda corresponde a época que Foucault (1999) denomina Renascimento, onde, diferentemente da noção convencional que temos desse período histórico, o saber ainda não está sistematizado, se baseia na semelhança/analogia e entende o signo como inerente ao mundo, bastando apenas decifrá-lo, posto que existe mesmo quando não é conhecido. Para representar esse período específico, utilizamos um fundo azul espelhado, no qual uma trama de fios de nylon se enreda conectando vários pontos; cobrindo toda essa superfície, uma folha de papel celofane colorido. O azul espelhado é uma alusão a esta época em que a semelhança é a forma primeira e essencial do saber, onde toda relação com o signo se baseia na analogia e no conhecimento da similitude - superfície espelhada, então, para lembrar desse jogo de refletir e buscar o que se assemelha sempre, onde “o signo marcava na medida em que era ‘quase a mesma coisa’ que o que ele designava” (FOUCAULT, 1999, p.88). O azul laminado funciona também para aludir a ideia de que nessa busca por similitudes todos os signos já se encontravam presentes no mundo, portanto, cabia apenas despertá-los para decifrar o mundo - ao mirar o espelho, percebe-se a semelhança através do reflexo, mesmo que este seja intencionalmente turvo como escolhemos, já para mostrar posteriormente que a semelhança não é puramente transparente.
As pessoas que tinham contato com o objeto também podiam ver o próprio rosto refletido nele se parassem por um momento. Para complementar essa ideia, o papel celofane que recobre o azul espelhado foi mantido solto, de modo que pudesse ser movido e seu reflexo colorido pudesse ser visto neste espelho azulado - esta camada colorida móvel e translúcida remete a crença da “decifração do mundo descobrindo as semelhanças secretas sob os signos” (FOUCAULT, 1999, p.65). O signo era visto como inerente, absoluto, depositado no mundo de um modo quase divino para depois ser desvendado, na espera silenciosa de alguém que pudesse reconhecê-lo pela analogia - ou seja, pelo que refletia. Seu sentido era prévio, autóctone. Por fim, os fios de nylon transparente que formam uma trama na superfície azul aludem ao fato de que no Renascimento não se conhecia as coisas pelas suas relações de identidade e diferença e, assim, “o jogo das similitudes era outrora infinito” (FOUCAULT, 1999, p.77). Ao pensar agora no azul utilizado neste trabalho como superfície refletora podemos também associálo ao próprio mergulho que estávamos realizando: azul como o mar, suas águas um tanto turvas à primeira vista, mas que ainda permitem refletir se mirarmos com atenção. A própria metáfora do Dom Quixote, que vagueia desnorteado na transição entre os dois regimes de representação também nos lembra o nosso percurso: aprender com a errância, tentar no início usar recursos e modos de representar que talvez não funcionem mais tão bem quanto antes estávamos acostumados; ter um estranhamento com o primeiro contato com Foucault e depois aprender a se situar nestes mares.
A outra porção do quadro trazia um fundo cinza emborrachado e, à frente dele, vários alfinetes dos quais saiam linhas de cores diferentes: o saber começa a ser sistematizado e posto em relações de medida, ordem, identidade, diferença e essas variáveis podem se intercambiar e formar diferentes combinações, mas sem perder suas características (aqui representadas pelas cores diferentes, mas que também formam subgrupos com os subtons, que ainda se organizam por uma espécie de semelhança e comparação). Quem manipulava o objeto podia espetar os alfinetes na organização que preferir para gerar novas combinações entre as várias conjunções possíveis, mas os alfinetes da outra ponta e que formavam os grupos (alfinete azul: grupo dos azuis e seus tons, etc) eram fixos. Embora o quadro geral com os dois regimes de representação pareça mostrar claramente a diferença e a transição entre esses sistemas, a ponta das linhas que se enrolam nos alfinetes fixos não foi cortada e invade levemente o espaço do azul espelhado; a ideia era de uma continuidade, embora de um modo tímido. Na superfície cinza emborrachada, por trás das linhas, escrevemos quase imperceptivelmente várias palavras que permearam o discurso de Foucault nesse capítulo, entre elas: REPRESENTAÇÃO, TAXONOMIA, CONSTANTE, PROVÁVEL, REDE, ARBITRÁRIO, CONVENÇÃO. Todo o cinza é preenchido por várias palavras discretas - é preciso olhar bem de perto escritas na horizontal. Tal como um caça palavras, a combinação delas forma, na vertical, a palavra SEMELHANÇA. O uso deste substantivo tal qual mensagem escondida representa a ideia de Foucault (1999, p.79) de que por traz desse sistema ordenado ainda há uma “semelhança empírica e murmurante das coisas,
essa similitude surda”. O signo agora só existe no interior de uma representação e precisa ser conhecido para significar, mas a similitude (semelhança) ainda é um rudimento e permanece sob o saber “à maneira de uma necessidade muda e indelével” (FOUCAULT, 1999, p.94) que permite a organização em sistemas ordenados; ainda há a exigência de um fundo de similitude, porém não como marca absoluta como anteriormente. Esse novo regime de representação é chamado por Foucault de Idade Clássica. Por fim, confeccionamos um retângulo que podia ser “aberto” e o utilizamos para emoldurar a palavra SEMELHANÇA que estava escondida. Esse ato pretendia aludir a essa questão do fundo de similitude e também ao fato de que “para o conhecimento, a similitude é indispensável moldura” (FOUCAULT, 1999, p. 93) pois é ela que é a forma mais simples de conhecer um signo e a ocasião de compará-lo para traçar uma relação de ordem. No segundo capítulo estudado, o Falar, escolhemos produzir um produto mais leve, que contivesse nele algumas das discussões do texto, mas sem a pretensão anterior de trazer o máximo de pontos possíveis. Entendemos que não era necessário traduzir tudo ao pé da letra. Pensamos numa dinâmica utilizando uma vela, algumas passagens da literatura, o corpo e as sensações produzidas pelo toque, buscando uma experiência mais sensorial. No começo, a vela era acesa e uns poucos segundos de silêncio preenchiam o ambiente. Depois disso, a ideia inicial era de que uma lesse a passagem enquanto a outra, simultaneamente, escreveria e apagaria num quadro de giz pequeno alguns verbos (em consonância ao pensamento de Foucault de que o verbo é o ser da linguagem, indispensável ao discurso) da citação para enfatizá-los, alternando as tarefas entre si. No entanto, essa parte não pôde ser realizada
no dia. Em seguida, todos os outros fechavam os olhos, enquanto os trechos dos textos escolhidos eram lidos. Simultaneamente, passava de um por um, enquanto ainda de olhos fechados, tocando aleatoriamente nos ombros e na cabeça de cada um. No final das leituras, todos deveriam abrir seus olhos e nomear, em uma palavra, a sensação que tinham experienciado durante a dinâmica. O fogo remetia à linguagem como a própria representação do pensamento, ao argumento de que ela se desenvolve no interior da representação, como as chamas se desenvolvem na dinâmica interna do fogo. Além disso, a linguagem seria algo “espontâneo e irrefletido, como que natural” (FOUCAULT, 1999, p. 115), assim como os aspectos físicos do fogo. Os fragmentos das obras da literatura brasileira tiveram como objetivo utilizar as representações propostas pela utilização das palavras, as suas analogias e alegorias, o que as palavras nomeiam. Em Água Viva, Clarice Lispector (1998) se descreve como “viva, tremeluzente” num ato em que “acendo-me e apago,
espontaneidade da linguagem e que ela pode ser tanto representação quanto reflexão selvagem. É preciso reconhecer os signos da palavra para distingui-los, combiná-los e sair do patamar da animalidade. O menino de Vidas Secas (2004) ainda balbuciava as palavras porque não sabia falar direito (não pela idade, mas por falta de compreensão dos signos) e, ao mesmo tempo, imitava sons orgânicos como os berros dos animais, barulho do vento e galhos da caatinga. Nesse livros, os próprios personagens, calejados pelo sofrimento da seca e miséria, são constantemente representados neste patamar entre humano e animal. O menino queria aprender uma palavra que julgava importante e iria transmiti-la ao irmão e à cachorra, mas apenas o irmão iria entender o significado desse ato já que partilha do mesmo sistema de signos. O irmão se distingue da cachorra não por possuir linguagem (outros animais também a possuem e se comunicam através dela), mas sim porque o que distancia o humano do animal e erige a palavra “acima dos gritos e ruídos é a proposição nela oculta” (FOUCAULT, 1999, p.129). Apesar
acendo e apago” tal como a chama da vela que bruxuleia. Ela também deseja mais do que o instante, seu fluxo e ressalta que aquilo que capta em si tem, quando está sendo transposto, “o desespero das palavras ocuparem mais instantes do que os relances de um olhar”. Foucault (1999) também ressalta que a linguagem não pode representar o pensamento de modo imediato e algo se perde quando é transposto, já que é preciso seguir uma ordem e a dinâmica da gramática. O fluxo que Clarice almeja nunca pode ser alcançado em sua totalidade. A outra citação, retirada do Vidas Secas de Graciliano Ramos
de humano, o Selvagem de Ayeron nunca foi capaz de atingir esse patamar da linguagem porque para ele as palavras eram marcas sonoras e não receptáculos de representação e significação maior oculta em sua estrutura. Nesta passagem de Graciliano o menino também não entende como uma palavra bonita pode designar algo tão ruim, mas a palavra é resultado das articulações arbitrárias da gramática que formam sua estrutura e, consequentemente, dão nome às coisas. A última citação é também de Clarice, em A hora da estrela, na qual ela questiona como é que se deve escrever e conclui que deve ser
(2004) em trecho no qual o menino aprendia a denominar o mundo, representa o pensamento de Foucault (1999) sobre a
desnudando, mas teme essa nudez. Foucault (1999, p. 107) ressalta que a linguagem representa o pensamento e na Idade Clássica “não
há, para constituir a linguagem um ato essencial e primitivo de significação, mas tão somente (...) no coração da representação esse poder (...) de representar a si mesma”. Do mesmo modo como já foi dito em Representar, a linguagem livra-se da marca e se desnuda como diz Clarice; assim, “o texto primeiro se apaga e, com ele, todo o fundo inesgotável de palavras cujo ser mudo estava inscrito nas coisas” (FOUCAULT, 1999, p.109). Resta apenas a representação, não mais a segurança do traduzir o que já tinha sido dito. E, por fim, o toque no corpo foi a estratégia pensada para exercitar essa utilização da palavra para nomear a sensação produzida pelo toque inesperado, tentando denominar as coisas quase no mesmo instante, experiência essa que também revela as subjetividades de modo marcante através da necessidade de nomear o desconhecido com rapidez.
“Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e apago, acendo e apago, acendo e apago. Só que aquilo que capto em mim tem, quando está sendo agora transposto em escrita, o desespero das palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar. Mais que um instante, quero seu fluxo”. (LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998)
“Como não sabia falar direito, o menino balbuciava expressões complicadas, repetia as sílabas, imitava os berros dos animais, o barulho do vento, o som dos galhos que rangiam na catinga, roçando-se. Agora tinha tido a ideia de aprender uma palavra, com certeza importante porque figurava na conversa de sinhá Terta. Ia decorá-la e transmiti-la ao irmão e à cachorra. Baleia permaneceria indiferente, mas o irmão se admiraria, invejoso. – Inferno, inferno. Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim.” (RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 2004)
“Escrevo sobre o mínimo parco enfeitando-o com púrpura, joias e esplendor. É assim que se escreve? Não, não é acumulando e sim desnudando. Mas tenho medo da nudez, pois ela é a palavra final”. (LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2017)
No terceiro capítulo, o do Classificar, houve uma pausa na produção das representações, um respiro. A proposta foi uma outra dinâmica, onde todos iríamos exercitar o ato de classificar objetos aleatórios: uma caixinha de música pequena, um peso de papel em forma de coração, a miniatura de um museu, uma flor artificial numa garrafa e uma caixa de confeitos vazia foram alguns dos objetos apresentados. Logo várias classificações foram propostas pela turma: forma, utilidade, função, material, sentimentos agregados aos objetos, etc. Tentamos também nomear o que era visto, dado que alguns objetos eram ambíguos: seria mesmo um peso de papel? A miniatura era decorativa ou poderia ser considerada outra coisa, dado sua estética ambígua, principalmente para quem não conhecia o prédio retratado? De acordo com Foucault (1999, p.179), a Idade Clássica “pousa pela primeira vez um olhar minucioso sobre as coisas” e transcreve isso em “palavras lisas, neutralizadas e fiéis”. Nesse novo sistema, a classificação irá depender muito mais da diferença do que das afinidades. O principal foco desta aula foi a discussão sobre a seção IV. Monstros e Fósseis. Segundo Foucault (1999, p.215) os monstros são “o ruído de fundo, o murmúrio ininterrupto da natureza” e fazem aparecer a diferença ainda sem lei e estrutura. Já o fóssil funciona como um marcador do tempo no qual subsistem as semelhanças após todos os desvios que a natureza percorreu. A questão do monstro foi a que mais nos chamou a atenção, já que o que é desconhecido é temido, visto como aberração e ameaça até que possa ser nomeado e transformado em signo. Quando designamos uma coisa é como se tivéssemos poder sobre ela e, portanto, ela não nos assustasse mais. Nomear é inserir numa ordem (classificar) e apreender
aquilo que se designa. Essa diferença inominada não se restringe à esfera da história natural, mas permeia todos as esferas do cotidiano: quantas vezes não tememos o diferente por não saber classificá-lo? Inserir um objeto, pessoa, ideia ou qualquer outra coisa numa classificação parece quase indispensável para suportar viver em sociedade. Classificar é designar, conhecer e ter a aparente segurança de saber os papéis que cada coisa representa. No quarto e último capítulo, o Trocar, nós tínhamos que trabalhar com os subitens “A formação do valor” e “A utilidade”. Para isso, propusemos uma dinâmica de um amigo secreto com a escolha das caixas levadas por nós, por cada pessoa, com a possibilidade de troca, se a próxima pessoa da sequência quisesse uma que outrem já tivesse escolhido. Foram disponibilizadas vários recipientes de formatos e materiais diferentes, dentro das quais estavam os mais diversos itens: rolha de vinho, broche “Ele Não”, celular quebrado, lembrança de batizado, broche danificado com valor sentimental, flor, micro garrafa com uma mensagem dentro, cartela de analgésico, vidro de perfume importado vazio, corrente de ouro, entre outros. Um dos recipientes guardava três chaves, uma das quais abria um cofre com cadeado. As pessoas escolheram as caixas sem saber o que havia dentro, baseado apenas em gosto pessoal ou intuição. Ao fim, perguntamos o motivo da escolha a cada um e qual recipiente elas achavam que guardava o fim mais valioso. Depois de abrirem, pedimos para que classificassem qual objeto teria mais valor de acordo com sua percepção pessoal. Pensamos nessa atividade baseada nos trechos do capítulo que Foucault trata o valor como atrelado ao consumo e a utilidade, então cada um atribuiria um valor diferente aos itens disponíveis de acordo com as percepções individuais. Algumas
coisas valem mais do que outras e isso pode ser dado por utilidade, sentimento, necessidade, desejo, demanda. O broche quebrado, por exemplo, poderia ter mais valor a quem tivesse uma conexão emocional com ele do que a corrente de ouro. Do mesmo modo, o analgésico poderia ser mais valioso do que todos os demais itens para quem estivesse precisando dele. Foucault (1999) afirma que só se troca numa permuta, quando ambos reconhecem o valor, elemento este que só existe no interior da representação. O valor das coisas se dá nessa troca. Ademais, pensamos na possibilidade das trocas dos itens na dinâmica porque Foucault (1999, p.263) argumenta que a troca é como “um fenômeno simples, apenas na aparência”, além do ato de trocar “criar valor pela utilidade ou pela apreciação” (FOUCAULT, 1999, p.275).
Depois de finalizada a leitura de Foucault, podemos dizer que começávamos a passar da parte onde as ondas quebravam nas margens, e que agora estávamos adentrando em mar aberto. Tínhamos aprendido um pouco sobre o funcionamento do nosso barco, sobre a interpretação das paisagens que observamos pelo caminho e sobre a complexidade que tudo isso envolvia. Chegando no mar aberto, era preciso colocar em prática alguns ensinamentos apreendidos, agora em novos contextos. Nós aplicaríamos os conceitos e as análises feitas baseadas neles, nas discussões de documentários e filmes. Uma ótima estratégia para sedimentar o que tivera sido estudado até então, diga-se de passagem!
O primeiro material assistido foi o documentário “Janela da Alma” e a dinâmica aconteceria com cada dupla escolhendo uma forma de classificar os depoentes e apresentando sua lógica aos demais. Mesmo sendo em dupla - ou seja, em tese deveríamos produzir somente um produto final - nas nossas discussões chegamos a conclusão de que ambas as representações que apresentávamos uma para a outra tinham suas qualidades, e que por serem produtos de duas pessoas que percebem diferente, valeria levar os dois produtos para o momento da sala. Assim o fizemos. Eu, Nathalia, já tinha assistido o filme alguns anos atrás. No entanto, assisti-lo depois de Foucault me trouxe um novo olhar. Prestei muito mais atenção nas nuances do discurso de cada um dos entrevistados e ia anotando o que me chamava a atenção para tentar separar essas pessoas em blocos. No entanto, ao analisar a fala de cada um percebi que vários depoentes se posicionavam de modo muito múltiplo, abarcando mais de uma faceta do que seria o ato de olhar e suas implicações, tema do documentário. Em minha concepção, classificar de maneira rígida seria limitar a força de certos pronunciamentos, então optei por um esboço frouxo de classificação em que não havia uma regra tão excludente: alguns depoentes se encaixam em várias categorias deste rascunho e a repetição de nomes não seria problema. Na verdade, era mais o discurso do que o nome que importava. Classifiquei de acordo com as frases de cada um que havia anotado extensivamente no caderno, colocando suas iniciais pessoais apenas como marcação. Resultaram desse processo cinco protótipos de categoria: “visão como ‘defeito’ e
e função”, “visão como mediação”, “visão como memória”, “visão como sentimento” e “visão como estar no mundo”. Pensei muito se seria realmente necessário distinguir memória de sentimento, sensações tão atreladas, mas optei por manter essa diferenciação um tanto frágil. Serviu como um exercício para pensar se essa é uma distinção possível, mas ainda não tenho a resposta para essa indagação. Em “visão como defeito e função” estão os depoimentos que priorizam o discurso sobre o impacto de certos problemas de visão (tanto de um modo positivo quanto negativo) e a reflexão sobre o enxergar de modo mais orgânico, com destaque para a fala da única depoente que não foi nomeada: “nunca se descobre pensando fora de foco”. Já quando se trata de “visão como mediação” é priorizado o processo de ver como algo que nunca é transparente, mas é carregado de significação posto que estamos imersos num sistema de signos. O olhar é influenciado tanto pelo modo como se comporta organicamente quanto pelos estímulos exteriores. Destaca-se a frase do escritor Antonio Candido, que diz que “a janela não olha, quem vê é o olho através da janela”. A visão nunca é passiva e translúcida. “Visão como memória” destaca a influência subjetiva no ato de enxergar, passando pelo modo de como ver a si mesmo e o que só pode ser visto pelos “olhos da mente”, como diz Oliver Sacks. O fotógrafo Eugen Bavcar, cego, relata um incidente no qual fotografou uma modelo com um sininho, mas ele não pôde ser visto na foto e tornou-se uma “fotografia do invisível” para os que sabiam que ele estava lá. Uma de suas modelos, Hanna Schygulla conta o dilema que lhe assolou quando viu a si mesma fotografada, “no dilema de ser e não ser eu”, porque Eugen fotografa com a
mente, produz imagens mentais. Em “visão como sentimento” o foco é nas sensações mais subjetivas relacionadas ao olhar e a experiência pessoal: amor, desprezo, vergonha, medo, estranhamento, entusiasmo. Oliver Sacks afirma que “a emoção está codificada na imagem” e quando a visão é separada da percepção visual, há crise; o médico cita a Síndrome de Capgras na qual uma pessoa mantém a função orgânica perfeita, mas não reconhece mais entes queridos e acha que foram substituídos por alguém idêntico porque a ligação emocional-visual foi quebrada. O depoimento mais bonito dessa seção talvez seja o de Agnès Varda sobre Jacques Demy quando fazia um filme sobre o marido já debilitado e à caminho da morte: pelo medo de perdê-lo, o filmou de tão perto ao ponto de ver sua textura, porque o amava; e também por esse mesmo amor capturou-o quando vestia um casaco de modo interminável e, ao registrá-lo, perdoou o que antes a irritava. Bonito também é o depoimento de José Saramago, que gosta de olhar o crescimento das plantas para constatar a vida no princípio quando a sua se aproxima do fim. Saramago também diz que “para conhecer as coisas há que dar-lhes a volta toda” e essa fala foi classificada como “visão e estar no mundo”, seção que abarca depoimentos que tratam da visão de um modo mais geral, em especial sob a perspectiva da vida em sociedade. Os discursos abordados aqui versam sobre a correria do mundo atual, a incapacidade de nos emocionarmos e prestarmos atenção num mundo superabundante de imagens (Wim Wenders), o excesso que atrapalha a visão e às vezes faz desejar a cegueira (Hermeto Pascoal), as imagens como simulacro
da realidade tal qual na caverna de Platão e as “cegueiras” de caráter (Saramago). Janela da Alma apresenta um panorama muito vasto das diferentes facetas do enxergar, seja nos diversos defeitos e funções orgânicas, mas também no enfoque dado e em como cada subjetividade aborda esse enfoque de maneira diversa. Ver é muito mais do que usar o olho. Já eu (Bia) tinha conseguido estabelecer variadas formas de classificação, mas todas elas se apresentavam de maneira muito rasa em relação a profundidade do que estava sendo discutido no documentário. Pensei sobre os tipos de profissão dos depoentes, sobre os gêneros, sobre as idades aparentes, sobre as perspectivas de fala daqueles que têm alguma deficiência visual daqueles que não as tem, e optei, por fim, por classificar não cada depoente em categorias, mas sim fazer uma síntese dos blocos dos discursos apresentados, sendo cada bloco interligado entre si e sem uma delimitação bem definida. No primeiro bloco o enfoque seria o olhar, a visão em si, nas caracterizações desse ato. O segundo seria um momento mais focado nas coisas que mediam o nosso olhar e o ser visto, a questão do outro que olha pra gente, da vergonha, do medo, os sentimentos, emoções, os elementos que influenciam na percepção, sendo assim uma relação indivíduo-visão-indivíduo. Já o terceiro bloco comenta de uma realidade mais geral, da sociedade, da superabundância das imagens, da falta de sentido, ao mesmo tempo que fala da esperança, como se estabelecesse uma relação enfatizando o indivíduo-sociedade. O segundo material utilizado foi outro documentário, “No Intenso Agora”, e a proposta era de “cada um eleger uma frase, uma cena ou um aspecto do filme para ser explorado na perspectiva da
representação e da percepção”. Apesar da turma reduzida nessa aula, a discussão foi bastante fértil e se estendeu por todo o
escolhi para comentar - e quase esqueço, porque havia tanto a dizer nesse dia e ainda há, mas ficará pra outro momento porque
tempo que tínhamos disponível. Em seu ensaio audiovisual, João Moreira Salles mescla imagens das jornadas de Maio de 68 e demais acontecimentos políticos no Brasil e no mundo com as imagens da viagem de sua mãe à China. Há um interessante paralelo nessa mistura. As imagens de 68 são convulsas, dotadas de grande energia e vontade de mudança da juventude. As imagens da mãe em território chinês são filmadas de modo mais contemplativo, a despeito da própria Revolução Cultural ainda recente e das mensagens de ordem agressivas escritas nos muros e templos, cujo significado permaneceu por muito tempo ignorado por quem filmava. Os muros de Paris também falavam, mas suas mensagens - mesmo o que depois revelou-se slogan publicitário cuidadosamente elaborado - possuíam um ar mais sonhador, talvez poético: “debaixo dos paralelepípedos, a praia”. Quando assisti o filme, eu, Nathalia, deixei que meus sentimentos me dominassem um pouco mais do que o normal. Apesar de ser eminentemente político, preferi ver “No Intenso Agora” de um modo semelhante a mãe de João Salles em sua viagem à China. Era um dia em que as convulsões políticas de hoje já haviam me desgastado especialmente e ver a luta de 68 não me trazia ânimo; ao contrário, trazia uma sensação de abatimento e de algo que não chegou a ser, tampouco poderia ser recuperado. Desejei estar também contemplando os templos chineses, ver o balé revolucionário das crianças sem pensar no enredo e sim no movimento das mãos, almejar o isolamento mágico de um templo à luz da lua. Por isso, talvez, a trecho que
aqui muito já foi dito - foi o da Muralha da China. É esta mesma muralha que João aponta como a memória inesquecível de sua mãe nessa viagem, que descreveu sua silhueta como deslizando tal qual rio preguiçoso. Esse ponto do filme também abarca a diferença brutal de percepção de uma mesma coisa - o que tanto vimos nas aulas - a depender de quem a pensa e de onde se está inserido, talvez também do que se queira ver no momento. O politizado Morávia descreve a muralha como dona de “vitalidade de serpente ágil”, um animal perigoso. A mãe vê de uma maneira mais plácida e contemplativa. Nas palavras de João: “um elogio mais da permanência e lentidão do que da mudança e bote”. Para a mãe, “a beleza vive à parte, longe do drama dos homens”. É esse contraponto de visões que me contempla porque senti viver transitando entre ambos, mas com o desejo maior do Outro. Os tempos e estímulos atuais me impelem ao raciocínio de Morávia, mas o que almejo é aprender a lentidão de estar num outro mundo, outro tempo, onde tudo era novo, paisagens e experiências. “Ao choque do encontro inesperado sucede a inefável emoção da forma inusitada”, escreveu ela em seu diário. Tomando a primeira pessoa novamente, Bia aqui, como eu não pude ir para a aula, busquei assistir o documentário e me fazer presente para contribuir de alguma forma com as discussões. Optei por mandar um áudio com a minha percepção do documentário. Dentre as frases que destaquei, a que mais me remeteu ao que estávamos estudando com Foucault foi quando foi dito que o general “dominava os signos e compreendia os meios de comunicação”, uma
vez que a partir do discurso dele, ele foi capaz de manipular uma grande parte da população, criando a partir dos signos, imagens
visão. Antônio Biá ressalta isso quando lembra que “a história é de vocês, mas a escrita é minha”. Ou seja, não importa quem conte, o
fictícias, comprovando, desta maneira, o poder dado a palavra, a linguagem e demonstrando, também, a força dos meios de comunicação. O terceiro e último material foi o filme brasileiro “Narradores de Javé”, no qual os moradores de um povoado buscam escrever a história do local onde moram para salvá-lo da destruição em nome do progresso, já que a cidade sumiria do mapa para dar lugar a uma hidrelétrica. Discutimos sobre as questões principais do filme, que aborda essencialmente o esforço para preservar um patrimônio imaterial, cujo valor maior está nas memórias de quem ali viveu. A questão de quem não quer deixar a cidade é menos ter que construir casa em outro lugar e mais o apego ao lugar de modo mais abstrato, como local onde nasceu, cresceu e enterrou seus mortos. Numa cidade de analfabetos, Antônio Biá é detentor das letras e é retirado do ostracismo para poder contar a história da cidade. Essa história é sempre alvo de permuta, tanto pelos que querem ser eternizados no livro, como também pelas diferentes percepções. Novamente, a subjetividade de cada um é essencial pra mostrar como a mesma história é representada de maneiras muito diversas: numa, uma personagem é herói; noutra, a depender de quem conta, a mesma personagem é desvairada. Em dado momento, alguém levanta a questão: “as duas histórias são verdadeiras”. Isso iria contra a necessidade da “escrita científica” necessária para salvar a cidade, mas é uma prova de como o manejo das estórias implica em assumir uma
narrado irá passar pelo crivo de sua percepção e no fim se tornará outra coisa. O filme acaba com a cidade inevitavelmente submergida pelas águas da hidrelétrica, mas cada um ali viveu ainda carrega uma parte do povoado consigo. O fim material não é o fim de tudo. Há sempre a possibilidade de criar uma nova história. Hoje, enquanto escrevemos, lemos e relemos a narrativa do nosso passeio, percebemos que somos diferentes daquelas que adentraram o barco desta disciplina, no começo do semestre. O contato com esse mar imenso e novo, com as novas paisagens e os novos ventos nos ensinou de um tanto que extrapola os conceitos apreendidos e também aqueles (ainda) não entendidos em sua totalidade, mas que continuam reverberando em nossa memória. Aquilo que foi assimilado e aquilo que ainda será um dia já nos modificou e já nos proporciona tentar olhar de muitas outras maneiras para além da utilização do órgão da visão, apenas. Meio piegas dizer, mas há um sentimento de gratidão por ter partilhado esse passeio com tantas pessoas incríveis, que se abrem à sensibilidade de perceber para além do posto e exposto e se lançam a compreender o quão vasto é o mar das representações e de como somos pequenos em relação a tamanhas possibilidades. Ao mesmo tempo, somos grandes, gigantes, quando a partir da nossa percepção singular poder ser criado um mundo de representações.
Maceiรณ 2018