CINEMA // NATHALIA LEAL
ATRAVÉS DO AZUL Em seu último filme, o diretor Derek Jarman abstrai completamente a imagem rumo a uma experiência sensorial intimista em que é preciso deixar de enxergar para, finalmente, ver NATHALIA LEAL
O
filme começa e não há nada na tela além de um azul insistente, imóvel, imutável. Passam-se alguns minutos e tudo permanece igual. Não, não é defeito, nem ninguém esqueceu de projetar a imagem. Ela simplesmente não existe. Em Blue, lançado em 1993, o cineasta britânico Derek Jarman faz da sua última e mais autobiográfica obra um ato de abstração plástica radical ao apresentar um filme que é composto apenas por uma tela azul estática, acompanhada de narração e som ambiente. À primeira vista, parece incompreensível privar o cinema de sua principal marca – a imagem. Mas, logo a escolha se justifica e o que temos é uma potente experiência compartilhada. Lançado postumamente, Blue é o testamento de um homem que agoniza diante do pouco tempo de vida que lhe resta. Derek Jarman, já debilitado no início do projeto,DIVULGAÇÃO
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morreu devido complicações causadas pela AIDS, pouco depois do filme ser lançado, aos 52 anos. A condição de doente terminal é, provavelmente, o maior princípio norteador da escolha estética que torna Blue tão singular. Jarman usa a ausência de imagem para traçar um paralelo com a própria cegueira que lhe acomete, uma das mazelas trazidas pelo vírus que lhe pôs no leito de morte. Nesse sentido, ele coloca o espectador em posição de igualdade. Forçado a encarar o azul, o público é privado de se distrair com as imagens, mas passa a ser projetado para dentro do sofrimento do próprio protagonista: somos nós que estamos cegos e não mais enxergamos. Tornamo-nos moribundos. “Azul é a escuridão feita visível”, diz Jarman. A abdicação da imagem esvazia a tela da visão do corpo decrépito para materializar na projeção a cegueira causada pela doença. Esta experiência aplicada ao filme provoca um efeito que potencializa a empatia. É, preciso, no entanto querer participar do jogo que ele propõe. Uma vez que isso acontece, contemplar uma tela azul, único fotograma, por cerca de uma hora e quinze minutos, não parece mais algo tão absurdo. A narração em off desloca todas as possibilidades para o campo do simbólico, que não pode ser meramente visto. Esta tarefa é empreendida a partir das palavras do próprio Jarman, que atribui à tela supostamente estéril uma potência sentimental conforme narra suas experiências. Assim, a cor que encaramos emana uma miríade vasta de significados, não apenas atrelados ao sofrimento 1
Na voz de Jarman, o azul estático que nos encara possui diversas nuances. Céu, mar, amor, paraíso, devaneio, sensualidade, cegueira e luto. Um percurso dos significados que lhe atribuiu por toda vida e que agora compartilha com quem se dispõe a assistir. A ênfase nas reflexões incessantes dos últimos seis anos de luta. Aqui, a cor permeia desde o cotidiano até o metafísico: “o azul transcende a geografia do limite humano”. A proposta deste último filme de Jarman configura uma ressignificação da própria experiência cinematográfica e da relação obra-público. Esta manobra o aproxima de um cinema que não se preocupa com a verossimilhança máxima, das imagens ao texto, como o que estamos acostumados. Blue está inserido no nicho dos filmes que procuram um diálogo com o pictórico. De acordo com Robert Kudielka, em ensaio sobre as mudanças na arte a partir do fim do século XIX, em especial a pintura, “o lugar de mobilização da experiência deslocou-se [...] para a relação entre a imagem e o observador”. Desta forma, passou a ser valorizado não o conteúdo pictórico por si próprio, mas a rede de significados e possibilidades presentes entre o objeto e sua recepção. O olhar e as sensações que o acompanham se tornam conteúdo. Nesse processo, Kudielka destaca o fato de que, ausentes os sinais iconograficamente seguros que permitiam apreender uma obra à primeira vista, o olhar sofre um processo de temporalização. O espectador passa a uma contemplação mais demorada em busca de desvendar aquela imagem. A visão se alonga, ganha outros sentidos e as obras de arte se tornam “lugares de experiência”. Esse seria um dos grandes trunfos da pintura moderna. Contemplar a tela estática e monocromática faz parte da experiência estética de Blue. O foco se encontra justamente na visão, que absorve o que a tela esvaziada não pôde significar devido a ausência desnorteante de imagens. É necessário fixar o olhar no azul para compreender o processo de perda da visão. A experiência é pensada para ser visualizada, sinestésica. Apesar de também ter sido lançada em áudio, esta obra de Jarman somente se torna completa à medida em que o espectador aceita abdicar da imagem e cegar também a si próprio. É uma experiência radical de aceitação do que propõe o diretor. Só que, ao contrário do Édipo da tragédia de Sófocles, que furou os próprios olhos para não ver o que não podia suportar, em Blue o espectador aceita a cegueira para ampliar sua própria capaciano 2017/2018
cidade de enxergar. Fechar os olhos também não torna a experiência completa, posto que elimina a cor e o incômodo visual de encará-la, além de inviabilizar as associações presentes no texto. A cegueira é azul. É preciso aguçar o olhar para vê-la. A afinidade de Blue com o pictórico não para por aí. A origem disto está na formação artística do próprio Derek Jarman, que começou sua carreira como pintor e manteve constantes referências em seus filmes, com exemplos expressivos em seus curtas plásticos feitos em câmera Super 8 ou na cinebiografia sobre Caravaggio. O azul é seu próprio testamento, mas também é um tributo a um outro artista que transformou a cor em sua própria marca e obsessão.
YVES KLEIN: INSPIRAÇÃO
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Blue é, de fato, uma pintura. O fotograma que nos encara ao longo de tantos minutos não é uma tela azul qualquer, mas a obra intitulada IKB 79, de Yves Klein, 1959. O trabalho deste artista é marcado por sua multiplicidade de suportes que abarcam música, pintura, escultura, desenho e performance. A curta e polêmica carreira, encerrada pela morte prematura aos 34 anos, serviu para abalar o cenário da arte parisiense à época e inscrever seu nome na história da arte contemporânea. A polêmica em torno de sua obra se baseia no limite tênue entre espetáculo da indústria cultural, extravagância e convicção artística. Klein soube moldar sua figura em torno destes dois pólos quase antagônicos, aproveitando cada um dos seus nichos através da sua notável excentricidade. 2
Além dos característicos monocromos, entre seus trabalhos mais famosos estão a série Antropometrias (1960), na qual corpos nus são utilizados como pincéis, sob acompanhamento de uma orquestra que toca a Sinfonia Monotônica (1947), composição própria com uma única nota repetida diversas vezes e um período de silêncio. Experimentou com o fogo através das telas “pintadas” com fogos de artifício e com duração determinada de um minuto, assim como “pinturas” com lança chamas acompanhadas de um ator como bombeiro que despejava grandes jatos d’água sobre a tela. Performático, promoveu a venda de espaços vazios e imaginários intitulados Zonas de Sensibilidade Pictórica Imaterial por um equivalente em ouro cuja metade seria descartada no rio Sena. Em 1957, inspirado pelo céu azul de Nice, Klein dá início à produção dos monocromos e à criação do característico pigmento que se tornaram sua marca. Klein defendia uma concepção metafísica da arte em busca da imaterialidade e do efêmero. Dessa forma, considerava seus monocromos como cinzas do processo criativo, uma preparação para seus trabalhos e não algo definitivo. A concepção kleiniana se baseia na estética do vazio preenchido apenas por um instante, a “marca do imediato”. Seu trabalho é baseado em constantes modos de demonstrar o vazio, a ausência e a efemeridade. Em seus diários, ao criar a Sinfonia Monotônica, revela que compôs algo cujo tema é o que busca para sua vida: “não possui começo ou fim, o que gera um senso de aspiração de uma sensibilidade fora e além do tempo”. Esta concepção artística alinha-se com a arte como local de experiência descrita por Kudielka, numa perspectiva que extrapola e expande a fruição. O crítico italiano Giulio Argan ressalta que, quando Klein enche a superfície da tela de um azul chapado e sem variação, está propondo que o fruidor (observador) modifique suas relações e “sinta o ambiente segundo uma determinada cor”, ou seja, “viva em azul”. A escolha de Jarman pelo IKB de Klein, portanto, é sintomática. Não apenas por apreço à carismática figura artística, mas também pela necessidade de um cinema que se despisse dos seus apetrechos, que, assim como os monocromos de Yves, fosse inundado pelo vazio para enfim transbordar significação. O filme-experiência de Jarman, pode ser visto como análogo ao trabalho de Klein com a produção em massa de monocromos. A repetição do IKB em Blue é dada através da extensão do seu contemplar. Este olhar estendido por tanto tempo, atribuído uniformemente a uma
audiência, jamais seria possível no âmbito de uma galeria. O Blue de Jarman é um signo em totalidade apenas dentro do instante fílmico na qual o IKB está presente na tela. Fora desta configuração, é incompleto, falta a experiência da cegueira. Com a duração estendida do filme, Jarman constantemente ressignifica o azul através do discurso, da música e dos sons, numa tarefa contínua de preencher o vazio da ausência da imagem sempre aguardada. Esta estratégia de constante recriação assegura a manutenção do espectador atento. A “marca do imediato”, da qual fala Klein.
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ATO POLÍTICO Entre os anos 80 e 90, a Aids era vista como uma sentença de morte. Jarman fazia parte da comunidade gay estigmatizada pela orientação sexual e pela doença – dupla angústia – e que se tornou o esteriótipo do soropositivo e da desinformação. A escolha de não aparecer é uma recusa a fazer parte do bombardeio de imagens “chocantes” que a mídia veiculava durante a crise. Nessa negação, humaniza o seu sofrimento e dos outros que padeciam. Não é difícil imaginar o corpo soropositivo. Nosso repertório de imagens foi solidificado por vários anos de bombardeio midiático. Durante a construção da iconografia do HIV pelo discurso de fotógrafos, repórteres e profissionais de saúde, os preconceitos sociais tiveram papel fundamental no que se tornou a imagem padrão da doença. Um vírus mortal que infectava populações já marginalizadas por sua sexualidade, levando-os a uma morte penosa, foi uma ocasião propícia a aumentar o estigma. Assim, mesmo depois que foram descobertos casos em crianças ou em relações heterossexuais, os noticiários ainda focavam no clichê do doente esquelético, branco, homossexual. Em Diante da dor dos outros, Susan Sontag analisa como as imagens atrozes são recebidas pelo público. Ela alerta que, ao contrário da conclusão mais óbvia, não é certo que a exposição da miséria, doença ou dos horrores da guerra sempre será capaz de comover. A superabundância das imagens pode provocar uma reação apática. A televisão, onde tudo é mais fugaz e excessivo, gerou um espectador cuja capacidade de atenção é volátil e instável. No lado oposto, Sontag destaca que as narrativas podem ser eficazes em gerar um ano 2017/2018
sentimento de empatia. A importância do engajamento do espectador reside, em parte, “na extensão de tempo em que a pessoa é obrigada a ver e a sentir”. O filme de Jarman não possui uma narrativa aos moldes tradicionais, mas os fragmentos ali narrados são o bastante para que uma linha de entendimento seja construída e que se criem pontes sentimentais. Por se tratar de um roteiro baseado em reminiscências e reflexões, a instabilidade e o caráter errático do texto servem, inclusive, como elementos potencializadores da experiência. A extensão ocupa um caráter essencial. O jogo de obrigatoriedade e de tempo implicado normalmente numa narrativa, em Blue se encontra dilatado. Sem o subterfúgio da distração pelas imagens, não é difícil que o espectador desacostumado perceba o tempo do filme como maior do que ele é; ou então, perca todo e qualquer referente cronológico, já que a indiferença da tela e a fragmentação do texto não dão pistas de quando aquilo irá acabar. O azul é um exercício temporal de contemplação, e um exercício para o quão somos capazes de sentir. Jarman resolve sensibilizar o público ao privá-lo de assistir o sofrimento do doente esquálido e cego, deformado, mas partilhar a única coisa possível: a cegueira momentânea. O incômodo causado pelo azul insistente é uma forma de agonia compartilhada. Uma condição opcional e transitória para que o espectador se sinta mais próximo do que é uma sentença permanente para o protagonista. O sofrimento espectatorial dura o tempo da sessão. É um modo de, diante desta ausência da imagem, enxergar além do lugar comum. A personalidade questionadora e a aversão à iconografia soropositiva presente na mídia remontam a trabalhos anteriores ao Blue. Com uma 4
carreira que já apresentava a marca de um cinema abertamente homossexual e marginal, avesso à política do governo de Margaret Tatcher e ao conservadorismo britânico, Jarman continuava prolífico e incisivo mesmo com a saúde continuamente debilitada. O diagnóstico como HIV positivo em dezembro de 1986 inflamou seu engajamento artístico. Entre 1990 e 1993, numa contrarresposta aos tabloides e histeria midiática, produziu uma série de pinturas com traços fortes, frases irônicas e provocações à representação da comunidade gay e da doença. Sem a preocupação de serem esteticamente agradáveis, as obras eram um modo de extravasar a raiva e dos outros sentimentos relacionados a sua condição física e social. Por vezes, há também uma dose generosa de escárnio. O caráter rude é ressaltado por pinceladas semelhantes a arranhões, camadas de tinta aplicadas grosseiramente e a utilização dos dedos para escrever na própria pintura. Os ruídos privilegiavam o tato, como se pudesse ler com o toque, já que a visão lhe faltava. deboche ao termo que frequentemente era utilizado de forma pejorativa, homofóbica. Blood (1992) traz vermelho pintado sobre uma camada de páginas do tabloide inglês The Sun cuja manchete alega haver sangue contaminado nas tortas de uma famosa marca. Jarman debocha do sensacionalismo, mergulhando as páginas do jornal em “sangue” (ou seja, na intensa tinta vermelha), e repetindo por sua toda a sua extensão, em paródia ao título alarmista do The Sun, num eco da manchete: “blood blood blood” . A agressividade como autodefesa ficou restrita às pinturas. Em Blue, o tom é intimista e poético. Depois da violência dos quadros, surge a fragilidade do relato como despedida.
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No pandemônio da imagem, eu vos apresento o Azul universal. Azul, uma porta aberta para a alma, uma possibilidade infinita se tornando tangível. DEREK JARMAN
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