Através do azul

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CINEMA // NATHALIA LEAL

ATRAVÉS DO AZUL Em seu último filme, o diretor Derek Jarman abstrai completamente a imagem rumo a uma experiência sensorial intimista em que é preciso deixar de enxergar para, finalmente, ver NATHALIA LEAL

O

filme começa e não há nada na tela além de um azul insistente, imóvel, imutável. Passam-se alguns minutos e tudo permanece igual. Não, não é defeito, nem ninguém esqueceu de projetar a imagem. Ela simplesmente não existe. Em Blue, lançado em 1993, o cineasta britânico Derek Jarman faz da sua última e mais autobiográfica obra um ato de abstração plástica radical ao apresentar um filme que é composto apenas por uma tela azul estática, acompanhada de narração e som ambiente. À primeira vista, parece incompreensível privar o cinema de sua principal marca – a imagem. Mas, logo a escolha se justifica e o que temos é uma potente experiência compartilhada. Lançado postumamente, Blue é o testamento de um homem que agoniza diante do pouco tempo de vida que lhe resta. Derek Jarman, já debilitado no início do projeto,DIVULGAÇÃO

ano 2017/2018

morreu devido complicações causadas pela AIDS, pouco depois do filme ser lançado, aos 52 anos. A condição de doente terminal é, provavelmente, o maior princípio norteador da escolha estética que torna Blue tão singular. Jarman usa a ausência de imagem para traçar um paralelo com a própria cegueira que lhe acomete, uma das mazelas trazidas pelo vírus que lhe pôs no leito de morte. Nesse sentido, ele coloca o espectador em posição de igualdade. Forçado a encarar o azul, o público é privado de se distrair com as imagens, mas passa a ser projetado para dentro do sofrimento do próprio protagonista: somos nós que estamos cegos e não mais enxergamos. Tornamo-nos moribundos. “Azul é a escuridão feita visível”, diz Jarman. A abdicação da imagem esvazia a tela da visão do corpo decrépito para materializar na projeção a cegueira causada pela doença. Esta experiência aplicada ao filme provoca um efeito que potencializa a empatia. É, preciso, no entanto querer participar do jogo que ele propõe. Uma vez que isso acontece, contemplar uma tela azul, único fotograma, por cerca de uma hora e quinze minutos, não parece mais algo tão absurdo. A narração em off desloca todas as possibilidades para o campo do simbólico, que não pode ser meramente visto. Esta tarefa é empreendida a partir das palavras do próprio Jarman, que atribui à tela supostamente estéril uma potência sentimental conforme narra suas experiências. Assim, a cor que encaramos emana uma miríade vasta de significados, não apenas atrelados ao sofrimento 1


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