FRANTZ OMAR FANON
Tradução Sérgio Miguel José
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Frantz Omar Fanon Né 20 Juillet 1925 Fort -de -France (Martinique) Décès 6 décembre 1961 (à 36 ans) Bethesda (Maryland) États-Unis Activité principale: philosophe, écrivain, sociologue, ethno-psychologue, penseur et psychiatre
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Frantz Omar Fanon Para a revolução africana, Escritos políticos Décima parte: Racismo e Cultura Tradução Sérgio Miguel José Orientação, revisão e correção da tradução Prof. João Arthur Pugsley Grahl Criação da capa Charbel Tchogninou Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB/UFPR Lucimar Rosa Dias Paulo Vinicius Baptista da Silva
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Sumário Apresentação................................. 7 Prefácio.......................................... 11 Racismo e Cultura.......................... 15
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SISTEMA DE BIBLIOTECAS BIBLIOTECA CENTRAL – COORDENAÇÃO DE PROCESSOS TÉCNICOS F214r
Fanon, Frantz Omar, 1925-1961 Racismo e cultura [recurso eletrônico] \ Frantz Omar Fanon ; tradução Sérgio Miguel José. – Curitiba : NEAB-UFPR, 2018. Dados eletrônicos ISBN 978-85-66278-16-3 1. Racismo. 2. Preconceito. 3. Relações raciais. I. Universidade Federal do Paraná. Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros. II. José, Sérgio Miguel. III. Título. CDD: 305.8 CDU: 323.14 Bibliotecário: Arthur Leitis Junior - CRB 9/1548
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Apresentação
F
rantz Fanon (1925-1961), psiquiatra martinicano, pode ser considerado um dos pensadores mais agudos e lúcidos do século XX. Na sua curta vida, pois morreu aos 36 anos, vítima de leucemia, produziu uma obra que durante muito tempo pareceu haver ficado enclausurada, é uma espécie de interpretação ad hoc dos processos de descolonização, particularmente no continente africano. No entanto, nas últimas décadas, por meio da releitura de obras críticas por parte de intelectuais do porte de Homi Bhabha (1996), Alejandro de Oto (2003), Achille Mbembe (2011) e Ramon Grosfoguel (2012), entre outros, o autor caribenho veio a se tornar uma chave genealógica para o multifacetado e heterogêneo movimento intelectual da colonialidade/modernidade, Castro Gomes, 2005. Na atualidade, o pensamento de Fanon se constitui como uma ferramenta heurística e também uma chave interpretativa para abordar 7
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o problema racial e da violência na contemporaneidade. Sua contribuição para uma fenomenologia do racismo (De Oto, 2003) nos contextos de países com passado colonial, particularmente sobre a base dos processos de inferiorização e libertação, torna imprescindível a leitura da presente tradução do capítulo “Racismo e cultura” do livro Pour la Révolution Africaine, Écrits Politiques para o português brasileiro, realizada pelo estudante de letras francês Sérgio Miguel José, sob a supervisão do Prof. João Arthur Pugsley Grahl. Esta tradução se inscreve em um importante esforço por transcender o primordialismo e concepções de ordem binária, introduzindo a colonialidade como esquema “histórico-racial” para evidenciar as ambiguidades dos outrora discursos civilizatórios e das atuais retóricas modernizantes. Por isso, e por muito mais, os convido a lerem e estudarem a obra deste autor, destacando a necessidade de traduções atualizadas da 8
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mesma. Assim sendo, que essa tradução seja um incentivo para trabalhos futuros.
Hector Rolando Guerra Hernandez Docente do Dep. de História da Universidade Federal do Paraná
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Prefácio
O
presente trabalho surgiu de forma despretensiosa, pelo simples fato de que o objetivo central dos meus estudos num primeiro momento, não era o de realizar a tradução especificamente do texto que lhes apresento, mas sim o de realizar outras duas traduções, intituladas “Africanos e antilhanos” e “A morte de Lumumba, o que fazer?”. Todos os três capítulos citados são do mesmo livro do escritor, poeta, psiquiatra, sociólogo, etnopsicólogo e pensador martinicano Frantz Omar Fanon, intitulado Pour la Révolution Africaine, Écrits Politiques. Tive a grata satisfação de poder traduzir do francês para o português para a minha pesquisa não dois, mas três capítulos desse livro de Fanon, que nos prende pela riqueza de detalhes e pela profundidade com a qual o escritor aborda vários temas. Entre eles temos o capítulo sob o título “Racismo e Cultura”. Todos estes textos foram utilizados após traduzidos como suporte 11
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teórico para “o meu trabalho” de conclusão do curso de licenciatura em letras francês pela Universidade Federal do Paraná, no ano de 2016, sob orientação do mestre em Linguística e coordenador do curso de letras da Universidade Federal do Paraná, professor João Arthur Pugsley Grahl. Não posso deixar de agradecer, a minha orientadora de tradução de todas as horas, professora Dra. Carmem Druciak, também do Departamento de Letras francês da Universidade Federal do Paraná, a todos(as) os meus sinceros agradecimentos. O texto de Fanon consegue nos apresentar de forma direta e objetiva o que realmente significa o “Racismo cultural” e quais as suas principais características e consequências na atualidade. Mas, sobretudo, define e apresenta ao leitor, numa linguagem prática e simples, os verdadeiros interesses por trás de toda essa política imperial de dominação, sobretudo cultural, pela qual passaram os povos africanos. 12
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Frantz Fanon nos apresenta um texto repleto de argumentos e pensamentos que estão presentes no cotidiano e no imaginário de uma sociedade racializada, na qual essa construção racista do passado se deu por meio de uma variedade de ferramentas utilizadas pelo poder central baseado na Metrópole. Os instrumentos utilizados em nome de uma supremacia racial foram sempre os mais cruéis possíveis, em nome do Império num primeiro momento e, mais tarde, em nome de um Estado-nação moderno e que se mostra também com instituições internas racistas. Os dois poderes, do passado e do presente, sempre atuaram de forma implacável para subjugar os povos ditos coloniais. Para isso, as antigas metrópoles colônias e os atuais estados modernos não lançaram e não lançam mão de toda a estrutura disponível a seu serviço na manutenção das mais variadas formas de racismo institucionais, das quais podemos citar algumas das principais, tais como a ciência, as leis, a justiça, a economia e por fim, a cultura eurocentrada. 13
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Meus sinceros agradecimentos aos patrocinadores que tornaram possível a realização de mais esta obra, de grande interesse acadêmico e popular: Fundação Araucária e Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná (NEAB/UFPR).
O tradutor
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Racismo e Cultura
A
reflexão sobre o valor normativo de algumas culturas, decretada unilateralmente, merece atenção. Um dos paradoxos encontrados de forma pontual é o choque em torno de definições egocêntricas e sociocentristas. É afirmada, então, a existência de grupos humanos sem cultura; posteriormente, de culturas hierarquizadas; e, por fim, a noção de relatividade cultural. Da negação global ao reconhecimento singular e específico, essa história é certamente fragmentada e sangrenta, o que nos faz delinear o nível de antropologia cultural. Podemos dizer que existem algumas constelações de instituições, que passaram a ser vividas por determinados homens, no âmbito de geografias precisas, e que num dado 15
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momento sofrem assédio direto e brutal de esquemas culturais diferentes. O desenvolvimento técnico geralmente elevado do grupo social parece autorizar a instalação de uma dominação organizada. A empresa da aculturação passa a ser um esforço negativo e gigantesco de um trabalho de escravidão econômica, ou até mesmo biológica. A doutrina da hierarquia cultural é, portanto, uma modalidade de hierarquização sistematizada continuada de forma implacável. A teoria moderna, com ausência de integração cortical dos povos coloniais, é a vertente anatomofisiológica. A aparição do racismo não é fundamentalmente determinante, o racismo não é um todo, mas é o elemento mais visível, mais cotidiano de uma estrutura dada. Estudar as conexões do racismo e da cultura é se colocar na sua questão de ação recíproca. Se a cultura é o conjunto dos comporta16
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mentos motores e mentais, então ela nasce do encontro do homem com a natureza e seu semelhante, e podemos dizer que o racismo é um elemento realmente cultural. Existem então as culturas com racismo e as culturas sem racismo. Esse elemento cultural preciso não é enraizado. O racismo não pode esclerosar-se. Ele demorou algum tempo para renovar-se, para contextualizar-se e mudar de fisionomia. Ele teve que sofrer o mesmo destino do grupo cultural que o informava. O racismo vulgar, primitivo e simplista, que pretendia encontrar na biologia os registros revelados, se mostrou insuficiente na base material da doutrina. Seria tedioso, então, recordar os esforços empregados: formas de comparação dos crânios, quantidade e configuração dos sulcos do cérebro, características das camadas da crosta celular da casca, dimensões das vértebras, aspectos microscópicos da epiderme, etc. 17
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O primitivismo intelectual e emocional aparecia como uma consequência banal, aparecia como um reconhecimento da existência. Tais declarações brutais e massivas quase cederam lugar a uma argumentação mais fina. No entanto, aqui e ali algumas ressurgem. É assim que a “fragilidade emocional do negro”, “a integração subcortical do árabe” e “a culpabilidade quase genérica do judeu” serão dados encontrados por alguns escritores contemporâneos. A monografia de J. Carothers, por exemplo, foi patrocinada pela OMS (Organização Mundial da Saúde), feita a partir de “argumentos científicos de uma lobotomia fisiológica do negro africano”. Essas posições anômalas, em todo caso, tendem a desaparecer. O racismo que se queria racional, individual, determinou fenótipo e genótipo, transformando-se em racismo cultural. O objeto do racismo, agora, não é mais o homem individualmente, mas uma certa forma de existir. 18
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Por outro lado, falamos da mensagem, do estilo cultural. Os “valores ocidentais”, de forma singular, juntam-se à já celebre convocação para a luta da “cruz contra o crescente”. Algumas equações morfológicas não desapareceram completamente, mas os eventos dos últimos trinta anos acabaram agitando as convicções mais encapsuladas do confuso tabuleiro, reestruturando um grande número de relatórios. A lembrança do nazismo, a miséria comum de homens diferenciados, o assujeitamento de grupos sociais importantes, a aparição de “colônias europeias”, a instituição de um regime colonial em plena Europa, a tomada de consciência dos trabalhadores de países colonizadores e racistas e a evolução das técnicas mudaram profundamente o aspecto do problema. Isso nos faz pesquisar o nível de cultura e as consequências desse racismo. 19
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O racismo que temos visto é apenas um dos elementos de algo muito maior: aquele da opressão sistematizada de um povo. Como comporta-se um povo que oprime? Aqui as constantes reencontram-se. Assistimos então à destruição dos valores culturais, de modalidades de existência. A linguagem, o vestuário, as técnicas são desvalorizados. Como explicar e contabilizar esta constante? Os psicólogos, que têm a tendência de explicar tudo através dos movimentos da alma, afirmam encontrar esse comportamento no nível de contatos entre indivíduos: crítica de um chapéu original, de uma maneira de falar, de andar… As referidas tentativas ignoraram voluntariamente o caráter incomparável da situação colonial. Na verdade, as nações que empreenderam uma guerra colonial não se preocuparam em confrontar as culturas. A guerra é um gigantesco negócio comercial e toda perspecti20
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va deve ser reduzida a este dado. A escravidão no sentido mais estrito da população nativa é a primeira necessidade. Por isso, é preciso quebrar os sistemas de referência. A exploração, o depuramento, a invasão, o sequestro, o assassinato objetivo multiplicaram-se de uma maneira que admitiram esquemas culturais, ou meios condicionantes, desse saque. O panorama social foi desestruturado, os valores foram desprezados, esmagados e esvaziados. As linhas de forças ruíram e não ordenam mais. Face a uma nova conjuntura imposta, não se propõe mais nada, mas sim se impõe, mais uma vez, o peso dos canhões e dos sabres. A viabilização do regime colonial não resultou na morte da cultura nativa. A observação histórica mostra o contrário, ou seja, que o propósito desejado é mais uma agonia continuada do que o desaparecimento total da cultura pre 21
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existente. Esta cultura, uma vez viva e aberta para o futuro, fecha-se, congelada no estatuto colonial, presa pelo jugo da opressão. Ao mesmo tempo presente e mumificada, ela testemunha contra seus membros. Ela os define de fato, sem apelo. A mumificação cultural resulta em uma mumificação do pensamento individual. A apatia universaliza-se indicando os povos coloniais, é apenas uma consequência lógica dessa operação. A censura da inércia constantemente dirigida ao “nativo” é o cúmulo da má-fé. Como se fosse possível a um homem evoluir de outra forma que não no contexto de uma cultura que ele reconhece e decide assumir. E assim testemunhamos a implementação de organismos arcaicos, inertes, operando sob a supervisão do opressor, e calcados caricaturalmente sobre instituições outrora fecundas... Esses organismos traduzem aparentemente o respeito à tradição, das especificidades e da personalidade do povo assujeitado. Esse 22
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pseudo-respeito se identifica com um desprezo, com o sadismo mais elaborado. A característica de uma cultura é ser aberta, atravessada por linhas de forças espontâneas, generosas e fecundas. A designação de “homens fiéis” e responsáveis pela realização de determinados atos é uma mistificação que não engana ninguém. Os povos Djemaas e Kabyles nomeados pelas autoridades francesas não são reconhecidos como povos nativos, ou indígenas. São substituídos por um outro Djemaa eleito democraticamente. Naturalmente, o segundo ditava na maior parte do tempo sua conduta sobre o primeiro. A constante preocupação que afirma o “respeito à cultura das populações indígenas” não significa, portanto, apoio e consideração aos valores trazidos pela cultura e incorporados pelos homens. Ao invés disso, percebemos nesse processo uma vontade de objetivar, de encapsular, de aprisionar, de ferir. Frases como “eu os conheço” e “eles são assim” traduzem 23
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esta objetivação bem-sucedida. Logo, eu conheço os gestos e os pensamentos que definem esses homens. O exotismo é uma das formas dessa simplificação. Portanto, nenhuma confrontação cultural pode existir. Por outro lado, existe uma cultura que reconhece as qualidades do dinamismo, do florescimento, da profundidade. Uma cultura em movimento, em perpétua renovação. Diante das características encontramos as curiosidades, as coisas, jamais uma estrutura. Sendo assim, numa primeira fase, a ocupação instala sua dominação e afirma massivamente a sua superioridade. O grupo social escravizado militarmente e economicamente é desumanizado segundo um método polidimensional. Exploração, torturas, ataques, racismo e incursões no interior das regiões, liquidações coletivas e opressão racional se transmitem em 24
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níveis diferentes para literalmente fazer do indígena um objeto nas mãos da nação invasora. Esse homem objeto, sem meios de existir, sem razão de ser, é despedaçado no íntimo de sua essência. O desejo de viver, de continuar, se mostra cada vez mais incerto, cada vez mais fantasmagórico. É nesse estado que aparece o famoso complexo de culpa. Wright, em seus primeiros romances, nos dá uma descrição muito detalhada. Progressivamente, no entanto, a evolução das técnicas de produção, de industrialização, acaba limitando os países escravizados; a existência cada vez maior de colaboradores impõe aos ocupantes uma nova atitude. A complexidade dos meios de produção, a evolução das relações econômicas, desencadeou, querendo ou não, aquelas ideologias, desequilibrando o sistema. O racismo vulgar na sua forma biológica corresponde a um período de exploração brutal dos braços e das pernas do homem. A perfeição 25
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dos meios de produção provoca assim, inevitavelmente, a camuflagem das técnicas de exploração do homem e das formas de racismo. Não é, então, na sequência de uma da evolução dos espíritos que o racismo perde a sua virulência. Nenhuma revolução anterior explica essa obrigação do racismo de contextualizar-se, de evoluir. Em todos os lugares, os homens libertaram-se da letargia à qual a opressão e o racismo haviam condenado. Em pleno coração das “nações civilizadoras”, os trabalhadores descobriram enfim que a exploração do homem, base de um sistema, encontra os vários rostos. Nesse nível, o racismo não se atreve mais a apresentar-se sem maquiagem. Ele questiona-se. O racista, em um número cada vez maior, com frequência se esconde. Aquele que afirma “sentir”, “adivinhar”, se descobre alvo, é visto e julgado. O projeto do racista é então um projeto assombroso, devido à maldade consciente. A salvação só pode vir de 26
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um engajamento apaixonado, tal qual como no encontro de algumas psicoses. Esse não é um dos menores méritos do professor Baruk, que teria descrito a semiologia desses delírios apaixonados. O racismo jamais é um elemento descoberto por acaso, ou por uma pesquisa de dados culturais de um grupo. A configuração social e o conjunto cultural são profundamente reformulados pela existência do racismo. Podemos dizer frequentemente que o racismo é um flagelo da humanidade. Mas não devemos nos satisfazer com tal frase. Devemos incansavelmente buscar as repercussões do racismo, em todos os níveis de sociabilidade. A importância do problema do racista na literatura contemporânea estadunidense é significativa. O negro no cinema, o negro e o folclore, o judeu e as histórias para as crianças, o judeu no bistrô, são os temas inesgotáveis.
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O racismo, para voltar à América, autovicia a cultura americana. Essa gangrena dialética é exacerbada pela tomada de consciência e pela vontade de luta de milhões de negros e de judeus, visados por esse racismo. Essa fase apaixonada, irracional, sem justificação, revela um rosto assustador. A circulação dos grupos e a libertação em certas partes do mundo de homens anteriormente inferiorizados tornaram o equilíbrio cada vez mais precário. Inesperadamente, o grupo racista denuncia a aparição de um racismo entre os homens oprimidos. O “primitivismo intelectual” do período de exploração deu lugar ao “fanatismo medieval ainda pré-histórico” do período de liberação. Em alguns momentos, poderíamos pensar que o racismo desapareceu. Essa impressão eufórica, fora da realidade, era simplesmente a consequência da evolução das formas de exploração. Os psicólogos falavam de um preconceito inconsciente. A verdade é que, a rigor, os siste28
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mas tornam supérflua a afirmação cotidiana da existência de uma superioridade. A necessidade de fazer a ligação em diferentes graus de adesão, com a colaboração dos indígenas, modificou os relatórios em um sentido menos brutal, mais matizado, mais “culto”. Não é raro aparecer, nesse estado, uma ideologia “democrática” e humana. A empresa comercial da escravidão e da destruição cultural não cede progressivamente a uma mistificação verbal. O interesse dessa evolução é que o racismo seja tomado como um tema de meditação, ou até mesmo, às vezes, como técnica publicitária. É assim que as “queixas dos escravizados negros” contra o blues são apresentadas, a partir da admiração dos opressores. E uma opressão um tanto estilizada que volta ao explorador e ao racista. Sem opressão e sem o racismo, sem blues. O fim do racismo seria uma sentença da importante música negra… 29
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Como diria o célebre Tomynbee, o blues é uma resposta da escravidão ao desafio da opressão. Atualmente, para muitos homens mesmo negros, a música de Armstrong só faz sentido a partir dessa perspectiva. O racismo incha e desfigura o rosto da cultura que o pratica. A literatura, as artes plásticas, as músicas para mocinhas ingênuas, os provérbios, os hábitos, os padrões, seja como for, eles se propunham a executar o processo, ou banalizá-lo, para restaurarem o racismo. Isso significa dizer que um grupo social, um país ou uma civilização não podem ser racistas inconscientemente. Nós afirmamos, uma vez mais, que o racismo não é uma descoberta acidental. Não é um elemento oculto, escondido. Não são precisos esforços sobre-humanos para colocá-lo em evidência. 30
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O racismo é extremamente evidente, precisamente porque ele entra em um conjunto caracterizado: aquela exploração descarada de um grupo de homens alcança um estado de desenvolvimento técnico superior. E é por isso que, na maior parte do tempo, a opressão militar e econômica torna possível legitimar o racismo. O hábito de considerar o racismo como uma disposição do espírito, como uma carga psicológica, deve ser abandonado. Mas o homem visado por esse racismo, ou seja, o grupo social escravizado, explorado substancialmente, comporta-se como? Quais são os seus mecanismos de defesa? Quais atitudes descobriremos aqui? Numa primeira fase, vemos a ocupação legitimar sua dominação pelos argumentos científicos, a “raça inferior” negar-se a si mesma como raça. Porque nenhuma outra alternativa lhe foi deixada, o grupo social racializado 31
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tenta imitar o opressor, e de lá desracializar- se. A “raça inferior” nega-se como raça diferente. Ela compartilha com a “raça superior” as convicções, as doutrinas e outras expectativas em relação a isso. Tendo assistido à liquidação desses sistemas de referência e ao colapso de seus esquemas culturais, só resta ao nativo reconhecer com o invasor que “Deus não está ao seu lado”. O opressor, pelo caráter global e assustador de sua autoridade, chegou impondo ao nativo novas formas de ver singularmente um julgamento pejorativo a respeito de suas formas originais de existir. Esse acontecimento, geralmente designado alienante, é naturalmente muito importante. Facilmente encontrado nos textos oficiais sob o apelido de assimilação. Essa alienação jamais foi totalmente bem-sucedida. Seja porque o opressor, quantitativa 32
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ou qualitativamente, limita a evolução dos fenômenos inesperados, fazendo a sua aparição. O grupo inferiorizado tinha admitido a força de raciocínio como sendo implacável e que esses infortúnios procediam diretamente dessas características raciais e culturais. Culpabilidade e inferioridade são as consequências habituais desta dialética. O oprimido tenta então fugir, de um lado, proclamando a sua adesão total e incondicional aos novos modelos culturais e por outro lado, pronuncia uma condenação irreversível de seu estilo cultural próprio. Um fenômeno pouco estudado aparece nesta fase. Porém, a necessidade do opressor, em dado momento, oculta as formas de exploração, e isso não implica no desaparecimento dessa última. As relações econômicas mais elaboradas, e menos grosseiras, exigem um revestimento cotidiano; no entanto, a alienação nesse nível continua apavorante. 33
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Tendo julgado, condenado, abandonado suas formas culturais, sua linguagem, sua alimentação, suas práticas sexuais, sua maneira de se sentar, de repousar, de rir e de se divertir, o oprimido, com a energia e a tenacidade de um náufrago, se agarra a cultura imposta. Desenvolvendo conhecimentos técnicos no contato com máquinas cada vez mais aperfeiçoadas, entram no circuito dinâmico da produção industrial, deparam-se com homens de regiões mais remotas; no entanto, no âmbito da concentração de capitais nesses locais de trabalho, então, descobrem a cadeia, a equipe, o “tempo” de produção, ou seja, a produtividade por hora; o oprimido vê isso como um escândalo, é a manutenção do racismo e do desprezo a seu respeito. É nesse nível que se faz do racismo uma história de pessoas. “Existem alguns racistas incorrigíveis, que admitem em conjunto que a população ama...” 34
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Com o tempo tudo isso desaparecerá. Esse país é o menos racista… Há na ONU uma comissão encarregada de lutar contra o racismo. Os filmes sobre racismo, os poemas sobre racismo, as mensagens sobre racismo... A realidade é que um país colonial é um país racista. Se na Inglaterra, na Bélgica ou na França, apesar dos princípios democráticos afirmados por essas respectivas nações, são encontrados ainda racistas, são esses racistas que, contra todo o país, têm razão. Não é possível subjugar os homens, e escravizar esses mesmos homens, sem logicamente os inferiorizar; lado a lado, o racismo é apenas a explicação emocional, afetiva e intelectual dessa forma de inferiorizarão. O racista em uma cultura com racismo é normal. A adequação dos relatórios econômicos 35
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e de ideologias é perfeita para ele. Sem dúvida, a ideia que se faz do homem não depende nunca das relações econômicas, ou seja, não esqueçamos das relações existentes histórica e geograficamente entre os homens e grupos. É crescente o número de membros pertencentes a sociedades racistas tomando posição. Eles colocam suas vidas a serviço de um mundo onde o racismo seria impossível. Mas esse retrocesso, essa abstração, esse engajamento solene, não estão ao alcance de todos. Não se pode exigir, sem danos, que um homem seja contra os “preconceitos de seu grupo”. Reitero: todo grupo colonialista é racista. Não só o “aculturado” e o desculturado, mas também o oprimido, continuam a lutar contra o racismo. Ele acha ilógica essa sequela. É inexplicável o que ele passou sem motivo. Seus conhecimentos, a apropriação de técnicas precisas e complicadas, por vezes a sua superioridade intelectual em relação ao grande número 36
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de racistas, leva-o a qualificar o mundo racista como passional. Ele percebe que a atmosfera racista impregna todos os elementos da vida social. O sentimento de injustiça devastador é muito vigoroso. Esquecendo-se do racismo-consequência, perseguimos o racismo-causa. As campanhas de desintoxicação são realizadas. Nós fazemos um apelo ao senso de humano, ao amor, ao respeito dos valores supremos… De fato, o racismo obedece a uma lógica contínua. Um país que vive e extrai sua substância da exploração de diferentes povos inferioriza esses povos. O racismo aplicado a esses povos é normal. Logo, o racismo não é uma constante do espírito humano. Ele é, nós vimos, uma disposição inscrita em um sistema determinado. O racismo judeu não é diferente do racismo negro. Uma sociedade é racista ou não é. Não há graus do racis37
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mo. Ele não precisa dizer que tal país é racista, mas que não existem linchamentos ou campos de extermínio. A verdade é que tudo isso existe no horizonte. Essas potencialidades, essas esperas circulam de forma dinâmica, tomando as vidas das relações psicoativas e econômicas… Ao saber da inutilidade da sua alienação, no aprofundamento da remoção dessa pele, o inferiorizado, após essa fase de desculturação, de estraneidade, encontra suas posições originais. Esta cultura afastada, abandonada, rejeitada, desprezada e inferiorizada compromete-se com a paixão. Existe uma escalada muito nítida, associada psicologicamente ao desejo de ser perdoado. Mas, por trás dessa última análise simplificada, existe a boa e bela intenção de inferiorizar uma espontânea verdade aparente. Essa história psicológica obliterou-se sobre a história e sobre a verdade. 38
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Décima parte: Racismo e Cultura - Tradução de Sérgio Miguel José
Porque a inferioridade às vezes encontra um estilo anteriormente desvalorizado, testemunhamos aqui uma cultura da cultura. Uma tal caricatura de existência cultural significaria, se fosse necessário, que a cultura se vive mas não se fragmenta. Ela não se coloca entre a fina lâmina e a fatia. No entanto, a cada redescoberta o oprimido encontra-se em êxtase. O encantamento é permanente. Anteriormente migrado da sua cultura, o indígena hoje explora com impetuosidade. Trata-se então de núpcias contínuas. O antigo inferiorizado está em estado de graça. Ora, não se sofre impunemente uma dominação. A cultura do povo escravizado é esclerosada e agonizante. Nenhuma vida circula ali. Mas a única vida existente é a dissimulada. A população que normalmente assume aqui e lá alguns pedaços de vida e mantém dinâmicas 39
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significativas às instituições é uma população anônima. Em regime colonial, são os tradicionalistas. O antigo emigrado, pela ambiguidade repentina de seu comportamento, introduz o escândalo. O anonimato do tradicionalista se opõe ao exibicionismo veemente e agressivo. Estado de graça e agressividade são duas constantes encontradas nessa fase. A agressividade, sendo o mecanismo passional, possibilita escapar da mordida do paradoxo. Porque o velho imigrado possui as técnicas precisas, porque seu nível de ação encontra-se situado no quadro de relações já complexas, esses reencontros revestem-se de um aspecto irracional. Existe um fosso, uma lacuna, um diferencial entre o desenvolvimento intelectual e a apropriação técnica das modalidades de pensamento e de lógica, altamente diferenciadas; é uma base emocional “simples pura”, etc... 40
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Décima parte: Racismo e Cultura - Tradução de Sérgio Miguel José
Reencontrando a tradição, vivendo-a como um mecanismo de defesa, como um símbolo de pureza, como salvação, o desculturado deixa a impressão de que a mediação se vinga ao substancializar-se. Este refluxo sobre posições arcaicas, sem comparação com o desenvolvimento técnico, é paradoxal. Assim, as instituições valorizadas não correspondem mais aos métodos de ação já alcançados. A cultura encapsulada, vegetativa, desde a dominação estrangeira, é revalorizada. Ela não é repensada, retomada e dinamizada internamente. Ela é firmada. Essa revalorização autêntica não reestruturada e verbal abrange as atitudes paradoxais. É neste momento que ele faz menção ao caráter incorrigível dos inferiorizados. Os médicos árabes dormem pela terra, cospem não importa onde, etc. Os intelectuais negros consultam a feitiçaria antes de tomar alguma decisão, etc. 41
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Os intelectuais “colaboradores” buscam justificar sua nova atitude. Os costumes, tradições, crenças, anteriormente refutados e passados sob silêncio, são violentamente valorizados e afirmados. A tradição não é mais ironizada pelo grupo. O grupo não foge mais. Reencontramos o sentido do passado, o culto dos ancestrais… Doravante, a constelação de valores do passado se identifica com a Verdade... Essa descoberta, essa valorização absoluta, quase fora da realidade, objetivamente indefensável, reveste-se de uma importância subjetiva incomparável. Ao sair dessas promessas apaixonadas, o indígena terá decidido, com “conhecimento de causa”, lutar contra todas as formas de exploração e alienação do homem. Por outro lado, a ocupação nessa época multiplicou a chamada assimilação desde a integração à comunidade. 42
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Décima parte: Racismo e Cultura - Tradução de Sérgio Miguel José
O corpo a corpo do indígena com sua cultura é uma operação muito solene, muito abrupta para tolerar uma falha qualquer. Nenhum neologismo pode mascarar a nova evidência: o mergulho no fosso do passado é condição e fonte de liberdade. O fim lógico dessa vontade de lutar é a libertação total do território nacional. A fim de realizar esta libertação, o inferiorizado põe em jogo todos os seus recursos, todas as suas aquisições, as antigas e as novas, as suas aquisições e as do ocupante. A luta pela existência é total e absoluta. Não se percebe a aparência do racismo. No momento de impor seu domínio para justificar a escravização, o opressor recorreu aos argumentos científicos. Nada comparado até aqui. Um povo que empreende uma luta de libertação raramente legitima o racismo. Mesmo 43
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durante os períodos agudos de luta armada e insurrecional nós jamais havíamos assistido a uma tomada em massa a partir de justificativas biológicas. A luta do inferiorizado se baseia num nível nitidamente mais humano. As perspectivas são radicalmente novas. É a clássica oposição, nesse momento, das lutas de conquista e de libertação. No curso da luta, a nação dominadora tenta reeditar os argumentos racistas, mas a elaboração do racismo se revela cada vez mais ineficaz. Fala-se de fanatismo e de atitudes primitivas diante da morte, e uma vez mais o mecanismo colapsado não responde. Os antigos estáticos, os covardes constitucionais, os temerosos, os inferiorizados de sempre, apoiando-se, emergem guarnecidos. O invasor não compreende mais nada. O fim do racismo começa com uma repentina incompreensão. 44
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Décima parte: Racismo e Cultura - Tradução de Sérgio Miguel José
A cultura convulsiva e rígida do invasor liberta, abre-se enfim a cultura do povo, torna-se verdadeiramente irmã. As duas culturas podem então se enfrentar, e enriquecer-se. Para concluir, a universalidade reside nessa decisão de comprometimento, em assumir o relativismo recíproco de culturas diferentes, uma vez excluído irreversivelmente o estatuto colonial.
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ISBN 978-85-66278-16-3
9 788 566 27 8163
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