Universidade de Brasília
Faculdade de Ciência da Informação
Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação - UnB
nº 7,Vol. 4, 2015 ISSN 2238-5436
Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação - UnB PPGCINF/FCI/ UnB
REITORIA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
COMISSÃO EDITORIAL
Ivan Marques de Toledo Camargo
Celina Kuniyoshi Deborah Silva Santos
DIRETORIA DA FACULDADE DE CIÊN-
Elizângela Carrijo
CIA DA INFORMAÇÃO
Luciana Sepúlveda Köptcke
Elmira Luzia Melo Soares Simeão
Marijara Souza Queiroz Monique Batista Magaldi
COODENADORIA DA PÓS-GRADUA-
Silmara Küster de Paula Carvalho
ÇÃO EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO Georgete Medleg Rodrigues
EDITORES Ana Lúcia de Abreu Gomes
CONSELHO CONSULTIVO
Andrea Fernandes Considera
Cecília Helena L. de Salles Oliveira
Emerson Dionisio Gomes de Oliveira
James Counts Early Lena Vânia Pinheiro Ribeiro
SECRETARIA
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Vivian Miatello
Luiz Antonio Cruz Souza Marcus Granato
PROJETO GRÁFICO/
Maria Célia Teixeira Moura Santos
EDITORAÇÃO ELETRONICA
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Núcleo de Editoração e Comunicação/FCI
Maria Margaret Lopes
Cláudia Neves Lopes
Marília Xavier Cury
Bruna Ribeiro de Freitas
Mario de Souza Chagas Mário Moutinho
CAPA
Myrian Sepúlveda dos Santos
André Maya Monteiro
Renato Monteiro Athias Tereza Cristina Moletta Scheiner Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses
Universidade de Brasília
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Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação - UnB
nº 7,Vol. 4, 2015 ISSN 2238-5436
M u s e o l o g i a & I n t e r d i s c i p l i n a r i d a d e Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCInf) Faculdade de Ciência da Informação (FCI), Universidade de Brasília Edifício da Biblioteca Central (BCE), Entrada Leste, Mezanino, Sala 211 Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte, Brasília CEP: 70910-900 e-mail: revistami@unb.br ; Contribuições devem ser submetidas pelo site: http://seer.bce.unb.br/index.php/museologia
Todos os direitos reservados A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei no 9.610). Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Museologia e interdisciplinaridade: publicação eletrônica do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Universidade de Brasília. Faculdade de Ciência da Informação. – v.4, n.7 (2015) – Brasília: UnB/FCI, 2015v. Semestral Resumo em português e inglês. Disponível no SEER: http://seer.bce.unb.br/index.php/museologia ISSN 2238-5436 1. Museologia. 2. Patrimônio e memória. Artes Visuais. Antropologia. História. Interdisciplinaridade em Museologia. I. Universidade de Brasília. Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Faculdade de Ciência da Informação. CDU: 069.01(051)
SUMÁRIO
EDITORIAL 9 DOSSIÊ: COMUNICAÇÃO, PÚBLICO E RECEPÇÃO ATENÇÕES E VISÕES NA AMPLITUDE E DIVERSIDADE MUSEOLÓGICA Marilia Xavier Cury 11 REPRESENTACIÓN, POLISEMIA Y MUSEOS Maria Marta Reca 17 EL MUSEO DE LOS VISITANTES Silvia Alderoqui 30 TENSÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO NARRATIVA DAS HISTÓRIAS INDÍGENAS NO MUSEU Louise Prado Alfonso Márcia Lika Hattori 43 COMUNICAÇÃO, MEDIAÇÃO E MARKETING François Mairesse 57 MUSEUS DE HISTÓRIA, PRODUÇÃO DE CONHECIMENTOS E COMUNICAÇÃO: QUESTÕES PARA DEBATE Cecília Helena de Salles Oliveira 74 QUANDO AS MUSAS VESTEM O HÁBITO DIÁLOGO ENTRE ANTROPOLOGIA, MUSEOLOGIA E HISTÓRIA À SOLEIRA DOS MUSEUS MISSIONÁRIOS Aramis Luis Silva
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A BIENAL DE SÃO PAULO, O DEBATE ARTÍSTICO DOS ANOS 1950 E ACONSTITUIÇÃO DO PRIMEIRO MUSEU DE ARTE MODERNA DO BRASIL Ana Gonçalves Magalhães 112 THE UBIQUITOUS MUSEUM EXACT IMAGINATION, SYNCRETIC SUBJECT, PERFORMATIVE METROPOLIS, MOVING CONSTELLATION Masimo Canevacci 130 CARTOGRAFANDO O RIO DE JANEIRO E SEUS MUSEUS: NOTAS SOBRE UMA “ETNOGRAFIA AUDIOVISUAL DE PERCURSOS” Regina Abreu 151 POLÍTICA DE ACESSIBILIDADE COMUNICACIONAL EM MUSEUS: PARA QUÊ E PARA QUEM? Amanda Pinto da Fonseca Tojal 190 INCLUSÃO SOCIAL E A AUDIÊNCIA ESTIMULADA EM UM MUSEU DE CIÊNCIA Sibele Cazelli, Carlos Alberto Quadros Coimbra, Isabel Lourenço Gomes, Maria Esther Valente 203
O IMAGINÁRIO SOBRE O INDÍGENA: UMA EXPERIÊNCIA DE APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA NO MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA DA USP Camilo de Mello Vasconcellos 224 A PARTICIPAÇÃO EM MUSEUS: CONTRIBUIÇÃO DA RECEPÇÃO PARA A MUSEALIZAÇÃO DA ARQUEOLOGIA MARÍTIMA Cristiane Eugênia Amarante 245 CURADORIA DO ACERVO PALEONTOLÓGICO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Débora Diniz, Helena Loewenstein, Paula C. Dentzien-Dias 257 FUNDAMENTOS DE UM CAMPO DISCIPLINAR: PERSPECTIVAS SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA TEORIA DA MUSEOLOGIA NO ÂMBITO DOS CURSOS DE GRADUAÇÃO DA UNIRIO Bruno Brulon
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A MULTI-TEMPORALIDADE DO MUSEU: MEIO EXPOSITIVO E REALIDADE MISTA Giovanna Graziosi Casimiro 283 A EXPERIÊNCIA MUSEAL: DISCUTINDO A RELAÇÃO DOS MUSEUS COM SEUS VISITANTES NA CONTEMPORANEIDADE 306 Manuelina Ma. Duarte Cândido Gabriela Aidar, Luciana Conrado Martins CAPA 314 Ana Ruas
EDITORIAL
Ana Lúcia de Abreu Gomes Emerson Dionisio Gomes de Oliveira
Elegemos duas palavras incontornáveis para esse sétimo número da Museologia & Interdisciplinaridade: generosidade e confiança. Marília Xavier Cury confiou nesta publicação desde o seu primeiro número em 2012. Tendo seus artigos como os mais acessados, sua confiança nesta jovem revista se desdobrou em generosidade, ao aceitar organizar o dossiê intitulado Comunicação, recepção e público que ora apresentamos. São treze artigos que discutem o tema sob a perspectiva dos caminhos percorridos por essa relação recentemente reconhecida no campo e que, por isso, nos falam de experiências que nos desafiam à reflexão a todo momento. O desafio, não de esgotar o tema, mas de explorá-lo em suas diferentes possibilidades de abordagem foi posto a diversos autores convidados pela Prof.ª Marília Xavier Cury que os reuniu, no dossiê que ora se apesenta, adensando o debate acerca do tema. São apresentadas perspectivas de atualização dos museus por meio de diferentes atividades expositivas, por meio da compreensão desses espaços como condição de possibilidade do debate, do conflito, enfim do protagonismo do público. Há ainda os artigos que abordam temas consolidados como acervo e acessibilidade na perspectiva da comunicação e a discussão da comunicação, recepção e público em museus indígenas um de seus atuais campos de pesquisa. Os quatro artigos avulsos que acompanham o dossiê deste número nos apresentam as dificuldades que envolvem as atividades de curadoria diante de um acervo delicado: o acervo paleontológico do Rio Grande do Sul. Na sequencia, Bruno Brulon e Elizabeth Mendonça nos convidam a conhecer os diferentes projetos pedagógicos adotados ao longo dos quase quarenta anos do curso de graduação da escola de Museologia da UniRio e suas relações com a Teoria Museológica. Retomando o debate presente nos artigos do Dossiê temos o artigo de Giovanna Graziosi Casimiro que se propõe a discutir o uso de ferramentas computacionais na construção do espaço expositivo e o artigo de Manuelina Maria Duarte Cândido, Gabriela Aidar e Luciana Conrado Martins debatendo a experiência museal e o papel dos visitantes. Sempre no intuito de contribuir para a qualificação do campo, desejamos a todos profícuos momentos de reflexão. Emerson Dionisio Gomes de Oliveira Ana Lúcia de Abreu Gomes Andrea Fernandes Considera
NOSSOS PARECERISTAS
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A publicação de revista Museologia e Interdisciplinariedade não seria possível sem a constituição de um corpo de pareceristas que atuam como avaliadores dos trabalhos submetidos à Revista. Um trabalho coletivo que agrega pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento. Pesquisadores que gentilmente colaboraram de maneira voluntária. Agradecemos nominalmente aos colegas que atenderam a nossa solicitação e tornaram-se parte integrante da história dessa jovem publicação: Adriana Mortara Almeida (Museu Histórico do Instituto Butantan) Alda Lucia Heizer (Inst. de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro-JBRJ) Ana Lúcia de Abreu Gomes (UnB) Ana Maria Dalla Zen (UFRGS) Andréa Fernandes Considera (UnB) Camila Azevedo de Moraes Wichers (UFG) Camilo de Mello Vasconcellos (USP) Carlos Alberto Ávila Araujo (UFMG) Cátia Rodrigues Barbosa (UFMG) Elizabete de Castro Mendonça (UFS) Emanuel Sousa Ribeiro (UFPE) Emerson Dionisio Gomes de Oliveira (UnB) Fabíola Andreá Silva (MAE-USP) Francisco Sá Barreto (UFPE) José Cláudio Alves de Oliveira (UFBA) Karla Estelita Godoy (UFF) Ligia Maria Arruda Café (UFSC) Lillian Maria Araújo de Rezende Alvares (UnB) Luciana Ferreira da Costa (UFPB) Luciana Sepúlveda Köptcke (UnB/Fiocruz) Luiz Antonio Cruz Souza (UFMG) Maria Esther Alvarez Valente (MAST/UNIRIO) Maria Júlia Estefânia Chelini (UnB) Maria Margaret Lopes (UnB/Unicamp) Martha Marandino (USP) Milton Terumitsu Sogabe (Unesp) Monique Bastista Magaldi (UnB) Renato Athias (UFPE) Robson Xavier da Costa (UFPB/UFPE) Sidélia Santos Teixeira (UFBA) Silmara Küster de Paula Carvalho (UnB) Suzana Cesar Gouveia Fernandes (Instituto Butantan) Thérèse Hofmann Gatti Rodrigues da Costa (UnB) Valdir José Morigi (UFRGS) Zita Rosane Possamai (UFRGS)
DOSSIÊ: COMUNICAÇÃO, PÚBLICO E RECEPÇÃO ATENÇÕES E VISÕES NA AMPLITUDE E DIVERSIDADE MUSEOLÓGICA Marilia Xavier Cury1
Não seria demasiado dizer que a instituição museu sempre esteve voltada à comunicação, se dissermos ao mesmo tempo que o ato de coletar esteve associado a expor ao olhar de outros aquilo que se tem por uma determinada formação. Igualmente o público sempre fez parte da ideia de museu, pois a comunicação depende de, ao menos, duas pessoas e, no caso do museu, alguém interno a ele e outro externo: quem coleciona quer ter para quem mostrar – os objetos – e demonstrar a sua capacidade de reunir, possuir e saber. O público, desde há muito tempo, é o visitante do museu, para o qual a instituição se abriu mais ou menos, a depender das circunstâncias históricas, sociais e culturais. Apesar da remissão remota, o que podemos entender hoje como comunicação, agora saindo da generalidade, vem atravessando o século XX, entrando no XXI como muitas e diversificadas possibilidades epistemológicas, paradigmáticas, teóricas e metodológicas, como nos informa a área da Comunicação. Igualmente a ideia de público vem se transformando, também e porque associa-se à comunicação nas suas quase que infinitas teorizações, assim como a outros campos como a Antropologia, Sociologia e Educação. Os marcos que colocam os museus em outros patamares sociais já foram muitas vezes apresentados, mas se buscamos referenciais para as ideias de comunicação e público na aproximação com os museus não podemos deixar de lembrar a criação do Conselho Internacional de Museus (ICOM) que no momento pós II Grande Guerra Mundial recoloca a pergunta sobre a função social dessas instituições. Ainda, o movimento Maio de 1968, o debate museu templo ou fórum, o advento da Nova Museologia e daí por diante, não há retrocesso para os museus na sua perspectiva social e com isto a comunicação e o público ganham destacada atenção. É de Duncan Cameron o clássico artigo “The museum: a temple or the fórum” (1970), María Bolaños nos apresenta artigos organizados no conjunto que denominou Formas de antimuseus (2002) e os Documentos de Santiago do Chile (1972) e do Quebec (1984) nos apresentam as inovações daqueles momentos que chegam até a atualidade, agora como desafios pragmáticos a serem vencidos para que o museu seja, de fato, um agente de comunicação para uma diversidade de públicos. No entanto, o que ainda pode nos surpreender e nos levar a questionar é: por que o museu tardou tanto para abraçar a comunicação como parte de sua 1 Docente do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Museóloga e educadora de museu.
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Dossiê: comunicação, público e recepção atenções e visões na amplitude e diversidade museológica
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problemática de trabalho, a comunicação museal, e de estudo, a comunicação museológica? Se o museu sempre foi um lugar de comunicação e se a área de comunicação teve grandes transformações no século XX, por que o museu e a Museologia resistiram a essa abordagem como trabalho museal e de produção de conhecimento museológico? Perguntas difíceis de serem respondidas rápida e brevemente, mas podemos indagar. Por exemplo, o mesmo Duncan Cameron, que em 1970 publicou seu renomado artigo sobre como o museu deveria se entender e ser entendido socialmente – “The museum: a temple or the fórum” –, publicou em 1968 “A viewpoint: the museum as a communications system and implications for museum education”, o artigo com ideias estruturadas na “Teoria matemática da comunicação”, de 1949, no modelo original de Claude E. Shannon e W. Weaver, desenvolvido para explicar a comunicação elétrica, quando na década de 1960 a Comunicação já apresentava inúmeras teorias e modelos comunicacionais voltados aos estudos que já realizava intensamente. Resumidamente, Cameron em seu artigo de 1968 insere a relação transmissor (expositor)/meio (coisas reais)/receptor (visitante), mas nos parâmetros matemáticos, ideia seguida por Knez e Wright (1970), com a adaptação para curador (determina o conteúdo da mensagem)/exposição (codifica a mensagem, o objeto é o meio principal, e as etiquetas e fotografias o meio secundário)/visitante (decodifica a mensagem). Somente em 1989 Roger Miles recoloca essa relação de forma a flexibilizar os papéis, pois o feedback do processo serviu, então, para realimentar inúmeras vezes a visão do emissor, considerando as interpretações do visitante que o emissor gostaria de conhecer. Muitas década se passaram para que as relações em desequilíbrio entre emissor e receptor fossem alteradas, para que possamos hoje ter outros parâmetros para a prática comunicacional nos museus e, mais ainda, para os estudos que envolvam a comunicação museológica como subárea da museologia e possibilidades de pesquisa em face dos compromissos da instituição e do campo atualizados. No entanto, novos equilíbrios são vislumbrados, pois o museu se reconstrói em elaborações e estatutos conceituais, práticas e relações de inserção social. Também a curadoria de coleções museológicas se renova, constrói novas premissas, sentidos e ressignificações, estrutura narrativas e retóricas, enunciações, representações, interpretações atualizadas e formas abertas e criativas de apropriação pelo público das mensagens museológicas. A Comunicação já nos ensinou que a teia de ações curatoriais em um museu não se dissocia das formas de veiculação de mensagens pela instituição (não somente no museu) e da recepção, aqui entendida como um processo que antecede e sucede a experiência museal. Por isso, a escolha temática deste dossiê, embora abrangente, se explica na ideia de que a comunicação, ao unir as condições de produção (a produção de conhecimento e a práxis do museu) à veiculação (ou o meio, a exposição, por exemplo) e à recepção, contribui para que a eficácia seja entendida como um processo complexo e dinâmico dentro de um sistema a ser enfrentado. A questão é: comunicação é uma forma de entender e estudar o museu, de problematizá-lo enfim, em se tratando da curadoria das coleções, mas também da participação do público na instituição, nos processos comunicacionais e igualmente como problemática a ser tratada para a produção de conhecimento da práxis, a museografia, ou da área, a Museologia. A recepção é, nesse sentido, ora parte da comunicação, ora parte do público como tema da instituição e da pesquisa museológica. No entanto, é também
Marilia Xavier Cury
ponto de vista desde onde se vê e se estuda o museu e o processo de comunicação, posto que sempre há um ponto de vista, um lugar desde onde se dá a observação e a análise. Mas, recepção refere-se principal aos estudos ou pesquisa de recepção que, em síntese, são as abordagens culturais sobre as formas de uso e apropriação do museu pelos distintos públicos (CURY, 2005; CURY, 2009), estudos que se dão a partir de correntes e/ou tendências diversas, uma vez que estas pesquisas partiram dos Estudos Culturais (Cultural Studies) ou de alguma forma fazem parte destes, mas com outras modelagens (LOPES, 1993). A questão que se coloca é que a comunicação, o público e a recepção são temas relativamente novos para os museus e a Museologia e ainda abertos, porque estão em consolidação e porque as perspectivas, abordagens e possibilidades são as mais diversas possíveis, o que considero pontos bastante estimulantes e criativos, mas desafiadores. Então, temos que lidar, além daqueles próprios aos museus e Museologia, com a interdisciplinaridade ou mesmo a transversalidade para tratar da comunicação, do público e para desenvolver estudos de recepção, pois são diálogos e confrontos que precisam ser travados também com a ajuda da Antropologia, Sociologia, História, Educação, Psicologia dentre outras e para citar algumas que não podem ser omitidas. O dossiê que ora apresentamos é o reflexo do dinamismo do recorte Comunicação, Público e Recepção, de seus inúmeros ângulos de visão, historiografias, perspectivas e premissas. Sabemos que é amplo, mas não foi o nosso intuito revisá-lo e muito menos esgotá-lo, mas tivemos como objetivo reunir um conjunto de autores que dessem conta da diversidade, para ilustrar como cada tema e os três como um eixo podem ser abordados e aprofundados. Ora, então, apresentamos os autores que atenderam ao convite para elaborarem seus artigos para este dossiê. O primeiro artigo é de autoria de Maria Marta Reca, antropóloga do Museu de La Plata, uma instituição universitária argentina que carrega os desafios de seus mais de 100 anos de existência. Reca afirma que estratégias de comunicação podem fortalecer “... um perfil atualizado da instituição museu”. A pesquisadora faz a etnografia da instituição onde trabalha por meio da exposição de longa duração “Espejos culturales”, destacando a intencionalidade comunicacional da exposição, com o auxílio de um estudo de público realizado sob o aporte da semiótica, recorrendo ao método qualitativo e à análise do discurso. A Museologia crítica é para Maria Marta Reca o campo de análise formado por diversas disciplinas para uma reflexão profunda da museografia – o fazer museal – e da experiência de visita. Igualmente é para educadora Silvia Alderoqui que ainda “... concibe a los museos como espacios de diálogo, conflicto, tradición, contradicción, resistencia, colisiones, fusiones y transformación social”, o que para a educadora significa uma grande mudança no pensamento e rotina institucional. Para Alderoqui as questões comunicacionais passam pelo fato de que “La igualdad del derecho a los bienes culturales comunes no se corresponde con las igualdades de hecho” e que essa questão é remota, lembra a importância dos Documentos do ICOM como a Declaração de Quebec (1984), mas demonstra o seu estranhamento com a literatura ao esquecimento do Seminário no Museu da Cidade de Nova York, 9 e 10 de outubro de 1967, quando Marshall McLuhan e Harley Parker apontam diversos problemas de comunicação dos museus e exposições desse período, sempre, obviamente como comunicólogos, ressaltando dificuldades institucionais na relação com o público.
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A autora aborda a “Curadoria do visitante” como forma de participação do público nos processos museais, revelando que a curadoria de exposição pode ser vista ampliadamente. De outro ponto de vista, mas tendo a curadoria participativa como referência importante, Louise Alfonso Prado e Marcia Lika Hattori nos apresentam relato importante sobre um processo expográfico para a inauguração do Museu Histórico e Arqueológico de Lins, SP, com a participação de indígenas Kaingang e Terena residentes na Terra Indígena Icatu, Braúna, São Paulo. O título “Tensões sobre a construção narrativa das histórias indígenas no museu” já nos induz ao entendimento de que as agentes, Louise, antropóloga, e Marcia, educadora de museu e arqueóloga, viram o resultado do processo positivamente, quanto ao protagonismo dos grupos indígenas, e criticamente, quanto à descontinuidade de processo de participação e comunicação institucional devido à troca de gestão municipal, o que nos leva a crer que a questão da comunicação abarca mais pessoas, níveis decisórios e estruturas de pensamento, objetivos e políticas públicas solidamente construídas. A contribuição que François Mairesse refere-se à mediação, comumente associada à comunicação. Com fundamentação histórica e conceitual, Mairesse aproxima dois pontos de vista aparentemente distintos: a comunicação e o marketing museal. Nesse sentido, o autor nos demonstra como o museu, para atingir seus objetivos de sustentabilidade, apropria-se do sistema comunicacional e, em consequência, da ideia de mediação, para atingir seus objetivos de visibilidade, atração de público e de recursos. O autor nos coloca para discussão conflitos gerados entre visões sobre o visitante e, no limite, como o marketing pode alterar a relação do museu com o visitante “de não mais ser visto como parte constitutiva do público, instância de decisão e de reflexão dentro do processo democrático, para se tornar apenas um consumidor isolado entre outros, identificado apenas em função do seu poder aquisitivo”. Com atenção aos museus de História e à historiografia dos museus, Cecília Helena de Salles Oliveira nos apresenta instigante artigo para reflexões sobre a complexidade dos museus como lugares de memória e de cultura. Nas palavras da autora: “O ponto de partida de minhas considerações é, portanto, o reconhecimento de que os museus, ao longo de sua história, vêm atuando num universo de forças políticas, protagonizado por diversos agentes que partilham com eles intenso debate em torno da ciência e da cultura”. Nos agrada o exercício realizado pela pesquisadora de entrevistas com o público do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, para trazer à tona as falas, concepções e os usos que o público visitante faz da instituição. Com o seu olhar crítico sobre os museus salesianos, Aramis Luis Silva no oferece um “texto” cruzando a Antropologia, a Museologia e a História. Contribui com este dossiê com a questão da ressignificação de objetos e/ou coleções museológicas como condição para uma reconfiguração e reatualização desses objetos e da instituição, posto que novos paradigmas para os museus nos mostram que os sentidos atribuídos precisam ser ressignificados para a permanência, ou não, dos objetos no acervo museológico, com isso argumenta, com a circunstância apresentada, que essa elaboração não é simples e muito menos inocente. Ana Gonçalves Magalhães centrou suas reflexões sobre o processo de formação do acervo Bienal/MAM/MAC USP, revisando a historiografia, aproxima uma visão de arte à constituição de uma coleção na década de 1950, argumen-
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ta como essa aproximação participou de um sistema internacional da linguagem artística. Traz essa discussão para a atualidade, demonstrando como outras “roupagens” se manifestam hoje, em especial na capital paulista: “...São Paulo parece ser um dos melhores lugares do mundo para ser um artista, começar uma coleção de arte e criar um museu de arte contemporânea” e também como o jogo entre a ausência de políticas públicas e mecenato limitam e/ou possibilitam novas formas de comunicação da arte. O antropólogo Massimo Canevacci trabalha com a etnografia multilocalizada para se alcançar o projeto para o Museu Onipresente que se faz pela constelação de museus imaginários que multiplica e conecta potenciais objetos e sujeitos em espaços onipresentes e temporalidades oportunas. Com outra abordagem antropológica, Regina Abreu etnografa os museus do Rio de Janeiro. Nos apresenta alguns resultados do projeto de pesquisa “Museus do Rio” para a qual utiliza a “etnografia audiovisual dos percursos” e a relação da memória coletiva com a dinâmica cultural. Uma das contribuições da pesquisa, segundo a autora, é o uso de ferramentas de pesquisa que permitam ainda uma relação de inter-conectividade entre ensino (de graduação e pós-graduação) com a pesquisa. A museóloga e arte-educadora Amanda Tojal é referência em acessibilidade em museus no Brasil. Seu pioneirismo está em afirmar que as questões de acessibilidade, tão reduzidas muitas vezes, são antes de tudo uma problemática comunicacional, ou seja, não é possível pensar em acesso a museu sem pensar em comunicação museal. A partir disso conceitua acessibilidade na dimensão cultural e, com isso, democratiza a instituição museu, ao colocar cada visitante como cidadão com especificidades que precisam ser reconhecidas, respeitadas e atendidas. Apesar da legislação vigente, Tojal coloca com clareza que a postura atitudinal do museu – entenda-se, uma gestão voltada para a comunicação e a acessibilidade com equipes preparadas – deve estar amparada pelas políticas públicas sociais e para a área da cultura, em especial aquelas que impactam o museu. Para um conjunto de autores o estudo de recepção – como me refiro – apresenta-se com diversas abordagens comunicacionais e educacionais, com métodos específicos para atender às finalidades das pesquisas que desenvolveram. A Coordenação de Educação em Ciências do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), Rio de Janeiro, está representada no dossiê por Sibele Cazelli, Carlos Alberto Quadros Coimbra, Isabel Lourenço Gomes e Esther Valente. Cabe a lembrança de que essa Coordenação é uma das poucas em museus brasileiros com um quadro de pesquisadores que se voltam ao estudos sobre educação em museus de ciência e tecnologia (C&T), dentre eles os estudos de recepção. O artigo que essa equipe interdisciplinar nos oferece trata das percepções do visitante estimulado, para, nos parâmetros sociodemográfico, cultural e econômico, entender as relações entre empoderamento, cognição e mundo social do visitante. Chegam a constatações semelhantes às de Silvia Alderoqui e Amanda Tojal: a inclusão do visitante no museu acontece com uma política institucional. O pesquisador da área de Museologia e Educação em Museus do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, Camilo de Mello Vasconcellos, apoiado pela concepção de aprendizagem significativa, aborda em seu artigo a importância da pesquisa sobre coleções, a comunicação pelas exposições e a educação como estratégia de apropriação. Para tanto, a experiência de visitação significativa é levada como fator preponderante, por isso a
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Dossiê: comunicação, público e recepção atenções e visões na amplitude e diversidade museológica
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aprendizagem será significativa também. Nesse sentido, o autor nos expõe com clareza porque a aproximação entre os conceitos que o visitante leva ao museu e aqueles que leva como forma de apropriação é importante para entender o museu e o próprio público e, nisso, o papel do educador como agente de comunicação. Cristiane Eugênia Amarante, educadora e arqueóloga, enfrentou um público muitas vezes desconsiderado – a criança – e a construção de um multimétodo, recurso da Comunicação para construção de instrumental para apreensão da realidade empírica. A autora vai além da coleta de dados, ela provoca situações para geração de dados carregados de significados, um processo em que as crianças, sujeitos da pesquisa-ação, atuam criativamente manifestando-se culturalmente na relação com a cidade de Santos, SP, para estruturar a conceituação de um museu de arqueologia subaquática na cidade, ou seja, a musealização construindo o estatuto conceitual de uma nova instituição, tendo o público como elemento constitutivo. Bem, temos neste dossiê um conjunto significativo de artigos, autores renomados com suas reflexões e contribuições específicas que, no todo, se apresenta como um panorama bastante diversificado, destacando a Museologia crítica, mas também que a crítica aos museus passa pela comunicação, pela participação do público e pela recepção, como forma de entendimento do público visitante na sua dimensão cultural, como um representante da sua cultura que entra no museu e que o museu desconhece. Convidamos a todos a desfrutarem do dossiê, esperando que resulte em muitas discussões. E sem perder a oportunidade, agradeço imensamente à Revista Museologia & Interdisciplinaridade pelo espaço para criar novas inquietações. Referências BOLAÑOS, María. La memoria del mundo: Cien años de museología [19002000]. Gijón: TREA, 2002. CAMERON, Duncan F. The museum: a temple or the forum. Curator, New York: American Museum of Natural History, v. 14, n. 1, p. 11-24, mar. 1970. CAMERON, Duncan F. A viewpoint: the museum as a communications system and implications for museum education. Curator, v. 11, n. 1, p. 33-40, 1968. CURY, M. X. Museologia. Novas tendências. In: GRANATO, Marcus (Org.). Museu e Museologia. Interfaces e perspectivas. Rio de Janeiro: MCT: MAST, 2009. Disponível em: http://www.mast.br/livros/mast_colloquia_11.pdf. CURY, M. X. Comunicação museológica: Uma perspectiva teórica e metodológica de recepção.Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 2005. KNEZ, E. I.; WRIGHT, A. G. The museum as a communications system: an assessment of Cameron’s viewpoint. Curator, v. 13, n. 3, p. 204-212, 1970. LOPES, Maria Immacolata Vassalo de. Estratégias metodológicas da pesquisa de recepção. Revista Brasileira de Comunicação, São Paulo: INTERCOM, v. 16, n. 2, p. 78-86, jul./dez. 1993. MILES, Roger S. L’évaluation dans son contexte de communication. In: SCHIELE, Bernard. Faire voir, faire savoir. La muséologie scientifique au présent. Québec: Musée de la Civilisation, 1989. p. 145-155.
REPRESENTACIÓN, POLISEMIA Y MUSEOS. UNA EXPLORACIÓN SEMIÓTICA PARA EL ANÁLISIS DE LOS PROCESOS DE SIGNIFICACIÓN María Marta Reca1
RESUMO: A museologia crítica constitui um campo de análise nutrido da contribuição de várias disciplinas. Diante das perspectivas hermenêuticas e construtivistas, concentra-se em uma profunda reflexão sobre o trabalho do museu e da experiência da visita, para o desenvolvimento de estratégias de comunicação que fortaleçam um perfil atualizado da instituição museu. Neste trabalho, se olha para o aporte da semiótica em dois contextos de análise, das exposições e dos estudos de público. As relações entre esses contextos definem um campo particular de comunicações e fornece elementos para a construção de um modelo para a avaliação da eficácia comunicativa de uma exibição. Ele enfatiza o valor dos estudos qualitativos e da análise do discurso. As reflexões propostas emergem a partir de experiências desenvolvidas nos últimos anos, no Museu de La Plata.
ABSTRACT: Critical museology is a field of research enriched by different disciplines. Oriented to hermeneutic and constructivist perspectives, it focuses in a deep reflection on museographic practices and the experiences of visitors. Reflections help to develop communicative strategies that strengthen the new profile of the Museum institution. This study assesses the contribution of semiotics in two analytical contexts: exhibitions and visitors’ studies. The links between both contexts delimitate a particular communicative field and provide elements for building a model that serve to evaluate the communicative efficacy of an exhibition. In this study, it is emphasized the contribution of qualitative studies and discourse analysis. The reflections presented here are derived from studies carried out during the last years in the Museo de La Plata.
PALAVRAS-CHAVE: comunicação- semiótica- patrimonio- represen-
KEYWORDS: heritage; semiotics; communication; representation; appropriation
tação - da propriedade
RESUMEN: La museología crítica constituye un campo de análisis nutrido del aporte de diversas disciplinas. Orientada hacia las perspectivas hermenéuticas y constructivistas, centra su atención en la reflexión profunda sobre el quehacer museográfico y la experiencia de la visita, para el desarrollo de estrategias comunicativas que fortalezcan un perfil actualizado de la institución museo. En este escrito se indaga acerca del aporte de la semiótica en dos contextos análisis, el de las exhibiciones y el del estudio de público. Las relaciones entre dichos contextos definen un ámbito comunicacional particular y otorga elementos para la construcción de un modelo para la evaluación de la eficacia comunicativa de una exhibición. Se enfatiza en el valor de los estudios cualitativos y el análisis de discurso. Las reflexiones propuestas surgen de las experiencias desarrolladas en los últimos años en el Museo de La Plata. PALABRAS CLAVES: patrimônio; semiótica; comunicación; representación; apropiación 1 Dra. En Antropología (U.N.L.P.) Coordinadora de la Unidad de Conservación y Exhibición del Museo de La Plata. Facultad de Ciencias Naturales y Museo. Universidad Nacional de La Plata.) mmreca@fcnym. unlp.edu.ar
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Representación, polisemia y museos.Una exploración semiótica para el análisis de los procesos de significación
Introducción
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En las últimas décadas han proliferado artículos y libros relacionados con los diversos temas que competen a la institución museo, poniendo de manifiesto una fuerte renovación del interés por este tipo de instituciones. Enfocados hacia las cuestiones de gestión, exhibición, documentación, conservación, entre otros temas, lo cierto es que cada vez más se asume una perspectiva crítica y la necesidad de diseñar estrategias actualizadas que revitalicen su función social. Sin embargo, esta actualización no se agota en la incorporación de nuevas tecnologías, materiales o recursos museográficos sino que se ha ido configurando un campo de investigación museológica nutrido de una variedad de disciplinas entre las que cuentan la psicología, pedagogía, sociología, antropología, semiótica, comunicación, diseño, entre otras y, en consecuencia, la incorporación en los equipos de trabajo de profesionales de distintas áreas. Así se define una perspectiva esencialmente inter- transdisciplinaria a la vez que un espacio de prácticas concretas para su problematización. Pero lo que circula y se pone en juego no son las disciplinas como sistemas de conocimiento claramente delimitados, ya que ninguna de ellas puede apropiarse completamente de este campo de análisis, sino las teorías y conceptos que más allá de las fronteras disciplinares resultan productivas o pertinentes para la reflexión museológica. La teoría de la comunicación y los procesos de mediación, teorías sobre el objeto y sus posibilidades de significación, teorías sobre el aprendizaje, entre otras, van conformando una matriz conceptual dinámica que encuentra su anclaje en estudios y problemáticas particulares en las que prácticas y representaciones se enlazan en enriquecedoras propuestas. En general se asume que la década del 80 marca el nacimiento de lo que se llamó la nueva museología, que gestó un desplazamiento conceptual hacia las miradas más constructivistas, formateando una nueva epistemología para los museos. Una serie de denominaciones connotan y expresan los canales teóricos por donde transita este movimiento, tales como, museo pedagógico, museo foro, museo comunitario, participativo, dialógico. Como todo conocimiento, este se inscribe en diversos contextos epistemológicos e histórico- sociales específicos, pero que sin embargo comparten la ruptura con los preceptos fundacionales que cerraron las oportunidades de contemplación y disfrute del patrimonio a sectores elitistas y cristalizaron las colecciones en modalidades monológicas de presentación. La museología crítica propone un enfoque que se centra en el estudio de las instituciones museísticas, tanto a nivel de su gestión y administración como su carácter ideológico-político (Navarro Rojas, 2011; Pérez Ruiz, 1998). Por otro lado, la mayor exploración sobre las posibilidades comunicativas del museo a través de los estudios de público fortaleció una perspectiva
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dialógica y permitió la apertura hacia los diversos grados de ambigüedad que, como veremos, forma parte de todo proceso de interpretación. Repasemos rápidamente, a través de un conjunto de conceptos claves algunos de los elementos que configuran este nuevo escenario para los museos. Partimos de la idea que el patrimonio es dinámico, es visto como un conjunto de bienes cuyos valores son re-significados según los contextos particulares en que se inscriben, no solo de construcción museográfica, sino en relación a la variedad de intérpretes involucrados y el contexto político-ideológico que envuelve la institución (Prats, 2005). A la vez, la exhibición es vista como una forma posible de materializar, en el espacio tridimensional, un conjunto de ideas relacionadas de forma intencional. Un espacio donde convergen y se articulan los recursos museográficos como construcción discursiva e interpretable. El visitante, en sentido genérico, es pensado como un sujeto cognoscente, histórico, que activa su capital cultural durante la visita. En este sentido, la visita se concibe como una experiencia situada, no solo porque transcurre en un tiempo y lugar determinado, en un contexto específico regido por ciertas pautas preestablecidas, sino también, porque la síntesis cognitiva que construye el visitante está sesgada, orientada, por el conjunto de representaciones disponibles, según su bagaje cultural, expectativas, intenciones, motivaciones. Es allí donde podemos comprender el aprendizaje como experiencia de construcción significativa/ co-compartida/ co-construida que involucra aspectos sociales, comportamentales, emocionales, cognitivos y lúdicos. Estos son algunos de los componentes que ponen de manifiesto la complejidad de este campo de análisis, otorgan relativismo a la puesta museográfica y dan paso a la conflictividad, diversidad y ambigüedad. El museo es, entonces, una institución privilegiada para el encuentro cultural, un espacio de construcción social abierto al diálogo (Heins, 1999; Cury, 2011; Harris, 2011). Muchas de las reflexiones que forman parte de esta entrega surgen de las experiencias de exhibición desarrolladas en el Museo de La Plata1 y el estudio de público implementado en dos de sus salas de antropología inauguradas en los últimos diez años. El Museo de La Plata es un exponente emblemático de las ideas que guiaron el nacimiento de los grandes museos de ciencias del siglo XIX. Fundado en 1884 abre sus puertas al público cuatro años más tarde, en noviembre de 1888, cuando la ciudad de La Plata apenas tenía seis años. El conjunto inicial de sus colecciones formaban parte del museo Antropológico y Arqueológico de Buenos Aires desde 1877. Pertenece desde el año 1906 a la 1 Hasta el momento han sido remodeladas cuatro salas de exhibición permanente. Los niveles
de intervención en todos los casos incluyen los aspectos conceptuales, la conservación, aspectos edilicios, diseño y construcción de equipamiento.
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Universidad Nacional de La Plata. Catalogado como de historia natural, incluye entre sus colecciones a todas las áreas de la antropología, además de la geología, paleontología, zoología, botánica, entre otras. Su concepción, plasmada tanto en los aspectos edilicios, segmentaciones disciplinarias, organización de su recorrido y formas expositivas, reproduce las características propias del museo decimonónico y al paradigma evolucionista vigente en ese momento. En los últimos años los trabajos de innovación de algunas de sus salas pretenden aportar al diseño de una política de exhibiciones que paulatinamente proponga, construya y evalúe nuevos espacios de construcción de identidad. Nos interesa particularmente reflexionar en torno a dos dominios que llamaremos, el de la representación del conocimiento y el de la apropiación del conocimiento. En el primer caso nos referiremos a la producción discursiva concreta que es una sala de exhibición, en el segundo, las diversas modalidades con que los visitantes se apropian del conocimiento representado y que recuperamos a través de los estudios de público. Cada uno de estos dominios tiene particularidades y está atravesado, en esta propuesta por el análisis semiótico. La relación entre el dominio de representación y el dominio de apropiación instala la cuestión en el ámbito de la comunicación y constituye una instancia de evaluación de la eficacia comunicativa de una exhibición.
REPRESENTACIÓN DEL CONOCIMIENOTO: Construcción museográfica del espacio tridimensional
APROPIACIÓN DEL CONOCIMIENTO: Interpretación discursiva por parte del visitante.
Evaluación de la eficacia comunicativa
Cuadro nº1: relaciones entre el contexto de representación y el contexto de apropiación
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Representar, exhibir, comunicar Las representaciones sociales son una manera de interpretar y de pensar nuestra realidad cotidiana, una forma de conocimiento social a la vez que la actividad mental desplegada por individuos y grupos a fin de fijar su posición en la relación con situaciones, acontecimientos, objetos y comunicaciones que les conciernen. En otras palabras, las representaciones sociales permiten al individuo o al grupo conferir sentido a sus conductas y entender la realidad mediante su propio sistema de referencia y adaptar y definir de ese modo un lugar para sí. En tal sentido, funcionan como sistemas de interpretación de la realidad y orientador de las prácticas sociales. Es un sistema de pre-decodificación de la realidad puesto que determina un conjunto de anticipaciones y expectativas (Gutierrez Vidrio, 2005). Así, las representaciones son el origen y el producto del mundo de la significación.
En sentido amplio la semiótica es el estudio de la significación de los fenómenos sociales (Magariños de Morentín, 2008). Desde el punto de vista constructivista, esta significación está concebida siempre para un fenómeno particular, en una comunidad dada y según un contexto experiencial específico, es decir que, el análisis de la significación requiere de un sistema de referencialidad. Partimos de la idea que vivimos en un mundo significado, es decir, interpretado, pero solo tenemos acceso a la interpretación cuando esta es enunciada. A su vez, toda enunciación necesita o requiere de algún sistema de representación. Así, la representación es a la vez un cuerpo de conocimientos, creencias y modelos con los cuales interpretar el mundo tanto como el sistema semiótico a través del cual damos cuenta de ese conocimiento (Potter, 1998). Tomaremos como átomo de sentido la propuesta triádica de Charles Peirce para quien el signo está constituido por tres entidades, a saber: un objeto (por algo), un sujeto intérprete (para alguien) y un fundamento (en alguna relación). Cuando el concepto de representación es pensado a partir de esta relación, es que ingresamos en el campo de análisis de la semiótica. Según Peirce, representar es “estar en lugar de otro, es decir, estar en tal relación con otro que, para ciertos propósitos, se sea tratado por ciertas mentes como si se fuera ese otro” (Peirce, 1986:43). Se distingue así el “objeto semiótico”, aquello que es motivo de la representación, y la “semiosis sustituva”, aquello otro que lo representa; pensemos, por ejemplo, en el lenguaje. Esa otra entidad denominado representamen puede ser de distinta naturaleza, lingüística o extralingüística, pero lo que es seguro es que no podemos estar fuera del campo de las representaciones. Ahora sí estamos en condiciones de entender que el planteo semiótico fundamental enuncia que “los fenómenos que constituyen el mundo no se nos dan desde sí mismos, sino que nosotros los identificamos adecuándolos a nuestras posibilidades de designación; ni contienen en sí mismos su razón de ser, sino que la proyectamos nosotros en función de las categorías disponibles en nuestra estructura conceptual; ni tampoco son vistos (ni comprendidos) tal como son, sino como nuestra modalidad de enunciación nos hace verlos (o comprenderlos) en el entorno perceptual correspondiente” (Magariños de Morentín, 2008:66). Nuestra facultad semiótica consiste, justamente, en esta posibilidad/condición de adjudicación de sentido al mundo que nos rodea, incluyéndonos a nosotros
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mismos. Por definición, ninguna experiencia humana queda fuera del mundo de la significación. Pero los significados no están en la esencia de las cosas, no constituyen una condición material o espiritual que forma parte de la naturaleza inmanente de las cosas, sino que son el resultado de procesos cognitivos por los cuales percibimos, ordenamos, categorizamos, representamos e interpretamos el mundo. Interpretar un fenómeno no puede ocurrir sin la intervención de un sujeto; la interpretación interesa en la medida que se exterioriza al comunicarse (o sea, trabajamos sobre interpretaciones explícitas) mediante un texto verbal o cualquiera de las modalidades comunicativas no verbales, gestual, espacial, gráfica, etc. En síntesis, el acto mismo de adjudicación de sentido se encuentra circunstancialmente situado en una experiencia referencial concreta y materializado en la enunciación, cualquiera sea el tipo de código en que se inscribe. Así, la riqueza polisémica de los objetos proviene de los diversos contextos en que se inscribe. Todo objeto de colección es objeto semiótico en tanto y en cuanto tienen atribuido un significado a partir de otra semiosis que lo enuncia. Llamamos a esta operación la facultad semiótica. Traslademos estos conceptos al ámbito del museo. Cuando los objetos pasan a formar parte de las colecciones de un museo, salen del circuito utilitario para ingresar en nuevos circuitos semióticos en los que se les confiere una condición que no tienen cuando se mueven en el mundo de las mercancías, su valor de uso y de cambio desaparece. Todo objeto musealizado encuentra un valor que reside en su capacidad de servir a la producción de otra cosa para la que no ha sido producido (Pomian, 1990). Así los objetos adquieren una cierta plasticidad al convertirse en cosas a interpretar y con significado. El objeto de colección “en cuanto objeto semiótico recibe la eficacia de todos los discursos (o los que conozca el intérprete) que se han referido a él (en su particularidad o en su carácter general de comportamiento) (Magariños de Morentín, 2008). La delimitación de los contextos de significación es el resultado de un proceso analítico que responde a cierto conjunto de reglas preestablecidas o pautas, pero que sin embargo no determina su contenido interpretativo, ideológico, político o social, de lo contrario no sería posible hablar de re-significación. Pensemos, por ejemplo, los diversos modelos que subyacen en la construcción museográfica de las colecciones etnográficas como contexto de representación de la identidad cultural. “La objetualidad, así como el significado textual, son el resultado de actos de atención con múltiples niveles por parte de individuos, grupos e instituciones sociales. Las cosas socialmente objetivadas están imbuidas de significado, capa sobre capa, dentro de las estructuras sancionadas de referencia (Navarro Rojas, 2011:54) Desde el punto de vista comunicacional, la exhibición es concebida como un espacio intersemiótico. En ella se configuran, de modo intencional, los diversos recursos museográficos, que dan forma y materializan el relato expositivo. Así, es posible reconocer un espacio significante, estructurado según ciertas reglas y cuyas posibilidades de re-presentación radica en su condición de sustitución. Es una tarea fundamental dar cuenta de los criterios por los cuales delimitamos intencionalmente las fronteras transitorias de los contextos de re-significación, cargados de intencionalidad comunicativa como es el caso de las exhibiciones.Todas las exhibiciones están inevitablemente organizadas en base a
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supuestos acerca de las intenciones de los productores de los objetos, las habilidades y calificaciones culturales de la audiencia, las pretensiones de autoridad sobre el tema que tenga la exhibición, y los juicios sobre el mérito estético o la autenticidad de los objetos o entornos exhibidos (Karp, 1991). La explicitación de los criterios y modelos que subyacen a la producción de una exposición, permite dar cuenta de las elecciones curatoriales. A su vez, sin el conocimiento de estos supuestos se diluye la posibilidad de evaluar la eficacia comunicativa de la exposición. Ninguna puesta museográfica es ingenua, todas responden a una política institucional a la vez que a una intencionalidad comunicativa, que no proviene, (como en los museos de la modernidad), de una perspectiva “verdadera” del mundo. Esta conciencia de lo ambiguo, lo múltiple, lo diverso, no responde sólo a la evidente fragmentación y restricción que toda representación museográfica impone, muchas veces caracterizada como ficcional, sino que se asume como una condición del modelo de análisis. La sala de exhibición consiste en un espacio de re/significación en cuya articulación emerge el sentido. Un campo complejo y dinámico que genera infinitas conexiones, en muchos casos no prevista y en el cual confluyen diversos intereses y actores. A su vez, el espacio expositivo está regido por convenciones, dado que la disposición de las colecciones y su organización en un contexto discursivo específico no es totalmente azarosa y, en consecuencia se promueve y en algún caso regula cierto comportamiento por parte del visitante, constituyéndose en una fuente generadora de representaciones. Este último punto no se agota en la condición de interpretante del sujeto visitante, sino que es provocada intencionalmente por el uso y combinación de los distintos recursos, que encierran en su concepción diversos grados de apertura hacia la incertidumbre, apelan a lo sensible y se desarrollan en su dimensión estética. Dentro de esta línea argumental, la exhibición y sus recursos, es pensada como objeto semiótico, es decir, como signo siempre y cuando sea posible reconocer un intérprete y responder a la triple relación peirciana: “estar en lugar de algo”, “para alguien” y “en alguna relación” (Peirce, 1986). De esta manera, el conjunto de significaciones de las que será motivo un objeto de colección está condicionado por la entramada red de relaciones semióticas establecidas en algún contexto particular, para cierto intérprete en el marco de una comunidad dada. Así, el patrimonio es inevitable y necesariamente re-significado. Interpretar / enunciar/ representar El proceso de significar incluye en este apartado a los visitantes. Lo que aquí hemos denominamos el contexto de apropiación está delimitado analíticamente por el conjunto discursivo de lo enunciado por el visitante luego de la experiencia de la visita. Según Pérez Santos “la visita a un museo se ve involucrada por la interacción entre tres contextos: personal, social y físico. El contexto personal incluye los intereses, motivaciones e inquietudes de los visitantes, que pueden influir de una manera decisiva en los resultados de la visita. El contexto social implica a las personas con las que realiza la visita, los contactos con otros visitantes y con el personal del propio museo, que juegan un papel relevante en la experiencia museística. El contexto físico engloba tanto los aspectos arquitectónicos, como los
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objetos y artefactos que contiene el museo y que ejercen una poderosa influencia durante la visita. Cada uno de estos contextos es continuamente construido por el visitante de una manera única e individual y la interacción entre ellos crea la experiencia de la visita” (Pérez Santos, 2000:69) Es decir que, se trata de una experiencia situada en la que interactúan aspectos emocionales, perceptivos, motivacionales, actitudinales, motrices, entre otros. A su vez, serán relevantes para los diversos visitantes/intérpretes aquellos contenidos que encuentren anclaje en su estructura cognoscitiva, como una imagen, un símbolo, o un concepto, dado que un aprendizaje es significativo cuando los contenidos son relacionados de modo no arbitrario y sustancial (Ausubel, 1983, Heins, 1999; Asensio, 1996). Siguiendo a Bourdieu asumimos la preexistencia de un capital cultural que se manifiesta com habitus. Este es el producto y lugar de la historia individual y colectiva asegura la presencia activa de las experiencias pasadas que, depositadas en cada organismo bajo la forma de esquemas de percepción, de pensamiento y de acción, tiende, más seguramente que todas las reglas formales y todas las normas explícitas, a garantizar la conformidad de las tácticas y su constancia a través del tiempo (Bourdieu, 1996). El habitus es una capacidad adquirida y naturalizada que contiene la historia individual y los contextos de las prácticas sociales. Así, la génesis del discurso está enraizada en el capital cultural. Según Bourdieu, el habitus, producto y lugar de la historia individual y colectiva asegura la presencia activa de las experiencias pasadas que, depositadas en cada organismo bajo la forma de esquemas de percepción, de pensamiento y de acción, tiende, más seguramente que todas las reglas formales y todas las normas explícitas, a garantizar la conformidad de las tácticas y su constancia a través del tiempo (Bourdieu 1996) Este es el conjunto de saberes y disposiciones adquiridas socialmente que permiten producir y reproducir las estrategias de acción y apropiación que se “activan” en la experiencia de la visita. Son el conjunto de representaciones disponibles que modelizan la interpretación, dado que, como dijimos, los significados no están en la esencia de las cosas, sino que son el resultado de procesos cognitivos por los cuales percibimos, ordenamos, categorizamos, representamos e interpretamos el mundo. Los visitantes que acuden a una exposición movilizan esquemas cognitivos previos con los cuales se pueda acoplar/conectar/asociar la nueva información. Cada visitante realiza una síntesis subjetiva frente a la propuesta del museo, selecciona una de las múltiples estrategias posibles de recorrido, evoca y configura una constelación de sentidos según “una disposición de su mente” y a partir de ello, se identifica, considera ajeno, se sorprende, ignora o rechaza aquello que ha seleccionado como referente de significación del despliegue expositivo. En síntesis, las formas de apropiación cognitiva del patrimonio exhibido se instala en el espacio de una experiencia situada que, condicionada por las restricciones materiales de la sala de exhibición, es “actualizada” por cada visitante/intérprete según un sistema de relaciones que involucra su capital cultural y se “hace observable” a través de su producción discursiva. Estos esquemas de acción y producción de prácticas y representaciones son el sustrato en el que se asienta la construcción de sentido.
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Ahora bien, para acceder al universo de representaciones de los visitantes se vienen desarrollando investigaciones con una aproximación metodológica cualitativa. La antropología y, en particular, la etnografía tienen una tradición en el uso de esta metodología de larga trayectoria. Desde sus inicios como disciplina, la observación participante, la descripción exhaustiva, el trabajo de campo y la entrevista fueron, desde distintas perspectivas teóricas, pilares en la construcción de un campo disciplinar. La ventaja de la elección de una aproximación cualitativa reside, entre otras razones, en la posibilidad que esta brinda de recomponer, desde la interacción abierta, la visión del mundo que construye el propio actor (visitante) en la situación comunicativa específica (Octobre, 2013). Las categorías de análisis no están preestablecidas y surgen durante la investigación, por lo que permite captar la diversidad y dispersión del conjunto de significados que una comunidad particular construye en un momento dado, así como su eficacia simbólica. A su vez, los datos pueden dar una visión holística y relacional de las múltiples aristas de la experiencia humana. Este tipo de abordaje metodológico es concordante con las propuestas constructivistas en las que el visitante es pensado como un sujeto “actuante” que pone en juego sus estructuras cognoscitivas en el proceso de interpretación/argumentación. Como vimos, la génesis del discurso está anclada en el capital cultural, concebido como el conjunto de saberes y disposiciones adquiridas socialmente que permiten producir y reproducir las estrategias de acción y apropiación. El estudio de las representaciones y las imágenes permite aprehender de manera cualitativa, la naturaleza de la relación que vincula a los individuos con las propuestas culturales que se les hacen –sean o no sus beneficiarios-, así como sus percepciones de las instituciones culturales y el lugar de la cultura en su universo (Eidelman 2013; Cordier y Letrait, 2003; October, 2013) En nuestra experiencia, la aproximación cualitativa nos permitió la operacionalización de variables y la conformación de categorías descriptivas/ interpretativas a partir del análisis de discurso, tomando como materia prima lo efectivamente dicho luego de la visita. No olvidemos que “la explicación de la significación tendrá que partir del modo en que el ser humano expresa cómo ese fenómeno ha entrado en su mundo de experiencia: lo expresa enunciándolo y entra en su mundo interpretando los enunciados (pan-semióticos) de su aprendizaje. El enunciado que él produce y los enunciados aprendidos constituye el corpus necesario para fundamentar cualquier investigación que pretenda explicar el significado atribuido a los fenómenos de su entorno. (Magariños de Morentín, 2008). El discurso es, entonces, una unidad compleja que abarca aspectos lingüísticos o simbólicos, icónicos e indiciales, de manera que la significación emerge en su articulación. A su vez, esta significación no es unívocamente interpretada por el visitante, no es nunca un espacio significante completo, acabado y definitivo, es el sustrato para configurar en el infinito juego de relaciones posibles, aquellas que, en concordancia con la estructura cognitiva del intérprete, resulta ser la expresión de los mundos semióticos. 1 1 “A los fenómenos (….) los construimos, o sea, les conferimos existencia ontológica, en defini-
tiva, los construimos ontológicamente, al nombrarlos y al enunciarlos o representarlos. (…) lo que producimos es la existencia del fenómeno para el conocimiento. O sea, sólo se conoce lo enunciable, teniendo en cuenta que lo enunciable no equivale, sólo, a lo verbalizable, sino que abarca toda forma de enunciación semiótica, sea ésta mediante íconos, índices o símbolos; de donde surge el texto pan-semiótico.” (Magariños de Morentín, 2008:75)
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A partir de entrevistas realizadas luego de la visita las salas de exhibición permanente del Museo de La Plata, una dedicada a la etnografía denominada “Espejos Culturales” y otra a la evolución humana con el título “Ser y pertenecer: un recorrido por la evolución humana”, se procedió al análisis de discurso y su posterior procesamiento según un programa computarizado para métodos cualitativos. Esta involucra técnicas de recolección de datos en la que las categorías descriptivas/interpretativas respecto de un referente concreto, para nosotros la sala de exhibición, surgen espontáneamente en el discurso de los entrevistados. Nos interesa recuperar el significado social construido por el visitante a partir de la experiencia vivida en el recorrido de la sala, teniendo en cuenta su carga emotiva, estética y simbólica. La semiótica simbólica y el análisis de discurso constituyen las herramientas teórico-metodológicas de análisis. Se entiende por semiótica simbólica o semiótica de enunciados a aquella metodología de investigación destinada a explicar el significado de determinados fenómenos sociales cuando su representación/interpretación ha sido socialmente producida por textos simbólicos. Para nosotros, los discursos producidos por el visitante. Los procedimientos metodológicos incluyen la aplicación de una serie de operaciones de normalización, segmentación, y diferenciación (Reca, 2011). Estas permiten identificar el conjunto de categorías utilizadas por el visitante en su interpretación sin incorporar, por parte del analista, elementos no enunciados. El observador/analista construye su objeto de estudio a partir de estas atribuciones diferenciales. El análisis textual permite: - acceder al significado que adquiere el objeto de cual se habla, que no preexiste al discurso, el cual deja de ser lo que es en sí para que otra semiosis lo constituya; - establecer el significado del sujeto plural que no preexiste al discurso y que se construye en lo que resulta identificable en sus modalidades discursivas; - acceder al significado de los conceptos que se utilizan en los correspondientes textos y que no preexisten al discurso, pues su eficacia significativa proviene del contexto en el que aparecen; - este texto es entonces productor de interpretaciones dado que atribuye determinado significado a un ente (Magariaños de Morentín, 2008) en nuestro caso las interconexiones entre los objetos, las imágenes, los textos, y los recursos expositivos y su configuración particular en una sala de exhibición. El análisis del campo de los acontecimientos discursivos es el conjunto siempre finito y actualmente limitado de las únicas secuencias lingüísticas que han sido formuladas, las cuales pueden muy bien ser innumerables, pueden muy bien, por su masa, sobrepasar toda capacidad de registro, de memoria o de lectura, pero constituyen no obstante, un conjunto finito desde el cual surge la pregunta ¿cómo es que ha aparecido tal enunciado y ningún otro en su lugar? (Foucault, 1990). Este análisis permitió establecer correlaciones entre el contexto de representación y el contexto de apropiación, de manera de recuperar tanto la dispersión de representaciones que conforman los mundos semióticos como la referencialidad en la que se sustenta su aparición. Objetos, sectores, imágenes, textos, conceptos son fuente de representaciones organizadas según tendencias, modelos o paradigmas, desde donde evaluar la eficacia comunicativa de la sala según las intenciones de los curadores y la visualización de los mundos semióticos.
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De este modo se identificaron los lugares/objetos/mensajes que aparecen con mayor frecuencia en los discursos de manera de reconocer en la complejidad del espacio expositivo los lugares de mayor proyección, dado que el visitante despliega estrategias de apropiación diferenciales. En general estos estuvieron asociados más intensamente a las propuestas de mayor ambigüedad, favoreciendo la participación, a la vez que se identificaron en el discurso la presencia de valores como la autenticidad, el tiempo pasado/presente, lo lúdico y la inclusión y la identidad. Además, el análisis permitió conocer el horizonte de expectativas orientado por las representaciones que el público tiene acerca de la institución museo. Por último, este punto de vista nos enseña a trabajar con el multiverso y la diversidad de interpretaciones para definir el umbral de ambigüedad que admite la puesta museográfica en función de la intencionalidad política y filosófica de los mensajes propuestos. Se trata de un trabajo de larga duración que requiere de sucesivos encuentros con los visitantes y el análisis recursivo de la enunciación dado que las entrevistas incorporan progresivamente las categorías que el entrevistado enuncia y realimentan el modelo explicativo propuesto. La experiencia permitió poner en valor el rol del entrevistador, quien, en contacto con el público, establece una relación en la que ambos aprenden y construyen un espacio particular de diálogo.
CONTEXTO DE RE-PRESENTACIÓN
Experiencia situada
Activación del capital cultural
Producción de sentido (atribución) / Interpretación (sustitución)
Enunciación / Lo dicho
CONTEXTO DE APROPIACIÓN
Cuadro nº2: relaciones de producción/interpretación entre el contexto de representación y el contexto de apropiación.
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Dialogismo y representación
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Vivimos inmersos en un mundo de representaciones como producto de nuestra facultad semiótica. Estas representaciones son a la vez conscientes e inconscientes, estables y dinámicas, funcionan como modelos de interpretación y es gracias a ellas que podemos comunicarnos. Son la materia prima del sentido común, generan consenso y luchan por constituirse en un discurso hegemónico. Son arbitrarias pero están naturalizadas formando parte de la lógica natural. Nos conectamos con la realidad pensando que estas representaciones vienen dadas y si bien cada vez más se asume la ambigüedad y la multiversión del mundo, definitivamente necesitamos cierto grado de certeza. Desde el punto de vista semiótico estas representaciones emergen en el discurso, son el resultado de procesos cognitivos y necesitan ser enunciadas para conocerlas y analizarlas. Forman parte de un proceso de semiosis ilimitada y adquieren diversas modalidades de enunciación. Pero gran parte de su significación desborda su referencialidad formal para ingresar en campos más difusos cargados de connotación. Es allí que las representaciones circulan en interacciones comunicativas y se abren a la ambigüedad, adquieren plasticidad según los contextos en que se inscriben y generan diversos campos de re-significación. Anclados en procesos sociales, históricos, políticos e institucionales, estas instancias de re-significación nos dan la posibilidad de reflexionar sobre nuestro mundo cotidiano y asumir su carácter relativo y cambiante. El desafío actual es el de trabajar para el punto de encuentro entre la certeza y la ambigüedad. Hasta aquí esperamos haber contribuido a una reflexión actualizada sobre el patrimonio, que requiere de la participación de diversos actores sociales/ intérpretes y aportar a la construcción de un modelo dialógico, dejando espacio a la controversia, la contradicción y la multiplicidad de miradas. El aprendizaje dialógico es definido como una forma de utilizar las competencias sociales y comunicativas en las que los significados están estrechamente relacionados con las interacciones humanas y los constructos comunicativos (Hernández, 2011). Conocer el universo de representaciones permite detectar esquemas subjetivos de percepción, valoración y acción de manera de favorecer la construcción de propuestas más participativas, abiertas a múltiples interacciones. Bibliografía: ASENSIO, M. y Pol, E. Cuando la mente va al museo: un enfoque cognitivo-receptivo de los estudios de público. En: IX Jornadas estatales Deac-Museos “La exposición”, 1996: 83-134. AUSUBEL, D. P., Novak, J. y Hanesian, H. Psicología Educativa. Un punto de vista cognoscitivo. México. Ed. Trillas, 1983. BOURDIEU, P. Cosas dichas. Barcelona, Gedisa, 1996. CURY, M. X. Museologia e conhecimento, conhecimento museológico – Uma perspectiva dentre muitas. En: Museologia & Interdisciplinaridade Vol.1II, nº5, maio/ junho de 2014, pp. 55-73. EIDELMAN, J., ROUSTAN, M. Introducción. Estudios de públicos: investigación básica, elección de políticas y apuestas operativas En: El Museo y Sus Públicos. El visitante tiene la palabra. Ed. Ariel, Arte y Patrimonio; Fundación TyPA. Buenos Aires, 2013:21-46.
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Artigo recebido em janeiro de 2015. Aprovado em fevereiro de 2015
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EL MUSEO DE LOS VISITANTES
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RESUMEN: Hoy es imprescindible pensar nuevos modos para integrar a las colecciones y exposiciones con los públicos. Hay que pasar el tema de los visitantes de los bordes y márgenes al centro. Los museos no deben renunciar a su responsabilidad como instituciones culturales pero es necesario que coexistan diversidades de voces, ya que cuando esto sucede en el marco de una exposición se produce el enriquecimiento de ambos, museos y públicos. PALABRAS CLAVE: Visitantes; participación; rol social del museo; educación; cultura
ABSTRACT: Today is essential to think new ways to integrate the collections and exhibitions for the public.We need to move the topic of visitors to the edges and margins to the center. Museums should not abdicate its responsibility as cultural institutions but need to coexist diversity of voices, because when this happens in the context of an exhibition enrichment of both museums and public occurs. KEYWORDS: Visitors, participation, museum’s social role, education, culture
1 Silvia Alderoqui, Licenciada en Ciencias de la Educación. Directora Museo de las Escuelas, Buenos Aires, Argentina. silvia.alderoqui@yahoo.com.ar
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A modo de introducción En abril de 2012, se inauguró el Museo de la Inocencia en la ciudad de Estambul. Según cuenta el cronista español Juan Cruz Ruiz, el autor Orham Pamuk1 había imaginado el museo antes de la novela homónima. En sus salas están los objetos narrados, recolectados de mercados viejos, amigos y parientes. El museo es la reconstrucción de su deseo de recordar y evoca una época particular de Estambul. Por medio de la novela Museo de la Inocencia, Pamuk hace realidad su deseo de museo y de algún modo se da cita con el concepto de museo imaginario de Malraux. En 1947, André Malraux había expuesto la idea premonitoria del museo imaginario realizado a partir de la subjetividad de quien lo crea y sin límites de tiempo ni espacio. En el museo imaginario no hay más discurso expositivo que el gusto del que imagina las obras de su museo ideal y, al modo de un álbum de fotografías, crea su propio museo de acuerdo con su sensibilidad. Orham Pamuk lleva a cabo la operación sugerida por Malraux aunque sin su carácter portátil. El museo de Pamuk es un lugar donde el imaginario del escritor se hizo sensible también en el espacio físico. Como si Pamuk hubiera tenido la necesidad de la concreción de su imaginario en el contacto directo con las obras y objetos. A partir y simultáneamente con la creación de su museo, Pamuk elabora un modesto manifiesto que inicia de este modo: Amo los museos, y no soy el único que encuentra que cada día que pasa nos hacen más felices. Me tomo los museos muy en serio, y eso a veces me conduce a pensamientos airados y enérgicos, pero no soy una persona que pueda hablar con ira de ellos. Cuando yo era niño en Estambul había muy pocos. La mayoría eran simplemente monumentos históricos que se habían preservado o, lo que es bastante más raro fuera del mundo occidental, eran lugares con un aire como de oficina del gobierno. Más adelante, los pequeños museos de las callejuelas de las ciudades europeas me llevaron a darme cuenta de que los museos (igual que las novelas) también pueden hablar de los individuos.2
A partir de esta introducción ordena sus pensamientos para darnos a conocer sus ideas vinculadas con las historias que deberían ser relatadas en los museos. Según Pamuk, “las historias de los individuos son mucho más compatibles con la expresión de las profundidades de nuestra humanidad” que las narraciones históricas de la sociedad, es decir, los museos deberían ser como novelas acerca de las historias cotidianas y ordinarias de los individuos, que son más ricas, más humanas y mucho más gozosas que las historias de las culturas colosales. Para Pamuk el desafío de los museos es poder contar en forma tan brillante, profunda y potente como se cuentan las “grandes historias” nacionales, las historias de los seres humanos individuales que viven en esos países, revelando así su humanidad. Según el autor este sería uno de los modos en que miles 1 El escritor turco Orham Pamuk obtuvo el Premio Nobel de Literatura en 2006. 2 Extraído de Modesto Manifiesto por los museos: http://cultura.elpais.com/cultu-
ra/2012/04/27/actualidad/1335549833_020916.html
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de personas que tienen temor de entrar a los museos se animarían a atravesar sus umbrales. La participación de los visitantes
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El énfasis resaltado por Pamuk en las historias cotidianas de los individuos y el territorio propio, en contraposición con los museos tradicionales y los grandes relatos resuena con los conceptos de la museología latinoamericana de los años 1970 y la nueva museología de los años 1980. Por un lado, en la ya memorable “Mesa de Santiago” de 1972 se había introducido la “novedad” de que los visitantes eran tan importantes como los objetos y por otro, en la Declaración de Quebec de 1984, se postulaba que frente al dogma de la conservación era necesario proclamar la primacía de la participación y el diálogo enriquecedor entre los museos y sus comunidades. Hay también un antecedente poco difundido que es un seminario3 organizado en 1967, por el director del Museo de las Ciudad de Nueva York, Ralph Miller, quien invitó al especialista canadiense en comunicación, Marshall McLuhan y a su asociado Harley Parker, a reflexionar acerca de comunicación museal. McLuhan y Parker manifestaron, acerca de la atmósfera museal, sus sentimientos de claustrofobia y aburrimiento, y la ausencia de comunicación en el interior de los museos. Pero por sobre todo, denunciaron la ausencia de interés por parte de los museos de llevar a cabo investigaciones para poder “comunicar realmente las informaciones a los visitantes”. Defendían la idea de que los museos además de personas que se ocuparan de los objetos debían tener personal que se ocupara de los visitantes y sus “reacciones”, para poder diseñar mejor las exposiciones. Decían entonces los especialistas: Harley Parker: …Un conservador se pasará meses consagrado a buscar el eslabón faltante de su colección. En lugar de consagrar su tiempo a explotar el material que está a su disposición para decir alguna cosa, pasará su tiempo buscando… Mc Luhan: Sería una maravillosa ocasión para sugerir al público de aportar ese eslabón, indicándole cuando hay un elemento faltante de la colección. El público sentiría placer de poder proporcionar ese elemento. Es todo el encanto de las historias policiales. Usted elimina sabiamente todos los lazos y conexiones entre la prueba y los elementos de la historia en vistas de provocar la participación del público… (McLuhan, 2008: 38-39)
Las discusiones fueron apasionadas y desestabilizantes para la mayoría de los directores y conservadores de museo presentes en el seminario. McLuhan y Parker plantearon ideas radicales para los museos tradicionales, concebidos con formato enciclopédico: abrir los museos de noche, sacar algunos artefactos de sus vitrinas y crear vitrinas envolventes de los visitantes; dispositivos museográficos para tocar, reproducciones a escala, los espacios de inmersión, la modulación de la iluminación para forzar la implicación del visitante, los visitantes como co-productores y co-creadores, salas para niños, el diseño de experiencias significativas en términos personales e identitarios, el sentido del 3 Seminario desarrollado en el Museo de la Ciudad de Nueva York los días 9 y 10 de octubre de 1967, publicado originalmente bajo el título Exploration of the ways, means and values of…Museum Comunication with the wiewing public, New York, Museum of the City of New York, 1969.
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humor, la recreación de ambientes sensoriales para montar los artefactos de las colecciones que pudieran revelar cómo habían sido producidos y utilizados, salas no verbales, sin rótulos, el despliegue de la imaginación, de los múltiples lenguajes, espacios táctiles, olfativos y acústicos, exposiciones no lineales, Estas ideas sonaron entonces, francamente extremistas. Nos preguntamos, casi cincuenta años más tarde, por qué ha sido tan difícil que estos postulados dieran origen a la generalización de prácticas de comunicación museal innovadoras que incluyeran a los visitantes y las comunidades en roles más activos que los que aún podemos observar en la actualidad. Según Ignacio Díaz Balerdi (2002) la nueva museología no fue recibida con simpatía por la museología tradicional por ser considerada como una especie de anti-museología que concebía el museo como una herramienta al servicio de la comunidad y no como un fin en sí mismo. A pesar de las resistencias dice Balerdi, hay una serie de cambios en el mundo de los museos inimaginables sin el concurso de la nueva museología. Estos cambios impactaron, entre otras cosas, en la necesidad de nombrar los museos por medio del recurso de la adjetivación: museo integrado, relacional, comunitario, nuevo, local, total, crítico, creativo, social; los prefijos como eco; los complementos directos como de sociedad, de vecindad, de barrio, etc. Todos intentos de rescatar la institución de las “garras del pasado”, para dejar atrás su exclusiva variable temporal y objetual y para arraigarla en el territorio, en las ideas del presente, en los sujetos, en la comunidad. El reconocimiento de la relación recíproca entre la sociedad y el museo exigía un uso creativo de las colecciones: dejar de ser exclusivamente un "tesoro que proteger" para convertirse en un recurso verdaderamente colectivo. La construcción de una nueva imagen de los visitantes también tiene una genealogía vinculada con la genealogía de los museos y también con los estudios de público. En un ejercicio de deconstrucción y reconstrucción de la concepción de lo que es una audiencia de museos (Illeris, 2006) establece una genealogía a partir de tres imágenes: el ojo ilustrado, el ojo conocedor y el ojo deseante, pasando de concebir al público general indiferenciado hasta analizar audiencias diversificadas. -El ojo ilustrado: Al principio (SXIX) los visitantes eran considerados como público general compuesto de “sujetos educados”, personas racionales que podían ser instruidas a través de la organización didáctica de una exposición y el personal del museo. El “ojo ilustrado” miraba los objetos desde una distancia controlada. Los que no pertenecían a esta clase eran los que no sabían comportarse en un museo, los que no tenían conciencia de lo que era ser un visitante de museo. -El ojo conocedor. Se ubica en las primeras décadas del siglo XX y está relacionado con los estudios de la psicología moderna. El visitante era el sujeto educado autodisciplinado, con conciencia de sus propias habilidades, aptitudes y necesidades, el que tenía las facultades naturales de la “sensibilidad y el gusto”. Los que no pertenecían a esta clase eran los que no tenían “gusto ni distinción”. -El ojo deseante. Los visitantes son responsables de su aprendizaje y participan activamente, incluyendo sus necesidades, habilidades y limitaciones. El ojo deseante desea comprometerse y tiene un deseo personal de compartir
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su experiencia en situaciones educativas. Los educadores se consideran facilitadores de la participación y esperan poder involucrarlos no solo en temáticas vinculadas con el museo sino en cuestiones relacionadas con la vida personal. Los museos son centros de aprendizajes diversos. Los “otros” son más difíciles de encuadrar porque es un enfoque más inclusivo.
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Sin embargo, a pesar de esta tipología que podría hacernos suponer que en la actualidad todos los museos son visitados por muchos “ojos deseantes”, hay que tener en cuenta que ser parte de una audiencia/público de museo es una construcción social. La igualdad del derecho a los bienes culturales comunes no se corresponde con las igualdades de hecho. Hay una gran parte de la población que no se siente autorizada y aceptada para atravesar los umbrales de los museos y otros que no se sienten representados por lo que se exhibe en sus salas. Como dice Jocelyn Dodd (2002) no se trata de pensar en lo que les falta a nuestros visitantes (modelo del déficit) sino de lo que nos falta a nosotros para ser interesantes para ellos. Estas cuestiones deben ser estudiadas desde el núcleo ético de las prácticas de gobierno de cada museo ya que en muchos casos los mismos museos son la causa de estas dificultades. No se trata solo del diseño de programas educativos y culturales destinados a variedad de públicos –adultos y niños; videntes y no videntes, grupos familiares y escolares; adultos mayores; etc.- sino de convertir a los museos en lugares para juntarse con otros y creer sinceramente que la centralidad de los museos es la relación entre los visitantes y los objetos. Se trata de concebir al museo como un espacio relacional compuesto por una densa red de relaciones internas - entre diferentes funciones y especializaciones - y externos - entre el museo, el territorio, las partes interesadas y la sociedad en sentido amplio (Bodo, 2003). Es un proceso de movilidad y movilización, de fuerte participación, de alto compromiso. Ya entrados en el siglo XXI, las narrativas de los visitantes tienen un lugar protagónico en las prácticas de muchos museos innovadores y desde el marco de la denominada museología crítica que concibe a los museos como espacios de diálogo, conflicto, tradición, contradicción, resistencia, colisiones, fusiones y transformación social. Carla Padró y Fernando Hernández (2001) señalan que la museología crítica implica una reorganización radical en la cultura del museo. Desde esta perspectiva, las estructuras organizativas, las fases expositivas y las culturas profesionales responden a un modelo dialógico y narrativo en el cual las narrativas de los visitantes son tan protagonistas como los objetos. Los procesos de comisión, curaduría, gestión y educación son reinventados a partir de estructuras más flexibles, de trabajo en equipo y de proyectos polivocales (Padró y Hernández, 2001). En el enfoque de la museología crítica, los educadores ocupan un lugar central no sólo en la organización de actividades y propuestas educativas pensadas a partir de exhibiciones ya existentes, sino, cada vez, más en las etapas de diseño y evaluación de exposiciones y proyectos museográficos. Este cambio contribuye a la reducción del conflicto existente entre conservación, educación y comunicación. Sin embargo, este lugar de “hacedores” a ser ocupado por los visitantes en los museos del siglo XXI no está aún reconocido en las definiciones oficiales de
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museo. Según Jennifer Harris (2007: 61-69), miembro del Comité Internacional para la Museología (ICOFOM), sería más democrático considerar a los públicos como parte integrante del trabajo de los museos en el sentido de escucharlos y aprender de ellos en forma evidente para todos favoreciendo la participación, comunicación y el intercambio entre diversos grupos de personas. Algunas experiencias demuestran que es posible mantener la posición de lugar experto tanto como de líder cultural en la comunidad y comprenden el rol social del museo tanto como una acción en dirección a los públicos que no los frecuentan habitualmente, como acerca de los visitantes concebidos como actores principales (Caillet, 2011: 15). El cambio de paradigma del museo centrado en la colección al centrado en las personas, es sutil pero perceptible. Plantear la participación de los visitantes en los museos reclama abordar el concepto de comunidad en toda su complejidad (Alderoqui, Pedersoli, 2001: 17). Los especialistas del Manchester Museum4 definen a la comunidad como cualquier grupo de personas que optan por identificarse entre sí y como un concepto en un constante estado de flujo con alcances diversos: la zona geográfica, los intereses profesionales, las condiciones económicas, las circunstancias culturales, las necesidades valores y roles compartidos; además cada persona puede pertenecer a varias comunidades a la vez. (Kershaw, 2013:12). Teniendo esto en cuenta, se trata de poner en el centro de las preocupaciones y las ocupaciones del museo las necesidades de la comunidad en un sentido amplio, junto con las experiencias que generan los objetos de una colección, en todos los participantes: visitantes y profesionales del museo. Para llevar a cabo este cambio de paradigma, Nina Simon (2009) establece que se requiere un sentimiento de confianza en el potencial de los proyectos participativos que debe ser asumido por todos los que trabajan en el museo. Como vimos anteriormente las cuestiones de participación y representación en los museos apenas conmueven los bordes institucionales. Como dice Georgina DeCarli para abordar la participación de la comunidad son necesarios “grandes cambios” en las instituciones museológicas, sobre todo en la preservación, investigación y comunicación del patrimonio, que es donde radican los desacuerdos más fuertes entre la museología tradicional y la participativa (DeCarli, 2004: 25) La participación de los visitantes en el museo, es fácil de imaginar y difícil de sostener. Una vez puesta a rodar hay que ser fiel a ella y esto no es sencillo. En el corazón de la propuesta participativa reaparece la complejidad vinculada con el hecho de compartir el poder del conocimiento acerca del patrimonio lo que genera ciertos temores asociados con la confiabilidad de los contenidos, el saber experto menoscabado y la pérdida de autoridad. Pero, si reducimos la cuestión de la participación a cuestiones de control y poder, nos perdemos los beneficios de trabajar en conjunto con la comunidad. Seguramente habrá que enfrentar los conflictos que se susciten cuando se instalen oportunidades de aprendizaje compartido y colaboración entre los 4 Programa de trabajo con la comunidad del Manchester Museum http://www.museum.manchester.ac.uk/ community/communityengagement/.
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museos y las instancias comunitarias. Sin embargo es importante reafirmar que la curaduría de la participación no es la abdicación de las responsabilidades curatoriales, educativas y de diseño por parte del museo. Más bien es un tipo de responsabilidad diferente que requiere aún mayores niveles de conocimiento. La co-creación tiene más beneficios que problemas y como beneficio más importante se trata de trabajar en conjunto con nuestros públicos para crear algo nuevo. ¿Cómo enfrentar y trabajar con los “conflictos” que se suscitan cuando se crean oportunidades de aprendizaje compartido y colaboración entre los servicios de los museos y diversas instancias comunitarias? Con respecto a estas cuestiones hay interesantes reflexiones basadas en la experiencia de las especialistas Bernardette Lynch y Sally MacDonald con los museos de las ciudades de Glasgow, Newcastle y Londres. El proyecto se llama Objetos en conflicto5. Tal como señalan las investigadoras, más allá de las buenas intenciones de los museos, en los proyectos comunitarios se suele deslizar “la autoridad coercitiva del museo” que silencia cualquier oposición o resistencia a la forma tradicional de interpretación de la colección. Este tipo de experiencias lleva a la desilusión de los participantes y pueden fracturar la relación de un museo con su comunidad. Si un museo quiere convertirse en una institución participativa en el corazón de la sociedad civil, es necesario trabajar y capacitarse en el trabajo con y a través del “conflicto”. Solo desarrollando una práctica reflexiva conjunta se puede evitar que las sutilezas de las relaciones de poder lleguen a falsos consensos. Esto significa que los profesionales de los museos necesitan que sus pares comunitarios los ayuden a enfrentar los “conflictos” para desarrollar en forma conjunta diálogos democráticos en los museos y, por sobre todas las cosas, y esto es válido para todos los participantes, desarrollar nuevas habilidades como ciudadanos. Estos son los comentarios del director del museo, Nick Merriman, a propósito de un proceso de co-creación de contenidos en una exposición sobre racismo y prejuicios raciales en el museo de la Universidad de Manchester: …fue lo más cerca que estuvimos de un proceso de co-creación auténtica, pero para ser sinceros, fue más difícil de lo que pensábamos. Nos sorprendimos con el apasionamiento de las personas…es difícil manejar correctamente las expectativas que se crean…6 (Lynch y Alberti, 2010: 13-35)
Ahora veamos las reflexiones de la directora de la Brooklyn Historical Society, Deborah Schwartz, en una entrevista titulada La comunidad como curadora: ...Yo creo que [compartir autoridad con la comunidad] es muy interesante, seductor, inteligente, un poco impredecible en el buen sentido de la palabra…Presto mucha atención a todas las lecciones que se pueden aprender de cada uno de estos intentos que hacemos. Pienso que nos estamos preguntado todo el tiempo cómo queremos posicionarnos en un mundo en el cual somos buscados como poseedores de cierta clase de autoridad. Estamos empujando los límites todo el tiempo, espero que siempre sigamos empujándolos, porque creo que esto nos da siempre 5 Museums, objects, participatory democracy and conflict http://objectsinconflict.wordpress.com/about/ the-proposal/ 6 La traducción es propia.
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resultados increíbles… …Porque elegimos ceder nuestra autoridad hasta cierto punto, vivimos con una cierta incomodidad sabiendo que en algunos casos el proceso de crear exhibiciones compartidas con la comunidad será mejor que el producto. Esta es la parte más controversial de este asunto. Esta es la parte que hace que para alguna gente del mundo de los museos esto sea inaceptable.7 (Swartz y Adair, 2011: 112 a 123 )
Con respecto a la co-creación de contenidos en formatos virtuales Mariana Salgado (2013:17) formula una serie de afirmaciones muy interesantes: - El contenido creado por la comunidad surge como resultado de una empresa colaborativa que le da forma a la práctica de la participación. - La variedad de perspectivas sirve para desarticular la noción de que existe “una sola verdad” sobre el contenido de una exposición. - El contenido creado por la comunidad puede ayudar a que el museo “cuente una historia más precisa y completa” para que los visitantes de todos los grupos culturales tengan la posibilidad de decir: “Esta es mi historia”. - El diseño orientado a prácticas participativas debe contemplar diferentes voces y discursos con el fin de intentar crear un mosaico más inclusivo en el cual pueda escucharse cada voz. -El contenido creado por la comunidad es útil para diversos actores solo cuando se incluye a muchos de ellos en el proceso de diseño. La exigencia mayor de los proyectos de participación y co-creación con la comunidad es su documentación y el mayor problema su generalización y cristalización en el tiempo. Cuando se trabaja con la comunidad se requiere un trabajo de investigación, archivo, clasificación, análisis del discurso y edición de voces comunitarias que transforme impresiones, presunciones, sensaciones, pareceres, imágenes, borradores y papeles sueltos en hipótesis, premisas, grandes ideas, narrativas, conceptos e imaginarios productivos. En todos los casos hay que sostener un liderazgo capaz de generar confianza frente a los diferentes puntos de vista, tanto hacia los participantes de la comunidad como hacia los diferentes profesionales del museo. Si un museo adopta una estrategia de participación comunitaria es necesario asegurar que todo lo que se haga esté impulsado por la colección y centrado en los usuarios reales y potenciales. Pero no alcanza con hacer participar a los visitantes y a la comunidad en actividades y propuestas diversas, además hay que trabajar para pasar de la participación a su representación. Esto quiere decir que este compromiso tiene que ser visible y evidente en cada exposición, de modo tal que los conocimientos, voces y experiencias de los visitantes, además de ser consultados, se conviertan en propuestas expositivas novedosas, se adivinen en la reescritura de los rótulos, reaparezcan en la interpretación de la colección, se incluyan en la museografía, la política y documentación del museo, etcétera.
7 La traducción es propia.
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La curaduría de los visitantes
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En algunos museos se utiliza la denominación “curaduría de visitantes” para dar cuenta de la especificidad de la tarea de “ocuparse de los visitantes” como sugerían McLuhan y Parker a fines de 1960. De este modo se la pone en valor y se la considera como dijimos antes mucho más que una programación cultural y educativa de atención de públicos. Solo cuando la comunidad, los visitantes, el público son tenidos en cuenta – y no solo contados-, los museos, pueden empezar a conmoverse y transformarse. Para dar ese paso que no es un simple juego de palabras sino una forma de ocupar el espacio museo con personas y no solo con cosas, hay que estar convencido de que lo que liga a los individuos es el poder común de la igualdad de las inteligencias como dice Rancière (2010:22) y que todos tenemos capacidades de traducción e interpretación que nos vuelven semejantes en la diversidad. Todas las personas tenemos la capacidad de testimoniar, de organización de lazos de solidaridad, de capacidades de creación, aún en situaciones muy duras, desplegamos capacidades de resistencia y de protesta y ocupación de espacios con objetos, expresiones, músicas, raíces, recuerdos y fotografías que hacen parte de nuestra identidad. Creamos, interpretamos y atribuimos significado en función de nuestros conocimientos y del contexto social y cultural en el que nos desenvolvemos. Dado que los significados no son estáticos y tampoco intrínsecos a los objetos siempre puede haber algo para agregar, poner en valor, desmentir o modificar. En algunos casos esto derivará en la creación conjunta y generación activa de contenidos y construcción de los relatos de interpretación, lo que amplificará la experiencia de visita y la inclusión de nuevas ideas y nuevos públicos. Desde esta perspectiva las exposiciones en los museos posibilitan realizar “trabajos de identidad”. Un trabajo de identidad concebido como proceso a través del cual se construye, mantiene y adapta nuestro sentido de identidad personal, y persuadimos a otras personas a creer en esa identidad al mismo tiempo que accedemos al conocimiento de identidades diversas. Este tipo de experiencias suceden habitualmente por razones personales más que públicas y están fuertemente motivadas por las necesidades de formación y reforzamiento identitario. Disfrutamos de “encontrarnos” y de encontrar algo que nos “pertenezca” en los museos y también de sentir que la experiencia en el museo redundará en algún beneficio para nuestra vida (Volkert, 1996). Además los visitantes, con sus miradas y acciones también reconstruyen aquello que se presenta y representa. Participan de esta manera de la construcción social de los significados, tanto como el personal del museo. La curaduría de los visitantes implica crear condiciones de apropiación de los bienes comunes para muchas personas más de las que ahora son parte de las audiencias de los museos. Es decir ofrecer experiencias de calidad para que diversos tipos de visitantes pongan en juego sus perspectivas, conocimientos, narrativas y emociones y reconozcan en las exposiciones algo propio: un objeto, un recuerdo, una pregunta, una búsqueda, una emoción de deleite o enojo, una pérdida o una alegría, la nostalgia y la imaginación.
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Hay que instalar relaciones de confianza y situaciones sociales de intercambio como dar la bienvenida, invitar, acoger, recibir, que demuestren que lo que dicen, piensan y opinan los visitantes nos transforma, nos importa y mucho. Los visitantes actúan observan, seleccionan, comparan, interpretan, participan. Si los invitamos se convierten en habitantes, socios y actores de la puesta en escena expositiva. Tenemos maravillosas oportunidades de conectar con ellos y capturar sus diálogos con el museo de modo que tanto ellos como nosotros salgamos enriquecidos. Los profesionales de museo como “especialistas en visitantes” tienen que tener en cuenta los llamados Derechos de los visitantes (Rand, 2001: 7) en todas y cada una de las actividades y programas que llevan a cabo: Comodidad: Incluye sanitarios y asientos para descansar bien señalizados y bien ubicados. Igualmente importante es el fácil acceso a los objetos de la exposición. Orientación: Señales claras y visibles y una distribución de las salas bien planeada. Los visitantes saben a dónde tienen que ir, cómo llegar y que les espera allá. Sentirse bienvenido: Empleados cordiales y dispuestos ayudan al visitante a sentirse cómodo. Motivación: Si los visitantes se encuentran con obstáculos (objetos rotos, actividades que no llaman mucho su atención o textos de descripción demasiado largos o intimidatorios) se sienten frustrados, aburridos y confundidos. El aspecto social: Los visitantes muchas veces van a los museos en grupos de familia y amigos y para encontrarse con otros. Quieren hablar con otras personas, interactuar y compartir experiencias. Así las exposiciones funcionan como lugar de encuentro. Respeto: Los visitantes quieren ser respetados sin importar los intereses y conocimientos que tengan. No quieren ser ignorados, o tratados de manera despectiva o displicente, y no quieren sentirse ignorantes. Los textos tampoco deben transmitir esta sensación. Comunicación: Los visitantes esperan de los textos, de los programas y de los docentes veracidad, sinceridad y mensajes precisos. Quieren plantear preguntas, a veces, incluso quieren escuchar o expresar opiniones discrepantes. Aprendizaje: Los visitantes quieren aprender y experimentar algo nuevo, pero todos tienen su propia manera de aprender. Por eso es importante saber de qué manera aprenden y es importante adaptarse a sus intereses y conocimientos. Eso incluye la eliminación de factores que desvían o estorban el aprendizaje: muchedumbres, ruido o un aluvión de informaciones. Posibilidades de selección y autodeterminación: Los visitantes necesitan una cierta autonomía: La libertad de elegir, de ejercer el control, de acercarse a las piezas expuestas que les interesan, quieren moverse libremente. Reto y auto confianza: Los visitantes quieren tener una sensación de éxito. Una tarea demasiado fácil les aburre, mientras que una tarea demasiado difícil provoca el temor de no poder vencerla. Una oferta versátil de posibilidades puede cubrir un gran espectro de diferentes habilidades.
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Estimulación y restauración mental: Si los visitantes están en la exposición de manera muy concentrada, la disfrutan, se sienten cómodos, se divierten y se olvidan del tiempo, se van a sentir restaurados mentalmente después de su visita.
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Hay múltiples opciones para conectar con los visitantes y capturar sus diálogos, estas “conversaciones provocadas” producen resultados de diversa índole, el museo se acerca a los conocimientos de la comunidad, expectativas e intereses sobre los temas en exposición, sus relatos, sus prejuicios e ideas previas. Se trata de crear circunstancias y experiencias por medio de puentes cognitivos y emocionales construidos entre los objetos en exhibición, entre los textos, a cada momento y entre las narrativas de las personas. Los contenidos culturales de la institución como el museo, combinados con las complejidades y recuerdos de cada visitante, pueden evocar profundamente sentimientos, iluminar cuestiones desconocidas y abrir puertas a experiencias no comprendidas con anterioridad. Es preciso, pues, encarar un verdadero diseño de la participación para entusiasmar a los visitantes a participar, donde cada formato sea pensado en función de qué clase de participación solicitamos a nuestros visitantes y qué implica cada una de ellas para la institución. Cada propuesta de co-producción, colaboración, contribución o co-creación, exige un diseño específico: espacios íntimos, de transición o colectivos; consignas abiertas o cerradas; con o sin mediación; propuestas de corto y largo alcance; de alta o baja tecnología; etcétera. Como curadores de visitantes podemos diseñar experiencias para que los visitantes encuentren significados personales con los objetos de la exhibición en sus propios términos y luego nos comenten sus elecciones y reflexiones. De este modo podemos observar si la atribución de sentido está vinculada con los rótulos, la información escrita, otros soportes interpretativos, la museografía, etc., y explorar otros modos y formatos para ofrecer dispositivos interpretativos que puedan favorecer que muchos visitantes más encuentren significados personales con la colección. Como curadores de visitantes también podemos analizar la programación interpretativa del museo para elaborar nuevos relatos que permitan establecer lazos con temáticas concernientes a las grandes cuestiones humanas (sufrimiento, creencias, nacimiento, alimentación, refugio, generaciones, muerte, alegría, tristeza, etc.). Contar historias con detalles humanos. Una idea que resuena con los pensamientos de Pamuk con los que iniciamos esta comunicación. En cuanto a la organización de las visitas, también hay posibilidades de innovar si nos centramos en la experiencia de nuestros visitantes y no solamente en los objetos de la colección. Es necesario conectar con los visitantes, contar historias con todo el cuerpo y la voz para crear imágenes en la mente de los visitantes acerca de la información a transmitir; enseñar a “perderse” en el museo, etc. Las visitas centradas en los visitantes se organizan alrededor de técnicas de narración, indagación e interpretación que varían en su utilización según los grupos sean de escolares, familias, público de fin de semana, grupos con necesidades específicas. Las técnicas no son mutuamente excluyentes sino complementos unas de otras. La narración puede proveer información para un proceso de indagación, mientras que la improvisación puede darle sentido a una historia (Thiele y Hatano, 2001: 35).
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A modo de cierre Aventurarse por los caminos de la centralidad de los visitantes en los museos requiere de analizar, profundizar y demostrar ciertos supuestos acerca de los beneficios y la democratización que se promueven por medio de estas prácticas. Al mismo tiempo es necesario preguntarse acerca de los impactos de los resultados de la participación en otros grupos de visitantes, si se trabaja con mayor cantidad de visitantes o solo comunidades diferentes a las habituales, cómo se experimenta el contenido cuando está producido a partir de las voces de los visitantes y si las propuestas participativas aumentan el compromiso de los visitantes (Satwics y Morrisey, 2011: 196 a 198). La participación de los visitantes en los museos es zona de conflicto y ambigüedad acerca de cómo los visitantes se hacen parte del museo Es necesario seguir intentándolo, y probar una y otra vez cómo recorrer el laberinto, para encontrar la diversidad de caminos y salidas a pesar de las dificultades y aprendiendo de cada una de ellas. Actualmente los profesionales con mayor contacto con la comunidad y con mayores posibilidades de convertirse en especialistas de los visitantes, son los educadores/facilitadores/guías de museo. Son quienes tienen las posibilidades de observar continuamente a los visitantes, aunque no siempre documenten esas observaciones. En este marco, pueden aportar elementos, intereses y criterios sobre las experiencias, interpretación, aprendizaje, imaginación y participación de los visitantes que influyan en el proceso de la toma de decisiones. El trabajo interdisciplinario podría dar excelentes frutos para que los visitantes sean y se sientan cada vez más parte de sus museos. Bibliografía ALDEROQUI, Silvia y Pedersoli, Constanza. La educación en los museos. De los objetos a los visitantes, Buenos Aires: Paidos, 2011. BODO, Simona (a cura di), Il museo relazionale. Riflessioni ed esperienze europee, Torino: Edizioni della Fondazione Giovanni Agnellivia, 2003. CAILLET, Élizabeth. “���������������������������������������������������������� ����������������������������������������������������������� Le Rôle social du musée����������������������������������� ”���������������������������������� . En Angèle Fourès, Delphine Grissot et Serge Lochot(dir), Le Rôle Social du musée. Agir ensemble et créer des solidarités, Les dossiers de l’ OCIM, Université de Bourgogne, 2011. DECARLI, Georgina. Un Museo Sostenible. San José C.R.: Unesco, ILAM, 2004 . DÍAZ Balerdi, Ignacio “¿Qué fue de la nueva museología? El caso de Quebec”. En Artigrama, Nº 17: 493-516, 2002. Recuperado de: http://www.unizar.es/artigrama/pdf/17/3varia/13.pdf DODD, Jocelyn. Interactivity and Social Inclusion, Research Centre for Museums and Galleries, University of Leicester, 2002. Recuperado de: http://media. vam.ac.uk/media/documents/legacy_documents/file_upload/5761_file.pdf HARRIS, Jennifer “Commentaires sur la Déclaration de Calgary. La définition du musée”. En Mairesse, F. y Desvallées, A. (dir) Vers un définition de musée? Paris: L´Harmattan, 2007. ILLERIS, Helene. Museums and galleries as performative sites for lifelong learnings: constructions, deconstructions and reconstructions of audience positions in
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Artigo recebido em março 2015. Aprovado em abril 2015
TENSÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO NARRATIVA DAS HISTÓRIAS INDÍGENAS NO MUSEU Louise Prado Alfonso 1 Márcia Lika Hattori 2
RESUMO: O artigo busca, a partir das narrativas expográficas das exposições de curta e longa duração do Museu Histórico e Arqueológico de Lins, refletir sobre as formas de representação dos grupos indígenas em instituições culturais locais e seus desdobramentos nas comunidades indígenas e no próprio município de Lins. PALAVRAS-CHAVE: Museu, Comunidades Indígenas, exposições, representação, participação.
ABSTRACT: This article aims, based on narratives of short and long time exhibitions of Historical and Archaeological Museum of Lins, reflect on the forms of representation of indigenous groups in local cultural institutions and its development in indigenous communities and in the city of Lins. KEYWORDS: Museum, indigenous communities, exhibits, representation, participation.
1 Pós doutoranda no Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Pelotas – UFPEL, pesquisadora do Laboratório Multidisciplinar de Investigação Arqueológica – LAMINA - UFPEL, do Núcleo de Etnologia Ameríndia – NETA – UFPEL e Coordenadora Adjunta do Museu Arqueológico e Antropológico da UFPEL – MUARAN, em fase de implantação. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, consultora nos trabalhos de buscas e tentativas de identificação de desaparecidos políticos no âmbito da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
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Este artigo pretende apresentar algumas reflexões sobre as diferentes narrativas relacionadas às comunidades indígenas por nós observadas em Lins – SP, durante o processo de implantação do Museu Histórico e Arqueológico de Lins – MHA de Lins. A proposta se deu, pois verificamos que as diferentes narrativas sobre estas comunidades traziam os indígenas como coadjuvantes, participantes quase invisíveis na história do município. Esta percepção contribuiu para que pensássemos estratégias de alteração desta imagem não apenas nas narrativas que seriam apresentadas nas primeiras exposições do MHA de Lins, mas também na relação população indígena, museus e município. Para tanto, partimos da perspectiva da Sociomuseologia, ao compreender o museu enquanto agente e produto de transformação social, política e cultural no território em que atua. Por outro lado, a mudança não se dá sem tensões ou conflitos. Os museus enquanto espaços públicos que constroem representações sociais têm sido crescentemente problematizados como terrenos contestados, com regimes particulares de poder e cujos significados produzidos e comunicados, não só podem, como devem ser questionados (DUARTE, 2013). Tais debates contribuíram para reflexão do conceito de museu, proporcionando os mecanismos necessários para a introdução de novas variações, em particular no que diz respeito à natureza das coleções, às modalidades de representação cultural, ao papel dos públicos e visitantes e à sua própria identidade e missão institucional (ANICO, 2005). Assim, são as variações, as tensões e seus desdobramentos que nos propomos a analisar tendo o município de Lins, como objeto de reflexão. Lins está localizado no noroeste do estado de São Paulo e possui população estimada em 75 mil habitantes1. Trata-se do município mais populoso da microrregião, constituindo-se como um importante polo de serviços, cultura e educação. Entre as diferentes instituições culturais municipais existentes até 2012 citamos: o Centro Histórico de Lins, localizado no arquivo público municipal com diferentes coleções relacionadas à história do município, a Casa de Cultura Nicolau Zarvos, onde são realizadas diferentes atividades como saraus, shows, lançamentos de livros e antes de 2012, local de diferentes exposições. Por fim o município ainda contava com o Museu Histórico da Comunidade Nipo-Brasileira de Lins, inaugurado em 2002 cujo acervo é formado por quase 500 objetos relacionados a instrumentos de trabalho do campo, objetos de cozinha, documentos, roupas, fotos, jogos, brinquedos e instrumentos musicais, entre outros. Sobre este museu, (...) se destaca a valorização do trabalho, base para a construção das colônias japonesas no noroeste paulista. Não obstante, itens associados ao lazer, como a músicas, esportes e jogos, também foram musealizados, revelando aspectos importantes do cotidiano desse grupo (Fundação Araporã, 2012).
Importante destacar que nestas instituições predomina o imaginário da cidade dos coronéis, da terra “desconhecida” e posteriormente ocupada com maior intensidade com a chegada dos imigrantes japoneses, gregos, italianos, espanhóis entre outros, o que marca profundamente o imaginário da cidade. Os principais logradouros da cidade apontam para diferentes imigrantes e antigos 1 Segundo dados do IBGE, 2013.
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presidentes da república. Marcos monumentais são encontrados relacionados ao centenário da imigração japonesa, a elementos da história ferroviária e aos diferentes templos – budista, ortodoxo, católico, entre outros. Isso se materializa em um dos espaços que tem como proposta apresentar a história do município. Localizado no Arquivo Público, na rua Oswaldo Cruz, está o Centro Histórico de Lins cujos objetos apresentados remetem a história da chegada da ferrovia e a participação de moradores locais na Revolução Constitucionalista de 1932. Interessa neste artigo destacar o papel coadjuvante da arqueologia na representação da história do município assim como nas coleções observadas. Uma vez que a “história oficial” da cidade começa com os coronéis e a chegada da ferrovia Noroeste, os vestígios arqueológicos ficam associados ao que deveria ser esquecido, ou lembrado como reflexo de um passado distante, conforme aponta Wichers (2012) em análise sobre os Museus Histórico Pedagógicos do interior de São Paulo. Embora o centro Histórico não venha dessa política, reflete o modelo proposto pelo mesmo. No histórico do município, ressalta-se sempre o “vazio” demográfico reforçado pelos termos - “terra virgem” “mata fechada” “sertão”. Os poucos indígenas são retratados como um só grupo e apenas como parte de uma trilha, sendo desconsiderada a diversidade de etnias que ali viviam, a densidade populacional e os modos de vida, como segue no excerto abaixo. Iniciava-se o século XX, no local, onde tudo era sertão, a terra virgem, a mata fechada, a flora e fauna ricas em espécies, corria manso e sereno, com suas águas cristalinas, um córrego denominado 'Brumadinho' (muitos assim o chamavam), posteriormente - chamado 'Douradinho' e finalmente 'Campestre'. Lins nascia com o nome de Douradinho (Brumadinho), Campestre, Santo Antonio do Campestre; depois Albuquerque Lins e finalmente Lins. Lins surgiu no cruzamento de uma trilha de índios localizada nas proximidades dos Rios Tietê e Dourado e a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. As paralelas cintilantes que eram os trilhos da Estrada de Ferro, chegavam por estes lados trazendo os homens e suas gentes cortando as matas com seu destino já traçado pelo Marechal Rondon, rumo ao Mato Grosso. (...) De elevado espírito religioso, tratavam desde logo os primitivos moradores, dentre aos quais destacamos: Cel. Manoel Francisco Ribeiro, Cap. Joaquim Carlos Ribeiro, Manoel Lourenço Ribeiro, Francisco José Ribeiro, José Noronha Ribeiro, Cel. Joaquim Toledo Piza e Almeida, Francisco Téofilo de Andrade, Frederico M. Costa, Amâncio Nogueira, José do Rego, Francisco Veloso Martins, Cel. João Pedro de Carvalho Júnior, Joaquim de Godoy, Fortunato Hena, Joaquim Barbosa de Morais, Amâncio de Assis Nogueira, Egidio Galleti, Domingos de Matos Guedes, Antonio Marques Castanheira, Dona Amélia Marques Castanheira (primeira parteira de Lins), Antonio Seabra (primeiro professor), etc. A fé e o espiríto daqueles primórdios, os bandeirantes desta terra, resultou no surgimento de um aglomerado de toscas casas, a maioria de pau-a-pique, cobertas de zinco ou da própria vegetação local, ao redor da Estação de Campestre.
Histórico de Lins2 2 CAMARA DE LINS, 2014. Disponível em http://www.camaralins.sp.gov.br/cidade/breve-historico . Acessado dia 05/10/2014
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Os “primeiros” moradores retratados são coronéis e capitães, nomes de uma pequena elite local constituída. Temos ainda uma gama de iniciadores: a primeira parteira, o primeiro professor, o primeiro prefeito, cujo registro e representação em espaços como o Centro Histórico de Lins, constrói uma memória fundadora. Inauguradores daquilo que já havia sido inaugurado pelos grupos indígenas.
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A posição desse protagonismo dá mostras do quanto coronéis, grandes proprietários de terras se apropriaram do poder local seja ele político, econômico ou cultural, representação da história de um território cuja diversidade foi intensamente maior conforme as pesquisas arqueológicas, a tradição oral dos grupos indígenas e a memória coletiva. É apenas nos últimos anos que a historiografia local tem questionado essa perspectiva a partir dos trabalhos de História Oral realizados por Sueli Tabian (2005). Conforme apontam autores como Wichers (2012) e Misan (2008) muitos dos acervos dessas instituições do interior paulista representaram o universo das elites locais, marcadas pela priorização do universo da burquesia e a exclusão das demais esferas da comunidade da cidade como a de negros, indígenas, caipiras, migrantes entre outros. É a partir desse contexto em que, pouco ou praticamente não se incluía a história das populações indígenas na história do município de Lins que, quando iniciamos o processo de implantação do Museu Histórico e Arqueológico de Lins, a proposta era questionar e trazer outra visão para a nova instituição cuja sede está na antiga estação ferroviária Albuquerque Lins. É importante destacar que essa proposta também se relacionava ao fato do interesse municipal de repatriar a coleção arqueológica e etnográfica Kiju Sakai, que tem, parte do seu acervo, inúmeros artefatos relacionados a história Kaingang em Lins, a partir das escavações de estruturas funerárias do final do século XIX, início do XX, realizadas por Kiju Sakai na região entre Lins e Promissão. O MHA de Lins e sua parceria com a Terra Indígena Icatu O Museu Histórico e Arqueológico de Lins foi inaugurado em agosto de 2012. Sua abertura oficial, composta por uma grande festa de inauguração que envolveu a apresentação de diferentes grupos formadores da comunidade do município, foi organizada de forma não a comemorar o início de uma instituição cultural, mas sim, de celebrar mais de quatro anos de trabalho contínuo junto à comunidade de Lins e região. Os esforços para a implantação de um museu foram iniciados a partir dos resultados da avaliação da Exposição Arqueológica Kiju Sakai realizada pelo poder público no município no ano de 2007, em parceria com a Fundação Araporã, durante as comemorações do centenário da imigração japonesa para a região. A Exposição possibilitou a identificação de uma grande demanda por um museu no município e pela repatriação da coleção arqueológica formada pelo pesquisador japonês, então sob guarda da Universidade de São Paulo. Todo o processo de implantação do MHA de Lins envolveu ações educativas que possibilitaram que museu fosse planejado e implantado de forma participativa, onde as comunidades de Lins e região participaram profundamente não apenas na elaboração do plano museológico da instituição3, como também 3 A elaboração do Plano Museológico foi coordenada pela museóloga Camila Moraes Wichers.
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na idealização e concepção das primeiras exposições do museu. Dentre os diferentes grupos destacamos aqui a comunidade japonesa, a T.I. Icatu, os familiares de ex ferroviários, alunos e professores da rede municipal, trabalhadores rurais e descendentes de imigrantes gregos. A proposta museológica foi pautada nos preceitos da Sociomuseologia, que segundo Moutinho (2007: 1) trata-se de uma disciplina com enfoque interdisciplinar que pretende 1) a valorização e proteção dos bens patrimoniais e de questões relacionadas ao desenvolvimento e à cultura como elementos de “uma responsabilidade Social”; 2) a mudança, pois as sociedades se transformam constantemente e os museus devem se inserir neste processo, em especial como motivadores de transformações; 3) os museus como propostas multidisciplinares, formação e qualificação profissional diferenciada que vão além das formações técnicas (2007: 1-3). Essa nova percepção tem trazido uma gama de reflexões sobre métodos e objetivos que, procuram compreender os museus como espaços propícios para novas práticas museológicas, sendo estas, voltadas para “o desenvolvimento da humanidade” (2007: 3). Isto a partir do diálogo e de reflexões sobre o contexto onde a instituição encontra-se inserida. Esta proposta museológica possibilitou que o MHA de Lins voltasse seus esforços para que a instituição pudesse vir a desempenhar um papel “libertador das forças criativas da sociedade, para a qual o patrimônio não é apenas um objeto de contemplação, mas, antes de tudo, uma fonte maior de desenvolvimento” (Varine 1995: 19). Esta nova maneira de pensar os museus tem favorecido a inserção de diferentes grupos sociais nas narrativas e na prática museológica por trazer as memórias ou culturas marginalizadas para um debate sobre sua inserção em um discurso oficial. Assim, o esforço não está apenas voltado para a atração de novos públicos para os Museus, mas buscar ações que favoreçam que “o próprio museu, concebido como um instrumento ou um objeto poderia ser utilizado inventado e reinventado com liberdade, pelos mais diferentes atores sociais” (Chagas in Alfonso 2012). Este processo se faz distinto em cada contexto, em cada localidade, pois se adapta “à interação complexa dos fatores e de múltiplos parceiros, segundo as configurações cada vez mais diferentes, e mesmo evolutivas, para se adaptar às mudanças endógenas e exógenas” (Varine-Bohan in Alfonso 2012). Assim, os museus podem passar a ser fortes referências para as comunidades, favorecendo ações de desenvolvimento global e sustentável. Dentro de tais pressupostos, o processo de implantação do MHA de Lins possibilitou que o museu fosse pensado junto à comunidade segundo o seguinte conceito gerador museológico: O noroeste paulista como território de negociação cultural entre diversos agentes, grupos e segmentos sociais, no passado e presente, a partir das diferentes referências culturais, patrimoniais, narrativas e memórias. Espaço de diálogo, mas também de conflito. (Fundação Araporã 2012)
A Missão Institucional do MHA de Lins foi definida pelos diferentes grupos como:
um espaço democrático de preservação do patrimônio cultural de Lins e região, lugar de vivência e de encontro de diferentes grupos. Tem como premissa o trabalho participativo, envolvendo segmentos sociais diversos. Para isso, desenvolve pesquisas em Arqueologia, História, Antropologia,
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Museologia e áreas afins, destacando a diversidade cultural regional, suas memórias e histórias. Objetiva-se a construção de um espaço educativo, interativo, dinâmico e crítico, fomentando o uso sustentável do patrimônio e o desenvolvimento regional, com especial atenção ao turismo (Fundação Araporã 2012).
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O espaço selecionado pela prefeitura para sediar o museu foi a antiga estação ferroviária Albuquerque Lins conforme apresentamos anteriormente. Construir um museu em uma estação ferroviária tem se tornado corriqueiro no Brasil. Porém, pouco se tem pensado no papel destas instituições como questionadoras de um passado e um presente relacionados a projetos desenvolvimentistas e seus impactos junto às populações que vivem no entorno das obras. Os coordenadores do projeto de implantação do MHA de Lins consideraram que seria um compromisso da instituição valorizar “enfoques patrimoniais que têm sido pouco abordados, ou mesmo desprezados” pelos museus, em especial, aqueles “vinculados aos nossos traumas e fracassos” (Bruno in Fundação Araporã 2011: 13), como seria o caso do massacre das populações Kaingang ocorrido durante a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB) no início do século XX. Rede ferroviária esta, da qual fazia parte a estação ferroviária de Lins. A construção da estrada de ferro gerou muitos conflitos e embates com os grupos indígenas que viviam nos locais impactados, a região de Lins foi crucial para o governo da época na tentativa de minimizar os conflitos por meio de um discurso de “pacificação”, que na verdade objetivava a retirada dos indígenas das áreas de interesse da ferrovia. Assim, o primeiro aldeamento do SPI formado dentro dessa política foi realizado entre Lins e Promissão, no Ribeirão dos Patos. Por questões fundiárias e interesses dos fazendeiros da região pelas terras do aldeamento, este foi desfeito a população indígena foi transferida para duas terras indígenas: T. I. Icatu, hoje localizada no município de Braúna, e T. I. Vanuíre, localizada no município de Arco-Íris (Rodrigues 2007: 58). O envolvimento da comunidade indígena com o museu, simbolicamente, poderia trazer essas comunidades à região como agentes ativos, dando voz às comunidades indígenas, pois durante muito tempo tiveram sua história contada “por outros” em uma perspectiva etnocêntrica (Fundação Araporã 2011). Assim, uma vez que havia a ideia de que o museu deveria ser idealizado e planejado de maneira participativa, surgiu a possibilidade de dialogar com a Terra Indígena Icatu. O primeiro contato com as lideranças da T.I. Icatu possibilitou que pudéssemos pensar ações e metodologias de aproximação daquela comunidade à proposta do Museu. Foi decidido que seria construído no museu espaço que representaria as comunidades indígenas no museu e que seria realizado um trabalho de educação patrimonial junto à escola indígena Índia Maria Rosa. Cabe destacar que esta foi a única exigência por parte das lideranças. Também foi iniciada uma parceria do MHA de Lins para venda de artesanato indígena na lojinha do museu. Assim, iniciou-se um trabalho junto às lideranças kaingang e terena da T.I. Icatu para discutir como seria a autorrepresentação da comunidade na área externa do museu. Foi realizada uma visita técnica às obras do MHA de Lins, foram realizados estudos de exemplos de outras iniciativas de museus brasileiros quanto à autorrepresentação de populações indígenas. As lideranças decidiram
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construir uma casa pautada em uma experiência desenvolvida no Museu do Índio no Rio de Janeiro e um projeto realizado pelo laboratório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU – USP). O projeto arquitetônico foi pensado a partir de uma gama de reuniões que envolveram uma apresentação do arqueólogo Robson Rodrigues de imagens de modelos de casas relacionadas aos antigos habitantes da região segundo fontes arqueológicas, discussões sobre imagens das primeiras casas construídas na T. I. e das casas atuais. As reuniões resultaram na escolha de um modelo de casa circular representada no artesanato da T. I. Vanuíre pois esta não representaria diretamente os kaingang nem os terena e seriam reconhecidas pelos não indígenas como casa indígena, diferentemente se tivessem reproduzido no espaço uma casa atual da aldeia, feita de alvenaria. A casa foi construída em 2011 pelas lideranças de Icatu, com o auxílio de alguns de moradores da aldeia Ekeroá da T. I. Araribá. Durante a construção da casa, foi realizada pela prefeitura, que documentou todo o processo de construção, uma entrevista com as lideranças de Icatu responsáveis pela obra: o Sr. Ranulfo, então representante da FUNAI, e Sr. Candido, pajé terena. As lideranças apenas realizaram a filmagem após as pesquisadoras irem até a T.I. para buscar seus cocares e colares, pois estes consideraram que esses elementos se fazem de extrema importância para que o não indígena os reconheça como indígenas. Suas falas foram pautadas na necessidade de preservação da cultura indígena, sobre as possibilidades de atuação conjunta com o Museu e na importância da ampliação da área da T.I. por processo de demarcação. Cabe destacar aqui que logo após sua finalização, moradores de uma comunidade do entorno do museu, que seria deslocada com a construção da nova entrada da instituição, colocaram fogo na casa e esta teve que ser reconstruída para a inauguração. Para nós, a tensão sobre a representação no museu pareceu evidente pela escolha de um grupo, o indígena e não outro, como o de jovens em situação de risco, que viviam em uma ocupação próxima ao museu. As ações junto à Escola indígena Índia Maria Rosa da comunidade Icatu tiveram início em fevereiro de 2011. Em uma primeira reunião foi apresentada a proposta do museu e a intenção de desenvolver ações que contribuíssem para os projetos que a escola já vinha desenvolvendo. Os professores apresentaram um projeto voltado para o “levantamento da memória sobre as culturas indígenas kaingang e terena” (Fundação Araporã 2011b). Os docentes enfatizaram que para compreender como o museu poderia contribuir com o projeto, precisariam entender o conceito de museu (Alfonso 2012). A partir da primeira reunião foram enviados diferentes textos para os docentes sobre museus, Museologia, a questão indígena em museus brasileiros e sobre Educação Patrimonial. Estudos de caso como o da rede de Museus do Ceará, alguns desenvolvidos pelo Museu do Índio do Rio de Janeiro e do Museu Maguta no Amazonas possibilitaram que os professores tivessem um novo olhar para as instituições museológicas, não as compreendendo mais como algo estático, reprodutoras de narrativas não indígenas, mas coo espaços de transformação social, preservação e inclusão. Assim, foi fortalecida a parceria da escola com o MHA de Lins e foram realizadas diferentes ações voltadas para contribuir com os projetos da escola.
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Em 2012 foi iniciado o processo de elaboração das primeiras exposições do Museu. As exposições foram pensadas de forma participativa, elaboradas pelos diferentes grupos já parceiro do museu. Optamos por uma expografia de perguntas, onde passado e presente pudessem ser confrontados a todo o instante (Fundação Araporã 2012). Em sua inauguração, o museu apresentou três exposições: uma na área externa do Museu, da qual fez parte a casa indígena; uma exposição de longa duração denominada “Museu, território da vida, palco da diversidade”, pensada em temáticas como trabalho, alimentação, território, religiosidade, entre outros, que possibilitam uma reflexão sobre o cotidiano dos diferentes grupos e, uma de curta duração cujo título “Nós por nós mesmos”, pois possibilitava um espaço específico para que cada grupo se auto representasse. A exposição na área externa do Museu procurou abordar os diferentes usos do prédio da antiga estação, apresentou uma casa de madeira representativa dos antigos moradores da área rural de Lins e a casa indígena. A casa indígena foi acompanhada de um painel com texto elaborado em parceria entre os pesquisadores e as lideranças indígenas. O painel foi intitulado “Casa indígena – Habitação e história: ontem e hoje”, o texto do painel segue abaixo: Esta casa foi pensada e construída pela comunidade indígena de Icatu, localizada a 12 km da cidade de Braúna, na região de Penápolis, com o auxilio da comunidade da aldeia Ekeroá da Terra indígena Araribá. Há vários séculos os kaingang habitam as regiões sudeste e sul do Brasil e, os registros arqueológicos e históricos apontam para uma longa ocupação na região de Lins. Na historia desse grupo, mudanças nas formas de organização e de habitação são frequentes. Hoje, vivem em casas de alvenaria, o que não significa que esses grupos não mantenham características específicas na organização do espaço da aldeia. A construção da casa indígena no museu tornou-se importante, pois simbolicamente, traz de volta à cidade de Lins os antigos moradores que foram expulsos e mortos devido á expansão da ferrovia Noroeste e das frentes de ocupação do oeste paulista. Já pensou qual a situação dos grupos indígenas hoje? O processo de planejamento e construção da casa possibilita a autorrepresentação da comunidade indígena. Assim, depois de vários encontros e discussões, os próprios indígenas definiram qual seriam a arquitetura da casa e o modo como eles gostariam de se representar e contar a sua história no museu (Fundação Araporã 2012).
A temática indígena também foi tratada no painel referente à ferrovia, denominado “A ferrovia noroeste: trabalho e conflito”. Segue abaixo trecho retirado do painel: Construído em 1912, o prédio da Estação Ferroviária de Lins marca o surgimento da cidade a partir da chegada da estrada de ferro na região. A imagem da estrada de ferro associada ao desenvolvimento e progresso, está muito distante das muitas tensões que a construção e manutenção da ferrovia acarretaram, seja envolvendo os trabalhadores, seja com os indígenas que viviam na região.
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Os projetos da modernidade construíram a ideia de que o progresso e desenvolvimento, só ocorreriam a partir da eliminação de aspectos do país considerados “atrasados”. Um mito da “ferocidade” dos indígenas foi utilizado para desencadear um massacre ostensivo contra a população kaingang, para possibilitar a construção da ferrovia e das atividades cafeeiras. (...) (Fundação Araporã 2012).
A exposição de longa duração foi pensada a partir de uma expografia temática, com os temas sendo selecionados no âmbito de um intenso mapeamento de anseios realizado no durante as ações de Educação Patrimonial e de oficinas participativas com os diferentes grupos parceiros. Os temas selecionados foram: Caminhos e paisagens, Alimentação, Trabalho no campo, Fazeres, Saberes, Lazer e Religiosidade. Os textos foram pensados de forma que as percepções dos diferentes grupos sobre as temáticas dialogassem intensamente nos painéis. Abaixo seguem alguns trechos onde a temática indígena foi apresentada: Modulo alimentação – “Você tem fome de que?”: Falar em alimentação é falar de um direito, de uma parte fundamental da nossa vida. É falar dos nossos gostos, herdados ou apreendidos com o tempo, da forma como preparamos esses alimentos e das diversas maneiras de comer e beber. Alguns alimentos são comuns a diferentes grupos, como por exemplo a mandioca e o milho. Alimentos cultivados por muitos grupos indígenas tornaram-se fundamentais no nosso cardápio, sendo preparados de diversas formas. Mandioca cozida, frita, na manteiga, no churrasco, em bolinho, ralada para fazer farinha e até mesmo tapioca. Milho cozido, feito creme, na sopa ou como pipoca.(...) Você sabia que existe o milho preto? Conheça aqui uma receita kaingang de creme de milho preto. (...) (Fundação Araporã 2012).
Modulo Terra e Trabalho: Antes, Lins não existia. A terra pertencia aos grupos indígenas que aqui moravam, plantavam, coletavam, caçavam...Veio a colonização, os posseiros, grileiros e o massacre dos povos indígenas. Mas os novos donos da terra não eram os que cultivavam. Indígenas, negros e imigrantes faziam o serviço, trabalhando muito e ganhando nada ou quase nada por seu trabalho, muitos enganados por contratos injustos. (...) (Fundação Araporã 2012).
Saberes de toda gente: (...) Existem muitos ensinamentos que aprendemos convivendo com outras pessoas, conversando, ouvindo os mais velhos, observando... verdadeiras lições que são passadas de uma pessoa para a outra no decorrer do tempo. Esses saberes estão relacionados aos fazeres, à religiosidade, ao lazer, à alimentação (...) Saber confeccionar um pote, escolher o barro certo, dar forma e acabamento (Fundação Araporã 2012).
Estes são apenas alguns trechos para ilustrar o discurso narrativo utilizado na exposição de longa duração do MHA de Lins.
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Já a exposição de curta duração foi pensada em módulos independentes onde cada grupo parceiro pode se autorrepresentar no museu. Cada grupo escolheu os objetos, a temática e elaborou os textos dos painéis. A exposição foi denominada “Nós por nós mesmos”. O módulo indígena foi elaborado pelos professores indígenas da Escola Indígena Índia Maria Rosa. O titulo do módulo foi “Índio cuidando de índio: quem sabe a realidade do índio é o índio”, segue texto do painel principal: A chegada do não-indígena significou a imposição de uma cultura aos indígenas donos daquela terra. A partir de 1970 começou haver uma maior mobilização das lideranças indígenas que passaram a lutar por uma escola indígena. Após muita luta, na constituição de 1988, foram garantidos aos povos indígenas alguns direitos na parte da terra, cultura e educação. Contudo, muitos desses direitos ainda não são respeitados. Na aldeia de Icatu, apenas em 2001 os professores indígenas assumiram a educação. A escola passou a revitalizar e a fortalecer as duas etnias que viviam ali: kaingang e teréns. Retomaram as danças, alimentação, historias e, principalmente, a língua, além de preparar os alunos para viver na sociedade não-indígena. A escola diferenciada não impede a atuação no mundo não-indígena. Os não-indígenas pensaram que os indígenas iriam se acabar. Cortaram as árvores, mas não suas raízes. Foi quando começou a brotar e, ainda hoje, há uma enorme diversidade de grupos indígenas (Fundação Araporã 2012).
Toda a proposta museológica do MHA de Lins buscou ressaltar novos discursos e narrativas, muitas vezes antagônicos à história oficial até então apresentada sobre a região. Os esforços foram voltados para mostrar a importância de cada grupo excluído na construção de sua história e da história de onde estão inseridos, em pensamento, palavras, ações e omissões (Carneiro da Cunha 2002:7). Para tanto a interdisciplinaridade se fez essencial. Para Moutinho, esta deveria se tornar constante nas instituições museais que se compreendem como possibilitadoras de desenvolvimento local e que estão a serviço da sociedade, para que a comunidade possa se ver como agente transformadora. (in Tamanini 1998: 212/13). As diferentes disciplinas com a qual o museu dialogou, sendo estas a história, a arqueologia, a museologia e a Antropologia possibilitaram uma melhor compreensão do “outro” e de aspectos de seu cotidiano (Salamon 2006: 145), uma melhor compreensão do contexto de inserção da instituição, um olhar diferente frente ao passado e presente da região, a formação e manutenção das parcerias e a apropriação da instituição pela comunidade, em especial um laço mais forte com grupos em contextos de exclusão como é o caso das comunidades indígenas (Alfonso 2012). As “memórias excluídas” como conceitua Bruno, combinam elementos de um corpo social perdido, por terem sido separadas do conjunto do qual faziam parte. Essas práticas deslocam costumes e não favorecem “uma linguagem própria que as simbolize ou congregue” (De Certeau in Salamon 2006: 148). Neste sentido, os povos indígenas continuavam sendo considerados os “outros distantes”, e o objetivo das exposições foi aproximá-los, trazê-los para um diálo-
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go pautado na igualdade perante outros grupos. Essa alteridade entre os grupos, certamente, produziu diferentes conflitos que foram negociados e discutidos ao longo de todo o processo. A representação de grupos excluídos em museus pode incentivar novas reflexões e favorecer transformações nas práticas institucionais, buscando “garantir a manutenção e justificativa da existência de suas memórias” (Cunha 2008:158). Cabe aos museus de hoje, alterarem suas práticas que por muito tempo contribuíram para os processos de exclusão social, em especial quanto a formação da nação brasileira e de sua identidade nacional e no fortalecimento de narrativas oficiais diversas, em sua maioria extremamente elitistas e excludentes. Nesse processo foram fortalecidos papéis de destaque e de subordinação, com grupos que constroem e outros que “atrapalham” (2008:159). A diversidade e a pluralidade passam a significar “riscos para imagens idealizadas e construídas, ameaçando poderes e lugares instituídos (2008:159). Assim, a narrativa museológica proposta possibilitou uma melhor compreensão da complexidade da construção de identidades e histórias locais, que implicam a “diversidade e pluralidade, bem como na contradição, e mesmo oposição de referências, contextos, indivíduos e seus interesses” (Cunha 2008:159). Procurou-se que as narrativas dos pesquisadores fossem diluídas nas narrativas dos diferentes grupos, que inclusive tiveram a possibilidade da autorrepresentação. Para os indígenas, que por séculos têm sido representados nas instituições por não indígenas, a autorrepresentação foi um desafio e um interessante exercício, não apenas nas exposições, mais no pensar de ações educativas dentro e fora do museu, o pensar o papel das exposições na divulgação das culturas indígenas dentro e fora das aldeias, dentre outros aspectos. A pluralidade e as temáticas abordadas nas exposições contribuíram para o questionamento das representações e a construção da história do município. Buscou-se diferentemente da perspectiva dos grupos indígenas como algo relacionado ao passado, trazer suas histórias, culturas e os desafios das comunidades hoje como vemos no texto da exposição de curta-duração sobre a importância da Educação Indígena e a inserção dos professores indígenas. As comunidades kaingang e terena da T. I. Icatu, se autorrepresentaram na construção da casa, na escolha das temáticas trabalhadas em seu módulo, na elaboração dos textos e na seleção das fotos e objetos. Assim, buscou-se fazer um museu COM a comunidade e não PARA a comunidade (Rússio 1990:9). Considerações Finais Após a inauguração, o museu passou para a gestão municipal e a proposta desenvolvida até então, foi finalizada com a entrega do Plano Museológico em dezembro de 2012. O enfoque na participação social de grupos que antes eram representados enquanto símbolos de um passado desvinculado à identidade linense, a partir de diferentes instituições mostrou-se fundamental para que novas narrativas fossem apresentadas em especial para o “outro” - não indígena. A dificuldade com o encerramento da parceria com o MHA de Lins iniciou-se devido à troca de gestão municipal que provocou a descontinuidade das ações. O encerramento da exposição de curta-duração com a inserção de
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uma exposição fotográfica de um município do Peru, não foi tranquila. A gestão do museu sequer dialogou com a escola indígena da prorrogação e do encerramento da exposição de curta duração. Hoje, após três anos de gestão, a loja do museu, uma das parcerias para a venda de artesanato da terra indígena com o museu, foi fechada e a cooperação com os artesãos desfeita.
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Infelizmente a falta de qualificação da atual gestão do MHA e seu afastamento dos pesquisadores tem influenciado de forma negativa a relação, até então estabelecida, com os diferentes grupos envolvidos nas ações educativas, em especial com a terra indígena de Icatu. Um questionamento que permeou nosso compromisso enquanto pesquisadoras era: com nosso afastamento do MHA de Lins, como poderíamos manter nosso engajamento em contribuir com questões de interesse daquela região e de Icatu? Com a entrega do plano, tivemos uma dificuldade frente ao financiamento para a continuidade dos projetos com a escola indígena, pois para a prefeitura municipal, uma vez concluída a construção do museu, não era mais necessário investir em novos projetos e dar continuidade ao processo participativo construído ao longo de quatro anos. Dessa maneira, buscamos uma parceria com outro museu da região procurando favorecer a aproximação da escola indígena de outra instituição museal, que possibilitaria a continuidade de projetos e o fortalecimento do vínculo terra indígena – museu. Uma vez que atividades e propostas de participação com a terra indígena Índia Vanuíre estavam sendo desenvolvidas sob coordenação da prof. Marília Xavier Cury, a partir do Museu Histórico Pedagógico Índia Vanuíre, entendemos que esta seria a melhor forma de continuar com as atividades que iniciamos. A partir disso, articulamos a parceria por meio do projeto de exposição itinerante “Dois Povos, Uma luta” desenvolvido junto com a Escola Indígena. Tratava-se de uma demanda da escola indígena que tinha interesse de divulgar para o não indígena a “realidade”4 de como é viver na terra indígena, as culturas que coexistem ali, as tradições e as pessoas. Dessa maneira é importante destacar que, no dia da inauguração da exposição “Dois Povos, uma luta”, na terra indígena de Icatu com a presença de grande parte da comunidade, da secretaria de Educação do Município, da equipe do MHP Índia Vanuíre, em agosto de 2013, um dos professores, liderança Terena da escola, no seu discurso, relatou a resistência de algumas famílias de participar do projeto. Uma das senhoras com quem ele conversou, relatou a ele que não queria participar porque não queria acabar o museu, ser coisa antiga, virar passado. E a resposta do professor à senhora foi o que ele entendia por museu. Assim ele disse que passou a conhecer o que era museu a partir da primeira reunião realizada para o Museu Histórico e Arqueológico de Lins. Para o professor, o museu é vida, um local de comunicação, de se fazer conhecer para o não indígena. Trata-se de um espaço de fortalecimento junto a outros grupos indígenas e inclusive na própria terra indígena. Os museus com os quais este professor se refere, proporcionaram ainda o diálogo entre gerações, a partir dos projetos de pesquisa da escola, que se tornaram narrativas nas exposições. O museu foi o lugar que se divulgou, inclusive a importância da educação diferenciada, não compreendida por muitos e vista com preconceitos por outros. 4 Como categoria êmica utilizada pelos professores
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Atualmente, a necessidade de participação social nos museus, a partir das diferentes comunidades que dialogam com a instituição cultural parece um princípio básico e inquestionável e que tem acompanhado os debates teóricos na Museologia. As análises relacionadas aos diferentes interesses econômicos, políticos e de legitimação cultural e simbólica de grupos nesses espaços, como forma de luta pela representação tem sido fundamental. É nesta luta devemos nos articular e participar junto enquanto pesquisadores. Referências bibliográficas ALFONSO, L. Arqueologia e Turismo: sustentabilidade e inclusão social. Tese de Doutorado em Arqueologia apresentada Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, 2012. ANICO, M. A pós-modernização da cultura: património e museus na contemporaneidade. Horizonte antropológicos, Porto Alegre , 2005, v. 11, n. 23 Câmara de Lins. 2014. Breve Histórico. Disponível em http://www.camaralins.sp.gov.br/cidade/breve-historico . Acessado dia 05/10/2014 CUNHA, M. Carneiro da. Apresentação. Pacificando o branco: cosmologias do contato no Norte-Amazônico. Bruce Albert e Alcida Rita Ramos (orgs) São Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2002. ___________________ . Museus, Exposições e Identidades: os desafios do tratamento museológico do patrimônio afro-brasileiro. In: Bruno, C. O; Fonseca, A. M. da; Neves, K.R.F. (Org.) Museus como Agentes de Mudança Social e Desenvolvimento. São Cristóvão: Museu de Arqueologia de Xingó, 2008. DUARTE, Alice. Nova Museologia: os pontapés de saída de uma abordagem ainda inovadora. Revista Museologia e Patrimônio. Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS Unirio | MAST, 2013, Vol. 6, n. 1. FUNDAÇÃO ARAPORÃ. Relatório Final da Exposição Arqueológica Kiju Sakai. Entregue para a Secretaria de Desenvolvimento Sustentado da Prefeitura Municipal de Lins, 2008. _____________________ . Relatório das ações educativas. Entregue para a Secretaria de Desenvolvimento Sustentado da Prefeitura Municipal de Lins, 2011. _____________________ . Projeto Plano Museológico. Entregue à Secretaria de Desenvolvimento Sustentado da Prefeitura Municipal de Lins, 2012. MISAN, S. Os museus históricos e pedagógicos do estado de São Paulo. Anais do museu Paulista. São Paulo, 2008, Vol. 16, n. 2, Dec. MOUTINHO, M. Definição evolutiva de Sociomuseologia. XIII Atelier Internacional do MINOM, Setembro. Lisboa: Lisboa Setúbal, 2007. RODRIGUES, R. Os caçadores-ceramistas do sertão paulista: um estudo etnoarqueológico da ocupação Kaingang no vale do rio Feio/Aguapeí,Tese de Doutorado, USP, 2007. RÚSSIO, W. Conceito de cultura e sua inter-relação com o patrimônio cultural e a preservação. Cadernos Museológicos, nº 3. Rio de Janeiro: IBPC, 1990.
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Artigo recebido em abril 2015. Aprovado em maio 2015
COMUNICAÇÃO, MEDIAÇÃO E MARKETING1
57 François Mairesse2 RESUMO: Este artigo analisa a relação entre as ações de mediação dentro da função de comunicação do museu (modelo PRC3), e a do marketing museológico. Depois de lembrar das múltiplas dimensões da função de mediação, tal como elas surgiram historicamente nas últimas décadas (desenvolvimento cultural, ação cultural, participação, etc.), o autor estuda os pontos em comum entre as ações ou os métodos da mediação e os do marketing. Ele distingue os níveis nos quais se expandem essas duas funções, que se baseiam, segundo ele, em hipóteses radicalmente diferentes. PALAVRAS-CHAVE: Mediação cultural, marketing, comunicação, ação cultural, PRC
RÉSUMÉ: Cet article analyse la relation entre les actions de médiation, à l’intérieur de la fonction de communication du musée (modèle PRC), et celle du marketing muséal. Après une évocation des multiples dimensions de la fonction de médiation, telle qu’elles ont historiquement émergé au cours des dernières décennies (développement culturel, action culturelle, participation, etc.), l’auteur étudie les liens communs entre les actions ou les méthodes de médiation et celles du marketing. Il distingue les plans sur lesquels se déploient ces deux fonctions, qui reposent selon lui sur des hypothèses radicalement différentes. MOTS-CLÉS: Médiation culturelle, marketing, communication, action culturelle, PRC
1 Tradução texto original – Marília Xavier Cury 2 Université Paris 3 – Sorbonne nouvelle, CERLIS, Labex ICCA 3 Nota da revisora: PRC, em francês Préservation – Recherche – Communication, em inglês Preservation – Research – Communication. Em português PPC – Preservação – Pesquisa – Comunicação. Mantivemos a sigla do original. O autor refere-se ao sistema proposto pela Reinwardt Academie de Amsterdam.
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Sabe-se da importância do artigo de Duncan Cameron, «Um ponto de vista: o museu como sistema de comunicação1», e suas repercussões, notadamente, sobre o pensamento de Georges Henri Rivière que adotou seus princípios e algumas de suas definições para seus cursos assim como para a organização das galerias do Museu Nacional de Artes e Tradições Populares2. O artigo de Cameron é posterior em um ano à organização de um seminário sobre o mesmo assunto organizado por dois grandes teóricos da comunicação dessa época, Marshall McLuhan e Harley Parker no museu da cidade de Nova York3. Desde o início dos anos 1970, a função de comunicação está claramente identificada no centro do sistema museológico. Ela formaria alguns anos mais tarde uma das três funções principais do museu, o « C » do modelo PRC desenvolvido pela Reinwardt Academie. Não faz parte de meu tema definir ou teorizar a função da comunicação dentro do museu, o que outros já fizeram de forma muito definida4. Gostaria, entretanto, de insistir numa parte específica dessa função, que se define atualmente como a mediação, e em algumas das características que ela compartilha com o marketing, este também definido parcialmente a partir de sua política de promoção e de comunicação. Geralmente, apresenta-se a mediação como “uma série de intervenções conduzidas no contexto museológico, a fim de estabelecer pontos entre o que é exposto (o ver) e os significados de que esses objetos e sítios podem se revestir (o saber)”. A mediação procura algumas vezes também favorecer o compartilhamento de experiências vividas entre pessoas na sociabilidade da visita”5. Se tivermos que selecionar apenas três funções para o museu, a da comunicação integra a exposição, a mediação, e a educação, e também as publicações do museu. Em contrapartida, o marketing é classificado entre as funções subalternas ligadas à gestão ou à administração do museu. Não se mistura a função de comunicação “comercial” àquela que seria realmente museológica. Mas será simples essa distinção? Seria o marketing reduzido realmente a um conjunto de operações desconectadas do trabalho museológico? Eu gostaria de mostrar aqui, a partir da análise do caso dos museus na França, que a aparente relação simples entre esses dois mundos, na realidade, é mais complexa, mesmo que ela se baseie, a meu ver, em orientações diferentes e inconciliáveis. Os mundos da mediação O aparecimento do termo “mediação cultural” num contexto museológico remonta, na França, à metade dos anos 1990. Foi basicamente o livro de Elisabeth Caillet e de Evelyne Lehalle, publicado em 1995, que garantiu sua promoção6. Durante muito tempo, de fato, privilegiaram-se as noções de educação, de pedagogia ou de exposição em vez da noção mais vasta de mediação. Esse 1 Cameron D., “A viewpoint: the Museum as a communication system and implications for museum education ”, in Curator, 11, 1968, p. 33-40. 2 Rivière G.H. et alii., La muséologie selon Georges Henri Rivière, Paris, Dunod, 1989. 3 McLuhan M., Parker H., Barzun J., Exploration of the ways, means, and values of museum communication with the viewing public, New York : Museum of the City of New York, 1969. Traduzido recentemente em francês: Le musée non linéaire – Exploration des méthodes, moyens et valeurs de la communication avec le public des musées, Lyon, Aléas [1969], 2008 4 Para uma introdução geral à função “communication”, ver Deloche B., “Communication”, in Desvallées A., Mairesse F. (dir.), Dictionnaire encyclopédique de muséologie, Paris, Armand Colin, 2011, p. 71-85. 5 Desvallées A., Mairesse F. (dir.), Concepts clés de muséologie, Paris, Icom et Armand Colin, 2010, p. 45. 6 Caillet E., Lehalle E., A l’approche du musée, la médiation culturelle, Lyon, Presses Universitaires de Lyon, 1995.
François Mairesse
último termo estava em moda na época: falava-se cada vez mais de mediação e de mediadores nos meios sociais ou administrativos, a fim de resolver conflitos7. O mediador intervém então como um terceiro, sem tomar partido, entre dois protagonistas aparentemente opostos. Na metade dos anos 1990, no âmbito de uma grande campanha de empregos-jovens implantada pelo governo francês, mediadores sociais, mas também culturais, foram recrutados em diferentes coletividades locais, principalmente em bairros periféricos problemáticos. O mundo dos museus não conhece de forma real os conflitos tais como encontrados na vida social; o termo mediação será, entretanto, escolhido, provavelmente por planar no ambiente da época. Ele iria se propagar amplamente, sobretudo através da implantação de cursos universitários a ele dedicados. O mundo dos museus, mais que os outros (a mediação cultural é exercida também nos setores do teatro, do cinema das bibliotecas...), se apropriaria do conceito, a exemplo da obra de Caillet e Lehalle, apresentando a mediação através desse duplo papel de educação (os guias-conferencistas clássicos), mas também da interpretação dos acervos, tanto pelo treinamento de membros do pessoal quanto pela adoção de instrumentos e dispositivos diversos (etiquetas, textos, filmes, jornais, manipulações...). A própria mediação não visa transmitir um saber, mas sim desencadear o desejo de saber mais; “a mediação não aborda as obras, os objetos, os conceitos na perspectiva de conhecê-los no sentido de aprendizado, de um saber. Ela se faz do exterior e tende a deixar que se sinta o mais imediatamente possível aquilo que está no interior: despertar o interesse, como nos interessarmos pela vida emocionante de uma princesa (Sissi, a Imperatriz) ou por um roubo (Ladrão de Bicicleta)8” A lei sobre os museus da França, promulgada em 2002, consagra definitivamente o termo mediação, especificando que os museus franceses devem estabelecer esses serviços dentro de seu estabelecimento. Globalmente, entretanto, a palavra “mediação” seria aplicada sobretudo às atividades tradicionalmente realizadas pelos serviços educativos ou pedagógicos. Assim, a obra de Aurélie Peyrin, que estuda a atividade mediadora dentro dos museus, baseia-se principalmente nessa dimensão educativa clássica, ligada às visitas guiadas e outras oficinas pedagógicas.9 A noção de mediação cultural se beneficia, entretanto, de uma história claramente mais complexa. Certamente, o aspecto educativo, que encontramos desde a origem do museu moderno (no século XVIII)10, apresenta uma dimensão muito importante desse campo: nós a encontramos entre os primeiros conservadores ou no discurso de um David durante a Revolução Francesa. De maneira mais geral, no entanto, essa dimensão pedagógica se inscreve num contexto claramente mais vasto, grandemente influenciado pelos políticos (ou pela ausência de política) dos poderes públicos. Claro, a instrução que se tem ao longo de toda uma vida constitui um princípio encontrado desde a Revolução Francesa, através, notadamente, do discurso de 7 Jean-François Six, Véronique Mussaud, Médiation, Paris : Seuil, 2002. Jean-François SIX, “La médiation des médiateurs”, in Yves Michaud, Qu’est-ce que la société?, Université de tous les savoirs, Paris, Odile Jacob, 2000. 8 Caillet E., Lehalle E., Op. cit., p. 51. 9 Peyrin A., Etre médiateur au musée. Sociologie d’un métier en trompe-l’œil, Paris, La documentation française, 2010. 10 Hollert T., “La fantaisie des custodes. De la préhistoire de la profession de conservateur en France et en Allemagne au xviiie siècle”, in Pommier E. (ss.la dir.), Les musées en Europe à la veille de l'ouverture du Louvre. Actes du Colloque du Colloque, 3-5 juin 1993, Paris, Klincksieck, 1995, p. 527-547.
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um Condorcet11, mas sua aplicação só se faria, e de forma progressiva, dentro de várias décadas. As leis envolvendo a instrução pública, votadas durante a Terceira República, permitem que se responda ao problema apenas parcialmente. Claro que a escolaridade obrigatória garante certa igualdade de oportunidades, ao menos durante os primeiros anos de formação. Mas a escola, no século XIX, tem a função de instruir, provavelmente, mais do que educar. Essa última tarefa ficando de alguma forma com os museus, bibliotecas ou teatros, mas também com movimentos de educação popular.12 Esses últimos são muito ativos no final do século XIX, a exemplo da Ligue de l’Enseignement (liga do ensino), fundada em 1865, na Bélgica, por Charles Buls e lançada na França um ano mais tarde, por iniciativa de Jean Macé. Encontra-se no projeto de educação popular (e mais tarde educação permanente) a mesma vontade de emancipação baseada na leitura (Macé criou em 1864, com Hetzel, o Magasin d’éducation et de récréation, destinado às classes populares), estreitamente ligado ao movimento das bibliotecas e dos museus populares13. É nesse mesmo contexto que algumas universidades populares são organizadas ao final do século XIX14. Durante o período do entre-guerras, o governo do Front Populaire (e o ministro da educação e de belas-artes, Jean Zay) tomou certo número de medidas em favor da educação popular. Várias organizações realizavam conferências, ciclos de estudo, oficinas e cursos. Numerosos clubes (cineclubes, clubes de teatro, ateliês de fotografia) foram implantados nessa época, e apoiados pelos poderes públicos, Mas é, certamente, a criação do Ministério da Cultura, em 1959, e de seu emblemático ministro, André Malraux, o que atrai mais a atenção. Da ação cultural à mediação cultural As ações implantadas por André Malraux visavam primeiro nivelar os problemas de distância entre os cidadãos e a oferta cultural (“Paris e o deserto cultural francês”), notadamente através da rede de Casas de Cultura (centros culturais locais)15. Mas a distância geográfica, assim como as barreiras econômicas, não basta para explicar os problemas de baixa frequência. Uma das figuras mais significativas da ação cultural implantada para aproximar a cultura do conjunto de cidadãos foi o diretor do Théâtre National Populaire, Jean Vilar16. Ele partiu em busca de novos públicos, indo aos comitês de fábrica, multiplicando as colaborações e dialogando com os espectadores. Entretanto, os diferentes níveis de educação, e aquilo que Bourdieu iria teorizar sob o conceito de habitus, marcam práticas culturais radicalmente diferentes. Os museus, assim como os teatros ou a ópera, são frequentados apenas por uma parte limitada da população, obrigatoriamente a mais educada17. É próprio da ação cultural visar numa primeira fase 11 A históiria da mediação cultural foi claramente mais abordada e em profundidade em Chaumier S., Mairesse F., La médiation culturelle. Paris, Armand Colin, 2013. 12 Ver por exemple Lenoir Hugues, Pour l’éducation populaire 1849-2009, Paris, Editions du monde libertaire, 2012. Para uma história geral da educação popular, ver notadamente Léon A., Histoire de l’éducation populaire en France, Paris, Fernand Nathan, 1983. 13 Sobre esses últimos, ver Buls C., Comment doivent être organisés les musées populaires? - Rapport de M. C. Buls, in Congrès International de l’Enseignement, Bruxelles, Office de Publicité, 1880, p. 47-62; p. 680-685. 14 Mercier Lucien Les universités populaires 1899-1914, Paris, Les éditions ouvrières, 1986. 15 Urfalino Philippe, L'invention de la politique culturelle, Paris, Hachette Littératures, 2004. 16 Vilar Jean, Le théâtre, service public et autres textes, Paris, Gallimard, 1986. 17 Bourdieu P. Darbel A., L’amour de l’art. Les musées d’art européens et leur public, Paris, Ed. de Minuit,
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traduzir a política ministerial em ações específicas, desenvolvidas de maneira programada, e, depois de 1968, e principalmente sob a égide dos diretores dos centros de cultura, desenvolver uma verdadeira política de animação cultural em favor dos públicos mais afastados da arte e de suas práticas. A cultura, nesse contexto, é claramente vista menos como um fator de diversão ou como lazer socialmente valorizado do que como um desafio político, procurando a emancipação dos cidadãos e levando-os a ter um papel ativo dentro de sua cidade18. É esse contexto que introduz no mundo dos museus a criação dos ecomuseus e da nova museologia, movida pelas mesmas ideias de desenvolvimento identitário, mas também político19. Essa lógica passa a ter um reconhecimento internacional, através, sobretudo, do trabalho de Augustin Girard, que promove a noção de desenvolvimento cultural no mundo todo20 e que forma de algum modo o contexto da declaração de Santiago do Chile (1972). Assim, a cultura passa a ser vista como fator de desenvolvimento, a ser integrado às políticas públicas, tão necessária quanto as políticas educativas ou de saúde. O termo mediação somente aparece mais tarde, substituindo parcialmente o termo animação cultural, em voga durante os anos 1970. As políticas econômicas, mas também culturais, mudam amplamente durante os anos 1980, tanto na França, com o presidente François Mitterrand e seu Ministro Jack Lang, quanto na Inglaterra ou nos Estados Unidos, confrontados com políticas de forte restrição orçamentária, sobre as quais voltarei a falar. Na animação cultural, ligada à tradição da ação cultural e da educação popular, será a lógica da criação que será privilegiada, com as redes dos espetáculos ao vivo sendo cada vez mais reservadas a eles. A animação cultural, nos melhores casos, conserva um papel secundário, isso quando não é esquecida. O mundo dos museus (a parte aquele dos ecomuseus), na época, continua sendo um pouco alheio a esse fenômeno, e desenvolve serviços pedagógicos ou educativos de maneira relativamente clássica21. Posicionando-se entre a criação e seu público, entre a informação e os receptores, a noção de mediação, que progressivamente se impôs nos anos 1990, parece se apresentar como uma solução intermediária, menos diretamente centrada nos públicos e numa vontade de emancipação, sem rejeitar essa última, mas visando igualmente se inscrever mais diretamente nas estruturas pilotadas – nos museus – por conservadores muito afastados dos princípios da animação cultural. As dimensões da mediação cultural Para tentar abarcar a complexidade cultural e suas múltiplas abordagens, Serge Chaumier e eu22 imaginamos várias figuras de mediador, cada uma delas li1966 ; Bourdieu Pierre, Les Héritiers, les étudiants et la culture, Paris, Ed. de Minuit, 1969. 18 Jeanson F., L’action culturelle dans la cité, Paris, Seuil, 1973. 19 Desvallées A., Vagues. Une anthologie de la nouvelle muséologie, Mâcon, Ed. W. et M.N.E.S., 2 vol, 1992 et 1994. 20 Girard A. (in collaboration with Gentil G.), Cultural Development, Paris, Unesco, 1972; sobre Girard, ver Martin L., L’enjeu culturel. La réfelxion internationale sur les politiques culturelles, Paris, La documentation française, 2013. 21 Livros como o de Danièle Giraudy, que insistam na nova dimensão educativa do museu, são muito raros. GIRAUDY D., BOUILHET H., Le musée et la vie, Paris, La documentation française, 1977. 22 Chaumer S., Mairesse F., op. cit., p. 154.
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gadas a um posicionamento particular, referindo-se a tradições e histórias distintas (fig. 1). Dois eixos determinam de algumas formas as posições decididamente diferentes que podem ser assumidas em matéria de mediação. O eixo “informação-compreensão” evoca, de início, as escolhas que são geralmente feitas de forma quase subjacente. Na maioria das vezes – e aqui pensamos na maioria das visitas guiadas – é a transferência de informações que constitui o desafio principal de numerosas ações de mediação dentro do museu: dar informações sobre a história de uma obra ou sobre uma descoberta científica, e que constituem as inúmeras posições que encontramos tanto nas tradições educativas (a instrução pública ou popular), quanto através das linhas jornalísticas e, principalmente, de vulgarização científica que se desenvolveram desde o século XIX. É, ainda, de certa maneira, essa tendência que encontramos, de forma mais difusa e mais aberta, entretanto, através da corrente da interpretação, tal como é ressaltada na da obra de Freeman Tilden23. A lógica da interpretação se abre aos públicos de maneira mais ampla, da mesma forma que a lógica da tradução: as diferenças de níveis de discurso requerem muitas vezes reais esforços de tradução (tão importantes, às vezes, quanto à passagem de uma língua a outra). Esses dois últimos princípios se baseiam numa maior vontade de conhecimento dos públicos a quem o mediador se dirige, e uma maior atenção para com seu grupo. No extremo oposto do mesmo eixo, é primeiro a compreensão que aparece como prioritária: não se trata de receber informações, mas sim de compreender e, de certo modo, de se transformar a si próprio. É a mesma lógica aplicada por Sócrates, na maiêutica e em grande número de tradições filosóficas – e até religiosas – que procuram o sentido da vida (ou mais simplesmente de um discurso) mais do que a enumeração de fatos. Muitas abordagens pedagógicas (Steiner, Freinet, Montessori ou Decroly) insistem assim bem mais sobre o aprendizado por si mesmo e a compreensão, do que sobre os dados que resultam de uma lógica sistemática de instrução. É, evidentemente, nessa mesma perspectiva que se situa a maior parte dos protagonistas da ação e da animação cultural, de forma igual à dos pioneiros da lógica ecomuseológica. O outro eixo no qual desejamos insistir trata da relação que a mediação mantém com o indivíduo ou o grupo. Um grande número de práticas, de fato, insistem nos resultados individuais, sobre o que se baseia a maior parte das avaliações dos públicos24.A relação consigo mesmo, quer se trate de uma experiência maiêutica, quer se trate de instrução sistemática, constitui muitas vezes a base da maioria das visitas guiadas e de outras práticas de mediação, mesmo em grupo. Entretanto, um grande número de animações ou de visitas visam mais realizar um trabalho com o grupo – deixar as pessoas falarem, se expressarem, se comunicarem, em suma, criar um laço social – visando a apropriação conjunta da cultura e seu compartilhamento, bem mais que um proveito individual imediato25. ��Tilden F., Interpreting our Heritage, Chapel Hill, The university of North Carolina Press, 1957. 24 É notadamente o caso dos pioneiros da avaliação, como H. Shettel e C. Screven. Ao contrário, a abordagem de John Falk aparece como claramente mais globalizante, interrogando os visitantes sobre as razões de sua presença e o modo de aprendizado resultante. Ver Falk J.H., Identity and the Museum Visitor Experience, Walnut Creek, Left Coast Press, 2009. ��Saada S., Et si on partageait la culture? Essai sur la médiation culturellet et le potentiel du spectateur,Toulouse, Edition de l’attribut, 2011.
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Uma perspectiva como essa se inscrevia na base de maioria das ações que visavam, nos anos 1970, desenvolver a cultura como desafio de cidadania e como espaço de referência dentro da comunidade, mas é uma abordagem similar que um bom número de práticas ditas colaborativas e participativas, como as de Nina Simon nos estados Unidos26, procuravam desenvolver. É nesse contexto que o mundo da mediação revela toda sua complexidade, oferecendo uma imagem claramente mais rica que aquela veiculada pela maioria das equipes pedagógicas ou dos serviços de mediação tradicionais. A lógica do marketing poderia ser encarada da mesma forma, a saber, como um mundo claramente mais amplo que o conjunto de operações de promoção do qual muitas vezes se tende a aproximá-lo. Os mundos do marketing A questão do financiamento dos museus é antiga: já estava presente desde as primeiras fases do desenvolvimento da instituição museológica. Porém, muitos museus durante muito tempo puderam se desenvolver sem muito se preocupar com a questão do ponto de vista do financiamento, fosse porque eram financiados pelos poderes públicos (como o Louvre), fosse porque obtivessem algum apoio por parte de ricos mecenas (caso de vários museus criados por iniciativa de algum príncipe ou, mais tarde, por alguns filantropos) Alguns museus, no entanto, criados sem o apoio dos poderes públicos deveriam imediatamente encontrar meios de funcionamento a partir apenas de suas próprias receitas: o 26 Simon Nina, The participatory museum, Museum, s.l., 2.0, 2010 (disponível também no website de Simon: http://www.participatorymuseum.org.
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museu fundado em 1786 por Charles Wilson Peale, nos Estados Unidos, constitui provavelmente o exemplo mais significativo27. Desde o início do século XX, muitos profissionais da área de museus perceberam a importância do domínio das técnicas descritas nas obras de administração, e das possíveis relações que o mundo museológico pode travar com o comércio, notadamente com as grandes lojas de departamentos28. Esse ponto de vista, ainda relativamente minoritário durante o período entre-guerras e no imediato pós-guerra, iria gradativamente se transformar a partir dos anos 1960, quando certo número de gerentes e especialistas em marketing começariam a ser contratados pelos grandes museus americanos. Numa primeira fase, tratava-se essencialmente de gerar operações financeiras ou de planejamento (construção de novos edifícios); mas, a partir do início dos anos 1980, por força da crise econômica, os museus, da mesma forma que a política e economia (logo a cultura), foram levados a procurar novas fontes de renda29.A lógica mercadológica se introduziu com o aparecimento de grandes exposições temporárias, que levaram muitos conservadores de museus americanos a aceitá-las, em razão do grande aporte que elas produziam em termos de público e de finanças. A paternidade dessas mudanças era comumente atribuída a Thomas Hoving, influente e controverso diretor do Metropolitan Museum de 1967 a 1977, que lançou, pode-se dizer, o fenômeno desses blockbusters30. O sucessor de Hoving prosseguiria na lógica dos blockbusters, observando a contragosto que essas megaexposições constituíam o meio mais direto para reduzir os déficits31. Grande número de diretores foram muito céticos quanto à introdução desse novo instrumento de marketing nos museus: “Mesmo em teoria, são inevitáveis os conflitos entre o marketing e as missões dos museus”, observa Ames, que frisa entretanto que a introdução do marketing permitiu o desenvolvimento de exposições temporárias, dos espaços dedicados as atividades paralelas ao museu, e também o aumento do número de visitantes (e de sua satisfação, muitas vezes), além do aumento da renda geral através dos ingressos e das atividades auxiliares. E na ótica do marketing, também o público ficou no centro das atividades do museu32. Mas, alguns desvios começaram a ser apontados quando os espaços comerciais de alguns museus se tornaram, por vezes, maiores que a área dedicada às exposições33. Foi nesse contexto particular que o marketing fez de forma cada vez mais clara a sua entrada no mundo dos museus, primeiro nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, e depois na maioria dos museus europeus, durante os anos 199034. 27 Alderson W.T., (Ed. by), Mermaids, Mummies and Mastodonts: The Emergence of the American Museum, Washington, American Association of Museums, 1992. 28 Pode-se lembrar do americano John Cotton Dana ou do belga Jean Capart. Ver Mairesse F., Le musée hybride, Paris, La Documentation française, 2010. ������ Ver Zolberg V., Conflicting visions in american art museums, in Theory and Society, 1981, p. 103-126; parcialmente traduzido em Zolberg V., Le musée d’art américain : des optiques contradictoires, in Sociologie du Travail, 4, 1983, p. 377-391. 30 Conforti M., «Hoving’s Legacy reconsidered», Art in America, june 1986, p. 19-23, e Hoving T., Making the Mummies Dance. Inside the Metropolitan Museum of Art, New York, Simon & Schuster, 1993. 31 Danilov V., “Corporate sponsorhip of Museums exhibits”, Curator, 31/3, 1988, p. 203-231. 32 Ames P.J., “Marketing and museums: means or master of the mission?”, Curator, 33/1 1989, p.5-15 33 Decker A., “The state of museums: cautious optimism prevails”, Museum News, 1988, p. 23-33. 34 Bayart D., Benghozi P.-J., Le tournant commercial des musées en France et à l’étranger, Paris, Ministère de la culture et La documentation française, 1993.
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Gradativamente, os movimentos contestadores parecem dar espaço à evidência: a lógica do mercado constitui uma abordagem mais favorável ao desenvolvimento do museu e, o marketing, como técnica, aparece, senão sem riscos, ao menos como necessário ao seu desenvolvimento.Vários estudos referentes á sua introdução em organismos de fins não lucrativos aparecem progressivamente, indicando que seria interessante para esses integrar a lógica mercadológica em sua abordagem35. A abordagem de marketing, uma estratégia comum, dimensões múltiplas. “Para muitos, o marketing é tradicionalmente assimilado aos meios empregados por uma empresa a fim de vender aos consumidores os seus produtos (automóveis, detergente) ou seus serviços (bancos, informática), principalmente através da publicidade”. Essa opinião sumária liga-se em parte ao fato de que o próprio marketing passou por uma dupla transformação, da quem nem sempre têm consciência aqueles que usam seu nome: por um lado, o consumidor foi colocado no centro do dispositivo marketing, e por outro, o conceito foi estendido também para o mundo das instituições36”. O marketing, claramente, evoluiu ao longo dos anos e desenvolveu abordagens específicas para um bom número de mercados, notadamente os museus. Sua composição, a despeito de técnicas às vezes por demais sofisticadas, continua entretanto idêntica de forma geral. Grande parte de sua estrutura foi particularmente bem apresentada por um de seus “papas”, Philip Kotler – cujo livro Marketing management ainda é usado em algumas escolas de comércio37. Ainda que o pensamento de Kotler às vezes seja considerado ultrapassado38 (sua carreira começou nos anos 1960), ele apresenta não somente o mérito de ter uma grande clareza, mas também o de ter sido aplicado aos museus, com o próprio autor tendo dedicado um livro a esse tema39. O marketing, no pensamento de Kotler, está diretamente ligado à estratégia global da empresa e integra totalmente essa última (fala-se de marketing estratégico), orientando as atividades a partir de uma visão baseada no estudo dos consumidores (ou do público) e suas necessidades. Os grandes desafios do museu, nessa perspectiva, articulam-se em torno de três pontos: a definição de suas missões, o conhecimento de seu público e a busca de financiamentos. O marketing – literalmente: “colocação no mercado” – insere-se primeiramente dentro de uma lógica de financiamento, de desenvolvimento do público e de participação no mercado. O primeiro princípio, que se liga aqui ao mundo da nova museologia e da mediação, se apoia no conhecimento dos públicos (ou de visitantes potenciais). É na direção dele que convém se voltar, a partir de estudos sobre o público (ou sobre estudos de mercado). Segundo essa perspectiva, não existe um único público, mas um número muito grande de segmentos específicos, cujas possibilidades de apelo (a partir da idade, do nível social ou da educação, dos estilos de vida e dos hábitos de consumo, da distância geográfica 35 Kotler P., Adreansen A., Strategic Marketing for Nonprofit Organizations, Englewood, Prentice Hall, 1987 (3rd ed.); Anthony R.,Young D. Management Control in Non Profit Organizations, Boston, Irwin, 1994 (5th Ed.). 36 Tobelem J.-M., “De l’approche marketing dans les musées”, in Publics & Musées, 2, 1992, p. 50. 37 Kotler P.,Keller K., Dubois B., Manceau B., Marketing Management. Paris, éd. Pearson Education, 2012 (14e éd) 38 Smithee, A., “Kotler is dead!” European Journal of Marketing, 31, 3/4, 1997, p. 317-325. 39 Kotler N., Kotler P., Museum Strategy and Marketing, San Francisco, Jossey-Bass Publisher, 1998.
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ou das línguas utilizadas) são muito diversas. Se quisermos atrair esses diferentes segmentos, convém desenvolver propostas muito diferentes, mas é preciso igualmente aprender a se concentrar em determinados públicos, já que o museu não pode (fisicamente) acolher todos os segmentos de maneira perfeita. O posicionamento do museu a esse respeito deve ser claro: ele deve escolher entre um certo número de públicos e definir posteriormente um posicionamento bem identificado ligado a eles. Produtos, preço, distribuição, promoção Depois da fase de posicionamento estratégico do museu, a abordagem de marketing declina sua estratégia em número de políticas específicas, ligadas à definição do produto, à sua tarifação, à distribuição da oferta e à sua comunicação. Por muito tempo, resumiu-se esse conjunto de protocolos pela noção de marketing-mix, e de políticas de “4P” (em inglês: product price, place and promotion), Desde então, outros “P”s foram adicionados – como pessoal e package, a fim de ressaltar o papel da força de venda e as políticas de marca e de embalagem, cada vez mais importante para se compreender o ato da compra de um bem pelo consumidor. Os produtos, dentro do museu, são constituídos por três difundidas experiências – exposições permanentes e temporárias, programas e acontecimentos específicos, instrumentos de apoio às visitas (autoguiadas, folhetos da exposição, catálogos), aos serviços oferecidos (lanchonete, filmes) e às lembranças propostas na loja (dos cartões postais às cópias de objetos, passando por gravatas, bijuterias e serviços de chá). Para cada segmento de público (ou de mercado) selecionado convém adaptar a oferta de produtos, em função de suas necessidades: percursos especializados ou folhetos adaptados para as crianças, oferecer visitas para pais e filhos, história em quadrinhos e lembranças da lojinha. A política de preços constitui igualmente uma dimensão fundamental da aplicação do marketing no museu40, quer se trate do preço de entrada no museu, ou do preço dos diferentes serviços e produtos propostos, cada um deve ser adaptado de maneira a poder ser aceito pelos públicos selecionados, sempre cuidando de otimizar as receitas. Convém lembrar a importância desse último desafio: foi porque o museu se encontrou numa situação em que precisava gerar novos recursos próprios que lhe pareceu desejável desenvolver uma abordagem de marketing... A distribuição (place) implica em que os produtos possam ser apresentados e comprados pelos visitantes, o que significa, no caso do museu, que o visitante potencial deve poder aceder ao museu e às experiências e serviços que lhe são propostos. A reflexão sobre os horários de visita, assim como sobre a localização do museu (ou dos meios para chegar a ele: horários de ônibus, vagas de estacionamento, sinalização) participam desde então dessa política especial. A promoção, em seu sentido amplo, inclui além das ações de promoção restritas (o termo significa a redução temporária do preço de um produto), o conjunto das ações de comunicação do museu, quer se trate das diversas campanhas do serviço de relações públicas (organização de vernissages e relações com a imprensa) quer da aplicação de políticas de comunicação através da pu40 Mairesse F. Le droit d’entrer au musée, Bruxelles, Labor, 2005.
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blicidade (cartazes, imprensa, comerciais de TV e rádio, anúncios na internet), mas também a presença nas redes sociais (Facebook, Twitter, políticas de buzz ou de marketing viral). Esse conjunto constitui um mundo particularmente complexo, da mesma forma que a mediação, não há uma maneira de fazer marketing, nem um marketing museológico específico, mas sim um conjunto de medidas muito diferentes, com uma variedade quase infinita de produtos e serviços adaptados às necessidades dos públicos, tanto no nível de suas particularidades físicas quanto de seus preços, de sua implantação e de sua promoção: não se faz a comunicação sempre da mesma maneira, não se apresentam os mesmos produtos nas mesmas horas e nos mesmos locais a crianças pequenas, estudantes universitários, operários ou banqueiros. A ideia de que o marketing se resume a mais publicidade e a mais produtos de massa (exposições blockbusters sobre temas muito populares), se revela caricatural, pois ela depende das escolhas de posicionamento de cada museu, em função dos públicos nos quais ele escolheu se concentrar. Pode-se assim encontrar museus extremamente frequentados por determinados públicos, muito específicos (museus para crianças, museus universitários, museus profissionais, museus comunitários), e claramente menos conhecidos do grande público em geral. Ferramentas em comum, uma abordagem similar? Se durante os primeiros anos de sua implantação, o marketing foi muito desacreditado pelos profissionais dos museus41, a corrente de contestação deu amplo espaço para o reconhecimento institucional. « Impensável, ainda alguns anos atrás, esse livro, hoje, é indispensável” escreveu Pierre Rosenberg, antigo diretor do Louvre, a respeito da obra de Jean-Michel Tobelem, especialista em marketing e gestão, intitulado le nouvel âge des musées (a nova era dos museus)42. O marketing aparece desde então como uma ferramenta a serviço do museu. Uma ferramenta neutra, cujos benefícios ou estragos dependerão em última análise daquele que a utiliza, como uma faca que pode servir na cozinha, ou para matar um cônjuge... Uma questão de equilíbrio? Nessa perspectiva, cabe à diretoria, numa abordagem ligada à estratégia do museu, refletir sobre o conjunto dos serviços propostos pelo museu e privilegiar alguns deles em relação a outros, sabendo que certos produtos contribuem mais diretamente aos objetivos que outros (a restauração de coleções versus uma loja de museu), mas que alguns desses, entretanto, constituem um custo que não pode ser repassado ao público, enquanto outros podem trazer receita e acabar financiando outras atividades. Tal abordagem foi notadamente desenvolvida por Kerstie Krug, que imaginou de forma global, o conjunto das atividades do museu a partir de uma visão ligada a uma carteira de atividades, na qual algumas delas contribuíam para os objetivos e tarefas e, outras, mais especificamente contribuíam para os financiamentos: a política museológica, nessa 41 Ver por exemplo, além dos artigos citados, Foster R.,“Reconciling museums and marketing”, in Museums Journal, 88, 3, dec. 1988, p. 127-130. 42 Tobelem J.-M., Le nouvel âge des musées, Paris, Armand Colin, 2010 (2ème éd.), p.5.
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perspectiva, visa encontrar o melhor equilíbrio entre as diferentes atividades, a fim de se inscrever nas tarefas do museu, mas também gerer renda suficiente para tentar cumpri-las.43 (fig. 2).
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Nesse ponto, é interessante ressaltar os pontos comuns entre a abordagem de marketing e a de mediação nos museus. O ponto central que liga as duas reside certamente em sua relação com o público: tanto para o mediador quanto para o especialista em marketing, os museus são concebidos primeiramente para o público, e não para os acervos ou para a preservação do patrimônio, ou ainda para desenvolver pesquisas – o que, aqui, as distingue da abordagem do conservador do museu 44. Essa lógica aproxima de certo modo os partidários da nova museologia, que procuram inverter a relação do museu com o objeto, a fim de desenvolver sua relação com a sociedade, mais precisamente com a comunidade (os usuários) A lógica mais liberal, tal como pode ser desenvolvida a propósito dos museus, indica praticamente a mesma coisa: são os consumidores (o público) que sabem exatamente o que lhes convém, e por isso é preciso lhes oferecer a possibilidade real de dar sua opinião – suprimindo as subvenções, para colocar o 43 Krug K., “Profit or prostitution: porfolio analysis for museum marketing”, MPR News, 1992, 2, p. 13-19. A figura apresentada é dada por Mensch P. van, Museology and management: enemies or friends? Current tendencies in theoretical museology and museum management in Europe, in E. Mizushima (red.), Museum management in the 21st century (Museum Management Academy, Tokyo 2004), p. 3-19. 44 A história dos dois segmentos, em contrapartida, é muito diferente no plano cronológico: os departamentos de mediação foram essencialmente formados, para os primeiros, a partir do fim do século XIX, e mais amplamente no depois da Segunda guerra mundial. A história da introdução do marketing nos museus remonta, como observei acima, ao final dos anos 1960 e se desenvolveria somente vinte anos depois.
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museu apenas na lógica do mercado, como desejariam alguns economistas muito liberais45. Segundo essa mesma lógica, a mediação, assim como o marketing, baseia-se em duas ferramentas similares, visando melhor conhecer seu público. Os estudos sobre os visitantes, num primeiro tempo, ficam essencialmente ligados a questões referentes ao museu como sistema de comunicação ou de educação, pretendendo provar, principalmente, que o público pode realmente aprender alguma coisa nos museus46. Progressivamente, entretanto, esse tipo de estudo aparece também como um meio muito valioso de conhecer o público e seus hábitos de consumo, sua disposição a pagar e sua apreciação dos serviços oferecidos a ele, em suma, uma ferramenta a serviço da administração, tanto quanto, senão mais, que a da mediação47. A própria noção de comunicação, como vimos, aparece de forma central tanto na mediação quanto no marketing. A mediação se apresenta obrigatoriamente, vimos (mas também já evocamos que se trata de apenas uma de suas dimensões) como a possibilidade de difundir uma informação entre o público. Certamente, não se trata dos mesmos tipos de comunicação, poderão dizer: enquanto a mediação comunica seus conteúdos, o marketing se posiciona no que oferece o conjunto do museu. Mas não é raro, nas pequenas infraestruturas, que as mesmas pessoas se ocupem conjuntamente da mediação e das relações públicas, pois convém forçosamente a esse serviço, ligado com a imprensa ou a certo número de tomadores de decisão, possuir um conhecimento do museu, de seu conteúdo e de seu funcionamento que, geralmente, nem sempre um especialista em marketing possui. Duas perspectivas opostas Entretanto, convém insistir nas abordagens radicalmente diferentes da mediação e do marketing, assim como nas relações de força que progressivamente se impuseram a favor desse último. A abordagem da mediação, quer seja orientada para os conteúdos, quer orientada para a relação com os visitantes, baseia-se na lógica da evolução do público, trata-se para esse de desenvolver seus conhecimentos, sua maneira de refletir ou seus modos de comunicação com o resto do grupo, em suma, de formar um cidadão para desempenhar um papel ativo dentro da sociedade48. Muito claramente, o mediador, apresente-se ele como um clássico guia-conferencista ou de maneira mais social como um animador de rede, adepto da participação e das ações coletivas, é primeiramente guiado por uma vontade de emancipação ou de expansão pessoal do grupo. Segundo esses princípios, o mu45 Grampp W.D., “A colloquy about art museums: economics engages museology”, in Ginsburgh V., P.-M. Menger (Ed.), Economics of the Arts - Selected Essays, Amsterdam, Elsevier, 1996. 46 Samson D., Schiele B., L’évaluation muséale, publics et expositions. Bibliographie raisonnée. Paris, Expo-Media, 1989. 47 Loomis Ross.J., Museum Visitor Evaluation: New Tool for Management, Nashville, American Association for State and Local History, 1987; Daignault L., L’évaluation muséale, Savoirs et savoir-faire, Québec, Presses de l’Université du Québec, 2011. 48 Nesse nível, relativamente neutro, é possível entrever papéis realmente muito diferentes: segundo a abordagem mais em voga nos anos 1960, esse papel político era claramente ligado a reivindicações próximas das ideias socialistas ou marxistas; mas podem também aparecer, segundo a ótica liberal, como um papel de consumidor e cidadão responsável, que a partir de uma melhor formação formulará as decisões mais aproveitáveis para a sociedade.
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seu aparece claramente, seja ele um templo ou um fórum (segundo a expressão de Cameron49), como um lugar de transformação. Essa visão, no plano teórico, e também no prático, opõe-se parcialmente à do conservador de museu ou à do pesquisador. Mas a posição dos serviços de mediação ou dos serviços pedagógicos, na maior parte do tempo, nunca foi predominante nos museus50. Esse não é o caso do marketing e, geralmente, do setor da gestão e administração do museu, cujo papel se torna cada vez mais decisivo para o que concerne a orientação do estabelecimento. Na ótica do marketing, em contrapartida, as ações de mediação são vistas primeiramente como um produto, destinado a um mercado específico e segmentado, mediante pagamento (a gratuidade sendo reservada àqueles que não possam pagar, e é nessa perspectiva que os poderes públicos devem intervir)51. Em suma, a ação da mediação certamente não parece prioritária aos olhos do marketing, sobretudo se ela se revelar deficitária... Em compensação, o interesse da mediação para o público, assim como o necessário conhecimento dos museus, parece uma vantagem que convém valorizar. Também não espantoso ver se desenvolverem departamentos que se ocupam conjuntamente da mediação e da comunicação. Nesse sentido, não é absurdo inquirirmos sobre a diluição das ações de mediação em meio às ações do marketing: se as duas se interessam pelo público e procuram desenvolver ferramentas comuns, encarando a comunicação como um dos suportes essenciais de suas atividades, talvez isso se trate, de certa forma, das duas faces de uma mesma atividade. Se aparentemente o marketing e a mediação parecem se encontrar, sua aparente neutralidade (são sempre apenas técnicas, dependentes de quem as utiliza) esconde orientações radicalmente opostas. A história dessas duas tendências, aliás, é diferente: enquanto uma se baseia numa das funções clássicas do museu (a comunicação e, notadamente, a educação), a outra se apresenta primeiro como uma auxiliar suscetível de melhorar o funcionamento geral da instituição, sem, no entanto, se apresentar como uma técnica museológica específica. Os profissionais da mediação e os do marketing passam por formações geralmente muito diferentes: os primeiros vêm de linhas disciplinares (história da arte, ciências humanas, em função do perfil do museu) ou de formações ligadas diretamente à animação cultural ou à mediação cultural, enquanto os do marketing vêm essencialmente das escolas de comércio. “O que constitui [...] uma clivagem irredutível é o choque entre uma concepção mercantil, que se baseia em relações sociais colocados como relações de produção e consumo, e uma concepção comunicacional, que se baseia em relações sociais colocadas como comunicações sociais”, resume Joëlle Le Marec52. Deve-se reconhecer que desde sua introdução, o marketing não cessou de se desenvolver nos museus, a ponto de se constituir, dentro dos polos administrativos, uma força cada vez mais influente na organização geral, assim como na reflexão sobre as tarefas e o desenvolvimento das estratégias dos museus. 49 Cameron D., “Museum, a temple or a forum”, Curator, 14, march 1971, 11-24. 50 Peyrin A., op. cit. 51 Também desenvolvi esse tema na conclusão do livro sobre a mediação cultural (op. cit.), com Serge Chaumier. 52 Le Marec J., Publics et musées – la confiance éprouvée, Paris, l’Harmattan, 2007, p. 105.
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Poderíamos supor que onde o marketing avança a mediação recua (e vice-versa); e logo, que o desenvolvimento do primeiro induz a diminuição do segundo. A priori, nada é menos certo: os departamentos de mediação continuam, senão a se desenvolver53, pelo menos a constituir um polo importante do funcionamento de um museu, provavelmente levado a ter um papel mais importante nos anos futuros, num contexto em que o museu se apresente cada vez mais ligado a seus públicos e cada vez menos ligado à pesquisa sobre coleções e às exposições permanentes54. Seria provavelmente mais exato enxergar através do marketing e da mediação o prosseguimento de uma mesma lógica – unir o museu ao público – mas através da aplicação de modos de financiamento (e também, como ressalta Joëlle Le Marec, de relações de produção) muito diferentes, ou seja, unir os mecanismos do mercado e a lógica pública. Convém lembrar a influência crescente do modelo econômico anglo-saxão no mundo, que se traduz antes de tudo pela preponderância da lógica de mercado (ou capitalista). O neoliberalismo, tal como surgiu depois da Segunda Guerra mundial55, e que se impôs a partir do final dos anos 1970, notadamente na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, transformou o mundo consideravelmente56. No espaço de uma geração, a relação de forças aparente e relativamente estável entre o modelo comunista soviético, baseado na economia planejada; os princípios capitalistas da economia de mercado, e o modelo social-democrata da Europa Ocidental, mudou totalmente. A queda do muro de Berlim e a imposição do bloco soviético levaram ao desenvolvimento acelerado de políticas de mercado liberais durante os anos 1990, principalmente a través do estabelecimento da União Europeia. Observa-se assim, no conjunto do mundo ocidental, uma diminuição progressiva das políticas públicas, tão negadas pela Escola neoliberal de Chicago (então dominante) ou pela Escola vienense, em favor do crescimento da liberdade dos mercados, território do homo œconomicus cuja busca da maximização da utilidade aparece como o motor do conjunto do sistema. Essas mutações vão produzir, por sua vez, transformações consideráveis no mundo dos museus. De certa maneira, a mudança do modelo econômico iria gradativamente transparecer através da lógica museológica: a virada comercial dos museus57, que se dá nessa época, induz a metamorfose progressiva do visitante em consumidor, e a do museu em unidade econômica a influenciar o devir de sua região. Uma transformação radical do museu De certa maneira, esse posicionamento do visitante, e o dos profissionais da instituição diante dele, induz uma transformação absolutamente radical do museu. Ainda que, ao final, o produto (a exposição) apareça como idêntica, as 53 Atualmente, poderíamos observar que é o conjunto do sistema museológico que marca um tempo de parada. Ver por exemple Vital, C., “Le Livre blanc des musées de France”, Musées et collections publiques de France, numéro spécial, 260, 3, 2010, p. 1-127 ou Museums Association, Museums 2020 Discussion Paper, London, Museums Association, 2012. Disponible sur Internet: http://www.museumsassociation.org/ download?id=80653. 54 Black Graham, Transforming Museums in the Twenty-first Century, London, Routledge, 2012. 55 Dixon K., Les évangélistes du marché, Paris, Raisons d’agir, 2008. 56 Harvey D., A brief History of Neoliberalism, Oxford, Oxford University Press, 2005. 57 Bayart D., Benghozi P.-J., Le tournant commercial des musées en France et à l’étranger, Paris, Ministère de la culture et La documentation française, 1993
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Comunicação, mediação e marketing
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razões pelas quais ele foi concebido são totalmente diferentes: por um lado, a fim de emancipar o visitante; por outro, para fazer caixa. Essas razões têm uma influência direta nas tarefas dos museus, e podem, com mo tempo, transformar totalmente o conjunto de suas atividades – e, logo, das próprias tarefas – que poderão desde então serem voltadas para a ótica de gerar mais receita. Como se pode ver a propósito da carteira de atividades do museu (fig. 2), muitos projetos que não geram receita financeira, tais como a preservação das coleções, a pesquisa fundamental ou o inventário do acervo, além das atividades não rentáveis em matéria de mediação cultural (dirigidas ao público de baixa renda) poderiam ao final de um tempo ser totalmente abandonados, em proveito de atividades ligadas à animação potencial, dirigidas a categorias da população suscetíveis de participar do financiamento do museu. Foi, de fato, esse o movimento que pudemos observar nos últimos vinte e cinco anos, em detrimento, sem dúvida, de algumas funções de preservação de pouca visibilidade, como a manutenção dos inventários ou da gestão das coleções58. Essa transformação não pode ser feita de maneira brutal: a busca de financiamento leva ao recrutamento de especialistas formados em marketing ou em administração, cuja missão é em geral totalmente condicionada pela necessidade de desenvolver ações geradoras de lucro (ou destinada a reduzir os custos)59. O lugar cada vez mais preponderante dos administradores nos museus, a esse respeito, induz progressivamente uma mudança das relações de força em seu interior (em favor deles), assim como a uma inversão das prioridades, em detrimento do conjunto das funções não-lucrativas. Essa transformação pode levar vários anos, ao sabor dos sucessos gerados pelo desenvolvimento de novos recursos financeiros (exposições temporárias, etc.), cuja utilização será mostrada como a principal vantagem dessas atividades lucrativas e a possibilidade (a única) de realizar certo número de despesas improdutivas (aquisições, pesquisas, etc.). Progressivamente, a esperança de lucros passa a acompanhar todos os discursos com alvo nas decisões sobre as ações do museu, bloqueando cada vez mais frequentemente as ações menos lucrativas. Certamente, esse movimento não aparece de maneira tão brutal, e os museus, mesmo os mais diretamente dirigidos por uma abordagem de marketing tomam o cuidado de conservar algumas ações de mediação custosas, contanto que elas possam ser valorizadas no plano mediático. A mediação, nessa perspectiva, pode ter dois tipos de evolução: a primeira poderia ser sua permanência ou seu declínio em favor de atividades mais diretamente geradoras de renda, como as exposições temporárias, etc. a segunda seria seu desenvolvimento, seja em favor do público com recursos suficientes para financiar as atividades (classes mais altas da população), seja em favor de grupos carentes, mas cujas atividades poderiam ser custeadas por associações ou programas filantrópicos ou sociais (ajuda à locomoção para portadores de deficiência física, programas de inclusão social, etc.). O resultado, aparentemente continua sendo: o museu se voltaria, assim, para todos os públicos, mas sua ação se deteria imediatamente, logo que os respectivos financiamentos desaparecessem. 58 Ver (na França) o relatório de Richert P., Rapport d’information fait au nom de la commission des
affaires culturelles par la mission d’information chargée d’étudier la gestion des collections des musées, Paris, Sénat de France, n°379, session extraordinaire de 2002-2003. Consultable sur Internet: www.senat.fr 59 ZOLBERG V., Le musée d’art américain: des optiques contradictoires, in Sociologie du Travail, 4, 1983, p. 377-391.
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Mas se o sonho do marketing, de desenvolver uma oferta personalizada a cada consumidor, tomar a cada dia uma dimensão mais concreta, é importante ver que isso acontece em detrimento de uma visão de sociedade que supõe o intercâmbio e as relações como um motor fundamental da expansão da vida em comum.“There is no such thing as society60”, já observava Margareth Thatcher… Conclusões A apresentação do museu como sistema de comunicação é suscetível de induzir o leitor em erro. Claro que as funções do museu incluem a preservação, a pesquisa e a comunicação, essa última integrando a exposição, a interpretação, a mediação, etc. Através da mediação cultural abre-se um mundo muito vasto e que não se resume de forma alguma a umas poucas ações de difusão de conhecimento dirigida ao público, como as visitas guiadas clássicas fazem parecer, mas antes abrange uma grande quantidade de ações que visam integrar o museu dentro da sociedade, como instituição ligada ao aprendizado ao longo da vida, como um instrumento de difusão dos conhecimentos, mas também como fator de acesso aos conhecimentos e ferramenta de inclusão social, para todos os públicos, dos mais próximos aos mais afastados dos museus. O marketing, quando geralmente analisado dentro de um contexto museológico, aparece ao lado das atividades de organização e gestão do museu. Essa situação é claramente mais complexa, pois o marketing também se posiciona no plano da comunicação do museu, sempre influindo diretamente na maneira de dialogar com o público. Poderíamos arguir que são dois níveis de diálogos muito diferentes que agem juntos. Os dois níveis, entretanto, não cessam de se justapor e de interferir, e o que se vê nos últimos vinte anos é antes uma luta entre duas correntes opostas, cujo desfecho influencia inexoravelmente as missões do museu. O visitante aparece igualmente como um consumidor; e nada é mais discutível. Alguns consumidores gozam obrigatoriamente de um poder aquisitivo maior ou menor que outros. Mas o visitante corre o risco de não mais ser visto como parte constitutiva do público, instância de decisão e de reflexão dentro do processo democrático61, para se tornar apenas um consumidor isolado entre outros, identificado apenas em função de seu poder aquisitivo. Essa inversão não deixa de incidir no papel do museu dentro da sociedade, e tampouco de incidir no futuro da democracia.
Artigo recebido em dezembro 2015. Aprovado em março 2015
60 Entrevista de 23 de setembro de 1987, disponível na Internet: http://www.margaretthatcher.org/document/106689 61 Zask J, “Le public chez Dewey: une union sociale plurielle” Tracés, 15 | 2008.
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MUSEUS DE HISTÓRIA, PRODUÇÃO DE CONHECIMENTOS E COMUNICAÇÃO: QUESTÕES PARA DEBATE1
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RESUMO: O artigo se propõe a contribuir para o debate sobre os papéis sociais e culturais que os museus podem desempenhar hoje, abordando, particularmente os museus de História. O objetivo não é o de apontar respostas para as inúmeras indagações que envolvem o trabalho de pesquisa e de inserção social de instituições seminais para a ciência, como são os museus, mas, sobretudo, indicar a complexidade da trajetória histórica desses lugares de memória e de cultura. PALAVRAS-CHAVE: museus de História, produção de conhecimentos, difusão do saber
ABSTRACT: This article aims to contribute to the debate on the social and cultural roles that museums can play today, addressing museums of history in particular. The goal is not to provide answers to the many questions surrounding the research work and social inclusion of seminal science institutions such as the museums, but above all to demonstrate the complexity of the historical trajectories of these places of memory and culture. KEY WORDS: museum of history; production of knowledge; diffusion of culture
1 Esse texto, com alterações, foi apresentado como Conferência Magna, no evento “Museos y Patrimonio Cultural”, realizado em junho de 2014, na Universidade Andina Simon Bolívar, Quito, Equador. 2 Museu Paulista/USP
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Introdução No momento atual consolida-se entre os historiadores uma reflexão sistemática a respeito da história da historiografia e, sobretudo, da escrita da História. Como os historiadores concebem sua tarefa, por quais critérios reconstituem o passado que se propõem a investigar? Quem fala, para quem fala, como constrói sua narrativa e por que ? Para introduzir a discussão e indicar sua complexidade, lembro observações de François Dosse e Alfonso Mendiola. (...) François Dosse em su libro L´ Histoire ou le temp refléchi, siguiendo a Pierre Nora, sustiene que la investigación histórica sólo será posíble daqui em adelante se se vuelve reflexiva, o dito de outra manera se assume el giro historiográfico: ‘El historiador de hoy consciente de la singularidade de su acto de escribir, busca observar a Clio del outro lado del espejo, desde uma perspectiva essencialmente reflexiva. De esto surge un nuevo imperativo categórico que se expresa por médio de uma doble exigência: por um lado, la de uma epistemologia de la historia concebida como una interrogación constante de los conceptos y nociones utilizados por el historiador del ofício y, por el outro, la de una atención historiográfica a los análises desarrollados por los historiadores de ayer. Por lo tanto se ve dibujarse la emergencia de un espacio teórico propio de los historiadores, reconciliados com su própio nombre y que polariza la operación histórica sobre lo humano, sobre el actor y sobre su acción’. Este nuovo imperativo categórico ...se puede únicamente enfrentar com êxito si se parte de uma teoria da historia que introduzca el historiador...en la construcción de lo conocimiento. Es decir sólo con una epistemología que recupere el narrador em su narración será posíble pensar el passado como construcción y no como algo dado...( MENDIOLA, 2000, p. 181-208)
Desde a antiguidade greco-romana foram criadas tradições da escrita da História por intermédio de escolhas, esquecimentos, deslocamentos, reformulações. Assim, não há uma linearidade entre as origens dessas tradições, tampouco o conceito de História designa desde então o mesmo objeto, a mesma prática e os mesmos posicionamentos. Se o processo histórico não é evidente, também não são evidentes os modos pelos quais foi interpretado, registrado, contado. Ao lado dessa linha de questionamentos, outra poderia ser formulada – conta-se a História e registram-se os processos históricos não apenas por meio de palavras. Há inúmeros outros suportes, entre os quais se encontram os registros iconográficos, por exemplo, pinturas, esculturas, fotografias e, em particular, espaços tridimensionais especialmente destinados a conservar e expor evidências da História e do passado, os museus. O que ajuda a compreender versos escritos pelo filósofo francês Paul Valéry no início do século XX: Coisas raras ou coisas belas, Aqui sabiamente arrumadas Instruindo o olho a olhar Como jamais ainda vistas Todas as coisas que estão no mundo. ( PRADEL, 1961)
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Museus de História, produção de conhecimentos e comunicação: questões para debate
Essas palavras, ainda que irônicas, pois Valéry foi um crítico dos museus em sua época, especialmente dos museus de arte, apontam três questões mais gerais que têm preocupado os historiadores e os museólogos nos últimos 30 anos pelo menos:
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1.Os modos de seleção, descarte e classificação dos exemplares da natureza e da cultura humana que merecem lugar reservado em museus, bibliotecas e arquivos. Interrogam-se os fundamentos desse processo de seleção e de definição daquilo que é e será patrimônio a ser preservado. 2.A compreensão do espaço museológico como templo, lugar sagrado, que reúne não só o que merece estudo e preservação, mas aonde se associam coleções das mais variadas e representações conceituais e físicas do universo, como se os museus pudessem abarcar tudo o que fizesse sentido para as ciências. 3.O museu como lugar por excelência do desenvolvimento, por parte do público em geral e de especialistas, das relações entre visão e conhecimento. Local da apresentação visual de coleções, de concepções e representações do saber mas, sobretudo, espaço destinado a ensinar o que ver para conhecer, estabelecendo-se uma articulação profunda entre os sentidos e a percepção/ compreensão do real na sua dimensão mais imediata. A palavra museu, como amplamente divulgado, deriva da expressão grega « museum », lugar de estudos, sob a proteção das musas, entre as quais Clio, a musa da História. As musas, donas da memória absoluta, imaginação criativa e presciência, com suas danças, músicas e narrativas, ajudavam os homens a esquecer ansiedades e tristezas. Era um local privilegiado, onde a mente repousava e onde o pensamento profundo e criativo, liberto dos problemas e aflições cotidianos, poderia se dedicar às artes e às ciências. A preocupação era discutir e ensinar todo o saber existente. Daí a relação que foi estabelecida entre o museu e a ideia de compilação exaustiva, quase completa, sobre um tema. (SUANO, 1986, p. 10-11). Durante o movimento da Ilustração, alguns de seus principais representantes, a exemplo de Diderot e D´Alembert, definiram o museu da seguinte forma: Museu, lugar na cidade de Alexandria, no Egito, onde se reunia, a expensas do público, um certo número de homens de letras destacados por seus méritos, como se reuniam em Atenas as pessoas que prestaram serviços à república. O nome das musas, deusas e protetoras das belas artes, era incontestavelmente a origem do nome museu....A palavra recebeu depois um sentido mais amplo e hoje se aplica a todos os logradouros onde estão acumuladas as coisas que têm relação imediata com as artes e as musas.... (Diderot e D´Alembert)
As palavras dos enciclopedistas se referem a alguns dos fundamentos da cultura antiquária, expressa, nos gabinetes de curiosidades dos séculos XVII e XVIII. Ali, o passado, presentificado em objetos, vestígios materiais e imagéticos, de variada natureza, podia ser visualizado, memorizado e transmitido (GUIMARÃES, 2007, p.11-30). Os museus, tal como passaram a ser conhecidos a partir do século XIX, diferenciando-se dos gabinetes, exteriorizaram outra compreensão sobre o tempo: o passado estava distante do presente e somente uma reflexão científica,
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presidida por procedimentos disciplinares que a legitimasse, poderia torná-lo visível e útil à ação dos homens. Foi dessa perspectiva que se ergueu, naquela época, a crítica aos antiquários reduzidos a papel amadorista e diletante, o que ajudou a escamotear os nexos entre a cultura histórica que acalentavam e a nova que tomava corpo, fazendo com que o passado-memória e o passado construído como História aparecessem separados e em oposição (GUIMARÃES, idem, ibidem). Apesar de a palavra atravessar séculos, os museus de hoje são instituições específicas e ocupam lugar também específico no mundo da cultura. Suas características mais gerais são: o trabalho permanente com o patrimônio cultural, em suas diversas manifestações; a presença de acervos e exposições colocados a serviço da sociedade com o objetivo de propiciar a ampliação do campo de possibilidades de construção identitária, a percepção crítica da realidade, a produção de conhecimentos e oportunidades de lazer; e a utilização do patrimônio cultural como recurso educacional, turístico e de inclusão social. Entretanto, essa definição é muito formal e apanha apenas a dimensão mais superficial do museu. Como apontou Michel van Praët, os museus são entidades públicas marcadas, desde sua origem no século XIX, por tensões e contradições internas às comunidades de sábios e cientistas. Os museus continuam a constituir modelos tanto para estudar as tensões e negociações em curso na comunidade científica como as que ocorrem entre esta e a sociedade contemporânea, quer do ponto de vista da história das ciências quer das instituições culturais. (PRAËT, 2009).
O ponto de partida de minhas considerações é, portanto, o reconhecimento de que os museus, ao longo de sua história, vêm atuando num universo de forças políticas, protagonizado por diversos agentes que partilham com eles intenso debate em torno da ciência e da cultura. Sujeito e objeto de disputas em torno do passado e de seus usos, os museus se encontram em contínuo movimento de legitimação e reflexão. Compreendê-los como lugares de memória e lugares de geração de conhecimentos inovadores representa considerá-los como espaços físicos e imaginários nos quais se entrelaçam a preservação de patrimônios, o estudo e abordagem de temas e questões específicos e responsabilidades sociais e culturais que somente instituições como essas podem assumir, sejam ou não museus universitários. Nesse sentido, os museus são essenciais para o mapeamento das relações, controversas e movediças, entre a sociedade contemporânea, a ciência, de forma geral, e a História e suas configurações, em particular. Como observou Dominique Poulot (POULOT, 2003), os vínculos entre as representações do passado expostas nessas instituições e o debate historiográfico contemporâneo são muito tênues e mesmo contraditórios, pois é evidente o descompasso entre as imagens ali projetadas e o desenvolvimento da pesquisa nos vários campos de conhecimento histórico. Mas, as dissonâncias se apresentam, também, entre aquilo que os museus oferecem em termos da “presentificação da história”, para usar uma expressão de Stephan Bann (BANN, 1994) e as demandas do público visitante que muitas vezes espera encontrar em seu espaço a “história que realmente aconteceu”.
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Que princípios e práticas sustentam as “visões do passado” ali expostas? Por que ainda conseguem exercer fascínio sobre parcela considerável do público visitante? Em que medida os museus de História poderiam se transformar em lugares de reflexão tanto sobre o ofício do historiador e a escrita da História quanto sobre a sociedade atual e suas relações com patrimônios históricos e culturais? Desde logo, é importante esclarecer que pretendo, nos limites desse artigo, apenas propor alguns encaminhamentos sobre essas interrogações, sem outra pretensão a não ser contribuir para a discussão sobre os significados dos museus na atualidade e os papéis sociais e culturais que pode desempenhar. Além disso, minhas considerações estão fundamentadas em experiência desenvolvida junto ao Museu Paulista da Universidade de São Paulo. 1 Memória, Imaginação, História I. Os museus de História estão articulados não só ao movimento de configuração do campo disciplinar da História como ao que se denominou “história nacional”. Essas instituições, tal como aprendemos a conhecê-las, são criações históricas, inscritas no processo de configuração da sociedade burguesa e da cultura sobre a qual essa sociedade se ergueu.As relações de poder nessa sociedade, cuja emergência coincide com as revoluções dos séculos XVIII e XIX, estão fundamentadas em sólido saber, em robusta ciência, pautada na observação, na experimentação, nas classificações e na criação de instrumentos físicos e conceituais para o exercício da dominação sobre a natureza e sobre formações sociais, a exemplo daquelas que foram colonizadas, interpretadas à época, como opostas, refratárias ou “inferiores” aos valores e padrões ocidentais. Os museus exerceram papel essencial no desenvolvimento, acumulação e irradiação da ciência moderna e dos seus desenvolvimentos que hoje permitem a expansão tecnológica que conhecemos. São locais que agregam o trabalho de vários pesquisadores, que reúnem e conservam coleções e espécimes de variada origem e, ainda, dão visibilidade aos resultados do labor científico. Ajudam, também, a viabilizar a especialização e fragmentação das áreas de conhecimento. Projetam o futuro e imobilizam o passado, seja da natureza, seja da sociedade moderna, seja das sociedades e formações sociais anteriores à sociedade industrial. Os museus, no século XIX e pelo menos até meados do século XX, estavam em sintonia com os procedimentos de exploração da natureza e com o movimento político e cultural de expansão do modelo de sociedade ocidental surgido na Europa e na América do Norte, o que justificava a desqualificação e/ ou submissão das formações sociais que não tinham essas características. Em seus espaços eram preservados e estudados aquilo que a sociedade industrial havia elegido como patrimônio coletivo e de caráter universal, o que direcionava valores, padrões éticos e conteúdos pedagógicos. Ou seja, enquanto os gabinetes de curiosidades reuniam objetos de um saber aparentemente diletante e de erudição, os museus agregavam – a partir de procedimentos de estudo e classificação sistemáticos, voltados para a ação, para a aplicação dos resultados do conhecimento – a memória do mundo, tornando visível e perene o que na 1 Encontram-se na bibliografia, as principais obras de referência sobre a trajetória histórica do Museu Paulista.
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natureza era invisível e mortal. Daí a frase de Valéry: instruir o olho a olhar. Era o olho do cientista que definia o que iria ser preservado e exposto, adestrando assim os visitantes. Esse procedimento foi adotado, igualmente, com o que se convencionou denominar arte e com a História de povos e civilizações. ...Os museus...são expressões institucionais das Ciências Naturais que implementaram. Para uma compreensão mais ampla da profunda interdependência entre os museus e as ciências que com eles se forjaram e desenvolveram, é preciso tratar os museus no contexto maior da Era dos Museus....As origens longínquas dos museus estão associadas ao fenômeno do colecionismo, sendo os gabinetes de curiosidades seus marcos essenciais... Tecidos, ourivesaria, conchas, porcelanas, esculturas, plumas, exemplares de fauna e flora constituíam os novos semióforos, objetos que, retirados do seu contexto e recolhidos não pelo valor de uso, mas pelo seu significado, perderam utilidade, passando a representar o invisível - países exóticos, sociedades diferentes, outros climas....De o primeiro olhar minucioso sobre as coisas, de suas descrições “neutras e fiéis”, os estudiosos começaram a depurar a realidade, a separar a observação da fábula, e dessa purificação constituiu-se a história da natureza. Os documentos dessa nova história são os locais onde as coisas se colocavam objetivamente umas ao lado das outras, agrupadas de acordo com seus traços comuns, uma vez já analisadas e catalogadas com seus nomes próprios....os antigos mostruários deram lugar a exposições catalogadas, que se tornam um modo de introduzir na linguagem sobre o mundo uma ordem que é do mesmo tipo que se estabelece entre os vivos, apresentando-se assim uma nova maneira de se fazer história.... (LOPES, 1995, p. 11-13).
E entre essas verdadeiras “catedrais de ciências” estabeleceram-se redes de comunicação, de compartilhamento de coleções e exposições, de conhecimentos e de irradiação de imagens, conceitos, valores. Os próprios edifícios desses museus se tornaram ícones da ciência e do saber. Este movimento, no século XIX, verificou-se também e com a mesma ênfase nas antigas áreas coloniais americanas. A princípio poder-se-ia imaginar que a expansão desse modelo de museu, ainda hoje tão presente, fosse resultado da dependência latino-americana aos centros difusores da cultura e da ciência, situados na Europa, especialmente. Entretanto, essa é uma interpretação muito redutora e simplificada de processos de circulação e atualização, no tempo e no espaço, de ideias e práticas formuladas nas chamadas áreas centrais do capitalismo mundial. Nas últimas décadas, na América Latina em geral, vem se desenvolvendo estudos críticos em relação a esse entendimento eurocentrista e difusionista dos processos de disseminação, incorporação e desenvolvimento das ciências nos países não europeus. Sem perder de vista a mundialização do movimento de organização das ciências e dos museus, os estudos mais recentes procuram investigar a interação dos modelos internacionais com os interesses, ideias e mentalidades dos diferentes atores sociais que interagiram na produção científica e na criação dos museus latino-americanos. A que circunstâncias políticas e culturais responderam os museus de ciências naturais e os museus de História no Brasil e na América? Sem dúvida, tratava-se da manifestação específica de
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processo universal marcado pela emergência dos estados nacionais, simultâneos aos movimentos de independência e de configuração das modernas. Entretanto, na América Latina, esses museus assumiriam outros papéis, além da produção e legitimação política e cultural da configuração de classes e grupos dirigentes imbricados à dominação tal como ensejada pelo liberalismo? Sobre essas interrogações merecem destaque propostas de Luiz Gerardo Morales Moreno que questiona a representatividade social dos museus mexicanos de História e Ciências, mostrando como essas instituições expressam pensamentos e ações genuínos. Se aparecem como modelares em relação aos padrões europeus, agregam significações e simbolismos nacionais, mostrando processos complexos de apropriação e transformação da cultura ocidental (MORENO, 2012). Particularmente no tocante aos museus de História, é importante ressaltar que tal como os museus de Ciências no século XIX, eram concebidos como espaços complementares à narrativa histórica escrita. Permitiam a materialização do passado (já que se confundia história e passado), tangível ao campo das sensações, enquanto o relato escrito provocaria em maior grau o dispositivo da imaginação. Trata-se de espaço de representação por excelência que, em conjunto com a escrita da História, o romance histórico e a pintura histórica compuseram um ambiente cultural, no qual os museus jogaram papel decisivo, pois contribuíram para sedimentar os códigos através dos quais a História não só se tornou campo disciplinar como chegou ao grande público. O museu servia de mediação entre a História, o passado e sua projeção como conhecimento para o público, visando educá-lo e instruí-lo. São novamente importantes as palavras de Valéry. II. Os museus de História que se originaram durante os processos conflituosos de organização dos estados nacionais projetam, como observou Poulot, entre outros autores, uma história nacional homogênea, alegórica, que realça o passado coletivamente partilhado, mítico porque apaziguado. Nos dias de hoje, esse passado-memória da nação, produzido para se confundir com a história-processo e com a História-saber, parece desacreditado. As transformações aceleradas e de toda a ordem que atingiram as sociedades contemporâneas, fazendo com que desigualdades, fraturas, demandas por direitos sociais e confrontações adquiram visibilidade cotidiana, envolveram as instituições de cultura e educação, sobretudo os museus. Por outro lado, também a disciplina da História – que não se confunde com o passado tampouco com o movimento da história – enfrenta questionamentos dentro de seu próprio campo. Beatriz Sarlo apontou a coexistência, em um mesmo momento histórico, de diferentes “passados”, construídos por intermédio de registros e preocupações de variada natureza. Assim, ao lado da sensação de um tempo acelerado e da vertigem gerada pela rapidez com a qual patrimonização, rememoração e obsolescência se alternam no mundo contemporâneo, a História de corte acadêmico convive com sínteses históricas que visam a atender o mercado de consumo cultural e com reconstituições do passado pautadas nos trabalhos da memória (SARLO, 2007). Esse entrelaçamento entre dimensões díspares e mesmo incongruentes do saber histórico, é problema que diz respeito tanto à disciplina da História, de modo geral, quanto aos museus em particular, instituições que, operando acervos materiais, congregam funções científicas, documen-
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tais, educativas e culturais (MENESES, 1994 e 2007), interagindo cotidianamente com públicos de matizada feição, que esperam, procuram ou idealizam nesses espaços visões do e sobre o passado. O debate em torno dos museus e suas funções envolve, por um lado, a crítica aos parâmetros que definiram (ou ainda definem) o que preservar e o que descartar.Por outro lado, vêm sendo questionados, também, as exposições, seus conteúdos e modelos, acompanhando-se a crise dos paradigmas que emergiu nas ciências em geral e na História em particular, entre as décadas de 1960 e 1980. É nesse contexto que se consolidou a crítica aos museus de história nacional e aos modos pelo quais projetava-se a partir dessas instituições uma defasagem quase insuportável entre a idealização do passado e do surgimento das nações e a valorização do direito à memória por parte de sujeitos sociais que não se reconhecem nas representações, nos objetos e nos edifícios dos museus de História nacional. Foi durante esse debate, no qual assumiu atuação essencial o ICOM (Internacional Council of Museums) e as agências em que se desdobrou, que a noção de patrimônio ampliou-se, passando a abarcar manifestações materiais e imateriais, bem como incorporar heranças geradas pela mobilização de grupos organizados que reclamavam seu reconhecimento e preservação. (CHOAY, 2001). Entretanto, essas mudanças na posição dos museus e na compreensão daquilo que poderiam ou deveriam realizar, não quer dizer que os museus de história nacional desapareceram ou deixaram de impactar e seduzir as pessoas no mundo de hoje. Pelo contrário, Beatriz Sarlo, entre outros autores, aponta como a demanda por memória associa-se à demanda por História, em várias dimensões. Basta verificar a repercussões de livros de divulgação, de romances históricos e filmes. Nesse sentido, é importante nos aproximarmos dessas instituições e minha proposta é seguirmos dois caminhos. Numa primeira aproximação, seria possível considerá-los como “lugares de memória” (NORA, 1984), em virtude das injunções entre essas instituições e o delineamento da memória nacional. “Lugar de memória”, expressão que se tornou tão banalizada entre nós, foi noção criada por Pierre Nora, na década de 1980, em meio ao debate que cercou o bicentenário da Revolução Francesa e encontra-se ligada à reflexão sobre delineamento da nação na França e aos modos pelos quais poder-se-ia escrever uma história nacional no momento daquelas comemorações. Ao utilizá-la procuro, entretanto, seguir questionamentos feitos por François Hartog a Pierre Nora. Hartog apontou os vínculos entre o conceito, a obra Les Lieux de Mémoires e aquilo que denominou “presentismo”, uma relação específica com o tempo e o passado. O “presentismo” seria um regime de historicidade2 assinalado por uma “progressiva invasão do horizonte por um 2 A expressão “regime de historicidade” remete às reflexões desenvolvidas por François Hartog acerca do tempo e das diferentes maneiras pelas quais foi apropriado, compreendido e exercido no âmbito da escrita da História. Trata-se, simultaneamente, de instrumento heurístico e de categoria histórica de pensamento que permite interrogar, segundo o autor, os modos pelos quais, ao longo do tempo, configuraram-se articulações específicas entre passado, presente e futuro. Combatendo qualquer simplificação de ordem linear ou evolutiva, o que Hartog investiga são os fundamentos da atual relação com o tempo, o que denominou “presentismo”, e seu entrelaçamento com a escrita da História.Ver: HARTOG,2003. Cabe lembrar que as
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presente mais e mais ampliado [e] hipertrofiado”, o que teria se tornado visível a partir dos anos de 1970/80. Para o historiador, “a força motriz” dessa específica relação com o tempo foi o crescimento rápido e as exigências sempre maiores de uma sociedade de consumo, onde as descobertas científicas, as inovações técnicas e a busca por ganhos tornam as coisas e os homens cada vez mais obsoletos. A mídia, cujo extraordinário desenvolvimento acompanhou esse movimento, que é sua razão de ser, produz, consome e recicla cada vez mais rapidamente mais palavras e imagens” (HARTOG, 1996). Em contrapartida, essas mesmas circunstâncias ensejariam a valorização da memória (voluntária, provocada, reconstruída), do patrimônio e das comemorações. Nesse sentido, conforme Hartog, a noção “lugar de memória” não poderia ser lida apenas de forma literal, mostrando-se sobretudo como instrumento de investigação e interpretação que remete a preocupações específicas de como escrever uma história nacional na atualidade. A expressão refere-se, assim, a lugares de natureza material, funcional e simbólica nos quais o passado se encontra recuperado no presente. Designa manifestações da tradição nacional, feixes de representações e redutos da história-memória autenticada pela política e por produções historiográficas do século XIX. O lugar não é simplesmente dado, como observa Hartog, é construído e reconstruído sem cessar, podendo ser interpretado como encruzilhada onde se encontram ou deságuam diferentes caminhos de memória. Tanto Nora quanto Hartog ponderam, porém, que um lugar de memória pode perder sua destinação e reconhecem que, atualmente, os elos com esses lugares tornaram-se tênues, apontando para duas situações: primeiro, a clivagem entre a história ensinada nas escolas e as expectativas de crianças e jovens motivados pelas experiências de aceleração do tempo que a cultura virtual pode proporcionar; e segundo os questionamentos acadêmicos em torno da maneira pela qual as histórias nacionais foram escritas. Quanto a esse ponto é importante lembrar algumas das observações de Dominique Poulot, para quem na atualidade e contrariamente às aparências “os trabalhos de confirmação entre museus de História e historiografia ou ensino da História são bastante fracos”. ...O museu de história trabalha com o repertório das fontes do historiador, sanciona a emergência de novas curiosidades, tem seu próprio peso nas vicissitudes dos interesses sábios, enquanto vulgariza mais ou menos bem os conhecimentos eruditos junto aos visitantes...Passa por momentos de maior intensidade ou de fervor, quando o sentimento nacional o exige.... No entanto, o museu situa-se à margem da escrita da história, ao lado da compilação e da preservação de indícios do passado. Isolado da invenção intelectual dos escritos e dos reescritos, o museu também não constituiu uma matriz cultural, como a escola....O espetáculo do museu ilustra ...a discrepância entre a escrita da história e uma representação do passado capaz de evocar, de outro modo que o da memória, o reconhecimento do passado como tendo sido, embora já não mais seja...(POULOT, 2003) reflexões de Hartog estão inscritas em amplo debate do qual fazem parte, entre outras, as contribuições essenciais de: FEBVRE, Lucien, 1965; KOSELLECK, Reinhart. 2006; e CERTEAU, Michel de, 2006.
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Mas, os problemas relacionados aos nexos entre história e memória, bem como as implicações decorrentes do descolamento entre as representações do passado projetadas em espaços museológicos e o debate em torno da escrita da História desenvolvido contemporaneamente, não esgotam a fisionomia matizada de instituições como essas. Pelo contrário, reflexões de Paul Ricouer e Fernando Catroga (CATROGA,1999) sugerem que os museus podem ser vistos, também, como locais para articulações entre memória e imaginação. Ambas evocam um “objeto ausente” (ou uma presença ausente). Mas se o “objeto ausente” pode ser ficcional para a imaginação, para a memória ele já não existe embora tenha existido anteriormente. No caso dos museus de história nacional, esse aspecto adquire relevância, pois pinturas, esculturas, imagens e objetos reescrevem a história, evocam acontecimentos e personagens, representando o passado e ensejando sua “visualização”, como observou Stefan Bann (BANN, 1994, p.153-180). Ou seja, tornam-se espaços de e para a imaginação do diversificado público que o freqüenta e que necessariamente não compartilha as mesmas preocupações dos historiadores, tampouco observa o museu pela mediação do lugar social, da prática investigativa e da escrita que caracterizam, segundo Michel de Certeau, a operação historiográfica (CERTEAU, 2006,p. 63-106). Assim, não se trata tão somente de indicar que os museus de História abrigam um imaginário no sentido mais literal do termo, como conjunto de imagens visíveis e simbólicas. Trata-se de refletir sobre a complexidade de um ambiente que, ao mesmo tempo, mediatiza e confere tangibilidade ao universo contraditório e multifacetado das representações por meio das quais os sujeitos históricos constroem sua vida, estabelecem relações com o tempo, projetam interpretações sobre seu próprio percurso e sobre a trajetória da nação à qual pertencem. Talvez uma das razões do fascínio e do interesse que os museus de História desperta esteja no fato de reunir objetos e emblemas que permitem imaginar tanto a vida e os costumes de tempos pretéritos como o cotidiano de personagens da história, que ainda habitam manuais escolares e sites sobre história disponíveis na internet. Mas, ao contrário desses meios, o Museu oferece algo que não pode ser desconsiderado: a experiência da releitura. Nesse sentido, cada visita ao Museu sugere uma experiência peculiar mediada pelas circunstâncias do momento (e pelas intervenções e proposições que educadores, museólogos e historiadores podem proporcionar), o que pode promover percepções diversas sobre a própria instituição e sobre o que ela reserva, em termos da descoberta de novas perspectivas em relação à História e aos modos de produção do saber histórico. Entretanto, seja por meio da concepção de lugar de memória, seja por meio da imaginação, é possível chegar-se, a meu ver, a um ponto nodal da discussão sobre o papel dos museus de História, indicado tanto por Chantal Georgel quanto por Manoel Luiz Salgado Guimarães (GEORGEL, 2005; GUIMARÃES, 2007) – a imbricação entre o delineamento do campo de conhecimento da História, no século XIX, os procedimentos que fundamentaram a prática de historiar e o surgimento da instituição museu, espaço de história, considerada aqui em seu sentido etimológico, a “visão-pensamento” de que tratou Alfredo Bosi ao estudar a fenomenologia do olhar (BOSI, 1988). Também Hartog, ao
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referir-se a Heródoto, frisou que “historía” remete etimologicamente ao nexo ver-saber. Comenta que Heródoto, historiador, “não pode ser mais o aedo que a musa inspira, mas também não é um árbitro. É aquele que reivindica um lugar para seu saber, o qual se encontra inteiramente por construir. Para ver é preciso arriscar-se – ir ver – e aprender a ver...” (HARTOG, 2001). Ver a História, representar o passado Ao abordar de que modo, durante o século XIX, a instituição museu encontrava-se imbricada à produção da escrita da História, bem como à concepção de que esta se tornaria acessível por meio da arte e de imagens, Chantal Georgel recorreu a anotações feitas por Michelet em sua História da Revolução Francesa, editada entre 1847 e 1853, relacionadas à visita que realizou, quando criança ao Museu de Monumentos Franceses, criado por Lenoir nos fins do século XVIII. Diz o autor: ...Eu me lembro ainda da emoção, sempre a mesma e sempre viva, que me fazia bater o coração, quando, pequeno, eu entrava sob esses arcos sombrios e contemplava esses rostos pálidos, quando ia e procurava ardente, curioso, criativo de sala em sala e de época em época. Eu buscava o que? Não sei, a vida de então sem dúvida e o gênio do tempo... (GEORGEL, 2005, p. 120).
Para Georgel, as palavras de Michelet registram como a História se configurou para ele a partir das experiências provocadas por esse museu. Sublinham, igualmente, a maneira pela qual se considerava que em um museu, por meio do apelo visual de imagens, ruínas e objetos, a História seria não só ensinada como teria a capacidade de ressuscitar. Em trabalhos recentes também Manoel Luiz Salgado Guimarães se preocupou com os vínculos entre museus de História e formas de visualização do passado, tomando como ponto de partida as relações entre o visível e o invisível, que estão “na raiz mesma do trabalho do historiador”, conforme observou. Para problematizar o tema recorreu, entre outras referências, a duas citações - extraídas de um romance de Madame de Stäel e de uma carta de Freud – que, a despeito de se referirem, respectivamente, ao início do século XIX e ao início do século XX, permitem desdobrar o registro de Michelet. Na obra Corinne ou l´Italie escrita por Madame de Staël, e publicada pela primeira vez em 1807, a protagonista em dado momento da visita à cidade de Roma, observou: ...É em vão que se confia na leitura da história para compreender o espírito dos povos; aquilo que se vê excita em nós muito mais idéias que aquilo que se lê, e os objetos exteriores provocam uma emoção forte, que confere ao estudo do passado o interesse e a vida que se encontram na observação dos homens e dos fatos contemporâneos...(GUIMARÃES, 2002, p. 71-86).
No romance, é a visão das ruínas da antiga Roma, mais do que a leitura de textos eruditos, que sustenta o entendimento dos nexos entre passado, presente e futuro, bem como o saber sobre a História. Cabe lembrar, nesse sentido, retomando Hartog, que no regime de historicidade moderno há uma nítida quebra entre passado e presente e a História passa a ser compreendida enquanto processo único, como narrativa do unívoco. Além disso, os acontecimentos ocorrem pelo tempo e faz-se premente e necessário visitar o passado para antever o futuro (HARTOG, 2003).
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Mas, a essa experiência de conhecimento detalhada por Madame de Staël, poder-se-ia acrescentar uma outra também proporcionada pela observação de sítios erguidos e habitados na Antigüidade. Encontra-se em um texto de Freud que descreveu, em 1936, a lembrança de uma situação vivenciada, em 1904, quando realizou viagem de férias a Atenas (GUIMARÃES, 2002, p. 71-72). O contato direto com a Acrópole e as ruínas gregas era um sonho de há muito alimentado por ele e uma das sensações provocadas por esse cenário foi a de que “existia mesmo tudo aquilo, da maneira como aprendêramos na escola”, do modo como os livros ensinavam e ajudavam a imaginar. Enquanto para a personagem Corinne, a fruição imediata e visível do passado inaugura o caminho para a imaginação e para o conhecimento, revelando-se muito mais preciosa que qualquer livro, para Freud é a percepção sensorial das ruínas de Atenas que veio comprovar o que os livros continham, legitimando o saber conservado em suas páginas. Ambas as experiências não se contradizem, ao contrário se completam, apontando por vias singulares as relações entre visão e escrita e, sobretudo, a importância atribuída ao olhar como mediação para o conhecimento. Daí a ênfase de Paul Valéry na relação do museu com a prática de Instruir o olho a olhar . O que remete à noção da História como “visão-pensamento do que aconteceu”, inspirada nos antigos e atualizada, acompanhando no século XIX o delineamento do campo disciplinar da História. Desde pelo menos o início do século XX esta noção vem sendo interrogada por diferentes vertentes teóricas, a exemplo de Lucien Febvre e Walter Benjamin (FEVBRE, 1965; BENJAMIN, 1985). Entretanto, as observações registradas por Madame de Stäel, Michelet e Freud podem ser referências enriquecedoras para a compreensão dos modos pelos quais parcelas do público do Museu Paulista confere significado à sua visita e ao papel desempenhado por um museu de História. O que implica recordar observações de Sarlo sobre a produção concomitante de diferentes visões de passado nas sociedades contemporâneas, bem como inferências feitas por Poulot sobre a defasagem entre museus de História e o atual debate sobre escrita da História. Quando tive oportunidade de entrevistar visitantes do Museu Paulista, colhi depoimentos que, ao invés de narrativas ou descrições, provocaram muitas interrogações (OLIVEIRA, 2000 e 2003). Nas falas que registrei foi recorrente a noção de que o Museu é um símbolo da cidade de São Paulo e um lugar de referência da História do Brasil, dada sua vinculação com a data de 7 de setembro e o movimento de construção da memória da Independência. Mas, sua relevância advém, igualmente, do fato de ser um espaço cultural e lúdico que não somente “guarda” coisas e lembranças do passado como permite “ver”, “rever” e “reviver” a história. Palavras como “ver” e “rever”, contudo, não estão necessariamente associadas a uma ação contemplativa ou passiva frente àquilo que é possível observar. Tampouco aparecem como sinônimos da compreensão de que no Museu o passado pudesse ser vislumbrado tal como foi. Não resta dúvida que o Museu surge nos depoimentos que tive a oportunidade de registrar como local que possibilita a “visualização do passado como realidade experiencial”, como denominou Stephen Bann ao referir-se a empreendimentos museológicos do século XIX (BANN, 1994, p. 153-180). Ou seja, os acervos ali expostos foram interpretados como relíquias e vestígios históricos cuja observação supera o que os livros e o ensino escolar poderiam propiciar
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em termos de conhecimento e imaginação, sendo considerados, também, como legitimação daquilo que meios de comunicação divulgam e exploram especialmente por ocasião de comemorações cívicas, a exemplo do dia da fundação da cidade de São Paulo e da data da Independência. Em ambos os movimentos, o liame entre ver e saber se manifesta por meio de complexas mediações que exigem, para sua identificação e entendimento, estudos sistemáticos e abrangentes sobre as concepções e práticas culturais compartilhadas pelos diferenciados segmentos de público que freqüentaram a centenária instituição. É necessário reconhecer que os depoimentos que registrei foram obtidos sob condições precisas e datadas, o que impede generalizações bem como a transposição para o momento atual daquilo que foi veiculado naquele momento. Evidenciam, porém, um conjunto de questões ainda hoje significativas a respeito do que o Museu representa no universo de alternativas culturais da cidade e do país e, sobretudo, do espaço que ocupa no âmbito da construção e da divulgação de saberes históricos. Deste ângulo, cabe sublinhar que os depoimentos captaram impressões fragmentadas de objetos, pinturas e detalhes seja das exposições existentes à época em que foram produzidos seja, particularmente, do prédio e de sua decoração interna. Essa visão fragmentada contribuiu, a meu ver, para nuançar e mesmo arrefecer, do ponto de vista do visitante, o peso da memória inscrita no edifício e os desígnios políticos e celebrativos que configuraram o conjunto ornamental exposto no saguão, na escadaria e no salão de honra. Mas, essa percepção, ao mesmo tempo em que dissolve o sentido de conjunto e marca diferenças entre passado e presente, sustenta contraditoriamente fortes ligações entre ambos, já que os visitantes que entrevistei foram ao Museu em busca de história - personagens, situações e episódios passados que teriam marcado a biografia do Brasil e de São Paulo - e da História, saber consolidado sobre a vida e os costumes nacionais. A famosa definição de Cícero, segundo a qual a história é “testemunha dos séculos, luz de verdade, vida da memória, mestra da vida, mensageira do passado” (HARTOG, 2001,p. 181-182), encontra franca acolhida em parcela importante dos depoimentos, lembrando-se que o orador nesse caso não é um autor propriamente, mas uma instituição centenária, reconhecida e autorizada. A isso se alia o apelo ainda exercido pelos “grandes homens” ali representados em sua glória ou em painéis e esculturas que registram-nos em ação, como no caso dos bandeirantes e de D. Pedro I. Mas, a admiração ou curiosidade que suscitam encontra-se mediatizada pela certeza de que seus traços e gestos foram refinados e ampliados, pois afinal não poderiam aparecer de outra forma em um museu. Isso, no entanto, não compromete sua influência tampouco altera os fatos que podem ser ordenados e apresentados de modos diferentes, mas que não podem ser estabelecidos, uma vez que são compreendidos como dados pré-existentes às interpretações que tornaram possível sua imortalidade. Se é a imediatez da experiência do presente e das motivações mais voláteis da visita ao Museu que confere sentido à “visão do passado” ali procurada e concebida, os depoimentos revelaram a atualização de premissas que entrelaçam a exemplaridade de outras épocas; a utilidade do passado em relação ao entendimento do presente e ao que o futuro pode reservar; e a certeza de que aquele passado, emblematicamente exposto, efetivamente existiu e é imutável, ainda que possam ser ampliados ou modificados os conhecimentos sobre ele.
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Elegendo-se como horizonte as considerações de Hartog, é possível propor a hipótese de que os depoimentos estejam constituídos por ruínas, fiapos e reelaborações de diferentes regimes de historicidade. Deste modo, à percepção da história como mestra da vida, agregam-se não só o regime moderno de historicidade em que o futuro ilumina o passado como uma relação muito consumista com o tempo e a História, expressão da superficialidade de informações e imagens, que assinala nosso dia-a-dia. Ou seja, as substâncias que conformam os temas e problemas com os quais o historiador reflete sobre as operações historiográfica e “museográfica” que realiza em seu cotidiano, emergem nos depoimentos transformadas em noções que a princípio não carecem de questionamento. Assim, as contradições e distanciamentos apontados por Poulot entre a escrita da História atual e os museus de História apresentam várias dimensões, não se restringindo ao campo dos especialistas. Abrangem, também, os modos pelos quais os diferentes segmentos de público do Museu interpretam o passado e o presente da instituição, tornando mais nuançadas as mediações entre demandas diferentes de História. No entanto, justamente por oferecer releituras de experiências visuais e sensoriais, promovendo uma singular concomitância entre novidade e permanência, o museu de História seria um contraponto à vivência do tempo premente, marcado pela rapidez, pela sucessão veloz de eventos e situações e pela representação da ausência de durabilidade de referências. Essa percepção também atinge os historiadores e os que militam nos museus, ganhando contornos específicos nos dias atuais, particularmente nas práticas relativas às decisões quanto ao que guardar, ao que denominar patrimônio e ao que submeter à análise e exposição. A despeito do entrelaçamento da tradição dos séculos XVIII e XIX com nosso modo de pensar, um dos traços que nos distinguem do regime de historicidade moderno, é colocar em discussão a maneira pelo qual o conhecimento histórico foi e é produzido, conforme sugeriu Alfonso Mendiola. Isso representa questionar o estatuto dos documentos, as concepções e práticas de saber que fundamentaram a seleção e sobrevivência das fontes, e principalmente o lugar ocupado pelo historiador na “teia” que envolve o movimento da história e a construção da memória, bem como as mediações entre acontecimentos, sua narração e suas interpretações posteriores (VESENTINI, 1997; MURARI, 1999). Se esses podem ser considerados procedimentos próprios ao ofício do historiador hoje, como essas práticas podem ser exercidas e explicitadas em um museu de História? Mesmo reconhecendo-se que nas sociedades contemporâneas há exigências por saberes e visões do passado que não se circunscrevem ao campo acadêmico, os museus de História poderiam harmonizar distintas narrativas? Como encaminhar as demandas de diferentes públicos e ao mesmo tempo as demandas de historiadores e especialistas que pensam os museus e suas exposições por meio das lentes diferenciadas da historiográfica atual? Como observou Dominique Poulot, hoje o museu de História deixou de ser o legislador do tempo, o lugar de partilha entre passado e futuro, podendo tornar-se espaço para um diálogo entre tipos de saber histórico fundados no conhecimento sobre os objetos. Não seria, então, o momento de se pensar na construção de narrativas que não só exteriorizassem seus fundamentos e as tradições com as quais se articulam, mas explicitassem os procedimentos pelos
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quais supõe-se ainda hoje que em um museu a História poderia ser “visualizada”?
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Neste ponto, parece-me enriquecedor voltar ao poema de Paul Valéry, para destacar o verso em que sublinha a importância dos museus como espaços dedicados a “instruir o olho a olhar”. A frase poderia significar, entre outras acepções, a prática de proporcionar a visão e o entendimento de como os saberes históricos podem ser construídos, o que implica privilegiar os trabalhos da “atenção”, como apontou Alfredo Bosi ao debruçar-se sobre a obra de Simone Weil. O olhar atento vence a angústia da pressa, desapega-se das ilusões compensadoras da apropriação consumista, enseja o trabalho da percepção e “se exerce no tempo: colhe por isso as mudanças que sofrem homens e coisas” (BOSI, 1988, p. 82-86). A “educação pelo olhar”, na expressão de Bosi, apresenta-se, assim, como proposta enriquecedora para vencer a imediata exterioridade entre ver e conhecer, um convite para aprender a observar nos museus não coisas belas ou “visões do passado”, mas dimensões da vida humana nem sempre percebidas e imaginadas. Seria possível, por meio dessa prática, interrogar nossas relações com os antigos e modernos historiadores que deixaram seu legado nos museus e, ao mesmo tempo, atualizar sugestões feitas por Walter Benjamin, em 1930, quando, ao descrever com entusiasmo uma exposição que o encantara (BENJAMIN, 1986, p. 179-181), sublinhou a tarefa libertadora de uma experiência como essa, da qual o visitante não sai necessariamente mais erudito porém, sem dúvida, modificado. Bibliografia ALVES, Ana Maria de Alencar. O Ipiranga apropriado. Ciência, política e poder. O Museu Paulista, 1893/1922. São Paulo, Humanitas/ Programa de Pós-Graduação em História Social da USP, 2001. Anais do Museu Paulista. História e Cultura Material. Nova Série,volume 10/11, 2002/2003. BANN, Stephan. As invenções da história. Ensaios sobre a representação do passado. Trad. Flávia Villa-Boas. São Paulo, UNESP, 1994. BENJAMIN, Walter. Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie. Seleção e apresentação de Willi Bolle. Trad. Celeste de Sousa et al. São Paulo, Cultrix/ EDUSP, 1986. __________________. Teses sobre filosofia da História. In: KOTHE, Flávio (org). Walter Benjamin. São Paulo, Ática, 1985, p. 153-164. BITTENCOURT. Vera Lucia Nagib �������������������������������������������� Revista do Museu Paulista e(m) capas : identidade e representação institucional em texto e e imagem. Anais do Museu Paulista, vol. 20, n. 2, jul/dez, 2012, p. 149-184. BOSI, Alfredo. Fenomenologia do Olhar. In: NOVAES, Adauto. O Olhar. São Paulo, Companhia da Letras, 1988, p. 65-88. BREFE, Ana Cláudia. O Museu Paulista. Affonso de Taunay e a memória nacional. São Paulo, UNESP/Museu Paulista da USP, 2005. CATROGA, Fernando. O céu da memória. Coimbra, Minerva, 1999. CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 2a. edição. Trad. M L Menezes. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2006. CHANTAL, Georgel. L´histoire au musée. In: AMALVI, Christian (org). Les lieux
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Artigo recebido em dezembro 2014. Aprovado em abril 2015
QUANDO AS MUSAS VESTEM O HÁBITO DIÁLOGO ENTRE ANTROPOLOGIA, MUSEOLOGIA E HISTÓRIA À SOLEIRA DOS MUSEUS MISSIONÁRIOS Aramis Luis Silva1
RESUMO: Tomando como ponto de partida a questão do translado para uma nova sede museal dos restos mortais pertencentes à coleção bororo organizada e mantida pelos padres salesianos no Brasil, essa reflexão visa demonstrar que, a despeito das aparentes alterações de sentido do que é tido como etnográfico em um dado projeto museológico, a lógica que sustenta esse contínuo processo de reconfiguração e reatualização de significados de categorias pode ser elucidada a partir de um diálogo entre antropologia, museologia e história. Nele, veremos como coleções e museus missionários serviram como tecnologias para religiosos produzirem visualmente o sagrado enquanto uma categoria antropológica. PALAVRAS-CHAVE: museu missionário, coleção etnográfica, restos mortais, Bororo e salesianos
RÉSUMÉ: En prenant comme point de départ la question du déménagement vers un nouveau siège du musée des dépouilles de la collection bororo organisée et entretenue par les prêtres salésiens au Brésil, cette réflexion a pour but de démontrer que, en dépit des apparentes modifications de sens de ce qui est considéré comme ethnographique d´un projet muséologique, la logique qui soutien ce processus continu de reconfiguration et réactualisation de significations de catégories peut être élucidée à partir d´un dialogue entre l´anthropologie, la muséologie et l´histoire. Dans ce dialogue, nous allons voir comment des collections et des musées missionnaires ont servi comme technologie pour que les religieux produisent visuellement le sacré en tant qu´une catégorie anthropologique MOTS-CLÉ: Musée missionnaire, collection ethnographique, dépouilles, bororo e salésiens
1 Mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é pós-doutorando do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisador vinculado ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Fontes de financiamento: Capes/Fapesp. E-mail: aramisluis@uol.com.br.
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Introdução – Evocações de uma cena e de um problema
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Em 2006, no processo de transferência do antigo Museu Dom Bosco, instituição inaugurada em 1951 pelos padres salesianos em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, para uma nova sede na mesma cidade, agora sob novo projeto museológico e novo nome, o Museu das Culturas Dom Bosco1, os agentes envolvidos no processo de reformulação da instituição se depararam como uma delicada questão: o que fazer com os três crânios humanos e demais peças ósseas, pintados e ornados com penas de arara, restos mortais associados aos funerais bororo, recolhidos pelo padre missionário César Albisetti e catalogados pelo colega de batina Ângelo Venturelli? Essas peças hoje integram o acervo etnográfico do museu, detentora da maior coleção bororo do mundo. A missão ética era espinhosa. Mas foi inventiva a solução encontrada para dar conta da questão. Isto é, produzir aquilo que estamos tratando aqui como um artefato cultural bem contemporâneo e analiticamente desafiador: uma narrativa museológica para uma instituição que se pensa e se representa como “intercultural” e “dialógica”, capaz de contemplar diferentes versões culturais sem deixar escapar o sentido daquilo que seria entendido como universal. Em linhas gerais, da perspectiva dos agentes museais envolvidos na produção dessa específica narrativa, tratou-se de, antes de resolver um problema prático (o que fazer com os restos mortais de alguns dos antepassados dos Bororo atuais), de reenquadrá-lo abstratamente. Livrando o museu de cair na encruzilhada entre a devolução ou não das peças aos Bororo – que, vale lembrar, não se mostraram interessados em reivindicá-las –, os esforços se concentram em encontrar modos de resignificar os sentidos atribuídos a esses objetos e a sua permanência na instituição. Nesta operação, o problema relacionado ao que fazer com esses restos mortais serviu como mote para o espaço museal salesiano refletir e se refletir diante de uma questão construída nos seguintes termos: como garantir que um museu organizado sobre ditas bases científicas se mantenha aberto a “compreender e experienciar outras lógicas culturais de articulação de sentidos para a realidade”, conforme está expresso em texto divulgado no site do museu2? Isto porque, na visão desses agentes museais, se fosse alcançado tal objetivo, as peças poderiam permanecer no museu, agora com estatuto conceitual renovado. Ou seja, peças científicas, mas expressões simbólicas de valores religiosos nativos atestados e reafirmados.
1 O processo de transformação do Museu Dom Bosco, instituição espelhada nos velhos museus de história natural, no Museu das Culturas Dom Bosco, reformulado a partir de novo referencial museológico, foi tratado na tese Mapa de viagem de uma coleção etnográfica – A aldeia Bororo nos museus salesianos e o museu salesiano na aldeia bororo, defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo, em dezembro de 2011. Neste texto atual, revisitaremos e retrabalharemos alguns argumentos apresentados na tese. 2 O texto está anexado em PDF, não está datado e é assinado por Aivone Carvalho Brandão e Dulcília Silva. A primeira foi diretora científica do museu na fase de reformulação do museu e a segunda era sua amiga e colaboradora. Está disponível em http://www.mcdb.org.br/materias.php?subcategoriaId=12&id=96&.
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Foto 1
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Restos mortais associados aos ritos fúnebres bororo em exposição no antigo Museu Dom Bosco, instituição organizada a partir do modelo enciclopédico dos museus de História Natural. Arquivo MCDB
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Uma vez talhada a questão (etnomuseológica) nesses moldes, foi preciso experimentar uma tratativa prática que pudesse encarnar em atos tais convicções: a promoção, em parceria com um grupo de índios Bororo da Terra Indígena de Meruri, Estado de Mato Grosso, de dois rituais no interior do museu de Campo Grande. Ações rituais, importante destacar, que serão encaradas nesse texto como rituais museológicos, nos quais índios Bororo e agentes institucionais cumprem no interior desses eventos culturais suas específicas funções. Isso significa que, no lugar de tomar tais ritos como aquilo que os agentes engajados no processo museal em questão pretendiam representar – a pura cultura bororo em ação –, nossa proposta é compreender esse rituais como textos públicos emergentes de uma especial e específica zona de mediação cultural chamada museu etnográfico, um dispositivo de produção de saberes especializado em fazer ver “o outro”. Vejamos como essa operação se desdobrou em cenas de museu, a partir da descrição feita pelos próprios agentes da instituição, conforme o texto acima citado disponível no site do museu e com o auxílio também das imagens fotográficas guardadas no arquivo institucional. Durante essa leitura, prestemos especial atenção ao estilo retórico do texto e as categorias mobilizadas para construí-lo, sempre tensionadas entre aquilo que se convencionou tratar como esferas do religioso e do científico. Importante lembrar que para esse espaço museal, como foi explicitado pelos autores do breve artigo, estava em jogo a possibilidade de conquistar aquilo que foi descrito como a restituição de um “valor original e sacralizado” dos três crânios e das demais peças ósseas. Numa espécie de transfiguração na qual o museu tornar-se-ia uma etnografia tridimensional, “a verdade etnográfica” da inscrição missionária que teria redundado em obras escritas pelos padres e ratificadas pela academia, como a Enciclopédia Bororo3, seria agora atestada aos olhos públicos pelos próprios índios Bororo, não mais representados por sua cultura material codificada em coleções etnográficas, mas em puro ato inventivo escrito a muitas mãos, documentado ali como um rito próprio da cultura de um povo.
I
O museu convidou os Bororo de Meruri, assim conta o documento, região em que a “maioria dos objetos da coleção bororo foi coletada, para participar do plano de desmontagem, acondicionamento e transferência dos objetos sagrados contidos em seu acervo”, informa o texto publicado no site da instituição. Meruri, vale lembrar, surgiu em 1902, a partir de um aldeamento indígena criado em torno da missão salesiana. Para a retirada dos ossos que estavam nas velhas vitrines do antigo Museu Dom Bosco, instalado em uma praça no centro de Campo Grande, veio grupo de indígenas em uma viagem patrocinada pelo museu. Na comitiva, Leonida Akiri Ekureudo e Agostinho Eibajiwu, os dois curadores indígenas residentes na aldeia de Meruri, responsáveis pelo centro de cultura local vinculado ao museu, e mais dois jovens que atuaram como auxiliares. Paulinho Ecerae Kadojeba, vi3 Trata-se da obra editada em três volumes dos padres salesianos César Albisetti e Ângelo Venturelli. Assim a obra é descrita e apresentada (de forma significativa) pela editora da Universidade Católica Dom Bosco, responsável pela edição e distribuição dos volumes: “Muitos anos de pesquisa ininterrupta, meticulosa e sistemática no campo da etnografia resultaram na publicação da ‘Enciclopédia Bororo’, que apresenta, em três volumes, a mais rica e completa abordagem do universo religioso, social e lingüístico da nação Bororo. É um trabalho inédito, nunca empreendido antes por nenhum antropólogo, e obrigatório para os estudiosos e pesquisadores das questões indígenas”. Para saber mais sobre a relação dessa obra com a constituição da Missão Salesiana entre os índios Bororo ver Montero (2013).
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deomaker formado nas oficinas de vídeo do centro de cultura, estava presente para realizar as filmagens “da perspectiva dos Bororo”, uma vez que o museu encarregaria o responsável pelo setor audiovisual da casa para produzir os seus próprios registros. O grupo foi recepcionado pela pequena equipe do setor de etnologia do museu. Na prática, pelo núcleo duro do grupo leigo envolvido no projeto de transformação da instituição, liderado por Aivone Carvalho Brandão, então professora da Universidade Dom Bosco e diretora científica do museu4. Coube a esse time, ao assumir a responsabilidade de coordenar os trabalhos, a tarefa de coreografar boa parte do rito museal para qual o grupo de Bororo foi convidado participar em nome de uma coletividade. E assim o fizeram, na perspectiva do artigo. “Como manda a tradição, prepararam-se para a manipulação dos ossos, usando em seus corpos sumo de folhas de um vegetal próprio da região do cerrado”, explica o texto, evidenciando seu compromisso de seguir com rigor os preceitos daquilo que descrevem como tradição, como se fosse ela um atestado de legitimidade da sua ação museológica. Afinal, o conhecimento do museu acerca do que seria o “tradicional’ seria a sua marca científica distintiva. Leonida se encarregou de pintar o trio que ficou responsável por manipular e transportar as peças. Como traje, os bermudões de futebol vermelho, costumeiramente usados quando os Bororo promovem rituais em Meruri ou nas participações em missas inculturadas realizadas na aldeia, por exemplo. Foto 2
Leonida, a curadora indígena, besunta o jovem bororo. Como parte do traje, ele usa o costumeiro calção de futebol vermelho, recorrente nos rituais de Meruri. Arquivo MCDB. 4 Esse núcleo não está mais ligado ao museu. Sobre o seu engajamento no processo de transformação do museu e implementação do Centro de Cultura de Meruri, ver tese de doutorado (SILVA, 2011).
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Trio bororo durante processo de transferência das ossadas. Staff do museu supervisiona e registra o trabalho. Arquivo MCDB. Foto 4
Agostinho deposita crânio no Baku. Afixadas nas vitrines frontais, exemplares de aije, peças bororo interditas às mulheres empregadas nos rituais de iniciação masculina. Arquivo MCDB.
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Diante de vitrines perfiladas e entulhadas de objetos, cujos, alguns deles, serviram de modelos fotográficos para ilustrar a Enciclopédia Bororo, os jovens indígenas entoaram cantos e começaram a remover e transportar as peças ósseas usando baku (bandejas tecidas com folhas de buriti). Uma a uma, elas foram sendo dispostas na mesa de restauro. “Ali, eles mesmos, com a ajuda da conservadora do museu, começaram o trabalho de higienização e reconhecimento clânico dos ossos”, informa o texto. Agostinho Eibajiwu, curador indígena formado pelo museu, aplicou as técnicas apreendidas em cursos realizados anteriormente, aspirando a poeira dos crânios protegidos com filó. “O silêncio e os olhares de compaixão diante dos ossos/almas formavam uma atmosfera de emoção e respeito, como em seus funerais”, descreve o texto, remetendo ao clima fúnebre dos ritos tradicionais que um dia ocorreram na aldeia e foram substituídos pelo ritual fúnebre cristão. Foto 5
Agostinho (à dir), o curador indígena formado pelo Museu das Culturas Dom Bosco. Arquivo do MCDB.
Uma vez encerrado o trabalho de remoção e higienização, as peças foram acomodadas em pequenas caixas individuais e colocadas em uma grande caixa de madeira. Nela, permaneceram até serem transportadas para as novas instalações do Museu das Culturas Dom Bosco, instalado no Parque Das Nações Indígenas, um vasto e moderno complexo arquitetônico e urbanístico da cidade. Os Bororo, o texto registra que eles voltaram para a aldeia de Meruri para tratar junto aos chefes cerimoniais o que seria feito na segunda etapa do trabalho: a colocação das peças no novo espaço expográfico, “já que haviam concluído que um dos crânios (onde se podia identificar as insígnias clânicas por meio das cores das penas de arara) era do clã dos Paiwoe”. Segundo o texto, uma vez reconhecido esse fato, as ações rituais deveriam seguir às regras deste clã.
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Paulinho Ecerae Kadojeba , videomaker formado pelo processo museal em curso em Meruri, documenta a cena. Em ação, Agostinho, ao lado de agente museal do MCDB. Arquivo MCDB. Foto 7
Bororo durante o segundo rito museal. Colocação das ossadas no novo espaço expográfico do museu. Arquivo. MCBD.
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Parceria em cena: Bororo e agentes museais. Arquivo MCDB.
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Helinho (ao centro e com pariko), chefe cerimonial residente na Aldeia Garças, na T.I. de Meruri, entoa canto bororo após instalação das ossadas. Entre os convidados, Padre Ochoa, missionário e autor de livros sobre os Bororo, e Renate Brigitte Viertler (em detalhe à dir.), antropóloga autora de uma das teses basilares sobre o grupo. Arquivo MCDB.
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“Marcada a inauguração do Museu para 30 de novembro de 2006 e estando os Bororo convidados para uma apresentação cultural durante a cerimônia, decidiram fazer o ritual de trasladação dos ossos na mesma ocasião”, informa o texto, sempre comprometido em evidenciar a agência indígena, mas, infelizmente, sem registrar como a instituição e seus agentes participaram dessas interações decisórias. Nessa altura da descrição, torna-se evidente que, da perspectiva da produção desse específico novo saber/fazer museal, a discrição em relação à mediação constitutiva desse processo é percebida uma garantia de eficácia e legitimidade daquilo que se objetiva representar. Voltando à nossa cena, o texto informa que uma nova comitiva bororo, uma formação acrescida de novos agentes, regressou a Campo Grande e ao seu novo museu com dois dias de antecedência. A primeira providência dos chefes cerimoniais, registra o texto, foi conhecer as peças etnográficas em questão. “A caixa foi aberta e eles examinaram cada crânio, cada ossinho, conversaram entre si na própria língua e decidiram transportar a caixa até a Reserva Técnica”, detalha o texto, destacando a utilização da língua bororo, em desuso crescente em Meruri. Mais do que uma referência própria de uma descrição etnográfica de uma cena, a remissão ao uso da língua nativa serviria ali como uma espécie de pedigree do projeto museual em curso. Assim continua a descrever o texto:
Ali, os chefes cerimoniais, longe das vistas das mulheres, pediram três Bakudoge, bandejas tecidas com folhas de buriti, e colocaram apenas os crânios sobre elas. Conversaram e decidiram cobri-las com outros três Baku-doge. Em cortejo conduziram as bandejas com os crânios encobertos até o saguão de entrada do museu onde lhes esperavam as mulheres. Colocaram as bandejas no centro e fizeram uma grande roda de homens. Cada qual com seus bapo-doge, chocalhos grandes, iniciaram o canto Cibae Etawadu com a participação das mulheres e dançaram em círculo durante mais de uma hora. Neste momento solene do ritual os instrumentos soam acompanhando o canto como percussão. A emissão dos sons não se limita a representar os mortos, é o próprio morto. O bapo é uma espécie de ponte entre os mundos bororo, parte vital do aroe ekeroia: ao movimentar-se faz pulsar vivos e mortos, ao rodar, impregna de vida os objetos, animais, seres humanos, espíritos. Os bapo não são objetos, são sujeitos. Depois cuidadosamente, em cortejo (desta vez com a participação das mulheres) conduziram os crânios para o pavilhão expositivo, entrando na área representativa de suas aldeias. Ali, os colocaram ao lado da vitrine construída no pavimento e iniciaram novamente o mesmo canto. A vitrine foi aberta por um técnico do museu e, ao silenciar do canto, os Bororo depositaram os crânios no lugar previamente preparado. Antes do fechamento da vitrine, um dos chefes cerimoniais ajoelhou-se no chão para alcançar o fundo da vitrine e, colocando suas mãos sob cada um deles, despediu-se em silêncio.
Museu como um campo de leituras antropológicas Guardados no museu como provas indiciais de “uma cultura” e de uma forma específica de uma população humana tratar e conceber mortos e a própria morte, os restos mortais da coleção bororo salesiana permaneceram por décadas em exibição no museu de Campo Grande como “peças científicas”, dizendo tanto sobre aqueles que esses itens visavam representar (os índios Bororo do Mato Grosso) como sobre aqueles que eram capazes de manejar essa
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representação (os ditos missionários afeitos à ciência, aqueles que serviriam como prova de uma possível complementaridade entre o trabalho da ciência e da religião5). Mas, da perspectiva dos agentes envolvidos nesse processo, longe de querer pôr em risco o status científico dessa coleção, algo já consolidado pelo trabalho prévio do museu, tratou-se naquele momento de reformulações museológicas de revitalizar os sentidos do que era compreendido como sendo uma coleção etnográfica, alçando-a à condição de uma ferramenta operante no interior de um sistema de “comunicação intercultural”. O termo, vale frisar, surge aqui como um instrumento conceitual nativo, isto é, como uma peça simbólica manejada no novo aparato discursivo posto em cena pelo projeto museal da instituição. Mostrando-se sensível ao conteúdo programático da Nova Museologia, o velho e antiquado Museu Dom Bosco assumia sua nova identidade – Museu das Culturas Dom Bosco – e suas novas feições expográficas com a missão não só de representar quem seriam os índios Bororo como também dialogar com esses agentes, que, estariam ganhando uma nova posição e função naquilo que estamos chamando de processo museal salesiano, um processo sociotécnico gerador de coleções, instituições e agentes culturais contextualmente situados. Indo além, um processo produtor de personagens/posições e de materialidades históricas que se relacionam e viajam juntos em contínua mutação. Dito de outro modo, processo desencadeador do trânsito de agentes que fizeram e fazem da prática da pesquisa, conservação e divulgação de determinadas materialidades que vêm sendo sucessivamente resignificadas como “etnográficas” como um meio de conciliar uma ação social sempre ancorada entre três eixos indissociáveis: ciência, religião e política. Coleções etnográficas e os processos sociais que se desenrolam em sua causa de fato se consolidaram como campo para novas pesquisas acadêmicas que, afortunadamente, não param de se multiplicar. Mas, no bojo dessas empreitadas, essas coleções e os discursos e as práticas a elas associados também apontam para questões que devem ser melhor trabalhadas pela antropologia e que se embaralham nesse “indefinido, elusivo, provocante, irritante e insatisfatório” objeto (DURAND, 2007: 384) que continuam a desafiar os antropólogos: os museus etnográficos. Afinal, o que, quem e por que esses museus e suas coleções representam? Quem lhes assegura a legitimidade de sua representação? Se seu modelo museal advindo tanto dos grandes museus nacionais europeus (LE GOFF, 1992) como dos nobilíssimos museus de ciência vinculados àquilo que foi designado como a era dos museus já não se sustenta, quais seriam os modelos alternativos? Estruturalmente fincados entre o passado e o futuro, os museus etnográficos – sejam os científicos ou aqueles construídos e mantidos por missionários católicos em nome da ciência – desafiam especialmente os pesquisadores a repensarem as virtudes e os limites da sua produção de conhecimentos e 5 Essa temática, a articulação dos sentidos de ciência e religião nos museus salesianos, foi alvo de análise do texto “Patrimônio etnográfico salesiano na América do Sul: entre a ciência e a religião” (SILVA, 2014), cuja versão se encontra no prelo.
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os efeitos práticos do seu saber disciplinar sobre as populações que são e ou foram alvo de suas análises acadêmicas. Seja assistindo como espectadores ou participando como agentes de produção e reprodução dessas instituições/tecnologias de saber, os antropólogos, especialmente, se interrogam: a antropologia contemporânea (ou as tantas antropologias) teria algo a contribuir com a base epistemológica desses novos conhecimentos museais? Qual o papel que os antropólogos podem e devem desempenhar nesses “lugares de memória” (NORA, 1984), administrados por específicas políticas de patrimônio? Em trabalho precedente (SILVA, 2011), partimos dessas questões (ou modos de se interrogar os museus etnográficos) para introduzirmos um balanço bibliográfico que fosse capaz de mapear como o tratamento da dimensão material da vida social foi sendo reconfigurado ao longo da história de formação e consolidação da antropologia enquanto uma disciplina acadêmica e científica6. Mas, se foge do escopo deste texto recuperar o dito balanço, para oferecermos possíveis pistas relacionadas às perguntas elencadas acima e explicitarmos de que modo essa discussão nos ajuda a construir nosso problema entorno dos museus dos missionários, vale a pena explicitar e sintetizar a linha mestra que costurou os vários argumentos dos autores elencados naquele momento: museus, nas últimas décadas, emergiram e se consolidaram como objetos antropológicos e etnográficos. Com mais ênfase, passaram a ser encarados como expressões de processos sociais que se estendem para além da sua pura materialidade ou limites institucionais. Inspirado pelas formulações de Handler7, por exemplo, Nuno Porto organiza o argumento acerca dessa nova condição dos museus frente à antropologia ao enquadrá-los como um aparelho “constitutivo de novos objetos, saberes e lugares sociais, necessários e complementares aos processos da sua formulação enquanto espaço de representação” (2009: 23). De uma forma cabal, o autor sentencia: “museus produzem relações sociais e estruturam representações culturais” (idem). Valendo-se daquilo que descreve como o “deslocamento contemporâneo do espaço discursivo da etnografia” apontada por autores como Marcus (1998), as condições acima anunciadas garantem aos museus a sua assunção como profícuos campos de pesquisa. É justamente a partir dessa perspectiva que olhamos para a cena museal tecida em torno da remoção dos restos mortais bororo do antigo museu e da sua inserção no movo projeto museal salesiano. Ler a ação transcorrida nesses espaços de interação e produção simbólica como um texto social, que exige deciframentos para além dos termos que os agentes em questão se valem para construí-lo. Dita de maneira enfática, não se trata de pôr à prova os acontecimentos e conhecimentos gerados por esses espaços de ciência e memória que hoje se pretendem interculturais, como se pudéssemos assumir a função de fiéis das boas e más versões museológicas. Em outra direção, nos interessa compreender como elas podem ser escritas e quais condições asseguram a sua verossimilhança. 6 Referência ao capítulo 2,“Uma nova era para as musas etnográficas”, da tese Mapa de Viagem de uma coleção etnográfica – A aldeia Bororo nos museus salesianos e o museu salesiano na aldeia bororo (SILVA, 2011). 7 Ver especialmente “A museum is an institution in which social relationships are oriented in terms of a collection of objects which are made meaningful by those relationships – though these objects are often understood by museum natives to be meaningful independently of those social relationships” (HANDLER,1993:33).
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O caso do museu salesiano, por exemplo, transformado física e ideologicamente, agora aberto para índios encarnados e desencarnados8, nos possibilita uma fresta para observarmos fragmentos de um específico processo histórico de compatibilização categorial. Estamos falando da emergência na relação entre missionários e índios Bororo do termo “sagrado” como um código de mediação, isto é, como um instrumental simbólico capaz de nomear experiências díspares, mas entendidas por cada parte de um sistema de comunicação como algo comum e traduzível por uma dada categoria compartilhada e contextualmente significada9. Em trabalho anterior dedicado à análise e comparação de dois projetos culturais em curso na aldeia de Meruri (SILVA, 2009), registramos vários depoimentos nos quais determinados agentes bororo (professores indígenas, líderes comunitários, curadores do centro de cultura, etc.) expressavam em suas falas uma relação sinonímica entre “cultura bororo” e “sacralidade”. Era justamente a condição desta dita cultura portar o sagrado e/ou a religiosidade tradicional de um povo que justificava para esses agentes o sentido político e moral daquilo que eles descreviam como “resgate da cultura bororo”. A participação desse grupo de agentes indígenas nesses rituais museológicos precisa ser entendida a partir desse contexto: o engajamento em um movimento pela valorização das ditas práticas e conhecimentos tradicionais, instâncias postas em risco no curso do violento processo de relacionamento desse grupo indígena com a população envolvente, inclusive com os próprios missionários. Engajados com os processos culturalistas de reafirmação da sua identidade étnica, os índios Bororo de Meruri envolvidos nessa trama museal, mais do que reafirmar sua histórica e complicada relação de parceria com esses religiosos ao aceitar participar do rito museal, tateavam aquele novo espaço visando descobrir como ele poderia ser útil a sua causa. Por sua vez, neste espaço museual salesiano refigurado, os missionários, por meio da ação patrimonial posta em cena via museu, tentavam prestar contas com o seu passado de missão, isto é, assumir que se houve erros relacionados com a denunciada interferência cultural, acertos poderiam também ser constatados frente ao sua atuação enquanto guardiões de memórias culturais. Índios Bororo e o museu dos padres salesianos, enfim, agora juntos em nome de uma cultura a ser preservada, trabalharam em conjunto para a promoção desses rituais museológicos, cada um ao seu modo e a partir dos seus próprios repertórios, inspirados por aquilo que cada uma dessas partes talhou na sua experiência compartilhada da missão como sendo o “sagrado”.
8 No mesmo texto divulgado pelo site do museu, eles informam, com a mesma performatividade da “verdade etnográfica” que lhes é característica, que os ossos e crânios ali seriam compreendidos pelos Bororo como Aroes, expressões de entidades extracorpóreas nativas. Uma vez mortos, acreditariam os índios, as almas associadas àquelas ossadas poderiam circular pelos três céus bororo, visitando esporadicamente seus parentes vivos por meio de rituais. 9 Sobre códigos de mediação, ver Montero (2006). Na tese de doutorado (SILVA, 2011), também fazemos um específico uso desse conceito para pensar coleções etnográficas como um código historicamente em operação.
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O projeto visual enciclopédico missionário e sua tese antropológica basilar
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A primeira tarefa para reenquadrarmos o mito museal salesiano para além daquilo que ele pretende afirmar é a desnaturalização das categorias que o sustentam. O dito “sagrado”, que estaria imanente a coleção bororo sob guarda salesiana, antes de ser tomado como instância cosmológica estruturante de condições humanas universais, isto é, como um elemento exterior e superior às relações sociais, precisa ser investigado como uma categoria emergente desse mesmo processo de interações sociossimbólicas que constituem tanto os museus missionários e como as suas coleções. Uma forma de constatação desse suposto seria a verificação daquilo que pode ser descrito como o projeto visual enciclopédico missionário e sua tese antropológica basilar. Retomemos aqui alguns argumentos trabalhados na tese de doutorado, agora retrabalhados e enriquecidos com novas referências.
I A ação de etnografar por meio de documentos a edição de duas exposições missionárias de importante relevo histórico – a Exposição Missionária do Vaticano, de 1925; e a Exposição Geral das Missões Salesianas em Turim, de 1926 – durante a pesquisa de doutorado nos deu acesso ao projeto visual enciclopédico dos padres missionários católicos, especificamente dos religiosos salesianos. Projeto visual materializado uma específica forma de promover exposições públicas e que redundaram na criação de museus missionários etnográficos que hoje nos servem de provas da operacionalidade de uma tese antropológica missionária em contínua atualização. Mas, antes de examinarmos esse projeto visual enciclopédico estruturante de uma série de museus etnográficos religiosos espalhados pelo mundo, inclusive dos salesianos, vejamos de que modo ele está ancorado sobre a matriz de uma “etnologia confessional” ainda operante no cabedal discursivo dos missionários, como bem demonstrou Araújo (2013), ao se debruçar sobre a figura do Padre Schmidt10 e seu projeto científico-etnológico e religioso. Agente também presente em nosso contexto etnográfico, Schmidt foi o curador da Exposição Vaticana de 1925 e estabeleceu os critérios de coleta e tratamento científico do colecionismo institucional efetuado pelos missionários ao redor do mundo a partir da década de 20 do século passado. Respaldada por autores como Stefan Dietrich, An Vandenberghe e Sánchez Gómez, Araújo bem ilustra por meio da breve análise do trabalho desse padre etnólogo como determinados agentes se constituem historicamente por meio do trânsito entre territórios científicos e religiosos, dinâmica, aliás, que irá marcar de modo decisivo tanto o processo de constituição dos museus missionários como as trajetórias dos agentes associados a essas instituições. Trajetórias que, se não dissolvem a institucionalidade de campos de forças historicamente delineados (a Igreja, a academia, etc.) e dos seus específicos projetos de nominação e ordenação do real, nos obrigam a ter maior rigor histórico para 10 “O padre Schmidt foi professor de etnologia e linguística nas universidades de Viena e Friburgo, doutor honoris causa pela Universidade de Viena, presidente honorário da Sociedade de Antropologia de Viena, fundador da revista e do Instituto Anthropos e responsável pelo setor de etnologia da Exposição Missionária Vaticana de 1925” (ARAÚJO, 2013: 31).
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compreender de que modo o trânsito por entre esses campos fecundaram e transformaram cada um dos lados das fronteiras com as suas categorias móveis – e muitas vezes híbridas. Em seu texto, a autora nos mostra como a produção intelectual do Padre Schmidt pode ser útil para observarmos um interessante efeito looping dessa relação entre ciência e religião, que, vale notar, até hoje é constitutiva dos discursos dos museus missionários. Numa frente, nos atesta a autora, a antropologia desse padre-etnólogo não se prestava como um mero instrumental para o projeto evangelizador da Igreja Católica. “Ao invés disso, eram as missões que deveriam potencializar essa antropologia enviando dados que pudessem consolidar um corpus de ideias” (ARAÚJO, 2013: 33). Mais adiante ela complementa, nos levando para a um novo ponto de tangenciamento aparente entre ciência e religião que nunca se completa. “Por outro lado, apesar de não pretender colocar a antropologia a serviço da missão, Padre Schmidt a colocava a serviço da fé: tinha como meta comprovar a hipótese da existência de uma religião primordial monoteísta” (idem). Para Schmidt, seria a ciência, pelas mãos da etnologia, que confirmaria a pertinência histórica e civilizatória do projeto evangelista católico. Assentado sobre as teses científicas do monoteísmo primordial11 e da degenerescência dos povos, o religioso acreditava que seriam as missões, por meio da sua rede de coleta de informações e de provas de campo (coleções etnográficas), que informariam à ciência qual política civilizatória a ser aplicada e quais seriam os melhores agentes para ministrá-la. Do ponto de vista de Schmidt, ciência e religião estavam ungidas pelo mesmo espectro da verdade, ou seja, de Deus, a razão única das leis de todo o universo. Frente aos argumentos oferecidos por Araújo, fica claro que no lugar de investigar a partir dos museus missionários a lógica da prática de agentes circunscritos em campos limitados (o campo científico, o campo religioso, o campo museológico, etc.), trata-se de compreender a pragmática de manipulação de categorias em circulação enquanto essas participam da tecitura de uma rede social que se reproduz e se transforma pela história. Essa produção/circulação de categorias deve ser nosso fio de Ariadne usado para historicizarmos as relações que constituem, a um só tempo, a inteligibilidade daquilo que é percebido como “diferença” e os agentes que permanecem constantemente em disputa pela legitimidade de significá-la. Mas, o que tudo isso tem a ver com o museu missionário dos salesianos e com o rito museal posto em cena pelos índios Bororo de Meruri? Absolutamente tudo. Quando homens e mulheres de Meruri e os agentes museais associados ao projeto missionário salesiano executaram em parceria a remoção e reinstalação dos restos mortais no sistema de comunicação visual do museu reconfigurado, o fizeram em nome de uma sacralidade de uma cultura que só pôde transparecer ali como algo inerente a essa cultura por efeito histórico desse mesmo sistema, que permanece em contínua operação e reatualização de categorias. Dito de um modo mais explícito, coleções e museus missionários, estirpe de instituição da qual o museu salesiano faz parte, foram formados historicamente não somente para mostrar povos e culturas. Indo além, coleções e museus missionários servi11 Ou seja, até o mais primitivo dos primitivos “teria um substrato religioso monoteísta” (2013:32).
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ram como tecnologias para padres produzirem visualmente o sagrado enquanto uma categoria antropológica. Revisitemos agora o projeto visual enciclopédico missionário a fim de deixar esse argumento mais claro.
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No projeto visual enciclopédico católico que deu origem aos atuais museus missionários, todo o universo material que pudesse ser coletado a fim de remeter às paisagens por onde se espalhavam os religiosos pelo planeta era classificado, organizado e exibido. Postos num museu-tablado para encenarem o teatro-mundo, lá estavam coleções zoológicas, botânicas, mineralógicas, paleontológicas, arqueológicas e etnográficas, essas últimas, ocupando papel de destaque. Afinal, eram elas que encenavam a humanidade em toda a sua variedade física e cultural. Mas, inscritas naquilo que seria chamado de cultura material, a humanidade era apresentada por meio das coleções etnográficas em sua dupla face de Jano. De um lado, desdobrava-se em “diferença”, de outro, na reafirmação de sua unidade. Será justamente esse ponto de convergência entre os projetos científicos e religiosos dos padres católicos. Num espaço de intersecção, ambos se perguntariam: o que daria unidade àquilo que só existe enquanto multiplicidade? A religião já teria a sua resposta (uma única filiação divina). Mas se os religiosos contribuiriam para que a ciência chegasse a sua versão, a própria ciência acabaria por corroborar com o postulado universalista católico. Assim, no teatro-mundo do museu missionário, nada mais prudente que deixar que a humanidade metaforizada em coleções etnográficas apresentasse em forma de provas a tese antropológica da missionação católica fundamental, a mesma que determinou uma específica acepção do termo “cultura” ainda operante no campo missionário, como demonstrou Araújo no artigo acima referido: a despeito de um dito baixo estágio de desenvolvimento material e técnico que marcaria as sociedades não-ocidentais, seria possível observar nesses povos o desenvolvimento de uma cultura religiosa, ética e social. Servindo como elemento geral da condição humana, uma protorreligiosidade seria o índice da igualdade entre os homens e seria parte do trabalho missionário identificá-la, para, a partir daí apoiá-la, desenvolvê-la ou corrigi-la. Eis aqui o sentido civilizatório e antropológico da ação catequética católica. E no interior desse específico arcabouço epistemológico, também está posto o lugar do objeto etnográfico dentro do projeto intelectual e espiritual missionário; tema que nos interessa particularmente, quando, é bom lembrar, em última instância, estamos tentando historicizar os modos de uso pelos religiosos de um dito conceito científico em transformação: a cultura. Desse modo, se “religião”, como foi demonstrado acima, era entendida por esses agentes religiosos como um fator de desenvolvimento societário integral de todas as populações humanas, os objetos etnográficos serviriam como índices científicos e teológicos para mensurá-los. Todavia, é importante observar que há aqui uma importante diferenciação do projeto intelectual evolucionista que orientava coetaneamente os museus etnográficos leigos frente aos quais os museus missionários procuravam se espelhar. O foco missionário não estava direcionado, num primeiro plano, à simples medida do desenvolvimento material dos povos no intuito de recons-
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tituir uma história evolutiva de toda humanidade. Afinal, comungando com o etnocentrismo de seu tempo, para os religiosos católicos, o atraso civilizatório dessas populações era tomado como um dado inconteste. O projeto antropomuseológico referendado por Roma queria algo a mais. Por meio dos objetos etnográficos, tratar-se-ia, primeiro, de identificar o religioso na vida nativa original pré-cristã, e quantificar o seu grau de acerto ou desvio. Mas, como bem lembra o documento Contributo delle Missioni Cattoliche Italiane all’Incremento della Civiltà, della Scienza e degli Interessi Nazionali, publicação produzida pela Associação Nacional de Apoio aos Missionários Católicos Italianos com normativas sobre coleta de material para organização de exposições coloniais italianas, o programa missionário católico precisava de contrastes. Ou seja, os religiosos precisavam expor com clareza o caráter das crenças e superstições dos outros povos; exibir quais seriam os seus ídolos e objetos de cultos; descrever como seriam seus ritos fúnebres e nupciais; evidenciar as supostas relações entre a magia e o exercício da medicina, etc. Ainda limitados com os então escassos recursos audiovisuais, tais exposições dependiam da materialidade dos objetos, isto é, de sua função indicial, para remontar o que seriam aqueles sistemas de crenças. Por outro lado, em face à suposta ação civilizatória católica, os objetos novamente seriam tomados, externamente às relações entre missionários e missionados, em parâmetros para demonstrar ganhos materiais e morais advindos da incorporação da religião cristã; internamente às relações, como plataformas de um espaço simbólico transcultural12, onde cada uma das partes, apesar das diferenças de expressão cultural e artística, comungavam uma mesma fé em um ente sobrenatural superior e comum a todos. Esse movimento pode ser bem ilustrado por meio do apoio pontifício dado já no século XIX para o desenvolvimento das “artes indígenas” nos territórios de missão, sobretudo na Ásia. Documentos da Propaganda Fide atestam, por exemplo, a aprovação pontifícia “dos valores artísticos e tradicionais japoneses”, veiculados na arte sacra católica local. Menciona também o encorajamento do Vaticano para o desenvolvimento de uma arte japonesa cristã criada a partir desses valores nativos13. Em outro documento, que expressa uma afinidade entre diferentes linguagens expressivas cristã e chinesa, uma arte sacra chinesa católica é enaltecida, sendo lembrado que ela não se reduz a uma mera cópia dos padrões ocidentais14. Enquadrada nesta chave, religião abre aqui espaço para o conceito científico de cultura.Todavia, este último, quando modelado pelas grades intelectuais cristãs (TAMBIAH, 1990; POMPA, 2003; MONTERO, 2006), por sua vez, nas mãos missionárias, e de algumas correntes antropológicas laicas e fenomenológicas, importante reconhecer, devolverão o conceito ao colo do “sagrado”, 12 Em linhas gerais, estamos falando da incorporação de estilísticas e técnicas artísticas não europeias na produção sacra local. Por exemplo: produções em nanquim retratando cenas bíblicas, ornamentação de oratórios para o panteão católico com estruturas tradicionais dos imaginários nativos, técnicas escultórias para materialização de ícones católicos, etc. Importante observar que nesse âmbito podemos identificar uma interessante tensão conceitual entre a passagem do “objeto etnográfico” para o “objeto artístico”. 13 Sacrae Congregationis de Propaganda Fide Memoria Rerum.Vol. III/2, 1815-1972. Incoraggiamento dell’arte indígena. Prot. 1475/35 Rubr. 35/1 Sylloge 483. A S. E. Rma Mons. Paolo Marella Delegato Apostólico del Giappone (1 de giugno 1935), pg. 788. 14 Sacrae Congregationis de Propaganda Fide Memoria Rerum. Vol. III/2, 1815-1972. Della promozione dell’arte cristiana in China. Prot. 2546/32 Rubr. 21/2. Collect. Com. Synod.V (Peiping 1932) 705 -706. Sylloge 436. A S. E. Rma Mons. Celso Costantini, Delegato Apostolico della Cina (15 de luglio de 1932), pg. 784.
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como demonstramos em esforço etnográfico anterior (SILVA, 2009). Quando o padre Schmidt declara em suas diretrizes para a coleta etnográfica15 vaticana que pretende, de um lado, mostrar o desenvolvimento das diversas civilizações do mundo e, de outro, mostrar a grande diferença que existiria entre o desenvolvimento da cultura religiosa, étnica e social e o desenvolvimento material e técnico desses povos, ele anuncia que para tanto os missionários precisam promover uma coleta sistemática e científica de objetos (naturais ou reduzidos em forma de réplicas) ou fotografias de templos e lugares de culto; bosques, árvores ou pedras sagradas; emblemas ou peças utilizadas em rituais totêmicos; acessórios ritualísticos, como vestimentas, máscaras e insígnias; itens de magia, superstição e sortilégio; objetos de referência a ritos de iniciação, puberdade, purificação, exorcismo, casamento... Schmidt, o homem que estabeleceu pontes conciliatórias entre o discurso religioso e científico de sua época, também estava definindo os termos pelos quais a moderna categoria antropológica cultura seria absorvida pela Igreja: cultura enquanto um conjunto de crença e rito (ARAÚJO e SILVA, 2007).
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15 Esposizione Missionaria Vaticana. Pour la section d’ethnografie.Texto assinado pelo Padre W. Schmidt. Localizado no Arquivo Salesiano Central de Roma (M34400 A838).
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Vitrine do Museu das Culturas Dom Bosco. Instalada no chão, foi criada para fazer alusão a “o caminho das almas”, linha imaginária que divide a aldeia bororo tradicional em duas metades exogâmicas Tugarege e Ecerae. Nela, abaixo dos parikos, os cocares bororo, foram depositados os restos mortais, longe dos olhos dos visitantes, guardados entre Baku, materiais confeccionados a partir de folhas do buriti. Fotos: Aramis Luis Silva e Carla Calarge.
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Vista parcial do pavilhão de exposição permanente do Museu Dom Bosco. Seção dedicada aos Bororo. Foto: Aramis Luis Silva.
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Referências Bibliográficas ALBISETTI, César & VENTURELLI, Ângelo. Enciclopédia bororo: Vocabulários e Etnografia. Campo Grande: Museu Regional Bom Bosco, 1962, vol. I.
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---------- Enciclopédia bororo: Lendas e antropônimos. Campo Grande: Museu Regional Bom Bosco, 1969, vol. II. ----------- Enciclopédia bororo:Textos dos cantos de caça e pesca. Campo Grande: Museu Regional Bom Bosco, 1976, vol. III, parte 1. ------------ Enciclopédia bororo: Textos dos cantos festivos. Campo Grande: Museu Regional Bom Bosco, 2002, vol. III, parte 2. ARAÚJO, Melvina. “Antropologia na missão: relações entre a etnologia confessioal de padre Schmidt e a antropologia acadêmica”. Religião & Sociedade. Volume 33. Número 1, 2013. ARAÚJO, Melvina; SILVA, Aramis Luis. “Fé na Cultura”: Índios, missionários e mediação cultural. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 13, n. 27, p. 165-182, jan./jun. 2007. BRANDÃO, Aivone Carvalho e SILVA, Dulcília. Museu das Culturas Dom Bosco: o caminho das almas. Disponível em http://mcdb.web283.uni5.net//arqs/ materia/96_a.pdf. Acesso em 10/14. DURAND, Jean-Yves. “Este obscuro objecto de desejo etnográfico: o museu”. Etnográfica. Vol 11 (2), 2007. HANDLER, Richard. “Na anthropological definition of the Museum and its purpose”. In: Museum Athropology, vol. 17, n 1, p. 33-36, 1993. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora Unicamp, 1992. MARCUS, GEORGE. “The one and future ethnographic”. In History of the Human Science – Special Issue: The Archive, vol. 11, nº 4,1998, p. 49-63. ARAÚJO, Melvina. “Antropologia na missão: relações entre a etnologia confessioal de padre Schmidt e a antropologia acadêmica”. Religião & Sociedade. Volume 33. Número 1, 2013. MONTERO, Paula. Deus na aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Ed. Globo, 2006. ----------Selvagens, Civilizados, Autênticos - A produção das diferenças nas etnografias salesianas (1920-1070). 1ª edição. São Paulo: Edusp, 2013. NORA, Pierre. Entre mémoire et histoire: la problématique des lieux. In: Pierre NORA (org.). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, [1984]. Vol.1 La République. POMPA, Cristina. Religião como Tradução. Editora Edusc. Bauru, 2003. PORTO, Nuno. Modos de objectificação da dominação colonial: o caso do Museu do Dundo, 1940 – 1970. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.
Aramis Luis Silva
SILVA, Aramis Luis. Deus e o Bope na terra do sol: culturalismos na história de um processo de medição. São Paulo: Humanitas, 2009. ----------Mapa de viagem de uma coleção etnográfica – A aldeia bororo nos museus salesianos e o museu salesiano na aldeia bororo. Tese defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo. São Paulo, dezembro de 2011. ----------Patrimônio etnográfico salesiano na América do Sul: entre a ciência e a religião’, no prelo. TAMBIAH, Stanley. Magic, Science, and the scope of the rationality. Camdrid�������� ge: Cambridge University Press, 1990. Documentos: Contributo delle Missioni Cattoliche Italiane all’Incremento della Civiltà, della Scienza e degli Interessi Nazionali. Opúsculo publicado pela Associação Nacional de Apoio aos Missionários Católicos Italianos. Turim, Itália, 1909. Esposizione MissionariaVaticana.Pour la section d’ethnografie.Texto assinado pelo PadreW.Schmidt.Localizado noArquivo Salesiano Central de Roma (M34400A838). Deveria entrar entre os documentos. Para esclarecer creio que vale inserir nota. Sacrae Congregationis de Propaganda Fide Memoria Rerum.Vol. III/2, 1815-1972. Incoraggiamento dell’arte indígena. Prot. 1475/35 Rubr. 35/1 Sylloge 483.A S. E. Rma Mons. Paolo Marella Delegato Apostólico del Giappone (1 de giugno 1935), pg. 788. Sacrae Congregationis de Propaganda Fide Memoria Rerum. Vol. III/2, 1815-1972. Della promozione dell’arte cristiana in China. Prot. 2546/32 Rubr. 21/2. Collect. Com. Synod. V (Peiping 1932) 705 -706. Sylloge 436. A S. E. Rma Mons. Celso Costantini, Delegato Apostolico della Cina (15 de luglio de 1932), pg. 784.
Artigo recebido em dezembro 2014. Aprovado em março 2015
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A BIENAL DE SÃO PAULO, O DEBATE ARTÍSTICO DOS ANOS 1950 E A CONSTITUIÇÃO DO PRIMEIRO MUSEU DE ARTE MODERNA DO BRASIL Profª Drª Ana Gonçalves Magalhães1
RESUMO: A partir da primeira etapa da pesquisa em andamento sobre as obras incorporadas ao acervo do antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) – hoje no acervo do Museo de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), que resultou na exposição Um Outro Acervo do MAC USP: Prêmios-aquisição da Bienal de São Paulo, 1951-1963 (MAC USP, 2012-2013), procuramos reavaliar algumas premissas adotadas pela historiografia da arte no Brasil na análise da premiação de aquisição e seu papel na constituição de um acervo internacional de arte moderna para o país. Tais aspectos nos levaram a revisar a dimensão do debate em torno das experiências de abstração nos anos 1950, o sistema de seleção das obras para a premiação (que sugere um engajamento muito próximo com o contexto internacional), a constituição de um sistema internacional de circulação de artistas e de obras, dentre outras questões. PALAVRAS-CHAVE: Bienal de São Paulo, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Colecionismo, Arte Moderna
ABSTRACT: Taking the exhibition Another Collection of MAC USP: Acquisition Prizes of the Bienal de São Paulo, 1951-1963 (MAC USP, 2012-2013) as a framework, we have searched to analyse the set of works gathered for the collection of the former São Paulo Museum of Modern Art (MAM) by means of the acquisition prizes of the Bienal de São Paulo in the 1950s, today belonging to MAC USP. We thus proposed to revaluate some of the premises adopted by art historiography in Brazil in regard to the acquisition prize system of the São Paulo Biennial, and its role in the making of an international modern art collection among us. Such aspects led us to revise the dimension of the abstraction debate in the 1950s, the system of selection of works suggesting a strong engagement of local art criticism with the international context, the making of an international system of circulation of artists and works, among others. KEYWORDS: Bienal de São Paulo, São Paulo Museum of Modern Art, Collectionism, Modern Art
1 Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.
Ana Gonçalves Magalhães
Mas a Bienal – pelo menos para o Brasil – é um pequeno mundo ao qual será sempre preciso retornar, para descobrir roteiros novos e paisagens e formas talvez inéditas. Murilo Mendes, “Sugestões da Bienal”, Diário Carioca, 02/12/1951
O MAC USP possui um conjunto significativo de obras oriundas do ambiente da Bienal de São Paulo1. As obras exibidas na Bienal de São Paulo que o Museu abriga já foram expostas algumas vezes, nas três últimas décadas, para ilustrar a história do evento2. Mas ainda ainda estamos por refletir sobre essas obras enquanto acervo de museu. Nesse sentido, a historiografia que se constituiu até então deverá ser reavaliada, sobretudo no que diz respeito à maneira como a premiação de aquisição foi tratada até agora e qual a percepção que se formou sobre esse conjunto. Não há, até o presente momento, um estudo sistemático sobre o sistema de premiação da Bienal de São Paulo, que além de ter sido objeto de uma exposição em 20123, nos levou a assumir algumas premissas que, de fato, aos poucos foram sendo desconstruídas pela documentação pertinente4. Em primeiro lugar, temos de reavaliar a premissa de que a premiação de aquisição era feita sem nenhum critério – ou sem um critério claro, discutido e estabelecido pelo corpo qualificado de críticos e diretores artísticos em torno do antigo MAM. Isto é, de que as obras escolhidas dentro dessa chave refletiriam, assim, o gosto pessoal dos patronos que haviam contribuído para sua aquisição. Esta premissa determina a segunda: de que as obras reunidas dessa forma constituíram um acervo de “segunda ordem”, e menos relevante ou menos representativo no entendimento de uma narrativa de arte moderna, para o primeiro museu brasileiro dedicado à arte moderna. Muito já se escreveu sobre as edições da Bienal do período, ressaltando seu caráter didático, o quanto contribuíram para a formação de um público para a apreciação da arte moderna no Brasil, e na consolidação de uma história da arte moderna internacional da qual o meio artístico brasileiro fazia parte5. 1 Falar do “ambiente da Bienal de São Paulo” significa considerar a relação do acervo do Museu com mostras de tipo Bienal num recorte mais amplo, contemplando obras e artistas que participaram das edições da Bienal de Veneza, no mesmo período que analisamos aqui (1951 a 1963). 2 Cf. Prêmios da Bienal de São Paulo. São Paulo: MAC USP, 1985. Pela primeira vez, com esse volume e a exposição que ele documentava, o MAC USP fazia o levantamento sistemático das obras em seu acervo, premiadas nas edições da Bienal de São Paulo até aquele momento, mas sem fazer a distinção entre a premiação regulamentar e a premiação de aquisição, que é um dos pontos a ser tratado neste artigo. Tal lista serve, até hoje, de referência para qualquer pesquisador que queira estudar essas obras. 3 Veja-se exposição Um outro acervo do MAC USP: Prêmios-aquisição da Bienal de São Paulo, 1951-1963, MAC USP, de 25 de agosto de 2012 a 28 de julho de 2013, com curadoria da autora. Disponível no site: http://www.mac.usp.br/mac/EXPOSI%E7oes/2012/outroacervo/index.htm. 4 Para a exposição, fizemos o levantamento da documentação pertinente nos dossiês de artistas e no fundo histórico do Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal de São Paulo. Ao mesmo tempo, esta foi cotejada com as pastas dos artistas da Seção de Catalogação do MAC USP. Além disso, o conjunto documental foi confrontado com os catálogos das edições da Bienal entre 1951 e 1963. 5 Optamos por indicar apenas alguns poucos títulos mais recentes que constituem essa literatura na referência bibliográfica ao final do texto. Observamos que quando se escreveram histórias da Bienal de São Paulo, estas percorrem toda a trajetória da instituição até os dias atuais. Por outro lado, há uma farta literatura sobre a presença de artistas e grupos de artistas que participaram na Bienal de São Paulo e sua relação e impacto no meio artístico brasileiro. Mais recentemente, surgiu uma literatura internacional, muitas vezes encomendada pelos órgãos diplomáticos e/ou governamentais que se ocuparam dos pavilhões de seus países nas edições da Bienal paulistana, mas que procura dar conta das participações dos artistas de seus países. O caso mais recente é o do volume organizado por Ulrike Gros e Sebastian
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Entretanto, ainda está por ser feita uma reflexão sobre o papel do evento na constituição do acervo mais relevante de arte moderna que o País tem. Tomamos o ambiente da Bienal de São Paulo, qual seja, esta moldura através da qual estruturou-se um sistema internacional de arte, para fazermos alguns apontamentos sobre o papel sobretudo deste acervo estrangeiro na constituição de uma narrativa de arte moderna para nós. Considerando-se ainda os novos estudos em história da arte, que apontam para a revisão da história das exposições na formação das noções de arte que foram se cristalizando através da historiografia, bem como o fenômeno da globalização e seus reflexos no campo da arte, a Bienal de São Paulo e a formação do acervo do antigo MAM são temas privilegiados para contribuirmos nessas direções. Estamos diante de duas instituições históricas, que tem sido vistas à luz de acontecimentos da última década, marcada pelo boom de mostras sazonais6. Mas principalmente ao falarmos da Bienal de São Paulo, ela estaria ligada à era “pré-global”, em que a linguagem artística modernista começou a ser divulgada como um valor da cultura das sociedades ocidentais, naquele instante entendida como universal. Nas duas últimas décadas e diante da intensificação das políticas multiculturalistas, apoiadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), tratadas a partir das teorias do pós-colonialismo, a experiência da Bienal de São Paulo e, principalmente, sua importância na formação do primeiro acervo modernista internacional do Brasil, torna-se um estudo de caso fundamental. Não só porque essas instituições, aqui, haviam saído do centro pela primeira vez, mas porque isto se deu e só foi possível graças ao papel desempenhado pelo País no contexto maior da Guerra Fria. Nos anos 1950, assim como na última década, o Brasil apresentava condições sócio-político-econômicas favoráveis à implantação de uma economia da arte, para contrabalançar as grandes perdas, principalmente do território europeu, com a II Guerra Mundial. Por outro lado, no momento de instauração das instituições de arte moderna entre nós, o País emergia como grande aliado da política externa norte-americana, de hegemonia sobre o continente latino-americano, entendido assim em bloco por conta das ambições da nova potência econômica em que se transformava os Estados Unidos no mundo. Esse contexto, por si só, já é instigante e inovador para os estudos de história da arte que vem sendo desenvolvidos atualmente. Além disso, no que concerne a noção mesma de arte moderna, o conjunto de obras reunidas dentro dessa moldura, também nos coloca novos problemas de como tratar a pertinênPreuss. Cf. Ulrike Groos & Sebastien Preuss (org.). German Art in São Paulo. Ostfildern: Institut für Auslandsbeziungen/Hatje Cantz, 2013, para o qual contribuímos com um texto sobre as obras alemãs dos anos 1950 que permaneceram conosco. 6 No artigo de autoria de Ivo Mesquita para a Revista USP (Cf. Revista USP. Cinquenta anos de Bienal Internacional de São Paulo, São Paulo, n.52, dezembro/fevereiro 2001-2002, pp. 72-77, disponível on-line através do link: http://www.usp.br/revistausp/52/SUMARIO-52.htm), o autor falava em 40 bienais em funcionamento no mundo (p. 74). Na pesquisa feita pela equipe de produção da Bienal de São Paulo em sua edição de 2008, curada por Mesquita, computaram-se 250 bienais ao redor do mundo. Isto é, no intervalo de menos de uma década, esse modelo de exposição multiplicou-se por seis, num período em que curiosamente se começou a falar na sua crise. Na atual bibliografia sobre o assunto, tem-se utilizado a nomenclatura “mostra sazonal” para falar deste gênero de exposição, que tem um periodicidade pré-determinada, mas que pode variar de 2 (Bienal de São Paulo, Bienal de Veneza, Bienal de Havana, etc), 3 (Trienal de Yokohama, por exemplo), 4 (Quadrienal de Roma), 5 (Documenta de Kassel, Manifesta) até 10 anos (Skulpturprojekte de Münster, Alemanha).
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cia de uma narrativa-mestre da arte7. Se, de um lado, tal acervo não corresponde a uma narrativa de arte moderna consolidada através dos manuais de história da arte – que trabalham com os grandes nomes, com a noção de obra-prima e com a experiência vanguardista para constituir a definição de arte moderna por excelência –, por outro, ele apresenta uma configuração datada, e por isso mesmo, de grande interesse para a revisão da historiografia da arte moderna. Ou seja, o fato dele ter sido um acervo constituído dentro das Bienais de São Paulo, torna-o passível de ser visto como uma camada histórico-arqueológica, se assim podemos dizer, de um determinado tempo – no qual ainda se trabalhava com uma narrativa de arte moderna em aberto, cuja cristalização final só veio com os escritos que a sistematizaram no final da década de 1950, dentro e fora do Brasil8. Assim, levantamos aqui alguns elementos para a reavaliação do papel que o sistema de premiação dos eventos Bienal teve na constituição desse acervo, e o que estava em jogo quando se falava de arte moderna naquele momento.
*** Ao receber o acervo do antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), em 1963, a Universidade de São Paulo, por via de seu recém-criado Museu de Arte Contemporânea (MAC) passou a cuidar das coleções mais importantes de arte moderna do País. Além de ter sido o primeiro museu de arte moderna da América do Sul, o antigo MAM havia sido o organizador da segunda exposição de tipo Bienal do mundo, em 1951. Inspirada no modelo de seu equivalente italiano, a Bienal de Veneza9, a versão paulista veio para colocar São Paulo no circuito artístico internacional. Nas palavras do então diretor artístico Lourival Gomes Machado10: Por sua própria definição, a Bienal deveria cumprir duas tarefas principais: colocar a arte moderna do Brasil, não em simples confronto, mas em vivo contato com a arte do resto do mundo, ao mesmo tempo que para São Paulo se buscaria conquistar a posição de centro artístico mundial. 7 Usamos aqui uma expressão adotada por Hans Belting, por exemplo, analisando aquilo que ele chama de “arte global”. Cf. Hans Belting, “Contemporary art as global art: a critical estimate” In: Hans Belting & Andrea Buddensieg (orgs.). The Global Art World. Audiences, Markets, and Museums. Ostfildern: Hatje Cantz, 2009, pp. 38-73, onde ele fala em “master narrative of art”. 8 Para citar apenas dois desses manuais, que até hoje têm enorme influência na formação em história da arte, sobretudo entre nós, devemos lembrar que o famoso livro do crítico britânico Herbert Read sobre a história da pintura moderna – seguido de uma história da escultura moderna – foi originalmente publicado em 1959. Onze anos depois, Giulio Carlo Argan publicava seu Arte Moderna (Cf. Herbert Read, A Concise History of Modern Painting. Londres: Thames & Hudson, 1959 e Giulio Carlo Argan, L'Arte Moderna: Dall'Illuminismo ai Movimenti Contemporanei. Florença: Sansoni Editori, 1970). Ao mesmo tempo, esses autores tão relevantes participaram em diferentes momentos no júri de premiação regulamentar da Bienal de São Paulo, ao longo dos anos 1950. Read foi, inclusive, comissário da representação nacional britânica, naqueles anos. 9 Fundada em 1893, mas tendo se realizado pela primeira vez em 1895, a Bienal de Veneza foi a primeira mostra do gênero, ao criar um evento de arte nos moldes dos que eram realizados dentro das grandes exposições universais do século XIX, mas dissociando-o dos feitos da indústria e da tecnologia. Cf. Bruce Altshuler. Salon to Biennial. Exhibitions that Made Art History, 1863-1959 (Vol. I). Londres: Phaidon Press, 2008. A Bienal de Veneza só viria a se transformar em uma exposição internacional de arte, com convite às participações estrangeiras, a partir de 1908. Seu primeiro objetivo era o de apresentar a produção das diferentes regiões da Itália, com o intuito de consolidar o processo de unificação do país, que havia se iniciado em 1861. 10 Lourival Gomes Machado, apresentação In: I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, outubro a novembro de 1951. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1951 (vol. I), p. 15.
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Gomes Machado falava ainda em “certame artístico internacional”. Isto significava que a apresentação das obras era submetida a uma seleção feita por um júri de críticos, que naquele momento pautavam suas escolhas por aquilo que consideravam ser as poéticas e práticas da arte moderna – entendida naquele contexto como arte da atualidade –, por sua vez interpretadas dentro de categorias de suporte (ou medium) precisas: pintura, escultura e gravura. Para a seleção dos brasileiros, para o que seu diretor artístico chamava de “seção geral”, um time de críticos brasileiros havia sido convocado para analisar os trabalhos enviados. A seção geral era então complementada por salas especiais, dedicadas aos grandes nomes do modernismo brasileiro, que segundo Gomes Machado, se alternariam nas edições vindouras11. No caso das 21 delegações estrangeiras que participaram da I Bienal, o convite era feito aos órgãos diplomáticos competentes que apresentavam sua seleção dentro das categorias previstas. Entretanto, e desde sua primeira edição, um aspecto importante marcaria a formatação das representações estrangeiras na Bienal paulistana. Nos preparativos da viagem que Yolanda Penteado empreendeu à Europa para apresentar o projeto da I Bienal aos órgãos diplomáticos da França, da Bélgica, da Holanda, da Inglaterra, e de outros países previstos em seu roteiro, Gomes Machado preparara um documento orientando-a na negociação com os países a fazer demandas específicas para o Brasil12. Uma delas, que só viria a se efetivar mais para frente, era a organização de uma sala especial dedicada a Vincent van Gogh como representação nacional holandesa. Isso se repetiria nas demais edições, em que os diretores artísticos do antigo MAM negociaram salas especiais sobre as correntes vanguardistas mais importantes do início do século XX, constituindo para São Paulo algo que se consolidaria mais tarde em seus núcleos históricos. Sabemos hoje que tal preocupação – em princípio ligada à formação de um público para arte moderna no Brasil, questão frequentemente levantada pelos críticos modernistas13 – não era só local. A Bienal de Veneza, ao retomar suas atividades no imediato pós-II Guerra, em 1948, passou a dedicar salas especiais de revisão e apresentação dos principais movimentos e correntes modernistas que eram entendidos como precursores e parte constituinte da história da arte moderna, tais como as salas do impressionismo na França, do pontilhismo francês e do divisionismo italiano, do expressionismo, etc.Tratava-se também de restabelecer a conexão da Itália com o ambiente internacional, depois dos duros anos do Fascismo, sobretudo depois da aliança com a Alemanha nazista, entre 1937 e 1943. Nesse mesmo contexto, surgiria ainda a Documenta de Kassel, em 1955, que procurou redimir a Alemanha de seu passado recente de condenação da arte moderna, nas suas formas vanguardistas, que havia motivado a Exposição 11 Em sua primeira edição, a Bienal de São Paulo contemplava salas especiais de Cândido Portinari,Victor Brecheret, Lasar Segall, Livio Abramo, Oswaldo Goeldi, Maria Martins, Bruno Giorgi e Emiliano di Cavalcanti. Nas edições seguintes, apareceriam outros artistas importantes para a história do modernismo brasileiro, tais como Anita Malfatti, Paulo Rossi Osir, Tarsila do Amaral e Flávio de Carvalho. 12 Veja-se carta de Lourival Gomes Machado a Yolanda Penteado, 8 de março de 1951, em papel timbrado do Museu de Arte Moderna de São Paulo, FMS_0023-01, Fundo Francisco Matarazzo Sobrinho, Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal de São Paulo. 13 Veja-se, por exemplo, os escritos de Sérgio Milliet, ainda na década de 1940. A historiografia brasileira entende que um dos marcos da sua direção artística à frente do antigo MAM e da Bienal de São Paulo, entre 1953 e 1957, é justamente uma sequência de mostras das vanguardas históricas no contexto das delegações estrangeiras participantes da Bienal, tais como a sala especial dedicada a Picasso e ao Cubismo pela delegação francesa de 1953; na mesma edição, uma revisão do Futurismo pela representação nacional italiana; e na edição de 1955, a sala especial que a Alemanha dedicou à apresentação dos mestres da Bauhaus.
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de Arte Degenerada em 1937 e resultado na destruição e dissolução em massa dos acervos de arte moderna daquele país. Entretanto, o tom didático da direção artística da segunda, terceira e quarta edições da Bienal de São Paulo por Sérgio Milliet, era lido por seus pares locais como ligado a um projeto de constituição de um acervo de arte moderna para São Paulo. É muito sintomático, por exemplo, que alguém tão próxima ao crítico paulista, como a também crítica Maria Eugênia Franco, comparasse a II Bienal a uma visita a um museu de arte moderna14: (...); do ponto de vista local, deu aos brasileiros uma possibilidade única de formarem uma cultura estética de arte moderna, desde que favoreceu suas duas bases essenciais:a visual e a histórica. Temos ouvido dizer, muitas vezes, que a exposição do Ibirapuera vale por uma viagem pelos museus de arte moderna do mundo. A II Bienal equivale, sem dúvida, a uma viagem ideal pela história da arte moderna, pois dificilmente encontraríamos, reunidas, obras de tanta importância no processo de evolução da arte contemporânea. (…) Na sua parte positiva, poderíamos dizer que o plano da II Bienal, é um plano de professor de história da arte, procurando mostrar as raízes da arte moderna atual, a partir de seu momento mais agudo de ruptura, isto é, a partir do momento em que, apresentando-se como uma reação mais violenta à reação primeira, o expressionismo e o cubismo se contrapõem ao impressionismo. [grifos meus]
Franco, ademais, fala não só na formação de um público para arte moderna, na II Bienal como espaço equivalente a um museu de arte, mas também na preocupação de formulação de uma narrativa de arte moderna, quando sugere que seu plano é de “um professor de história da arte”. Esse plano, que afinal unia produção recente e histórica da primeira metade do século XX, articulada numa narrativa e que se aproximava ao museu de arte moderna, foi de certo modo cristalizado através dos prêmios-aquisição da Bienal paulista. Assim como na Bienal veneziana, havia dois tipos de premiação na Bienal de São Paulo enquanto evento organizado pelo antigo MAM: os prêmios regulamentares e os prêmios-aquisição15. O primeiro tipo de premiação era dado nas categorias de pintura, escultura e gravura, dividindo-se entre premiação estrangeira e premiação brasileira. Através dela, costumava-se celebrar o conjunto da obra apresentado pelo artista premiado. Segundo seu regulamento, não era compulsório que o artista doasse o conjunto ou uma obra do conjunto premiado para o antigo MAM, ainda que muitos dos premiados tenham doado pelo menos uma obra ao Museu, nesses casos. 14 Maria Eugênia Franco, “Importância educativa da exposição”, Reportagem I da série “Panorama da 2a. Bienal”, Última Hora, 1o. de fevereiro de 1954. A imagem da II Bienal como “uma viagem pelos museus de arte moderna do mundo”, naquele contexto, é muito forte, uma vez que esse tipo de instituição de fato ganhou força naqueles mesmos anos, e que o museu de arte moderna ainda era uma novidade mesmo em alguns países da Europa. 15 De fato, o modelo é o veneziano, que já em sua segunda edição em 1897, cria tal sistema de premiação para angariar um acervo de arte moderna para a cidade de Veneza – originalmente uma Galleria Internazionale d'Arte Moderna, hoje em depósito no Museu de Ca' Pesaro.
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Já os prêmios de aquisição da Bienal de São Paulo eram de fato pensados para compor o acervo do antigo MAM. Partia-se de um sistema de mecenato, em que a direção do Museu convidava empresários, associações, colecionadores importantes a contribuir com uma quantia em dinheiro para que se comprasse uma obra ou um conjunto de obras para o Museu16. Em alguns casos, eram os órgãos diplomáticos dos países participantes da Bienal que intermediavam essas aquisições ou as realizavam. Ao contrário da premiação regulamentar, os prêmios-aquisição da Bienal de São Paulo tinham assim um sentido mais claro de permanência. Além disso, os prêmios-aquisição pareciam continuar a obedecer as categorias da premiação regulamentar, ou seja, comprava-se para o antigo MAM obras representativas da pintura, da escultura e da gravura modernas, com algumas poucas exceções17. Percebemos ainda uma presença bastante significativa de obras em papel. Na história da formação do acervo do antigo MAM e sua continuação no MAC USP, o conjunto de obras em papel compõe quase dois terços do total de obras do acervo. No contexto do antigo MAM, elas eram catalogadas dentro da categoria de gravura, ainda que fossem desenhos, guaches, aquarelas ou colagens, obedecendo a uma lógica descritiva dos suportes da arte moderna, que no ambiente das grandes mostras internacionais e dos departamentos dos museus-modelo de arte moderna do mundo ainda parecia pensar em categorias tradicionais. A noção dada pelo termo em inglês prints and drawings (literalmente, gravuras e desenhos), muito corrente no período, foi o que prevaleceu para nós também. Mas ele esconde a riqueza de técnicas de impressão empregadas no período pelos artistas modernistas. Naquele momento, havia uma forte experimentação com as técnicas tradicionais de gravura, aliadas a técnicas reprográficas, ao uso de novos equipamentos gráficos e de larga tiragem, que levaram à elaboração de proposições únicas pelos artistas do período. Mencionamos aqui dois exemplos, sendo o primeiro deles o belo conjunto de gravuras a buril de Henri-Georges Adam, adquiridos graças ao patrocínio da indústria de cristais Prado, na II Bienal de São Paulo18. Nesta série, Adam, ao mesmo tempo em que trabalha com uma técnica tradicional da gravura em metal, elabora suas composições com várias matrizes, como num trabalho de quebra-cabeças, no qual ele vai criando formas abstratas e figurativas. O mesmo ocorre com as gravuras 16 Veja-se, por exemplo, carta de Francisco Matarazzo Sobrinho ao Rotary Club de São Paulo, em papel timbrado da Metalúrgica Matarazzo, datada de 17 de agosto de 1950, pedindo apoio da instituição para a premiação da Bienal. O mesmo conteúdo pode ser lido em carta que Matarazzo endereçou ao Presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, também em papel timbrado da Metalúrgica Matarazzo, datada de 15 de setembro de 1950. FMS_0019-01 e FMS_0022-01, Fundo Francisco Matarazzo Sobrinho, Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal de São Paulo. Ainda que as cartas não façam menção específica à premiação de aquisição, pode-se verificar na documentação das obras incorporadas ao acervo do antigo MAM (hoje no MAC USP) através dessa categoria, a menção aos doadores empresariais e de associações de classe ou culturais. Dentro do conjunto da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, por exemplo, estavam empresas como a Moinho Santista, a indústria de critais Prado, a própria Metalúrgica Matarazzo, entre outros, que contribuíram para esta categoria de premiação. 17 A exemplo da tapeçaria de Émile Gilioli incorporada ao acervo do antigo MAM como prêmio-aquisição Moinho Santista, da IV Bienal de São Paulo. “Defesa da Flor” (c.1957) figurou com um conjunto de tapeçarias modernistas na representação nacional da França na Bienal de 1957, ao lado de Le Corbusier. 18 Henri-George Adam aparecia na representação nacional da França, que em 1953 era antecedida por uma grande mostra retrospectiva de Picasso – cuja estrela era “Guernica” (1937, Museu Reina Sofía, Madri) – e com uma sala especial do Cubismo.
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de Marcel Fiorini19, adquiridas para o antigo MAM com o patrocínio da Caixa Econômica Federal na III Bienal de São Paulo, em 1955. Fiorini emprega a água-forte, o buril e a água-tinta para criar suas composições em cores, nas quais percebemos um arranjo em camadas. Outra grande questão que se coloca diante dessas obras é o debate em torno da abstração, nos anos 1950, no Brasil e no contexto internacional. No caso brasileiro, fala-se da Bienal de São Paulo quase como uma conseqüência da mostra inaugural do antigo MAM, em 1949, “Do Figurativismo ao Abstracionismo”, na qual o primeiro diretor artístico do Museu, o crítico belga Léon Dégand, encontrou séria resistência ao seu discurso em defesa de uma arte abstrata baseada na experiência dos grupos de Arte Concreta, na França dos anos 1930 - para os quais a presença de artistas como Wassily Kandinsky, Theo van Doesburg, Piet Mondrian e o uruguaio Joaquín Torres-García foram personagens fundamentais20. A historiografia da arte no Brasil privilegiou a emergência dos grupos concretistas brasileiros nos anos 1950 e procurou entender a Bienal de São Paulo em diálogo com essas vertentes. Ela exprime, assim, a inflexão desse debate, que assistiu também a retomada do modelo de escola de artes da Bauhaus, por via de um projeto como a da Hochschule für Gestaltung de Ulm (inagurada em 1955)21. Dessas vertentes, além da famoso prêmio regulamentar dado a Max Bill na I Bienal de São Paulo22, há dois casos que merecem destaque. Na II Bienal, o Jockey Club de São Paulo comprou a tela “Composição no. 99” de Friedrich Vorbemberg-Gildewart (representação nacional alemã), artista cujo percurso se fez na relação com grupos como o De Stijl, Cercle et Carré, Abstraction-Création, e que seria nomeado professor da cadeira de comunicação visual da Hochschule für Gestaltung de Ulm, desde seu primeiro ano de funcionamento. Outro exemplo é o de Fritz Winter, prêmio-aquisição na III Bienal de São Paulo, com a obra “Preto Independente no Espaço”, exibida com outras nove pinturas suas. Ao lado de mais quatro artistas e de uma sala especial dedicada a Max Beckmann, ele aparecia como um legítimo herdeiro da Bauhaus de Dessau. De fato, ele havia iniciado sua formação naquela escola em 1927. Com a ascensão do Nazismo, Winter entrou num período de ostracismo, que culminou com seu serviço militar na Polônia e sua prisão pelo exército russo na Sibéria. Libertado em 1949, ele retornou ao seu país no auge do “renascimento” 19 Nascido na Argélia, Fiorini estabeleceu-se em Paris em 1947, e consolidou sua carreira como artista no meio artístico daquela cidade. Participou duas vezes na Bienal de São Paulo, em 1955 e em 1973, como representante da França – com todas as contradições que isso pudesse significar, diante da violenta guerra de independência da Argélia, entre 1954 e 1962. 20 Cf. Ana Gonçalves Magalhães, “O debate crítico na Exposição do Edifício Sul América, Rio de Janeiro, 1949” In: Roberto Conduru & Vera Beatriz Siqueira (orgs.). Anais do XXIX Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. Rio de Janeiro: Comitê Brasileiro de História da Arte / CBHA, 2009, pp. 120-128. 21 Para uma análise das relações culturais entre o Brasil e a Alemanha no contexto da Bienal de São Paulo e o papel desempenhado pela Hochschule für Gestaltung de Ulm nessas relações, veja-se Martina Merklinger. Die Biennale São Paulo. Kulturaustausch zwischen Brasilien und der jungen Bundesrepublik Deutschland (1949-1954). Bielefeld:Transcript Verlag, 2013, resultado de sua tese de doutorado apresentada à Universidade de Bonn. 22 Devemos lembrar que Max Bill não só foi o primeiro diretor da escola de Ulm, como arquiteto responsável por projetar os edifícios da sede da escola. Além disso, tal projeto se ergueu com recursos do braço cultural do Plano Marshall norte-americano – de resgate das economias da Europa depois da II Guerra Mundial. Para uma análise atualizada da relação de Max Bill com o Brasil, veja-se Martina Merklinger, “Konkretes im Bill-Jahr. Max Bill (1908-1994) und seine Begegnungen mit Brasilien”, Martius-Staden Jahrbuch, nº55, 2008.
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da arte moderna ali. No ano seguinte, recebeu prêmio da XXV Bienal de Veneza (1950). O prêmio-aquisição veio no momento em que foi nomeado professor da Academia de Belas-Artes de Kassel. Embora sejam evidentes suas referências às experiências abstratas da Bauhaus, “Preto Independente no Espaço” trabalha com aspectos materiais também importantes, tais como as manchas pretas que parecem saltar para fora da tela e se contrapõem a uma superfície composta de zonas coloridas, marcadas pela gestualidade do artista. Há certa intensidade subjetiva, menos vista nas tendências concretistas daquele momento, mas que talvez resgatem as experiências de Kandinsky e Klee com a cor na primeira fase da Bauhaus. De fato, as experiências com a abstração que estão em pauta nos anos 1950 abrem-se para tendências muito distintas, que envolvem o embate maior da vertente concretista com o informalismo (ou tachismo), e o desdobramento de experimentações com o surrealismo e um forte interesse pela pintura dita “primitiva” (realizada por artistas autodidatas). No que diz respeito à abstração de cunho informal, o próprio Winter reflete essa tendência, na medida em que sua experiência de abstração dos anos 1950 – em que ele esteve presente na Bienal de São Paulo por três vezes – resultou da criação de seu Grupo Zen, em 1949. Originalmente conhecido como Gruppe der Ungegenständlichen (ou o Grupo dos não-objetuais), era formado por ele e outros seis artistas, dentre os quais Willi Baumeister (também presente no acervo do MAC-USP e prêmio-aquisição da I Bienal de São Paulo), e tinha por objetivo retomar as práticas e o ambiente do Cavaleiro Azul (grupo de expressionistas em torno de Kandinsky, da primeira década do século), ao mesmo tempo associando a cor à filosofia zen budista, dando origem a uma vertente de abstração não-geométrica. Será preciso ainda investigar com maior profundidade a presença de artistas ligados aos chamados Art Clubs, e em que medida essas associações propagavam a arte concreta como um equivalente de arte abstrata ou de arte vanguardista (os termos parecem se alternar), sem que necessariamente tal linguagem fosse estritamente expressa pela geometria23. Os casos italiano e austríaco são bastante significativos para a análise dessa questão, pois muitos dos 23 Não localizamos até o momento um estudo sobre a história dos Art Clubs. Através de uma notícia de divulgação da abertura de uma exposição promovida por um dos Art Clubs italianos, em Turim, provavelmente de 1949-50, onde o artista austríaco Gustav Kurt Beck aparece numa foto com um grupo de artistas – dentre eles o italiano Felice Casorati, então presidente do Art Club de Turim – representando o Art Club fundado por ele em Viena, temos algumas informações sobre as atividades dessas associações. Veja-se recorte de material de divulgação da exposição do Art Club de Turim, s.d., Documentação Gustav Kurt Beck, Pasta 1, Arquivo do Belvedere, Viena. Abaixo da fotografia, lê-se em alemão: “O Art Club, uma associação internacional dos chamados 'vanguardistas' nas artes plásticas, originou-se há poucos anos. Em quase todas os países de cultura do mundo, encontram-se seções nacionais dessas vertentes da arte.” É possível também verificar-se algumas das atividades do Art Club de Roma, que ao que tudo indica, foi a primeira seção a ser criada dessa associação internacional, no imediato segundo pós-guerra. Na apresentação para o pequeno catálogo da exposição do Art Club de Roma no antigo MAM, em 1950, Waldemar Cordeiro (que assinava como vice-presidente do Art Club de São Paulo) discorria sobre uma proposta de intercâmbio de artistas através dessas associações livres de artistas no mundo. O presidente, Eduardo Bizzari, dava notícias sobre o surgimento do Art Club de Roma como uma iniciativa dos artistas vanguardistas italianos, em 1945, para criar de fato um livre intercâmbio, sem intervenção de órgãos governamentais, entre artistas de vários países, defensores das formas mais radicais da arte. Cf. Catálogo Exposição do Art Club de Roma, junho/julho de 1950, Museu de Arte Moderna de São Paulo. Um elemento importante, tanto no texto de Cordeiro quanto no texto de Bizzari, é justamente o fato de tal associação ter surgido em contraposição ao um sistema “autárquico” (termo utilizado por Cordeiro), em outras palavras, os sindicatos de artistas regionais e sua versão nacional, que tinham um enorme poder sobre as instituções artísticas italianas durante a era fascista.
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artistas escolhidos para representar estes países na Bienal de São Paulo nos anos 1950, estiveram envolvidos com a criação de Art Club nacionais. A delegação austríaca, ao se reafirmar no segundo pós-guerra como nação democrática (depois dos anos de anexação à Alemanha), parece ter privilegiado artistas ligados a esse ambiente. Na segunda edição da Bienal de São Paulo, Gustav Kurt Beck e Wander Bertoni representariam a Áustria24. O primeiro, presente com um conjunto de linoleografias, foi o primeiro presidente do Art Club de Viena e em seu país esteve ligado à disseminação da arte concreta. Seu colega e parceiro de delegação da II Bienal, o escultor Wander Bertoni, também trabalhou com esculturas abstratas, das quais o antigo MAM preservou uma obra em madeira. Kurt Beck foi posteriormente convidado a fazer uma exposição individual no antigo MAM25, e apresentou guaches e algumas pinturas, desta vez vistas de cidades ainda mais abstratizantes. De qualquer forma, seria difícil analisá-las formalmente num sentido mais estrito de arte concreta. Já a escultura de Bertoni, “Composição” (1953), parece ligar-se mais às questões da arte concreta, embora sua materialidade (a madeira) se distancie da prática de outros concretistas, que privilegiavam metais e materiais industriais. O fato é que o conjunto que permaneceu em São Paulo, hoje no MAC USP, cobre uma experiência muito rica e nada cristalizada da ideia de abstração, além do resgate das experiências do surrealismo, de vertentes do expressionismo, das reintepretações da pintura de Picasso – dada a enorme circulação de sua “Guernica” no início dos anos 195026 – e de Matisse, bem como da redescoberta da ideia de primitivo27. Nesse sentido, aquilo que o antigo MAM de São Paulo consolidou como acervo de arte moderna parece acompanhar os desdobramentos desse debate principalmente na França e na Itália, e em outros territórios europeus. Isso em um contexto internacional em que os Estados Unidos procuravam afirmar sua hegemonia cultural, e em que expressionismo abstrato ali apresentava-se como uma nova forma de arte moderna, cuja crítica procurou reivindicar como autenticamente norte-americana, omitindo seus vínculos com as experiências do velho continente28. No caso da Bienal de São Paulo (tal como 24 Tanto Beck quanto Bertoni pertenceram à geração que poderíamos chamar de transição da Áustria sob domínio do Nazismo e os anos 1950. De qualquer modo, e por conta do engajamento dos dois artistas na promoção da arte de vanguarda a partir do fim da II Guerra Mundial, eles aparecem como os mestres da geração que se formou nos anos 1950 na Áustria, e antes de virem para São Paulo, foram apresentados como os grandes vanguardistas de seu país no pavilhão nacional durante as edições da Bienal de Veneza. Cf. Jasper Sharp (org.). Österreich und die Biennale Venedig, 1895-2013. Nuremberg:Verlag für Moderne Kunst, 2013. Além disso, ambos seriam convidados a elaborar grandes projetos públicos na Áustria, bem como projetos para compor a decoração do prédio da ONU, em Nova York. 25 Veja-se o catálogo da exposição Beck. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, julho de 1955. 26 Sobre Picasso e sua presença no meio artístico internacional, novamente com muita força, no segundo pós-guerra, também seria necessária uma revisão. Alguns artistas italianos do Fronte dell'Arte, que entre 1952 e 1954, dariam origem ao Gruppo degli Otto, teriam processado suas pesquisas de abstração no diálogo com a pintura de Picasso, a exemplo das duas grandes telas de Mattia Moreni, hoje no acervo do MAC USP, provenientes do ambiente da Bienal. Observe-se ainda que a apresentação de “Guernica” na II Bienal de São Paulo correspondia à etapa final de uma itinerância da obra por várias capitais europeias. Antes de chegar aqui, ela havia sido exibida nas grandes galerias do Palazzo Reale, em Milão (outubro a dezembro de 1953). 27 Essa noção seria retomada, pode-se dizer, por duas vias. Em primeiro lugar, no resgate da chamada arte do inconsciente e das experiências de artistas autodidatas; em segundo, pelo novo impulso da descoberta, no início dos anos 1940, das pinturas rupestres de Lascaux. 28 Para uma análise dessa política de afirmação cultural norte-americana, veja-se o já clássico estudo de Serge Guilbaut. How New York Stole The Idea Of Modern Art. Chicago: The University of Chicago Press, 1985.
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lemos nas histórias escritas sobre ela), a sala de Jackson Pollock na edição de 1957 como representação nacional norte-americana teria tido enorme reverberação no meio artístico local. No entanto, e apesar da política cultural hegemônica norte-americana nos anos da Guerra Fria (que muito contribuiu para a formação de nossas instituições de promoção de arte moderna), não foi isso que se colecionou no antigo MAM. Uma das poucas obras norte-americanas a dar entrada no acervo do antigo MAM, naqueles anos, como prêmio-aquisição é “O Viking” de Ralph Du Casse. O artista, nascido em São Francisco, e professor da California School of Fine Arts, participou na representação nacional norte-americana de 1955. Esta delegação foi organizada, não pelo MoMA de Nova York, mas por duas importantes instituições da Costa Oeste dos Estados Unidos: o Museu de Arte Moderna de São Francisco (SFMoMA) e o Museu de Ciências, História e Artes de Los Angeles. Os diretores artísticos das respectivas instituições apresentaram uma enorme seleção de artistas dos maiores centros dos três estados banhados pelo Oceano Pacífico: uma exposição com dezenas de nomes nas categorias de pintura, escultura, gravura e desenho. O texto de apresentação da comissária Grace McCann Morley, do SFMoMA, situou a representação territorialmente. Se nas primeiras edições da Bienal de São Paulo havia uma presença marcante da Costa Leste do País, e sobretudo do meio artístico de Nova York, nesta edição tratava-se de mostrar a força da arte da Costa Oeste, em centros como Los Angeles e São Francisco. Muitos dos artistas então exibidos – como o próprio Du Casse – tinham participado, um ano antes, numa mostra intitulada 57 Younger American Painters, no Museu Guggenheim de Nova York. E por mais que os jornais, principalmente os norte-americanos, procurassem assimilar esses artistas à experiência nova-iorquina do expressionismo abstrato, vemos que essas relações também eram bem mais complexas, e por vezes contestadas pelos artistas da Costa Oeste29. Finalmente, seria preciso estudar a fundo os desdobramentos do tachismo e do informalismo no Brasil, a partir da presença dos artistas dessas vertentes nas edições da Bienal de São Paulo de sua primeira década de existência30. A celebração dessas práticas de abstração mais expressiva, não-geométrica, teve seu ponto alto na V Bienal de São Paulo, em 1959, com a segunda direção artística de Lourival Gomes Machado – naquele momento, plenamente engajado no estudo desse fenômeno e suas articulações com o barroco31. Do conjunto Veja-se também o célebre texto de Clement Greenberg, “'American-Type' Painting” In: Art and Culture. Critical Essays. Boston: Beacon Press, 1989, pp. 208-229. (1a. edição, 1961). 29 Que é o que o próprio Ralph Du Casse viria a fazer em entrevistas, quando era apontado como discípulo de Hans Hoffmann. Veja-se clipping da pasta do artista, Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal de São Paulo. 30 O estudo dessas vertentes parece ter, na historiografia da arte no Brasil, maior corpo de
reflexão no que diz respeito à gravura. Veja-se, por exemplo, a pesquisa de Maria Luíza Távora sobre a gravura brasileira nos anos 1950-60. . “Veja-se, por exemplo, Tavora, Maria Luisa Luz . A gravura abstrata de Fayga Ostrower e a primazia da cor no Informalismo no Brasil. In: Flora Sussekind;Tania Dias;Carlito Azevedo. (Org.). Vozes femininas: gênero, mediações e práticas de escrita. 1ed.Rio de Janeiro: Ediçoes Casa de Rui Barbosa/ Editora 7 Letras, 2003, v. 1, p. 238-246.” 31 Veja-se Ana Cândida F. de Avelar Fernandes. “O informalismo no Brasil: Lourival Gomes Machado e a 5a. Bienal Internacional de São Paulo”, Atas do VII Encontro de História da Arte: Os Caminhos da História da Arte desde Giorgio Vasari: Consolidação e desenvolvimento da disciplina, Campinas, 2011. Disponível em: http://www.unicamp.br/chaa/eha/atas/2011/Ana%20Candida%20F%20 de%20Avelar.pdf. O texto resulta de tese de doutorado da autora, apresentada ao Departamen-
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incorporado como prêmio-aquisição da Bienal de São Paulo em sua primeira década de existência, inúmeros são os exemplos de artistas ligados a essas vertentes, fazendo com que os percursos do concretismo por via das obras reunidas dessa forma não parecessem tão evidentes ou bem-pavimentados. Já mencionamos anteriormente a pintura de Fritz Winter, interpretada na chave da arte abstrata geométrica/concreta. O caso de Willi Baumeister, com seu “Gesto cósmico” (1950), lido também a partir dessas premissas, apela concomitantemente ao expressivo e gestual, com suas formas primitivas e sua superfície rudimentar – se assim podemos dizer. Do ponto de vista das práticas do informalismo, “Cabeça trágica” (1959) de Karel Appel ilustra bem a materialidade, a noção de gesto do artista, bem como propõe uma reavaliação da pintura como um ato primitivo. Se a abstração é o grande debate em pauta nos anos 1950, ainda estamos por entender qual o papel da arte latino-americana nesse contexto.Através dos estudos dos grupos concretistas no Brasil – que parece andar emparelhado com a pesquisa das práticas concretistas realizada em outros países docontinente – foram se criando na última década alguns diálogos importantes32. No entanto, a revisão do informalismo no continente ainda é imperativo e resta por ser feito. Mas mais do que isso, é preciso avaliar a inexistência de um conjunto representativo de obras latino-americanas33. Apesar também de alguns exemplos pontuais, como das obras de Armando Morales e Rodolfo Abularach, não se pode dizer que o acervo modernista que ia se formando naqueles anos tinha uma presença importante de nomes latino-americanos. Talvez seja preciso avaliar esse aspecto à luz de um elemento importante do jogo diplomático do contexto da Guerra Fria. Na Bienal dos anos 1950, havia outra força hegemônica em ação, ela também engendrada pela política externa norte-americana: a União Panamericana, que organizou mostras de artistas latinoamericanos nas edições da Bienal de São Paulo. Com sede em Washington, seu objetivo era o de promover a arte latino-americana expondo artistas cujos países de origem não tinham possibilidade de financiar sua representação na Bienal de São Paulo34. Alguns prêmios da Bienal vêm dessas mostras especiais – como no caso de to de Artes Visuais da ECA USP, em agosto de 2012, publicação no prelo. 32 Em particular no caso argentino, houve contribuições importantes para esses estudos comparativos a exemplo do volume organizado por Andrea Giunta e Laura Malosetti em torno da revista Ver y Estimar. Cf. Andrea Giunta e Laura Malosetti Costa (orgs.). Arte de posguerra. Jorge Romero brest y la revista Ver y Estimar. Buenos Aires: Editora Paidós, 2005, em especial os escritos de Cristina Rossi e Maria Amália García. Em 2004, o Los Angeles County Museum of Art organizou uma grande mostra de revisão das vertentes concretistas no mundo, em que pela primeira vez, considerou-se as produções brasileira e latino-americana em diálogo com os centros europeus e com os Estados Unidos. Cf. Lynn Zelevansky. Beyond Geometry. Experiments in Form, 1940s-1970s. Cambridge, MA: MIT Press, 2004. E mais recentemente, cf. Mary Kate O'Hare (org.). Constructive Spirit: Abstract Art in South and North America, 1920s-50s. Nova York: Pomegranate, 2010, também catálogo de exposição organizada no Newark Museum. Por fim, o livro de Sérgio Martins, publicado nos Estados Unidos. Cf. Sérgio Martins. Constructing and Avant-Garde. Art in Brazil, 1949-1979. Cambridge, MA: MIT Press, 2013. 33 Quando diretora do MAC USP, Aracy Amaral tomou como ação prioritária a constituição para o Museu de um importante núcleo de artistas latinoamericanos, base de seu programa de aquisições e que não se realizou plenamente, uma vez que a USP jamais resolveu a questão dos fundos que deveriam ser destinados a uma política de aquisição – não só para o MAC, mas também para os demais museus da universidade. Cf. Aracy Amaral, “Do MAM ao MAC: História de uma Coleção” In: Textos do Trópico de Capricórnio: Artigos e Ensaios (1980-2005),Vol. 2: Circuitos de Arte na América Latina e no Brasil. São Paulo: Editora 34, pp. 238-279 (originalmente publicado em 1988). 34 A União Panamericana (ou a Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos – OEA, como
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Armando Morales –, mas sem efetivamente formar um conjunto coeso de obras latino-americanas para o acervo do antigo MAM. Ao mesmo tempo, continuam ausentes nomes como Wimfredo Lam, Xul Solar, Gego, Roberto Matta, Alberto Berni, José Clemente Orozco, Diego Rivera e Frida Kahlo, para citar apenas alguns dos maiores artistas do México à Argentina35.
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*** Há um último elemento importante a se considerar, que diz respeito ao sistema da arte construído com a institucionalização da arte moderna. O exercício de voltar às obras e aos artistas pontualmente foi nos revelando que a trajetória percorrida por eles passava pela sua promoção em seus territórios de origem, sua projeção internacional ainda dentro de um circuito de galerias parisienses, para que eles fossem, na ponta do processo, elevados à categoria de artistas internacionais no ambiente, primeiro, da Bienal de Veneza, para chegar à Bienal de São Paulo. O mesmo passa a ocorrer com os artistas brasileiros, que acabavam por fazer o caminho inverso – de exibir na Bienal de São Paulo para entrar no circuito internacional e conseguirem ser apresentados em grandes museus e galerias de Paris, Londres, Nova York, etc. De fato, a narrativa de arte moderna que se construiu no ambiente da Bienal de São Paulo passa necessariamente por uma análise das relações diplomáticas e a dimensão política que iniciativas como essa da União Panamericana têm no contexto da Guerra Fria. Porém, e diante do fenômeno recente de globalização da arte contemporânea e do sistema das artes do Ocidente – cujo modelo vem sendo implantado com grande sucesso em realidades orientais tão díspares quanto a China, os países do Oriente Médio aliados à política norte-americana (como os Emirados Árabes Unidos), e a Coréia do Sul – a historiografia da arte vem se tornando mais atenta à constituição de uma narrativa-mestre da história da arte moderna, que implantada em novos territórios parece ter tido estreita relação com o sistema das Bienais de arte36. Isto é, o exemplo paulista é hoje um caso privilegiado de estudos sobre a relação entre esse sistema internacional (e depois globalizado) das artes e a constituição de museus de arte no século XX. ela passa a ser oficialmente chamada a partir de 1948) era um Órgão diretamente ligado ao Departamento de Estado norte-americano. Seu Departamento de Artes Visuais foi dirigido pelo crítico cubano radicado nos Estados Unidos, José Gomes Sicre, de 1948 a 1976. As atividades do Departamento de Artes Visuais e de Gomes Sicre dariam início ao Art Museum of the Americas, fundado em 1976, com sede em Washington. Para a atuação de José Gomes Sicre a sua atuação na União Panamericana, veja-se pesquisa ainda não publicada do doutorando Alessandro Armato, da Universidad de Buenos Aires. Armato, que foi pesquisador dentro do Programa Acervos da USP, com o apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade, em 2013, chama a atenção para o fato de que Gomes Sicre teria tido, neste contexto, papel importante não só na consolidação de certa ideia da arte do continente, ao fomentar justamente as práticas mais ligadas a uma abstração não-geométrica e informal. Cf. Armato, Alessandro, ‘Una trama escondida: la OEA y las participaciones latinoamericanas en las primeras cinco Bienales de São Paulo’, Revista Caiana, no. 6, primer semestre 2015, pp. 33-43 35 Joaquín Torres-Garcia figura hoje no acervo do MAC USP com uma pintura de seu período parisiense, através do comodato (por decisão judicial) da Cid Collection (coleção Edemar Cid Ferreira, em depósito no Museu desde 2005) – portanto completamente fora do contexto que estamos tratando aqui. 36 Veja-se os textos de Hans Belting no contexto da plataforma criada pelo Zentrum für Kunst und Medientechnologie (ZKM), em Karlsruhe, Alemanha, aonde ele curou uma grande exposição sobre o fenômeno da globalização na arte contemporânea em 2011 (The Global Contemporary. Kunstwelten nach 1989, ZKM?Museum für Neue Kunst, Karlsruhe, setembro de 2011 a fevereiro de 2012, disponível em: http:// www.global-contemporary.de/). Cf. Hans Belting, “Contemporary Art and the Museum in the Global Age”. In: Peter Weibel & Andrea Buddensieg (orgs.). Contemporary Art and the Museum. A Global Perspective. Ostflidern: Hatje Cantz, 2007, pp. 16-41; e Hans Belting, op.cit., 2009.
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Voltando à questão de um acervo datado de arte moderna, o antigo MAM incorporou ao seu acervo um conjunto de obras que relfetiam os debates da arte nos anos 1950, e não parece ter se preocupado com uma visão retrospectiva de seu acervo. Tal visão veio quando este foi transferido para a USP. Mas até então, a antigo MAM parecia estar constituindo um acervo do seu próprio tempo, em outras palavras, um acervo contemporâneo. Um exemplo notável é a ação de Matarazzo como presidente do antigo MAM, quando de sua ida à Bienal de Veneza em 1952. Além de adquirir o “Grande Cavalo” de Marino Marini, ele trouxe para o Brasil outras 13 obras, oito das quais representavam justamente o Gruppo degli Otto, sob liderança do crítico e historiador da arte Lionello Venturi. Afro Basaldella, Giuseppe Santomaso, Renato Birolli, Mattia Moreni, Antonio Corpora, Ennio Morlotti e Emilio Vedova tornavam-se assim, no momento mesmo de sua afirmação, parte do acervo do antigo MAM. A separação entre o antigo MAM e a Bienal de São Paulo em 1962, e a transferência de seu acervo para a USP em 1963, criando-se o MAC USP, certamente significou a ruptura entre um programa de aquisição via a premiação do evento Bienal e o acervo do Museu. Mesmo assim, e à revelia de uma discussão consciente do MAC USP sobre sua relações com o evento Bienal, algumas obras que participaram das edições do evento acabaram no acervo do Museu ao longo dos anos. De certo modo, essas ações pontuais pareciam ainda perceber o acervo do MAC USP como o lugar mais apropriado para a incorporação dessas obras. Mas a grande diferença entre colecionar no contexto da Bienal dos anos 1950 e depois disso, é o fato de que o MAC USP (assim como outros museus da cidade de São Paulo) parecem ter deixado de ter qualquer conexão com esse tipo de evento. Houve, nas edições de 2008, 2010 e 2012 algumas tentativas de chamar os museus de arte moderna e contemporânea de São Paulo para criar um programa como de exposições durante o período de realização das Bienais. Levantou-se inclusive a possibilidade de dividir com os museus locais a seleção de artistas da Bienal para que os museus pudessem formular propostas de incorporação/aquisição de obras. A Bienal de São Paulo é sobretudo apoiada por recursos públicos – seja por via do Fundo Nacional de Cultura, seja por via dos patrocínios que chegam através da Lei de Incentivo Fiscal do Ministério da Cultura do Brasil. Seria assim bem-vinda a proposta de se formular uma política consistente de aquisição de artistas latino-americanos e estrangeiros em geral para os acervos dos museus locais no contexto da Bienal. Atualmente, museus públicos brasileiros estão praticamente impossibilitados de adquirir obras de artistas, dados seus orçamentos diminutos. Quando se trata de aquisição de obras do exterior, os museus locais são atropelados pelos processos de importação e suas altas taxações. Finalmente, um fenômeno a ser estudado hoje, e que pode ser observado nos últimos anos, em comparação ao que tivemos nos anos 1950, é o fato do Brasil, e principalmente a cidade de São Paulo, abrigar coleções privadas importantes de arte contemporânea nacional e estrangeira, bem como ter assistido à expansão de sua feira de arte, a SP Arte. Ou seja, São Paulo parece ser um dos melhores lugares do mundo para ser um artista, começar uma coleção de arte e criar um museu de arte contemporânea. As grandes estrelas da arte internacional continuam a nos visitar e a propor novas obras para as edições da Bienal de São Paulo. Entretanto, nossas instituições históricas parecem não ter
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relevância nesse contexto. A grande maioria das obras, quando vendidas aqui, acabam em coleções privadas. Museus como o MAC USP tem de lutar com a burocracia e seu orçamento para manter o mesmo nível de aquisições de obras internacionais que seu acervo teve nos anos 1950. Há quatro anos, a SP Arte vem tentando estabelecer uma parceria com o Museu (assim como outros museus da cidade) para que possamos adquirir obras de arte para nossos acervos. Neste sistema de mecenato, os curadores do Museu escolhem obras exibidas na feira que são compradas por patrocinadores privados e doadas ao seu acervo. De certa maneira, ele parece substituir o velho sistema de prêmios-aquisição da Bienal, embora muito mais tímido e sem apoio de uma política pública efetiva. Num momento em que as feiras de arte também assistem a um enorme boom e se assemelham cada vez mais aos espaços institucionais de exibição da arte contemporânea, é lícito levantar a hipótese de que o sistema de internacionalização da linguagem artística colocado em funcionamento na década de 1950 parece hoje ganhar outras roupagens. A pergunta que nos caberia fazer a partir de agora e diante do acervo histórico das obras oriundas do ambiente da Bienal de São Paulo em sua primeira década de existência é em que medida ele nos ajuda a entender o papel desse sistema na moldagem da história da arte moderna e como ele poderia nos orientar a ampliá-lo. REFERÊNCIAS ALAMBERT, Francisco & CANHÊTE, Polyanna. As Bienais de São Paulo: Da Era do Museu à Era dos Curadores (1951-2001). São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. ALTSHULER, Bruce. Salon to Biennial. Exhibitions that Made Art History, 1863-1959 (Vol. I). Londres: Phaidon Press, 2008. AMARAL, Aracy, “Do MAM ao MAC: História de uma Coleção” In: Textos do Trópico de Capricórnio: Artigos e Ensaios (1980-2005),Vol. 2: Circuitos de Arte na América Latina e no Brasil. São Paulo: Editora 34, pp. 238-279. ARGAN, Giulio Carlo. L'Arte Moderna: Dall'Illuminismo ai Movimenti Contemporanei. Florença: Sansoni Editori, 1970. BELTING, Hans & BUDDENSIEG, Andrea (orgs.). The Global Art World. Audiences, Markets, and Museums. Ostfildern: Hatje Cantz, 2009, pp. 38-73. FERNANDES, Ana Cândida F. de Avelar, “O informalismo no Brasil: Lourival Gomes Machado e a 5a. Bienal Internacional de São Paulo”, Atas do VII Encontro de História da Arte: Os Caminhos da História da Arte desde Giorgio Vasari: Consolidação e desenvolvimento da disciplina, Campinas, 2011. Disponível em: http://www.unicamp.br/chaa/eha/atas/2011/Ana%20Candida%20F%20de%20Avelar.pdf. FRANCO, Maria Eugênia, “Importância educativa da exposição”, Reportagem I da série “Panorama da 2a. Bienal”, Última Hora, 1o. de fevereiro de 1954. GIUNTA, Andrea Giunta & COSTA, Laura Malosetti (orgs.). Arte de posguerra. Jorge Romero brest y la revista Ver y Estimar. Buenos Aires: Editora Paidós, 2005. GREENBERG, Clement, “'American-Type' Painting” In: Art and Culture. Critical Es-
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Bienal de São Paulo I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, outubro a novembro de 1951. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1951 (1a. edição). I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, outubro a novembro de 1951. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1951 (2a. edição). II Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Catálogo geral. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1953. III Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Catálogo. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1955. IV Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Catálogo geral. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1957 (1a. edição). IV Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Catálogo geral. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1957 (2a. Edição). V Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Catálogo geral. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1959 (1a. edição). V Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Catálogo geral. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1959 (2a. Edição). VI Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Catálogo geral. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1961 (1a. edição). VI Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Catálogo geral. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1961 (2a. edição). VII Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Catálogo geral. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1963 (1a. edição). VII Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Catálogo geral. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1963 (2a. Edição). Bienal de Veneza XXIV Biennale di Venezia.Veneza: Serenissima, 1948. XXV Biennale di Venezia.Veneza: Alfieri, 1950. XXVI Biennale di Venezia.Veneza: Alfieri, 1952. Arquivos e fundos pesquisados Arquivo do Belvedere,Viena Archivio Storico delle Arti Contemporanee – ASAC,Veneza
Ana Gonçalves Magalhães
Arquivo Histórico Wanda Svevo – AHWS, Fundação Bienal de São Paulo Arquivo MAC USP Seção de Catalogação MAC USP
129 Artigo recebido em fevereiro 2015. Aprovado em maio 2015
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THE UBIQUITOUS MUSEUM EXACT IMAGINATION, SYNCRETIC SUBJECT, PERFORMATIVE METROPOLIS, MOVING CONSTELLATION Massimo Canevacci1 “The knowledge of the object in its constellation is the knowledge of the process accumulated inside it” (Adorno, 1966:146) RESUMO: Este artigo enfoca a fluidez dos espaços, materiais/ intangíveis, da experimentação cultural com o objetivo de indagar sobre histórias, pesquisar presentes, imaginar futuros. Uma constelação em movimento de museus imaginários elabora uma “etnografia multilocalizada” para multiplicar e conectar uma constelação de objetos/sujeitos potenciais, enfocando e realizando espaços onipresentes e temporalidades oportunas. Do ponto de vista metodológico, o artigo adota a noção de George Marcus da etnografia multilocalizada que ele define como “uma possível experimentação com etnografias em vários locais que exploraria dois ou mais deles e mostraria suas interconexões ao longo do tempo e simultaneamente” (1995). Ela conectará a antropologia, a arte e a arquitetura, incluindo o trabalho do arquiteto anglo-iraniano Zaha Hadid, da artista brasileira Néle Azevedo e do professor da língua dos índios bororós Kleber Meritororeu. O Museu Onipresente tentará teoricamente executar tal projeto multilocalizado, valendo-se da experiência no exílio de Edward Said que configura “formas não essenciais da política cultural” (2006). Além disso, ao discutir o conceito de Transmuseu ou Constelação de Museus Imaginários, o artigo apresentará noções tais como metodologia espantada, composições antropológicas, subjetividades onipresentes.
ABSTRACT: This paper is concerned with the fluidity of spaces, material/intangible, of cultural experimentation with the aim of interrogating histories, researching presents, imagining futures. A moving constellation of imaginary museums elaborates a “multi-sited ethnography” in order to multiply and connect a constellation of potential objects/ subjects, focusing and performing ubiquitous spaces and kairos temporalities. Methodologically, the paper follows George Marcus’s notion of multisited ethnography that he defines as “a possible experimentation with multi-locale ethnographies which would explore two or more locales and show their interconnections over time and simultaneously” (1995). It will connect anthropology, the arts and architecture including the work of the Anglo-Iranian architect Zaha Hadid, the Brazilian artist Nele Azevedo and the Bororo professor Kleber Meritororeu. The Ubiquitous Museum will try theoretically to accomplish such a multisited project, drawing on Edward Said’s exile experience that configures “nonessentialist forms of cultural politics” (2006). Additionally, in discussing the concept of Transmuseum or Imaginary Museum Constellation, the paper will present notions such as astonished methodology, anthropological compositions, ubiquitous subjectivities.
PALAVRAS-CHAVE: Museu Onipresente. Transmuseu. Constelação de Museus Imaginários. Etnografia multilocalizada. Sub-
KEY WORDS: Ubiquitous Museum. Transmuseum. Imaginary Museum Constellation. Multi-sited ethnography. Ubiquitous subjectivities.
jetividades onipresentes.
1 Professor of Cultural Anthropology at the University of Rome “La Sapienza”. Visiting Professor in the University of São Paulo “IEA-USP”.
Massimo Canevacci
a) Appetizer My essay will present a multi-sited ethnography based on my astonished methodology applied to an ubiquitous museum, where some sensorial concepts are designing a moving constellation through: self-representation, exact imagination, ubiquitous subject, digital cultures, communicational metropolis, syncretic composition, auratic reproducibilities, performative consumer, metamorphic body-corpse, visual fetishisms, wondering arts and wandering identities. Here I will connect, among others, an innovative anthropologist (the Bororo professor Kleber Meritororeu), a visual artists (the Brazilian Nele Azevedo), astonishing architect (the Anglo-Iranian Zaha Hadid), a digital scientist (Tim Berner-Lee). The aim is questioning histories and cultures, researching presents and performer, imagining futures and architectures.The problem is how ubiquitous, simultaneous, dissonant spaces-and-times are mixing and crossing without reciprocities, stimulating a sort of musical score here represented as an ethno-poetic composition: every single concept is a movement I have to play as it were a sprechtgesang style. The suggestion is to read this paper and, following each sensibility, to scroll my power point here connected in a disordered personal montage. The Ubiquitous Museum will try theoretically to assimilate the Edward Said’s exile experience that configures “nonessentialist forms of cultural politics” (2006), and to apply such nonessentialist forms to cultural artifacts and to my wandering constellation that performs a collateral sense of experiences and visual arts. The Ubiquitous Museum performs the exile movements of visual arts, experienced by a wandering subject. That’s why every single subject who enters inside this Ubiquitous Museum has to live the experience of the exile, i.e. transform his/herself in a diasporic individuality or, better, in a syncretic multividual. So, every wandering subject who enters inside this ubiquitous museum has to live the astonished experience of a dissonant polyphony, i.e. transform his/herself in a ubiquitous performer. This Ubiquitous Museum have the fluid physiognomy of a moving constellation, where wandering/wondering researchers elaborate a “multi-sited ethnography” in order to connect a fragmented montage of familiar as well as stranger cultures, experience design and an uncanny mix of spaces-and-times. The expanded architecture of my moving constellation is wandering along the exact imagination just because in the centre everybody can see a Pluto image (fig. 1). Pluto was a planet around the solar system but recently humans understood they made an error. A fatal error. What is Pluto? For me, it represents the crisis of a classical taxonomy and the challenge to investigate how it will be possible to re-define Pluto as a contemporary museum. A Plutonic Museum. My aim is the following: Pluto is my Ubiquitous Museum and I´ll try to perform its (or his?) undisciplined movement. So, Pluto is an allegory and, in the same irregular body, an empirical project. Or a very special menu offered by a non professional chef, who performs the simultaneous co-presence of an anthropophagic composition. Pluto’s constellation project will present the first keyword as a slow-food movement of self-representation. Only in the very final of my essay, you can discover the “real” astonishing identity – or flavor - of Pluto.
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b) Nine first dishes wondering arts
wandering ethnographer self-representation
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exact imagination communicational metropoli
heretonomous multividual
Hybrid aldeia Carpe Codex ubiquitous subjectivity
fluiid Identities
sincretiKa composition astonished methodology
Visual fetishisms sensorial concepta s
diagonal inclination
Digital Auratic Reproducibility
Fig. n. 1: My Pluto Constellation
1. Self-representation Since 1930, Sigfrid Kracauer focused this question: “self-representation of the masses subject to the process of mechanization, that is, the conditions of possibility for a democratic culture” (Kracauer, 1995: 75-86; see also Bratu Hansen, 2012:40). The second industrial revolution impressed by Fordism and Taylorism favored many cultural behaviors in everyday life and even more in the entertainment where urban people was determined to manifest for the very first time a new kind of possibility to represent themselves using (or be used by) the rising mass media, embodying the assembly line style. Kracauer analyzed the Triller Girls case as an emerging dancing style based on the capitalistic production system applied on public behavior in Western culture. A dialectical contradiction was presenting the desire of self-representation in the mechanical process based on de-individualization. The digital revolution, the crisis of mass media, and the emerging of a new kind of individuality (multividual) may offer a radical different challenge in the political perspective to look at the connection between self-representation and technology. “The question of ‘Who represents who?’ takes up Marx’s criticism of the division of labor. The current accelerated digital-industrial context has producing a different kind of ‘division’: a division between those who communicate and those who are communicated; between those who historically have the power of narration and those who are in the lonely state of being narrated” (Canevacci, 2013:32). This is precisely why that specific linguistic knot exists, binding ‘those who represent’ to ‘those who are represented’, according to what I call the communicational division of labor. It is a division that should be addressed in experimental methods and the pragmatics of researches. A visual
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hierarchy of the dominant logic has separated those who have the power to represent the Other from those who should continue to be represented as part of an eternal human panorama. The “native” use of digital technology facilitates a decentralized network disruption incomparable to that produced with analogic technology. Digital technology is easier to use and more affordable; it accelerates communication and decentralizes ideation, editing, and consumption. This communicational division of labor between those who narrate and those who are narrated permeates the emerging contradiction between the Western digital technology and the subjects’ glocal use of this same technology in accordance with their own autonomous worldview.��������������������������������������� It is time to subject the presumed objectivity of this logic to criticism. It is politically and ethnographically intolerable that a neo-colonialist media has risen within digital communication, hierarchically dividing those who film from those who are filmed, those who narrate from those who are narrated, those who represent from those who are represented. The new subjects representing themselves in (or as) the Ubiquitous Museum may use������������������������������������������������������������������ digital technology in a decentred effect incomparable to the traditional one. Digital technology is easier to use and more affordable; it accelerates communication and decentres ideation, editing and consumption. The communicational division of labour between those who narrate and those who are narrated – between self- and hetero-representation – permeates the emerging contradiction between the digital technology developed in the West and the subjects’ use of this same technology in accordance with their own autonomous worldview. This division and this contradiction redefine the power play within which the anthropology of digital communication contends with, and survives, every persistent attempt to flatten and folklorize the Other. The indigenous online production of photos, videos, INDIAnet sites, musical CDs, CD-ROMs and any kind of Skype contact with person living in aldeia (village) are all examples of a new modalities to look at: these digital technologies, together with a ‘native’ subjectivity and critical positioning, have the power to disassemble the consolidated ‘us’ of the West and of the “other”. Ubiquitous Museum is no more our museum or how “we” represent the “other” in a hierarchical and still colonial (dichotomic) pattern. Hence, the notion of the academic approach as the only legitimate framework for representing the Other is obsolescent. There is no we and no other: there is a different kind of subjectivity creating and re-enacting the Ubiquitous Museum through multividual de-centered performances. 2. Exact Imagination The exact imagination was a philosophical as well sociological and aesthetic concept that the young Adorno was trying to elaborate in the process of making theoretical and empirical research and, consequently, in text composition. For him, exact imagination marks the conjunction of knowledge, experience and aesthetic form. I’ll try to extend this dissonant concept (following the traditional logic, imagination never can be exact) to an ubiquitous museum, connecting and transforming critical theory and digital cultures. In such a wondering methodology it is possible to outline philosophical and anthropological, architectural and performative approaches through a moving constellation elaborated by an
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exact imagination. Such an exact imaginative constellation includes differentiated methods, visual configurations, compositive narratives, operational concepts, empirical contexts, ethnographic wandering, aesthetic sensorialities, transmedial crossings. My problem is how to re-enact the classical critical theory to the changing context where digital cultures are fluctuating. And where the Adorno project on the resistance of the individual facing the collective homologation may be transformed in the multividual affirmation in a connective configuration. The other more empirical concept Adorno elaborated - after the first experimental research on radio customers and patterns - was physiognomy. A physiognomic configuration that absorb the socio-psychological character of the same radio, more than of the customer. Radio has a physiognomy as a collective person that unify public and private life without any possibility of dialectical conflict. Radio has a personality and this personality has a physiognomy based on the extension of classical fetishism. Radio is a living subject. In the immanence of its (his) figure or form - extended by its (her) voice, musical selection, classical or indifferently pop soundscape, no ending advertising, emerging soap operas – the customer sees the materialistic super power of a new kind of political subject with a personalized “objective” physiognomy. The radio physiognomic fetishism unifies subject and object through a proteiform de-individualized individuality. The exact imagination was a dialectical positioning of a critical as well as isolated subject in order to prefigure not the future, as Benjamin thought through his dialectical image, but the resistance to the present.The radical experimentation along dissonant music, fragmented essay or negative dialectics may offer, in that dramatic political context, the unique possibility of surviving and to resist in the process of affirmation of a different kind of philosophical critics. Imagination must be exact. So, the imagination of an ubiquitous museum may offer an exact multi-sited perspective. The difficulties related to taxonomies – how to define a concept, a fieldwork or a writing presentation – have to gradually face the challenge of penetrating the micrological ethnographic contexts where empirical research must be directed. Any comprehension of the “object” develops a progressive montage in order to focus conceptual fragmented areas which – along the processual wandering and not at the beginning of the research – are designing the movements of “our” constellation: or, better, its physiognomic composition. Here “its” is not a neutral pronoun, but an instable transit between organic and inorganic, female and male, singular and plural. Here “its” is a very fetish pronoun between “her” and “his”. In my exact imagination, the physiognomic composition of the ubiquitous museum must present a different kind of fetishistic physiognomy liberated by any reification element that characterized the regressive pattern of the homologated industrial society. The museum exact imagination has a meta-fetishist physiognomy. The same so-called “objects” of research manifest progressively a personality full of individualities: they affirm the objective/subjective self-representation as a desiring necessity for a communicational politics based on differentiated epistemological multividual beyond any dichotomy. Such a subjective richness of the ethnographic “object” put in crisis the philosophical dialectics
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on its dualistic and even negative paradigm. In his history of the Adorno’s Radio Research in USA, Jenemann stresses two explorative concepts I’m trying to re-enact on digital culture: ubiquity and physiognomy. “Ubiquity is unique to the medium and distinguish radio to the other forms of communication”. “Radio physiognomy (…) is a physiognomy in which audience, producers and technologies form an ever changing contradictory body that mirrors the social system” (Jenemann, 2007:124). I totally agree with the beginning of the last phrase, but the concept of mirror it seems to me a very obsolete as well as mythological concept social sciences continue to reproduce. I have to break the mirror as a reflecting metaphor between society and media. I want to look at the multiple disordered fragments melting in the air without any possibility to glue the original form. In the vitreous dust there is the announcing of a disordered constellation. Repeating the Adorno’s phrase I quoted at the beginning, “The knowledge of the object in its constellation is the knowledge of the process accumulated inside it” (1966:146). There is a singular differentiation between Adorno and Benjamin idea on constellation. Perhaps the tragic suicide of the last interrupted the possibility to reflect on his dialectical image in the post-war condition. The so called “primitive” condition is not a pre-figuration of a society without classes, in order to connect this archaic past to the present and so imagine “the” future. Futures are plural for the Adorno’s imagination. There is no objective force in direction of a liberated society. Perhaps “a” future is going on a contrary direction. This pessimistic Adorno’s vision of the world now may be liberated by his realism in order to imagine a different exact constellation. So the objects accumulated in the constellation are presenting themselves as individualities in the process of becoming and also as become. Such a transitive conceptual moving between becoming and become, constructing and constructed, manifests a stratified cultural histories connecting and permeating both to the researcher and the constellation. In such Plutonic perspectivism, the theoretical thought – an anthropology oscillating with philosophy and aesthetics, architecture and transmedia, ethnography and communication - turns around the concept of constellation to penetrate and to be penetrated by it. The exact imagination is a wandering constellation of ubiquitous physiognomies and homeless images. 3.1. Communicational Metropolis The communicational metropolis is the expression of a ubiquitous museum. Communicational metropolis is quite different from the industrial city or the modernist metropolis, principally for its deep relations with the expansion of de-centred communication, digital culture, performative consumer styles. These mutations produce a deeper connection between economic value and cultural values such as lifestyles, worldviews, beliefs and mythologies. Communication is the most decisive element in the floating configuration of such a metropolis, in which the historical concept of society loses its centrality in order to produce mutations and conflicts. Such a metropolis offers an ambiguous and auroral
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panorama potentially beyond metaphysical dualisms, industrialist paradigms, sociological dialectics. The communicational metropolis does not have a politically defined centre, but a differentiated polycentric and temporary mapping. Polycentrism means that consumption-communication-culture is disseminated in all the material urban territory and the immaterial “air of pixel”, with an increasing importance regarding post-industrial production. This encounter - based on shopping-centres, theme parks, art museums, universal exhibitions, fashion shows, sportive stadiums and, obviously, social network - develops a type of audience that is no longer the homogeneous and massified public of the industrial age.These pluralised and fragmented audiences desire to perform consumption, communication, and lifestyle. The transition from the ‘industrial city’, focused on productivity, class conflicts and political dialectic, to the communicational metropolis, is marked by a critical montage of multi-centrism and de-centered perception of space-time.Along such a continuous assemblage, an emerging different subject – the multividual – has been experienced the concept of ubiquity. The dualistic logic of the industrial city is going to be replaced by a de-centered multi-centrism of the communicational metropolis, where the characteristic material/immaterial flexibility of digital culture is prevailing. This transformation is related to the expansion of ubiquity, which complicates the traditional perception of space-time. The person who passes between social network and communicational metropolis can, in a odd mixing of space-time, communicate simultaneously with people located in quite different contexts. This ubiquitous experience was unimaginable in the territorialized industrial city and it raises a growing challenges for an ethnography of communication focusing on contemporary museums: my question is looking for which kind of representational power is determining the “classical” relation between “we” and the “others” (or familiar and stranger). An ubiquitous connectivity (and not collectivity) is affirmed. In the communicational metropolis, each person sets up an ‘otherness’, not as a radical alterity, but based on small differences. If, in the past, everyone followed a pattern determined by the economic structure and ideological visions, currently the major challenge of communication and ethnography is to penetrate each micro differences, where floating meanings are challenging the interpretative generalistic ethno-glance. Micro differences configure a “familiar otherness”, a patchwork of stranger familiarity, a glocal syncretic dimension that melts in the air of pixel. 3.2. Performative Metropolis From an ethnographic perspective applied to the contemporary metropolis, performance is located in the transitive intersection between self-representation, subjective ubiquity and aesthetic changes. Institutionalized or spontaneous performative behaviours have been spreading in different urban spaces or vimeo niches, questioning the public-private dichotomy. Manifestations such as public art, street art, graffiti, advertising, ad-busters, body-art inter-cross urban and digital spaces. Digital communications expand a glocal subject that reveals creative autonomies and horizontal expressivity desires - a "political" composition of self-representation, communicational metropolis and web-cultures.
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Following Goldberg: [...] the expression performance art has become a comprehensive expression that refers to any type of live performance.The word performative – used to describe the spontaneous engagement of the viewer and the performer in art – has been transferred to the sphere of architecture, semiotics anthropology and gender studies (2006: 216) Ethnographic research selects hybrid settings to be interpreted with the same critical seriousness with which Marx analysed factory, work and value. Such settings are comprehensible in the polyphonic, dissonant connections between digital culture and communicational metropolis, where styles, identities and even politics are performed. Together with a technology and architectural mash-up, the subject crosses temporary identities and incorporates the concept of "multividual" or diasporic subject. Self-representation, communicational metropolis, public art, digital culture and transurban subject are the unquiet and interchangeable elements which the ethnographic glance, increasingly characterised by ubiquity, should aim. Ubiquitous ethnography is emerging from the context and from the method, mixing spaces-times, involving the floating researcher's sensoriality in familiar/stranger, material/immaterial fieldworks. Along such a process, the concept of composition filters, fragments and combines the data, presenting them ("composing" them) through differentiated languages. Composition manifests a partial comprehension of the "object" increasingly transfigured as a “subject”: something or somebody in between subjectivity and the objectivity. The subject expands him/ herself into the object as the material into the immaterial or the fetishisms into the morphing. And vice versa. There is no dialectic and no synthesis in such a process, but only temporary uncanny montages for individual experiences. The expansion of digital technologies cannot be interpreted as human body prostheses, but rather as continuous co-penetrations and hybrid mixtures in the course of which it is not possible to define where the object (a mouse, the screen, the keyboard) and where the subject (the fingers, the eyes, the body/ mind) start. The digital techno-body favours the hybridisation between mouse, hand, eye, which is quite different from the analogical prostheses by which the hammer is added to the hand. In that sense, the I-phone is not a prosthesis that is added to the body as the telephone. A mindful body is incorporated and syncretised with this I-phone. It is an expanded body and a re-enacting mind. The experience of a screen expresses - in the live or hic et nunc performance - the irreducible libido of a subject that creates the communicational metropolis, revitalising abandoned urban interstices connected to itinerant network. This ubiquitous performer mixes languages and aesthetics, spaces and time, material and immaterial, art and science. For A.M. Müller – a critic of modernist architecture and supporter of open architecture – the work of architects as Coop Himmelblau, David Liebeskind, Zaha Hadid, Morphosis and “their fractured architecture produces precisely that sort of jarring which others normally try to eliminate”(1991:13). My ethnographic research on the communicational and performative metropolis focuses on exactly these fractured and jarring architectures that are connected to ubiquitous performers and are anticipating heterogeneous subjectivities. It is a different glance, therefore, from the classic anthropology of the performance by Victor Turner (1982). According
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to Renato Rosaldo, Turner's PhD student, the ritual is: [A] busy intersection [...] A place where a number of distinct social processes intersect. The crossroad simply provides a space for distinct trajectories to traverse, rather than containing them in complete encapsulated form. (1989:17)
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Consequently, an urban event like public art and a digital one are connecting disseminated subjectivities. Their personalities (or behaviours) have to be observed before and after as well as during the ritual, in order to focus a process-based comprehension or emerging montage between screen and spaces. Such an individualized ritual, however, is different from the classic collective one. Individuality has often been eliminated by social sciences in favour of the “class structure”, “communitarian” or the “tribal”. A different genealogy can be said about the concept of community, which - besides having disastrous traditions in Europe from Toennies to Nazism (volksgemeinschaft) - continues resurging in conservative parties and churches. The relations between the village and the metropolis are much more complex than in the past, so the flow of codes, styles and even rituals are a living characteristic of many subjective experiences from any sides. These bi-directional relations do not make any homologation – a concept that no longer holds as cultures become hybrid, complex and mutant. The ubiquitous ethnographer has been trained to understand the deep significance of any minimal code, that’s why she/he locates every specific meaning inside each culture, class, social group or individuality. Each subject has been increasingly participating in the busy intersection and fragmented montage of cultures that he/she has to join and cross. The ubiquitous museum project - oscillating between a communicational and performative metropolis - is quiet beyond any presumed homologation; on the contrary, these digital panoramas determine the continuous co-creation of the communicational metropolis, floating between global styles and local reinventions. Thus, new identities and odd bodies are designing the conflictive rising of the performative metropolis. Any subject has the power to transform his/her urban anonymity into metropolitan heteronomies: the conflict becomes communicational and aesthetic, diasporic and interstitial, digital and analogical. 3.3. Museum/Metropolis In order to understand this performative metropolis, it is crucial to look at the relations between post-Euclidean architectures, public arts and expanded design. Zaha Hadid, the Anglo-Iraqi architect, is a contemporary philosopher that changes the aesthetical sensitivity of individuals and publics. Following her, “The whole notion of fragmentation implied that the rules given to architects and architectural students were no longer valid” (Hadid,1991:47). Her works are pulsing sources for the communicational, performative and ubiquitous metropolis; so she is an expanded philosopher who invents present/future sceneries. I take as an example the project "Performing Arts Centre", on Saadiyat Island, where the structure becomes theatrical, flexible and changing as a performance: an arch-performative one.
Massimo Canevacci
According to Zaha Hadid: A sculptural form that emerges from the linear intersection of pedestrian paths within the cultural district, gradually developing into a growing organism that sprouts a network of successive branches [...] The concert hall is above the lower four theatres, allowing daylight into its interior and dramatic views of the sea and city skyline from the huge window behind the stage. Local lobbies for each theatre are orientated towards the sea to give each visitor a constant visual contact with their surroundings (.Hadid, cited in Luecke, 2009).
The paths invented by those who walk in that area produce an anthropological culture and are transformed by the architect into organic net intersections of performative museums.Thus, a performative museums – as the Concert Hall - is not an implosive space, where spectators are obliged to see/hear only what is in front of them. Ubiquitous museum becomes unstable and disordered in its visible immanence; it liberates astonished as well as unpredictable sensorialities of participant spectators. “It” will favour a kind of public arts and human sciences in direction of performative works. Ubiquitous museum is a contemporary philosopher who explains the present/future, earlier and better than post-structuralist authors. Museum panoramas become narrative plots determined by the assembly of fragmented experiences, performative spontaneities, transurban individuals, mobile groups, temporary public. In this transurban context, the artistic subjectivities express techno-hybrid identities, looking for autonomous first-person narrations (stories, visions, performances, music). Such a "multividual" - fluid and multiple – is not a passive recipient of external cultural events, but an active participant, a co-creator subject that modifies the present patterns, liberating his/her own will of self-representation. The political practice of a transitive citizenship is going to be present in the transurban performance (Mudler). 4. Multividual Heteronomy The concept of nomos seems questionable in itself; it defines a law or rule to be followed in order to justify the repetition of given moral conditions and to resist to any cultural mutations. From this perspective, I’d like to discuss the perspective of individual heteronomy beyond the classical dimension of autonomy. Heteronomy can become a vision that alters the nomos, transforming it – from an established rule of inscrutable laws – into flexible, sensible modules involving the otherness that is normally excluded or repressed for the autonomous subject. The political rights of autonomy are based on a concept of national citizenship and connected to the national character statement. Both the concept and the statement have been resulting regressive, repressive and even more ineffective, especially in the presence of globalizing processes. If the citizen is autonomous, the Other – an erratic outsider, whether migrant, traveller, foreigner, stateless or exiled – is excluded from his/her rights (nomos). The radical question is who is this ‘citizen’ in the communicational metropolises. Perhaps it is the one who is designing the profile of an emerging heteronomous citizenship. Perhaps there will be a growing conflict between the traditional nation/state formation and the emerging relative autonomy of contemporary metropolises.
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Becoming heteronomous: this is the transitive citizenship that is challenging the nation-state form. Becoming heteronomous means taking up the challenge that poet Fernando Pessoa elaborated in his writings and in his lifestyle. Pessoa used heteronomy not only for his predilection about changing names and identities, but also to give meaning to different styles of poetical writing (1980). Pessoa’s writing captures the feeling of being too closely related to one’s own unique name (or unique persona), to a mono-identity and to an uniform style of writing. That’s why his style of writing – a poetry-essay form – is looking for the explorative fluctuations between poetical inspirations and polyphonic compositions. I remember a very special issue of Dialectical Anthropology dedicated on the transitive relation between anthropology and poetry and in particular this Dell Hymes statement: Anthropologists become poets, poets become anthropologists – but is there any necessary connection between the two activities? I think there is. At least there is on one view of both (Dell Hymes 1986:20)
From this point of view, Pessoa (persona, “nomen omen” as Latin said, a theatrical, multiple identity) performs his “personal” way to transit through philosophy, poetry and anthropology. In his restlessness (desassossego) poetries, he imagines himself as other, wandering something or somebody completely unknown with his delicacy of feeling the ‘eu profundo e os outros eus’ (the deep I and the Other ‘I’s) and to be born again in each moment. He was an archipelago of eus, of ‘I’s.The polyphonic relationship between heteronomy and composition – the composition of heteronomies - may favour this fluctuant archipelago of eus. This montage of eus involved fragments of me, pieces of all the ‘me’s growing internally that I discovered during my fieldwork in the Bororo culture. This inner multiplicity explains how my initial ethnographic positioning during changed into a dislocated self-representation that no longer involved only the traditional Other but also concerned my inner Other, my other selves, my inner alterities. My-selves. My multividual. All my ‘I’s or, better still, my eus (Canevacci, 2013a) So, the individual (intra-vidual) tension between my heteronomy, as a researcher external to the cultural context, and my autonomy, as a subject with a fluctuating identity rather than a fixed one, unpredictably vanished. Furthermore, I realized with extreme restlessness that I had positioned myself on an identity that was static, uniform and singular, based on a concept of autonomy that harkened back to the age of Enlightenment. Methodological dualism and identitary monism began attacking me on different fronts, dissolving every trace of my supposed ‘progressiveness’. Here the odd concept of multividual was emerging empirically and theoretically as an exact imagination mixed to an astonished ritual: Bororo funeral. It is worth noting that “individual” is a Latin translation of the Greek term for atomon, the indivisible; now the in- prefix may be replaced by multi- in order to express the multitude of egos (“eus” or “ii”) inside the same subject. The multividual is divisible, plural and fluid. Ubiquitous. The same person may have a multiplicity of identities, various ’I’s, and so 'multividualizes' its subjectivity. Ubiquitous multividual is beyond any dualism of space and time male and female, material and immaterial, nature and culture, labor and work, body and soul.
Massimo Canevacci
In my interpretation, ubiquitous multividual is connected with visual fetishisms (a different version of traditional fetishism which comes beyond religions, reifications, and perversions). Meta-fetishism is the immanence of the sacred and the uncanny in a mixing of subject and object, thing and body, commodity and corpse, skin and screen. Ubiquitous multividual is an astonished body-corpse, a constant transition between living body and dead corpse. Ubiquitous multividual is incomprehensible in Adorno’s sense ( ): it cannot be “comprehended” – i.e., grasped, cached, fixed - into the identity principle of logics. Following my ethnographic glance oriented in these floating-and-fragmented digital cultures, the ubiquitous multividual self-representation is mixing observer and observed, emic and etic, researcher and researched. This possibility of going in different spacetimes makes the multividual wondering and wandering. The formative of industrial culture, always developing an identical identity to itself, no longer works. In digital culture, identities are not fixed but floating in a conflictual way researchers have to penetrate. There is a clear or, better, a co-stellar relationship between the emergence of this exuberant multividual, digital culture and the exact imagination of an ubiquitous museum. 5. Digital Auratic Reproducibility The concept Digital Auratic Reproducibility is emerging along the process of my research about meta-morphic fetishisms (Canevacci, 2011). The as friendly as hardly contrast between Adorno and Benjamin - on technologies, revolution, reification, aesthetics - shall be faced by the following empirical and theoretical statement: performing arts, expanded design, digital communication, and decentralized subjects are morphing the aura into reproducibility and vice versa. DAR is related to the mutant concept of ubiquity. It seems to me that the immanent sensoriality of ubiquity is disseminating the traditional opposition between space and time. The web is ubiquitous and ubiquity is going to portray multividual subjectivities in a simultaneous mixing of space-time relationships through Internet and, obviously, social network. I’d like to stress that Adorno was the first to understand that “ubiquity is unique to the medium and distinguish radio to the other forms of communication” (1945). If radio presented an auroral form of ubiquity, I’d like to extend and re-enact such a determining concept to digital culture through an expansion of critical theory. Ubiquity is the potential exact imagination linked to sensorial technology. On these polyphonic and sinchretic scenarios, I´ll favor an ubiquitous encounter between Bateson´s cybernetic anticipations, Benjamin´s reproducible reflections, and Adorno’s aesthetic positioning, Kleber Meritororeu self-representation. Therefore, instead of dialectic opposition between aura and reproducibility, the digital articulations mix these perspectives that, instead of dichotomic, became syncretistic, polyphonic, and diasporic. A reproducible auratic communication emerges from digital cultures beyond the dualism of analogical technologies (and philosophies). A musical, a novel or an artistic piece connected to a social network can remain in its “auratic” expressive autonomy as well as can be available for endless mutations and decentralized reproducibility. Instead of collective art, there are connective artists. And dialectics becomes obsolete…
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The itineraries from cultural industry to digital communication will encourage such a hypothesis: the digital culture crosses and mixes auratic aesthetics and technical reproducibility. Instead of an oppositional dualism between bourgeois aura and working class reproducibility, the digital syncretizes reproducibility and aura. This reproducible aura – an aporia for dialectical thinking – expresses liberationist manifestations for a digital communication in which the ethnographical method is challenged by networking disruption compositions.This decentralized mix of horizontal technologies and diasporic subjectivity makes any visual product consumable anywhere and potentially modifiable by everyone. The simultaneity of ubiquity may be a different manifestation of the Sublime – a childish enthusiasm for an ubiquitous museum constellation 6. Astonished Methodology I’d like to modify the concept of astonishing, through which Adorno critics the Benjamin method in their extraordinary epistolary exchange at the very tragic end of 1930. While the last one assumes the astonishing as his method through which penetrate the reification processes in order to dissolve them, the first one stresses his subjection to the same reification power: the Medusa petrified glance. For Adorno, the connection between capitalist reification and mythical petrification is the extreme dangerous path Benjamin is following: the one he called “dialectical image”. In my project, the dissolution of enlightening reification and mythical petrification will not emerge – following Benjamin – from a theory, as from the uncanny museum exposition that becomes astonishing and offering an astonished methodology. Ubiquitous museum desires to penetrate inside and to be penetrated by the fetishist torsion of mythical/reificated commodities (factizität: facticity as a mix of object, thing, commodity… and pixel) radicalizing their own logical orders. The astonished narrative may favor the risky of facing “illegal” logics movements through which it should be possible to dissolve the expansion of visual fetishisms. My perspective is how to pierce such facticities through the astonished methodology in order to pierce out visual fetishisms.The astonished corporal positioning is the moment before. It is a porous bodyscape disposition trained to meet the desired stranger who is the unknown. The astonishment of the “moment before” is a sort of emotional paralysis waiting for something/ someone unknown which offers the extreme desire of an ethnographic encounter. The astonishment is that uncertain moment before the unknown may be appearing: the face is opening any sensorial porous in order to receive what is going (and hoping) to arrive. The epistemological transformations linked to ethnography explains my basic concept of astonished methodology. The astonished methodology is an innovative way to position your body and mind (mindful body) in a porous dimension to looking for the unknown. It is a positional practice with the aim to open the self-researcher corporality and prepare him/her for the encounter with the stranger: a stranger which, precisely because unknown, is desired. The problem of this meeting is essential in ethnography. Perhaps the most important and crucial moment in the fieldwork – around a social network, in an urban interstice or in “native” ritual – is when the researcher knows that
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may have the chance to encounter someone that is not imagined or something of radical uncanny. If the Unheimlich had the characteristic to invert the stranger in familiar, the contemporary uncanny is a complex mixing and re-mixing of stranger and familiar. Such a continuous re-enacting of known and unknown – stranger and familiar as the strong dichotomy of classical anthropology - is the heart of darkness of ubiquitous museum. The composition aim is how it is possible to transform the darkness in a lighten vagrant constellation. The researcher has to be prepared when – all of sudden or in a serendipity excess - that meeting happens. He/she must be trained to face the unknown, which is both alluring and amazing. It is necessary to grasp the moment, which may be unique and after it can escape. I introduce the growing proliferation of a mutant visual fetishism, involving the everyday life of “common people” as well as global researchers. Such metamorphic commodities have economic values and, at the same time, symbolic values. Such a fetish mix of material/immaterial values is favoring the decaying of sexual perversion and complex of guilt. My aim is to dissolve this proteiform kind of visual reification and mythological commodities through a disrupting micrological narrative. It is a sort of “neo-animistic” methodology: a training to transform my “natural” eyes in a body full of “cultural” eyes: an eyeful body. 8. Digital Syncretisms The concept of syncretisms may be the keyword in order to focus one of the most important challenge: how to mix different cultures, identities, styles, voices without eclecticisms or exoticisms. Syncretisms are glocal polyphonic movements beyond (not against) the radical fundamentalisms or neo-racist statements toward the pure or authentic expositive culture or religion. My research in Brazil was and still is basic for an ubiquitous museum. Polyphonic and dissonant syncretisms are offering a cosmos-political perspective through an ethnographic vagrant glance. I can select a qualitative assemblage of wandering artists or spontaneous performers in order to focus their syncretic astonishing wonder. Such a perspective is quiet different from “hybrid culture”. An example may be how to present a conceptual constellation about the determinant role of Brazilian anthropophagic avant-garde (in 1920-30) together with the popular afro-quilombolas (ex slaves): syncretisms is a constellation wandering and wondering anthropophagy, cimarron, heteronomy, ubiquity, dialogic, polyphony. A de-nativized “native” exposition beyond James Cameron´s Avatar is accompanied to the praise of “native” director Divino Tserewarau or the artist Jimmie Durham. Here the concept of astonished methodology is applied in order to penetrate the artists I selected and the relation between vague (arts) and vagrant (ethnographer). I’d like to present the historical meaning of syncretism, in order to affirm its actual autonomous sense from any religion. Syncretism is a re-enacting concept as well as a disruption statement, beyond the traditional meaning of philosophical superficiality or religious cut-up. Antropofagia, transculturación, glocal, quilombo are accompanying the ethnographic wandering beyond dialectics, and favoring dialogic, polyphonies, heteronomies, ubiquities. The ubiquitous subject is totally different from de anti-urban nomadic one. A significant cosmopolitan public is attracted by a progressive trend toward the cultural
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syncretisms: a montage of cultural fragments selected from movies, artists, musicians, fashion designers, pieces of literature or essay. This vagrant ethnography through different textual montage is experienced everyday by everyone and, in the same time, is connected to the vague research of beauty. A wandering without a goal or a destination and looking for an astonished wonder: this is the liminal path of my ubiquitous museum. Syncretism is liberating the dept of surfaces, the abstractions of thought, and the endless ethnographic aesthetics. 9. Dialogical Cultures In the classical Greek philosophy, dialog means the discussion between two persons in order to demonstrate an unilateral truth. So, there is a strict relation between dialog and dialectics: the aim of dialectics and dialog paradigm is to affirm the synthesis, i.e. a unilateral and universal weltanschauung and an unified system of values. The museum anthropology is based on ethnography - the empirical research on a determinate fieldwork - and on a dialogical imagination. The transition from dialectics or dialog to dialogical or polyphonic perspectives is the following: dialogical polyphonic imagination involve different persons and also the multiple self of the researcher. In this sense, a polyphonic composition of different point of view may coexist along the processual research or cultural exposition. Instead of a synthetic resolution, where only one point of view becomes hegemonic and true, it is possible to present a complex scenario where the fluid multiplicity are not resolved in the static universalistic one. It is important to practices the empathy: to develop a solidarity or a nearness with an opinion quiet different and even opposite to “our” own. The polyphonic dialogical imagination is beyond the traditional relativism, where every opinion is correct: every person is participating to the emotional and rational experience and affirming a positioned subjectivity. A positioned subject is not neutral or indifferent: he/she is involved along a process where his or her vision of the world gets an instable and partial truth thanks to other visions and values. Only the legitimate co-existence of differences may construct my identity and the sense of equality. At the end of the research, my vision of the stranger or of the other will change and also the vision of myself cannot be the same. I want to quote again Dell Hymes when - thinking about Totems, the book of poetry written by his friend Stanley Diamond - wrote that “there are several respects in which poetry is a continuation of anthropology by other means” (1986:23) c)Garnishes This Plutonic Museum is concerned with the fluidity of dialogical cultures and focusing ubiquitous subject, digital imagination, communicational metropolis. A dialogical constellation elaborates a multi-sited ethnography in order to connect different perspectives and values based on self-representation. Methodologically, my project follows a possible experimentation with multi-locale ethnographies which would explore their simultaneous interconnections, favoring astonished methodology, self-reflexivity and a wandering constellation. My garnishes experience will begin with the last visual as well as epistemological concept: the wandering constellation. Here I’ll try to re-enacts a Benjamin and Adorno meeting
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on a syncretic dissonant montage of an astonishing ethnography adequate to contemporary digital communication and to the temporary construction of an ubiquitous museum. Self-representation will be connecting (and connected by) every ubiquitous multividual; so, his/her heteronomy may liberates d��������������������� igital auratic reproducibility perspectivism, whose changing profile will manifest a physiognomic uncanny composition. We can imagine this kind of situated performance: in the same time and in different places, a cluster of ubiquitous multividual – a cosmopolitan selection on the basis of radical differences about cultures, religions, philosophies, aesthetics and politics – will construct a temporary constellation with a fluid physiognomy, using every kind of cultural artifacts and focusing a specific theme. Self-representation will apply literally the concept of cosmopolitan composition. The selected theme will issue a syncretic polyphony through a dissonant mix of sound-scape, visual-scape, body-scape. It is possible to forecast variation on times-and-spaces and so to look at the contrast between very different visions of what have to be shown simultaneously in the temporary ubiquitous museum. In a determined period, we can communicate about every single constellation and, at the very crucial moment, to meta-communicate about all the whole physiognomic constellations in a cosmos-conference. It should be possible to address some light topics to be performed: for example, a work of art created by the past, the recent, the present and the possible futures imagined by every own culture from the self-representation point of view. And than, the same topics may be imagined for every other multividual selected in that performance setting. If the cluster of the multi-performers will be ten, the result will present more than one hundred cultural products in every single constellation. And on the whole constellation it should be possible to show a no-ending co-stellar physiognomy. Every Ubiquitous Museum communicates about his/her own culture and about the other cultures, so the experience of projective identity and partial identification is challenged by the vision a growing and changing exposition of differences. The Multividual is the creator of Ubiquitous Museum and, at the same temporary space/time, part of the expanded digital public, who is mixing the “body” of every auratic object of art with the “corpse” of exterminated technoreproducibility. The Multividual subject of this wandering Ubiquitous Museum is a spect-actor. A mix of spectator and actor. And the object of art is simultaneously a transitive connection between body as a living being and corpse as a dead one. Body-corpse. In this process, every multividual may experienced the unlimited expansion of visual fetishisms and – simultaneously - the dissolution of visual reification. The dualistic dichotomy between object and subject, body and corpse, natural and cultural, familiar and stranger may be overcome through this multi-sited ethnography experiences applied to an ubiquitous museum. Ubiquitous Museum is a meta-fetishist and meta-morphic project. The morphing of a work of art may penetrate and pierce the fetishist dimension of any reificated symbolic object and so transform “it” in a subject or better in a composition beyond any dualistic dimension or dichotomous epistemology. Anthropology must to criticize anthropocentrism and liberate any commodity, thing or object from the historical destiny of being useful, as Benjamin suggests.
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d)Dessert
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“I’d like to explore the experience of late style that involves a nonharmonious, nonserene tension, and above all, a sort of deliberately unproductive productiveness going against...” Edward Said, 2006:7
Fig 2, Joan Mirò: Costellación
The pictorial or musical composition may favor the porous ethnographic glance. I would like to stress that Mirò elaborated a painting with the title of Costelación (fig.2). Such a work of art is adequate to a musical score and even to an evocative multi-narrative writing. I’d like to decipher some constellation details of this painting: above on the right it is possible to see two moons with different colors and dimensions.The green and the black are constant colors of the whole work. On one side, an eye is looking at them from a silver dust point of view, where yellow is doubled in black. Backward, two larval (“sperm-form”) beings are surfing: one with red body and blue head, the other with inverted colors and with the convergent and desiring code. Other desiring couples are moving side by side: two stars with segmented colors in contact; two diagonal beings are converging, the first seems a female figure with large hips, the other
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“masculine” with explicit testicles. On the left, two black square beings are wandering with optical antennas, little spherical balls and thin little legs. Such a phantasmatic and sensual plot is accompanying the dance of another couple: the man’s hair are moving in the direction of the constellation, while the woman’s breasts are circular as her eyes and with a red&black pubis triangle symmetric to her headed chromaticism. All around, many birds are running and “things” are coupling, in an orgiastic and chromatic inter-penetrations beyond anthropocentrism. Finally, down on the right, two white beings are kissing in a dissonant symmetry with semi-opened eyes. Mirò is the astonished vision applied to art. A poetical ethnographer. His painting visionary expressions - a mix of real and imaginary or an exact imagination “fresco” - are moving the participant observer toward self-compositions and self-estrangement.The Mirò’s Costelación offers the exact imagination of Eros. The whirling dance of mutant beings (humans, animals, things beings) is changing identities, colors and concepts. This painting embodies a restlessness sound-scape. Mirò’s painting essay. A composition for an astonished constellation toward potential museum ethnographies. On such an evocative work of art, I try to develop or to encapsulate my physiognomic researches. e) Digestive And now, please, look at the emerging physiognomy of the ubiquitous museum constellation: polyphonic composition communicational metropolis – performer subject – visual fetishisms cultural syncretisms self-representation – fake ubiquity – astonishing methodology - pixel-air multividual heteronomy – vagrant hybridentities - ubiquitous subject exact imagination
fig. 3 Turritopsis Dohrnii
self-representation self-generation - self-estrangement digital cultures - auratic reproducibilities - metamorphic body-corpse wondering arts - wandering ethnographer dust vitreous identities
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Finally, look at Turritopsis Dohrnii. This self-generative jellyfish is my cultural as well as architectural a model for an ubiquitous museum.The life cycle seems inspired by a constellation and, following my exact imagination, there is a strictly affinity between Pluto and Turritopsis. Both are challenging the current taxonomy, through a manifestation of dissonant astronomic category or a static vision of museum. I’d like to stress that the same Zaha Hadid suggests non-normative, post-Euclidean geometries, material and conceptual dissonances, unusual volumetric and structural logic: she is elaborating an organic hybrid morphology and an astonishing environment. Her multi-layered architecture has affinity with a multi-sited ethnography; while the self-representation methodological perspective is connected with a self-generative vision of an ubiquitous museum. I see the multividual dance co-creating an astonished physiognomy. BIBLIOGRAPHY ADORNO, T.W. Negative Dialektik, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1966. _____________. Aestetische Theorie, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1970. ADORNO, T.W. e MANN, T. Briefwechsel 1943-1955. Suhrkamp Verlag: Frankfurt am Main, 2002. ANDRADE, O. Manifesto Antropofagico, Roma, Meltemi, 1999. APPADURAI, A. The Social Life of Things, Cambridge University Press, New York, 1986. BATESON, G. Steps to an Ecology of Mind. Chicago and London: University of Chicago Press, 1972. BENJAMIN, W.Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierarkeit, Suhrkamp Verlag, Frankfurt, 1955. ______________. Briefe, Frankfurt am Main, Suhrkamp; trad. it. 1978, Lettere 1913-1940, Torino, Einaudi, 1966. ______________ Des Passagen-Werk, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1982. BETSKY, A. e ADIGARD E. Architecture Must Burn, Ginko Press, San Francisco, 2000. BRATU HANSEN, M. Cinema and Experience. S. Krakauer, W.Benjamin, T.W.Adorno, University of California Press, Berkeley, LA, London, 2012. CANEVACCI, M. The Line of Dust. The Bororo Culture between Tradition, Mutation and Self-representation, Canon Pyon, Sean Kingston Publ., 2013a ______________ SincretiKa. Explorações nas artes contemporâneas. São Paulo: Studio Nobel, 2013b ______________ Digital Auratic Reproducibility: Ubiquitous Ethnographies and Communicational Metropolis, in “An Ethnography of Global Landscapes and Corridors” (edited by Loshini Naidoo), Rijeka, InTech Publisher, 2012.
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Artigo recebido em abril 2015. Aprovado em maio 2015
CARTOGRAFANDO O RIO DE JANEIRO E SEUS MUSEUS: NOTAS SOBRE UMA “ETNOGRAFIA AUDIOVISUAL DE PERCURSOS” Regina Abreu1
Resumo: O presente artigo apresenta alguns resultados do projeto “Museus do Rio” voltado para o conhecimento e difusão dos museus localizados no Estado do Rio de Janeiro. Especial atenção é conferida à metodologia utilizada que denominamos de “etnografia audiovisual dos percursos”, bem como à participação no projeto de alunos da graduação em Museologia e da pós-graduação em Memória Social da UNIRIO no Rio de Janeiro. Por meio da pesquisa de campo e, particularmente, do uso do audiovisual, os alunos foram levados a exercitar a perspectiva etnográfica e conhecer mais de perto os processos de construção de memória social que os museus engendram, especialmente a relação da memória coletiva com a dinâmica social (Halbwachs, 1990; Huyssen, 2000). A metodologia da “Etnografia audiovisual dos percursos” fez uso de recursos audiovisuais, digitais e fotográficos, gerando produtos que posteriormente foram disponibilizados no portal www.museusdorio. com.br . Pretendemos, com base nesta experiência, introduzir novas ferramentas capazes de dinamizar a relação entre ensino e pesquisa numa relação de inter-conectividade.
1 Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Museu Nacional), Especialização em "Recherches en Sciences Sociales" (EHESS), Professora Associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Bolsista de Produtividade do CNPq 2; Integrante do Corpo Docente do Programa de Pós-Graduação em Memória Social/UNIRIO (certificado pela CAPES/área Interdisciplinar), Líder do Grupo de Pesquisa CNPq "Memória, Cultura e Patrimônio", Coordenadora do Projeto de Pesquisa "A Patrimonialização das Diferenças" (apoio CNPq), Coordenadora do Portal "Museus do Rio" (apoio Faperj). Atuou como pesquisadora visitante do Institut de Recherche Interdisciplinaire sur les enjeux sociaux-IRIS. Tem experiência na área de Antropologia Social nas interfaces com a Memória Social, o Patrimônio Cultural, os Museus, o Áudio-Visual e o Estudo de Trajetórias.
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Cartografando o Rio de Janeiro e seus museus: notas sobre uma “etnografia audiovisual de percursos”
1. Apresentação:
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A Antropologia Cultural é uma área de conhecimento consolidada na grade curricular dos Cursos de Museologia, iniciando o futuro museólogo na percepção do pensamento antropológico e de sua contribuição para a área interdisciplinar dos museus, da memória e da patrimonialização. Do ponto de vista teórico, o trabalho de docência tem se ancorado no importante avanço dos estudos sobre a cultura material – objetos, coleções e patrimônios –. São cotejados antropólogos clássicos como Malinowski (Kula Melanésio), Marcel Mauss (Ensaio sobre o dom), Edmund Leach (Sobre o tempo), Claude Lévi-Strauss (etnografia e museus) e também autores contemporâneos internacionais como Arjun Appadurai (A vida social das coisas), Stocking W., Jr. (Objects and Others. Essays on Museums and Material Culture); James Clifford (Colecionando Arte e Cultura); Richard Handler (On Having a Culture: Nationalism and the Preservation of Quebec’s Patrimoine); K. Pomian (Coleção) e nacionais como José Reginaldo Santos Gonçalves (A retórica da Perda); Dominique T. Gallois (Patrimônio Cultural Imaterial e Povos Indígenas); Regina Abreu e Mario Chagas (Memória e Patrimônio: Ensaios Contemporâneos); Myrian Sepulveda dos Santos (O discurso do passado nos museus históricos). Estas reflexões estimulam o aluno a pensar antropologicamente o campo dos museus, dos patrimônios e das coleções. Observa-se também um progressivo incremento de produção de teses e dissertações nos cursos de Pós-Graduação em Antropologia, Museologia e áreas interdisciplinares, como o Programa de Pós-Graduação em Memória Social, focalizando a criação de museus, a formação de coleções, a patrimonialização de bens imóveis e bens móveis (IPHAN-Decreto Lei 25/1937) e a patrimonialização das culturas (Programa Nacional de Patrimônio Imaterial). Trabalhando no curso de graduação em Museologia e no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO e buscando uma articulação entre ensino e pesquisa na interface entre estas áreas, formulamos o projeto “Museus do Rio”. Neste, os museus do estado do Rio de Janeiro são tomados como locus de pesquisas de campo, onde os alunos são convidados a exercitar a perspectiva etnográfica e a conhecer mais de perto os processos de construção de memória social que os museus engendram. O uso do audiovisual é constitutivo da proposta e se consubstancia na metodologia da “etnografia audiovisual dos percursos”. O objetivo consiste em documentar e pesquisar museus do Estado do Rio de Janeiro, seus agentes, suas narrativas relacionando-os com a história e a memória locais e regionais. Com base na divisão regional do Estado, realizamos 8 roteiros de pesquisas incluindo as regiões Norte e Noroeste Fluminense; Centro Sul Fluminense; Metropolitana; Costa Verde; Baixadas Litorâneas; Serrana; Médio Paraíba. Estas pesquisas resultaram na realização de um portal www.museusdorio.com.br ; nove filmes etnográficos focalizando os percursos visitados (“etnografia audiovisual dos percursos”); um seminário também realizado com apoio da Faperj (Encontro dos Museus do Rio/ 2010). Com base neste material foram realizadas teses, dissertações e monografias sobre os “Museus do Rio” produzindo um conhecimento novo sobre processos de patrimonialização e de construção da memória em contextos onde a pesquisa sobre o tema era pequena ou inexistente. O apoio da Faperj ao projeto, através do Edital Pensa Rio 2007, possibilitou também que constituíssemos o Laboratório de Memória e Imagem do Programa de Pós-Graduação em Memória Social com
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a adequação de um espaço físico e a aquisição de equipamentos de produção e edição de imagem audio-visual, fotográfica e digital. Este Laboratório tornou-se um espaço multi-usuário congregando docentes, discentes e também técnicos da área do audiovisual e das novas tecnologias digitais, alguns dos quais foram contemplados com bolsa de Treinamento e Capacitação Técnica da Faperj. O portal “museusdorio” e as pesquisas e filmes realizados no Laboratório de Memória e Imagem constituem hoje referência na área da Antropologia Cultural, tendo sido apresentados no Brasil e no exterior em congressos e seminários, inclusive no Musée du Quai Branly, em Paris; na Universidade de Évora; no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; no Centre de Communication et Culture da Université d’Avignon; e no próprio PPGMS/UNIRIO durante o I Seminário Internacional em Memória Social ocorrido em 2012 e na Jornada de Memória e Patrimônio em 2014.
2. Etnografia Audiovisual dos percursos: notas sobre a metodologia de pesquisa A inspiração para a metodologia de “etnografia audiovisual dos percursos” veio da leitura de narrativas sobre a experiência do viajante que percorre uma região, buscando exercitar um olhar que estranha, que inquire, que indaga, que procura novos ângulos, novas perspectivas, novas faces de paisagens já vistas e consagradas. Queremos encontrar o Rio de Janeiro para além das paisagens já monumentalizadas, do outro lado do pão de açúcar, do Corcovado, das belas praias, da zona sul, para além da própria cidade do Rio de Janeiro. Ao focalizar o estado do Rio de Janeiro falamos de uma duplicidade de sentidos – cidade e estado –. O Rio de Janeiro é a cidade, capital de um também estado do Rio de Janeiro. Esta superposição de nomes não é casual. Ela implica histórias complexas, conseqüências de forças políticas contrárias, tensões, disputas. Habitar o Rio de Janeiro expressa construções muito variadas e polissêmicas sinalizando cidadãos de uma cidade e/ou de um estado. Identidades e diferenças que falam da proximidade com o mar, com o litoral, com as conexões internacionais e que também falam do sertão, do interior, de conexões com outros estados, Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo. Rio de Janeiro é sinônimo de foras e dentros, cariocas e fluminenses. Cartografar o Rio de Janeiro, palmilhá-lo, percorrê-lo significa lançar-se numa aventura de trilhas, histórias, imaginários raramente coincidentes. A
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polifonia da região está em cada trecho. Região de ocupação muito antiga, onde praticamente toda a história do país é revista e recontada por muitas gerações de grupos sociais diferentes e contraditórios. Desde o início, sabíamos que não teríamos registros únicos. Pelo contrário, as pistas nos sinalizavam que a tendência seria caminhar por camadas de sentidos que conviviam coetâneas, embora muitos séculos as separassem. Numa mesma área, ouvíamos falar de registros de quilombolas, bandeirantes, povos indígenas, fazendeiros, empresários, aventureiros, viajantes, indivíduos vindos de diferentes procedências: portugueses, franceses, tamoios, sambaquieiros, turcos, italianos, africanos, tupiniquins... Como cartografar uma região tão ampla e tão repleta de imaginários? Como trabalhar com a riqueza da diversidade de museus numa região que já foi sede do Governo português, da Colônia, do Império, da República? Uma região onde se fizeram as bases da economia do país, as primeiras elites econômicas e políticas, as muitas relações de trabalho – escravidão, trabalho assalariado, serviços terceirizados-? Como não perceber de imediato que muitos dos quase trezentos museus do Rio de Janeiro contam também histórias do Rio de Janeiro, vestígios que são de antigas construções, fazendas, palácios, casas de remanescentes de quilombos, ruínas de antigas estações ferroviárias. Para a construção da nossa metodologia de pesquisa esta foi pois nossa primeira assertiva: partimos da noção de que os museus do Rio de Janeiro constituíam signos de múltiplas narrativas sobre si mesmos e sobre o espaço onde se inseriam. Por outro lado, estas narrativas aparentavam, desde o contato com o tema, um aspecto extremamente fragmentário. Eram como ruínas no sentido atribuído por Walter Benjamin, sinais de mundos já desaparecidos. Todas as tentativas de estabelecer grandes narrativas que os interligassem em algum sistema comum parecia já ter fracassado.1 Focalizar os museus no contexto das paisagens como ruínas expressivas que sinalizam para camadas variadas de significados nos colocava numa perspectiva bem diferente de uma análise dos museus como instituições. Deste ponto de vista, afastamo-nos de quaisquer sistemas classificatórios e da atribuição de qualidades tipológicas às instituições. Partir destes sistemas classificatórios, muito em voga na teoria museológica contemporânea, e muito úteis para pesquisas que focalizam os museus como instituições, não foi nossa opção. O objetivo principal desta pesquisa não consistiu em refletir sobre os museus a partir de pressupostos como suas funções sociais, suas características internas (prédio ou espaço ressignificado; coleção e tipo de acervo; vocação; existência ou não de plano museológico). Nesta pesquisa, de caráter antropológico, não priorizamos como ponto de partida as normativas do campo museal que definem a categoria museu e suas variantes: museu tradicional; eco-museu; museu social; entre outras. Nosso interesse foi o de observar os museus como personagens, ou como "aldeias" espalhadas por diversos territórios. Como personagens ou "aldeias" queríamos deixar que suas histórias de vida falassem por si só, com o mínimo de interferência de nossa parte. Partindo de uma concepção mais alargada que o conceito de ruína formulado por Benjamin possibilita, entendemos que muitos destes lugares chama1 Em artigo anterior, desenvolvi uma reflexão sobre o conceito de ruínas de Walter Benjamin.Ver: ABREU, Regina . Colecionando museus como ruínas: percursos e experiências de memórias no contexto de ações patrimoniais. Ilha. Revista de Antropologia (Florianópolis), v. 1, p. 17-37, 2012. In: <www.reginaabreu.com>
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dos museus trazem em si marcas de ruínas, enquanto elementos e vestígios de múltiplas temporalidades que entram em choque com a temporalidade dominante do mundo pós-urbano, industrial e, mais recentemente, do mundo pós-revolução do silício com a hegemonia das novas tecnologias digitais. Desse modo, a metodologia da "etnografia audiovisual dos percursos" envolvia antes de mais nada a busca de alteridades no espaço e no tempo. Com relação às definições sobre o que é ou não um museu, preferimos partir de duas assertivas: uma, o Cadastro Nacional de Museus2, metodologia implementada pelo Instituto Brasileiro de Museus que conta com uma forte perspectiva antropológica, mapeando os museus em contexto nacional, a partir de uma proposição social. Entende-se assim que aqueles lugares considerados museus pelos grupos que os implementam devem ser mapeados e levados em consideração, ainda que muitos deles fujam aos critérios normativos museológicos. O que nos interessou foi perceber da parte da sociedade uma "vontade museal", como já assinalou o museólogo Mario Chagas, que derivou este conceito de uma pesquisa sobre a "imaginação museal" nos museus brasileiros. De acordo com Chagas, a "imaginação museal" expressa uma articulação num determinado espaço de uma narrativa poética das coisas a partir do protagonismo de um ou mais sujeitos. Esta articulação advém de uma "vontade museal". Tomar como objeto de pesquisa compreender e interpretar os significados desta "vontade museal" pode, no entender de Chagas, nos auxiliar na compreensão das relações sociais que lhes são subjacentes.3 Desse modo, o Cadastro Nacional de Museus, coordenado pela museóloga Rose Miranda no contexto do setor do IBRAM coordenado então pelo museólogo Mario Chagas, nos serviu desde o início como referência dos museus que poderiam ser visitados e pesquisados, sem levar em conta normativas do campo museal que, neste caso limitariam nosso universo de pesquisa. Entendíamos que trabalhando com um conceito mais alargado e fundamentalmente antropológico de museu (museu como alteridade, ou seja, aquilo que as pessoas nomeiam como tal), seria possível perceber os lugares considerados pela sociedade como referências de memória coletiva. Como a pesquisa tinha como objetivo focalizar diferentes memórias sociais e coletivas no Estado do Rio de Janeiro, seria de pouca valia considerar os museus apenas como instituições, bem como partir de um sistema classificatório já previamente delimitado. A outra assertiva da qual partimos foi a noção de "cartografia". Como assinalou, Danichi Hausen Mizoguchi, cartografia na terminologia utilizada pelos geógrafos, "é o desenho que acompanha e se faz simultaneamente aos movimentos da paisagem. Produção de conhecimento que se dá numa zona de dupla captura entre singularidades: um corpo curioso e um mundo que o atiça. Sendo fabricada em tal zona, a cartografia presta-se a escapar dos grudentos decalques pré-fabricados sempre prontos a serem aderidos a toda e qualquer superfície, diminuindo a miríade dos registros a um punhado de expressões prêt-à-porter."4 A utilização da cartografia como método de aproximação com uma 2 Ver o portal do Sistema Brasileiro de Museus e o Portal <www.museusdorio.com> que contém a publicação completa do Cadastro Nacional de Museus do IBRAM. 3 Ver: CHAGAS, Mario. A imaginação museal:museu, memória e poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro: Ibram/Garamond, 2009. 4 Mizoguchi, Danichi Hausen, Segmentaricidades: passagens do leme ao pontal, SP, Ed. Pleiade, 2009, pág. 84.
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quantidade e uma diversidade de museus nos permitia uma aproximação também com outra noção, a de território. Para além das instituições, buscávamos prédios, casas, lugares com íntima conexão com os territórios que habitavam, capazes de expressar histórias locais, de falar para além do escopo institucional. Viver a experiência de cartografar, ir ao encontro de vestígios de mundos desaparecidos possibilitariam a nosso ver encontros inesperados, interlocuções e afetações impensadas. A própria idéia do percurso trazia para nós este espírito de aventura e de continuidade, onde não esperávamos esgotar a pesquisa num conjunto pré-determinado de museus, mas, pelo contrário, abrir portas e forçar passagens para outras pesquisas, trocas e interlocuções. O pesquisador, a nosso ver, dispõe deste poder de situar-se num ponto de vista de liminaridade, de fora e de dentro, de passagem como o viajante ou o aventureiro. Aproveitar-se e levar às últimas consequências desta posição era a aposta para que pudéssemos desvendar outros mundos focando nas memórias e nas histórias construídas socialmente. A ferramenta da cartografia permitia também constituir um precioso material para a escrita posterior, atualizando e verbalizando aquilo que antes existia como virtualidade e potencialidade. A cartografia dos museus a partir de percursos pré-definidos forneceria material para narrativas antes impensadas sobre estes territórios e suas memórias. A aposta era a de construir uma escrita possível dos museus e das memórias sociais locais, entendendo como chama atenção Danichi Hausen Mizouguchi, a partir de uma formulação de Deleuze e Guattari, que "escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar".5 Outro conceito-chave utilizado foi o de "etnografia" e, mais especialmente, o de "etnografia audiovisual". Como assinalou Cornelia Eckert, "a prática etnográfica é o ofício do(a) antropólogo(a) social. Trata-se de uma metodologia que se desenvolveu vinculada aos quadros teóricos e conceituais desenvolvidos pelos intelectuais da Antropologia em diferentes ambientes universitários e institucionais e em diversos processos históricos. Ela envolve, de modo singular, as ações de observar, de escutar e de registrar na forma escrita como técnicas de pesquisa operacionalizadas: observações, entrevistas e descrições dos processos de interação com indivíduos e grupos em seus dinamismos macro e micro estruturais. Neste princípio, a grafia das diversidades socioculturais ultrapassa os projetos reacionários de perspectivas realistas e chega à contemporaneidade com disposições dialógicas de enfrentamento das determinações ideológicas e coercitivas e alcança qualidades de convivência social e responsabilidade política de complexidade planetária."6 Especificamente, a "etnografia audiovisual" surge no século XX como uma ferramenta sintonizada com "as invenções de instrumentos de registros fotográficos, sonoros e, em sequencia, dos registros fílmicos". 7 Já os primeiros antropólogos modernos utilizavam câmeras fotográficas, filmadoras e gravadores para reproduzirem as entrevistas e as observações feitas em campo e poderem refletir sobre elas e tecerem análises posteriores. Cada vez mais, estas técni5 Mizouguchi, op. cit., pág. 85 (Ver também Deleuze, Gilles e Guattari, Felix, Introdução: rizoma. Em Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia.Volume 1. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995). 6 Eckert, Cornelia, "Apresentação", In: Revista Iluminuras, v. 13, n. 32 (2013). 7 Eckert, op. cit.
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cas foram se aperfeiçoando e sendo incorporadas ao ofício do antropólogo. Concomitantemente, traziam também debates, dilemas, reflexões, sobretudo, relacionados à ética, à linguagem e ao tema dos direitos das populações com relação à difusão de suas imagens e falas. Vimos nascer uma área especializada nesta reflexão -a Antropologia Visual-, com uma gama intensa de seminários, colóquios, artigos, cursos e com adeptos de forma crescente. Como chama a atenção ainda Cornelia Eckert, "um aprimoramento técnico e dramático das aprendizagens etnográficas nos legou hoje um rico patrimônio de produção em imagens visuais e sonoras."8 O uso do audiovisual na pesquisa de campo permite desvendar detalhes imperceptíveis durante o processo da pesquisa, o enriquecimento das minúcias na perspectiva do observador é notável. Como assinalou Cornelia Eckert e Ana Luisa Carvalho da Rocha, a ferramenta do audiovisual é herdeira direta do "ideário da Modernidade que conforma um olhar humano sobre o mundo cuja finalidade é, precisamente, observar e dissecar a realidade para melhor descrevê-la e dominá-la."9 Por outro lado, o uso do audiovisual é extremamente performático e, em muitos casos, aproxima e confere dignidade ao interlocutor. A perspectiva de falar diante de uma câmera confere uma solenidade interessante à entrevista, afastando o pesquisador da banalidade, tirando da rotina os entrevistados, permitindo um outro olhar para aquilo que é da ordem do cotidiano, do trivial, do dia a dia. Eckert e Rocha chamam a atenção para o lugar que o documental e as tecnologias audiovisuais desempenham como "formas de pensar as inflexões temporais características do mundo urbano contemporâneo." Indo mais longe, poderíamos atribuir ao uso das ferramentas audiovisuais uma forma mesma não apenas de registrar, mas de observar e, sobretudo, de refletir. O pesquisador com familiaridade com o uso do audiovisual não mais utiliza a câmera apenas como instrumento que alarga suas potencialidades de ver e ouvir. Trata-se de pensar com o audiovisual. Este axioma de levar uma câmera de vídeo para o campo com o intuito de manejar uma ferramenta que mais do que registrar e documentar faz disparar o pensamento não se trata de uma via de mão única. Não apenas nós os pesquisadores-observadores somos levados a pensar com a câmera, mas também nossos interlocutores. A câmera em cena cria um momento ritual e solene, extraordinário, fora do tempo, que estimula o interlocutor - no nosso caso agentes de memória, diretores de museus, pesquisadores, memorialistas, guias de museus - a uma auto-reflexão. É o momento de parar o trabalho realizado sistematica e cotidianamente e refletir sobre o que se faz, sobre o que se tem feito, sobre o que se fez e o que se pretende fazer. É o momento de refletir sobre o papel do museu, da memória e do patrimônio na comunidade em que se vive, na região e, mais além, no mundo do qual se faz parte. Ao inquirirmos os agentes de memória que trabalham com e pela memória social, damos passagem a que estes agentes se transformem em narradores de si próprios, de suas trajetórias, de suas ações e atitudes para e pela memória social. Na sequência das entrevistas, a aposta é que estas narrativas forneçam a base para um texto a partir da transcrição. Este é um capítulo a parte no ofício 8 Eckert, op. cit. 9 Rocha, Ana Luiza Carvalho e Eckert, Cornelia "Imagem recolocada: pensar a imagem como instrumento de pesquisa e análise do pensamento coletivo". In: Revista Iluminuras v. 2, n.3; Publicação Eletrônica do Banco de Imagens e Efeitos Visuais - NUPECS/LAS/PPGAS/IFCH e ILEA/UFRGS, 2001
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do etnógrafo. Como transcrever um texto de narrativa oral, uma entrevista? Ou seja, como transformar uma fala em um texto escrito quando sabemos que falas e textos escritos se inscrevem em contextos muito diferenciados de registros da língua. Muitos tem sido os autores que se dedicam a refletir sobre as agruras, as vantagens e os limites desta transposição. Como transcrever sem trair o pensamento do nosso interlocutor? Como inscrever num texto escrito as figuras de linguagem, as interjeições, as hesitações, os silêncios, as dúvidas, as emoções, enfim, todo um universo de expressões que existe apenas numa narrativa oral?10 Além disso, a filmagem produz sempre uma narrativa visual que pode e deve ser contemplada na transcrição das entrevistas. Um olhar, um muxoxo, um gesto, uma piscadela para usar a imagem de Clifford Geertz estão plenas de significados.11 Perceber o filme enquanto narrativa visual auxilia muito no trabalho de transcrição das entrevistas. Outra ferramenta muito útil é levar um caderno de campo e anotar impressões, detalhes, sentimentos, questões percebidas durante a pesquisa. É fundamental anotar os nomes dos entrevistados, o local e a data da entrevista. Verena Alberti chama a atenção para o fato de que "A Associação dos Arquivistas Norte-americanos estabeleceu, em um guia de 1995, que as seguintes informações são fundamentais na catalogação de entrevistas de história oral: nome do entrevistado, data, quantidade (de fitas, por exemplo) ou duração, nome do entrevistador, resumo do conteúdo, da natureza e do escopo da entrevista, restrições ao acesso (se houver) e nome do projeto ou coleção (se houver). Outras informações que podem ser acrescentadas às primeiras são: formato físico (gravação sonora, gravação em vídeo, transcrição), informações biográficas do entrevistado, nomes de pessoas presentes, financiadores, circunstâncias da entrevista, sumário, doadores (se houver), restrições de uso e reprodução, materiais suplementares e registro de que a entrevista foi revista pelo entrevistado (se for o caso)."12 Quando pensamos em realizar nossas entrevistas, estávamos atentos para o fato de que todo o material gerado poderia ser arquivado no Laboratório de Memória e Imagem do PPGMS-UNIRIO e, que, portanto, deveríamos levar em consideração alguns destes aspectos necessários à inteligibilidade do material produzido tanto para a análise posterior da pesquisa, quanto para usos futuros não previamente definidos. Portanto, elencamos algumas informações básicas necessárias para a pesquisa de campo: anotar os nomes das localidades, os endereços, os nomes das pessoas que nos atendiam, as circunstâncias em que ocorreriam as pesquisas, os nomes das pessoas da equipe durante as viagens e estimulávamos os assistentes de pesquisa a fazerem suas próprias anotações. Tínhamos clareza de que informações deste tipo são 10 Recomendo aos que tem interesse neste tema que recorram a uma literatura especializada.Ver: Alberti, Verena. Tratamento das Entrevistas de História Oral no CPDOC, in: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil –CPDOC / FGV –www.cpdoc.fgv.br1 < http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1505.pdf> acessado em: 9/2/2015; Ribeiro, José da Silva. Antropologia Visual, Práticas Antigas e Novas Perspectivas de Investigação, Rev. Antropologia, vol 48, n. 2, SP, Jul/Dez 2005< http://www. scielo.br/scielo.php?pid=s003477012005000200007&script=sci_arttext> acessado em: 9/2/2015; Devos, Rafael. "Quando a câmera vira "personagem": ponto de vista em movimento na busca de imagens do outro em documentários etnográficos", in: Revista Iluminuras, vol. 2, n. 3, UFRGS, 2001 <http://seer.ufrgs.br/index. php/iluminuras/article/view/9117>. 11 Geertz, Clifford. A Interpretação das Culturas, RJ, Zahar Editores, 1978. 12 Alberti,Verena, Tratamento das Entrevistas de História Oral no CPDOC, in: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil –CPDOC / FGV –www.cpdoc.fgv.br1 < http://cpdoc. fgv.br/producao_intelectual/arq/1505.pdf> acessado em: 9/2/2015
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fundamentais numa pesquisa de campo. Realizar uma documentação precisa dos passos da pesquisa e, sobretudo, anotar as referências dos entrevistados são cuidados imprescindíveis neste tipo de trabalho. E tudo isto facilita o momento da transcrição e possibilita a criação de um documento de trabalho para posterior interpretação. Mas, se estamos falando da metodologia da pesquisa, é importante chamar a atenção para os diversos documentos necessários para a autorização da pesquisa. No nosso caso, trabalhamos com museus e pessoas. Os museus são "pessoas jurídicas" e, neste caso, precisamos solicitar autorização para a pesquisa nestes espaços. O mesmo se coloca para as "pessoas físicas", nossos entrevistados. Hoje, a pesquisa vem sendo regida por normas éticas que visam proteger os direitos de pessoas físicas e jurídicas. Para assegurar a lisura dos objetivos do nosso trabalho enquanto pesquisadores e produtores de conhecimento, é importante que fiquem claras as relações de ambas as partes. No nosso caso, como tínhamos intenção de criar um portal com os resultados da pesquisa difundindo os museus do estado do Rio de Janeiro, além de produzir artigos, livros e difundir o material filmado em filmes para a televisão, deixamos tudo isso muito claro nos documentos que levamos conosco para o campo. Neste caso, ficava definido também que não faríamos uso comercial do material pesquisado e filmado, mas sim um uso cultural e acadêmico, sempre citando as fontes utilizadas. 3. A Pesquisa de Campo: a escolha dos museus e a construção dos percursos Partindo das oito regiões econômicas do Estado do Rio de Janeiro, elaboramos roteiros de visita aos museus procurando observar as conexões e interligações entre os museus e os municípios onde estão situados. A prioridade consistiu em focalizar a relação dos museus com a vida social: os diferentes significados destas instituições para os agentes sociais. A cultura, a memória e os museus de cada região foram previamente pesquisados pela equipe do projeto. Foram também convidados professores e pesquisadores para sugerir percursos e roteiros específicos de visitação para sublinhar as conexões e relações dos museus com o entorno, fosse do ponto de vista histórico, fosse do ponto de vista da memória social dos moradores, fosse do ponto de vista ambiental e artístico, ficando a critério dos convidados sugerir e guiar a equipe no roteiro proposto. O ponto de vista do “narrador” foi sempre sublinhado. Não tínhamos a pretensão de construir roteiros de visita visando englobar “todos” os museus existentes nas regiões pesquisadas. Tratava-se sim de uma proposta conceitual de percurso e visitação cujos nexos e sentidos fossem evidenciados pelos narradores no encontro com a paisagem, a história, a memória, a cultura, os museus. Assumimos portanto o ponto de vista benjaminiano (Walter Benjamin) onde os nexos e as conexões de memória fossem se explicitando a partir das viagens entre vestígios, fragmentos e ruínas cujos sentidos não eram aparentes. Queríamos insistir na idéia de que os narradores fariam falar os objetos (leia-se museus, ruínas, fragmentos de memória, acervos) ao instigá-los, inquiri-los, dialogar com eles. Procuramos nestas viagens encontrar interlocutores privilegiados (historiadores locais, cronistas, escritores, artistas) que imprimissem um olhar
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singular para os museus, a cultura e a memória de cada roteiro de visitação.
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Todo o material foi documentado em vídeo e fotografia visando subsidiar três produtos: um livro, filmes de 12 minutos para cada roteiro, um site. A concepção conceitual do livro, a direção dos filmes e a concepção do site ficaram a cargo da equipe do projeto, notadamente dos professores envolvidos que tiham como tarefa orientar os bolsistas de Mestrado, Doutorado e de Iniciação Científica envolvidos. Adicionalmente, foram contratados profissionais externos nas áreas em que a UNIRIO não dispunha de formação, notadamente Geografia, Comunicação, Informática, Fotografia, Filmagem, Edição e Montagem em Vídeo Digital, Programação Visual, Webdesign. Estes profissionais foram acolhidos dentro do espírito da equipe compartilhando as informações e contribuindo para o caráter de ensino, pesquisa e extensão impresso no projeto. Os bolsistas e os profissionais contratados foram estimulados a desenvolverem sub-projetos sendo autores de partes específicas dos mesmos, ficando a responsabilidade e a autoria do produto final a cargo da coordenação geral. As etnografias audiovisuais dos Museus do Rio serviram de base para programas de TV e documentários sobre o tema. Os filmes realizados, resultado dos percursos trilhados em oito regiões do Estado do Rio de Janeiro, foram copiados em DVD e distribuídos para ampla difusão.:
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DVD 1 "Entre telas, monumentos e paisagens: Niterói e seus Museus" "Na canoa do tempo: Museus e Comunidade em Itaipú" "Memória, História e Resistência: um Museu de percurso na Baixada Fluminense" "Tempo de Seresta: Música, Museus e Memória no Médio Paraíba" DVD 2 "O sagrado, a cidade e o patrimônio: Museus na Costa verde" "Vestígios diversos em tempos vários: Museus na Costa do Sol "Café, Ferrovia e Cachaça: Museus no Centro Sul Fluminense"" "Fragmentos e fontes de memória: Museus no Norte Fluminense" "Colonização, Império e República: Museus na Região Serrana" Este filmes vem sendo veiculados também pela TV Alerj e pela TV NBR e inspiraram um novo programa de TV com o título "Museus do Rio", cuja realização é da UNRIO em convênio com a TV Alerj. Partindo das regiões, traçamos inicialmente sete percursos: Percurso Médio Paraíba; Percurso Costa do Sol; Percurso Centro-Sul; Percurso Metropolitana; Percurso Região Serrana; Percurso Baixadas Litorâneas; Percurso Norte Fluminense.
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Percurso Médio Paraíba:
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Viajando por pequenas estradas de terra ou pelas grandes rodovias desta região, ainda é perceptível, seja em vestígios nas matas, seja no cheiro que impregna os bares e as paradas para abastecimento, a presença do café, principal produto agrícola que, durante anos, movimentou a economia do lugar e fez surgir as outrora prósperas fazendas. Preservadas por seus proprietários, essas belas e imponentes propriedades nos conduzem a um outro tempo. Além disso, constituem patrimônio de cultura material significativo, com arquitetura singular representativa de um estilo de morar das elites brasileiras do fim do século XIX e início do século XX. Chamam a atenção especialmente os assoalhos em madeira de lei, os amplos salões, as alcovas e as marcas da religiosidade impressas em oratórios ou até mesmo em pequenas capelas. Belas edificações como as da Fazenda Vista Alegre, a Fazenda Pau d’Alho, a Fazenda Florença e a Fazenda da Bocaina compõem, em Valença, um cenário idílico e trazem a nostalgia de um passado. Mas, para o viajante em busca dos museus da região, certamente a pequena cidade de Conservatória, distrito de Valença, é parada obrigatória. Nela, a memória é ativada nas canções de seresta e nos rituais das serenatas. Uma memória que se afirma no sentimento dos mais vividos e que se inaugura naqueles mais moços, como se diz no local. Seguindo esse clima musical, uma experiência imperdível é participar das serenatas que são executadas às sextas-feiras e aos sábados, depois das 23 horas, na Rua das Flores, no bairro da Felicidade. Seresteiros, poetas, cantadores misturam-se aos visitantes e turistas ao som do cancioneiro da música brasileira de amor. Trata-se de um movimento singular e espontâneo criado e mantido por moradores da cidade que preserva expressivo patrimônio imaterial brasileiro. Dele, um vasto acervo reunido por seresteiros e visitantes gerou um pequeno museu que ali funcionou por anos, o Museu da Seresta e da Serenata. Hoje, esse acervo pode ser visitado na Casa de Cultura de Conservatória. Dois outros museus, também iniciativas de particulares, completam esse clima de encantamento e sonoridade da boa música, homenageando Vicente Celestino e Gilda de Abreu e o Museu Sílvio Caldas, Gilberto Alves, Nelson Gonçalves e Guilherme de Brito. Em torno das potencialidades da memória do cancioneiro popular, o movimento da seresta e da serenata vem fomentando uma autêntica “economia criativa”. São bares, restaurantes, pousadas, lojas de souvenir e até um pequeno estúdio de fotografia onde o visitante é convidado a se deixar fotografar com roupas antigas, entrando no clima de outras épocas, como a Era do Rádio e o tempo dos primeiros estúdios de cinema no Brasil. Depois de havermos nos deleitado com os museus que homenageiam compositores, poetas e artistas consagrados da vida cultural brasileira, há ainda outras opções que valem a visita. O Museu da Roça é uma iniciativa interessante, sobretudo para aqueles que anseiam por uma pausa na agitação da vida urbana. Criado pela Associação da Feira da Roça, que existe há 27 anos, está localizado no centro da cidade de Quatis, o museu foi inaugurado em 2004, ocupando uma antiga casa construída em adobe, em 1899. É uma viagem no tempo entrar em contato com utensílios antigos como as máquinas de costura e os ferros de passar a carvão, presenças
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outrora obrigatórias nos afazeres domésticos na área rural. Promove nos segundos e quartos domingos do mês a Feira da Roça, aberta a todos os visitantes, com barracas com produtos locais, almoço e música para dançar. O Museu de Arte Moderna em Resende é um capítulo à parte. Fundado em 1950 pelo escritor Marques Rebelo, ocupa uma casa espaçosa no Centro Histórico de Resende e é mantido pela Prefeitura, que fez a aquisição do primeiro quadro, um óleo de Iberê Camargo. Guarda obras de Tarsila do Amaral, Santa Rosa, Guignard, Lasar Segall, Liesler, Alfredo Ceschiatti, Poty. E também abre os dois salões principais para cursos, palestras, espetáculos de música e teatro, sessões de cinema e lançamentos de livros. As visitas podem ser mediadas mediante agendamento. Por fim, entre outras opções de museus na região, deparamo-nos com o Museu Finlandês da Dona Eva em Penedo, Itatiaia. Foi uma oportunidade única de ver de perto contribuições culturais dos finlandeses que vieram para o Brasil, estimulados pelas políticas de imigração do começo do século XX: tapeçarias feitas em teares manuais, trajes típicos usados em festas e ocasiões especiais; objetos de artesanato confeccionados em casca da árvore bétula; bonecas finlandesas e uma coleção de livros, revistas, folhetos e fotografias que estimulam a pesquisa histórica e também a vontade de se aventurar por este país tão distante e tão pouco conhecido dos brasileiros. Com museus tão diversos, percorrer o Médio Paraíba nos levou à descoberta de uma variedade de opções que se traduz numa pluralidade de memórias espalhadas por seus municípios.
Museu Vicente Celestino e Gilda de Abreu - Conservatória - Valença, RJ
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Museu da Seresta e da Serenata - Conservatória -Valença, RJ
Museu Silvio Caldas, Gilberto Alves, Nelson Gonçalves e Guilherme Brito - Conservatória - Valença, RJ
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Percurso Costa Verde: Para conhecer as diferentes memórias que os museus da Costa Verde poderiam nos revelar, atravessamos lugares paradisíacos, onde a serra teimava em competir pela primazia estética com o mar da Baía da Ilha Grande. Fixamos como destino Paraty, simpático município que, desde 1966, foi elevado à categoria de Monumento Nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Ao percorrermos o Bairro Histórico de Paraty, fomos tomados pela sensação de estarmos no passado. A mais antiga edificação religiosa da cidade, a Igreja de Santa Rita, que teve sua construção iniciada em 1722, abriga o Museu de Arte Sacra de Paraty. O museu reúne acervo proveniente das irmandades religiosas e das igrejas de Nossa Senhora dos Remédios, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora das Dores, além dos Passos da Paixão e capelas da zona rural. Nas coleções de imaginária e de prataria dos séculos XVII, XVIII e XIX, destacam-se as imagens da padroeira de Paraty, Nossa Senhora dos Remédios, e o Grupo da Sagrada Família, com rara iconografia de Nossa Senhora da Expectação; as alfaias expostas em caixa-forte/vitrine; as coroas e os cetros usados nos cortejos das festas do Divino Espírito Santo e de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito e a custódia que conduz o Santíssimo Sacramento na procissão de Corpus Christi. Apesar de musealizados, esses objetos retomam seus status e usos originários ligados às práticas e tradições religiosas ao serem devolvidos às irmandades que os carregam nas procissões em dias festivos pela cidade. Além da guarda e conservação das coleções, o museu promove a pesquisa e a divulgação do testemunho histórico, cultural e religioso da comunidade paratiense. No alto do Morro da Vila Velha, Morro de São Roque, Morro do Pontal e depois Morro do Forte, desponta uma das mais belas vistas da cidade e da baía de águas calmas, por onde embarcava o ouro vindo das minas rumo à cidade do Rio de Janeiro. Como um presépio à beira-mar, no Centro Histórico a imponente Igreja da Matriz contrasta com o casario colonial, a maioria requalificada como pousadas, restaurantes e lojas de artesanato. Com acesso apenas aos pedestres, nas ruas de pedras irregulares, produto e memória da riqueza produzida pelo caminho do ouro, levas de turistas embarcam rumo às centenas de ilhas e de praias espalhadas pela Baía de Paraty. É ainda no Morro do Forte, lugar que recebeu o primeiro núcleo de povoamento em Paraty, que se encontra o museu Forte Defensor Perpétuo, administrado pela prefeitura. A fortificação abriga um museu de tradições populares de Paraty e, assim como o restante da cidade, dialoga fortemente com o período em que o Brasil era uma colônia de Portugal. Graças ao isolamento de mais de um século, a cidade, um dos mais importantes caminhos do ouro durante a Colônia (1530-1815), manteve preservados seu traçado urbano, arquitetura e tradições. À época, um complexo composto de fortes, fortins e baterias defendiam a cidade e seu porto dos constantes ataques de corsários e piratas. Estudo feito no século XIX relata que todas essas fortificações foram desarmadas entre 1828 e 1831. Por volta de 1885, já estavam em ruínas. Nossa viagem pela Costa Verde prosseguiu em direção ao município vizinho de Angra dos Reis. O Museu de Arte Sacra de Angra dos Reis, sediado nas dependências da Igreja de Nossa Senhora da Lapa e Boa Morte é considerado
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um dos mais importantes do estado em matéria de arte sacra. Seu acervo, tombado pelo Iphan, reúne cerca de dois mil itens distribuídos em coleções de imaginária, prataria e indumentária, que datam do século XVII ao início do século XX. Esse acervo é oriundo das irmandades já extintas do Santíssimo Sacramento, de Nossa Senhora do Rosário, de São Miguel e Almas e de Nossa Senhora da Conceição; das igrejas localizadas na Ilha Grande, Mambucaba, Ariró, Bracuí, Ribeira e Jacuecanga, assim como do culto doméstico muito particular que fez surgir algumas imagens de cunho popular tradicional na região. Criado em 1992, o museu é um misto de templo sagrado e espaço cultural. Desde então, todo ano é realizada no museu uma exposição temática diferente, com o fim de fazer circular o importante acervo sob a fiscalização do Iphan e manutenção do município. Por fim, seguimos em direção à Mangaratiba para conhecer precioso acervo de conchas, preservado no Museu Municipal de Mangaratiba. Resultado do esforço de colecionamento e pesquisa de um morador do local, o “Doutor Carlitos”, como é conhecido, esse acervo malacológico representa uma curiosa forma de contribuir para a preservação da biodiversidade na região. Cerca de 1.200 espécies de conchas evidenciam a diversidade da fauna de moluscos numa região de pulsante biodiversidade. História, natureza e tradições populares interagem e se conjugam num dos percursos mais belos do estado.
Museu Forte Defensor Perpétuo - Paraty, RJ
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Museu das Conchas - Mangaratiba, RJ
Museu de Arte Sacra de Angra dos Reis - Angra dos Reis, RJ
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Museu de Arte Sacra de Paraty - Paraty, RJ
Percurso Região Serrana: Seguimos para a Região Serrana, conhecida pelo clima ameno e a exuberância das matas. Visitamos a cidade de Petrópolis muito reconhecida por seu passado ligado ao Império. A arquitetura da cidade nos chamou a atenção. Conhecemos a Casa do Colono, construída por colonos alemães em 1847, cujo alicerce é de pedra bruta e as paredes são de pau-a-pique. As ruas do quarteirão têm nomes que se referenciam aos colonos alemães. De lá, seguimos para o Museu Imperial, importante símbolo da cidade e um dos museus mais visitados do Brasil. O museu trata da vida imperial e desse passado repleto de símbolos reais, coroas, roupas, pinturas, louças, prataria. Depois fomos para o Palácio Rio Negro, construído em 1889, ano da proclamação da República. O Barão do Rio Negro deixou o palácio por motivos desconhecidos. A casa ficou fechada até 1903 quando o presidente Deodoro da Fonseca transferiu momentaneamente a capital da província para Petrópolis. Por último, visitamos a Casa de Santos Dumont na Rua do Encanto, no Morro do Encanto e chamada por Santos Dumont de “casa Encantada”.Trata-se da única residência que Santos Dumont teve no Brasil. Em cada um destes museus, fizemos longas entrevistas com diretores, pesquisadores, estudiosos da história local.
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Museu Casa do Colono - Petrรณpolis, RJ
Museu Casa de Santos Dumont - Petrรณpolis, RJ
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Museu Imperial - Petrópolis, RJ
Palácio Rio Negro - Petrópolis, RJ
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Percurso Centro-Sul: Percorrer o legendário Vale do Paraíba é entrar em contato com um território que representou uma das bases de sustentação econômica e política do Império brasileiro e de parte da República. Ali se cultivou, durante décadas, um dos maiores produtos de exportação brasileira, o café. Por esse motivo, o vale chegou a ser conhecido como o Vale do Café. Em torno da economia cafeeira, floresceram cidades e toda uma cultura das grandes fazendas, onde uma classe senhorial afirmou-se e enriqueceu-se: os “barões do café”.As fontes dessa riqueza emanavam da mão de obra dos escravos trazidos da África e que, em meados do século XIX, atingiram a cifra de milhares. Há muitos vestígios históricos no Vale do Café. A cidade de Vassouras concentra significativo patrimônio: além dos grandes casarões, o Museu Casa da Hera destaca-se na sua paisagem. A visita a esse museu, antigo local de moradia de uma das mulheres mais ricas e avançadas do Império, Eufrásia Teixeira Leite, é uma rara oportunidade para conhecer de perto vestígios da intimidade da vida dos barões e baronesas do café, por meio dos mais de três mil objetos expostos que pertenceram à família Teixeira Leite. Percorrendo a casa de Eufrásia, personagem singular em uma sociedade que não reservava às mulheres um papel de protagonismo, aprendemos um pouco sobre a sociedade da época e, em particular, sobre essa mulher que rompeu barreiras e notabilizou-se por grande tino comercial, chegando a multiplicar sua fortuna em investimentos financeiros na Europa. Mas, e as memórias dos escravos? Onde habitam, em Vassouras, os vestígios da imensa população negra que povoou o Vale do Café no século XIX? Um desses lugares é o Memorial Manuel Congo, erigido no local onde o líder quilombola Manuel Congo foi enforcado por aqueles que faziam a repressão às revoltas dos escravos. O Memorial é muito simples, mas impactante em virtude de seu grande potencial evocativo da memória da escravidão, por tantas vezes silenciada na História do Brasil. Em seu entorno, em algumas ocasiões, abre-se a roda para manifestações da cultura afro-brasileira, valorizando o patrimônio imaterial dos atuais descendentes dos antigos trabalhadores do café. Abertas à visitação, há ainda diversas fazendas que podem ser visitadas, mediante agendamento prévio, e onde permanece viva a aura da riqueza produzida no século XIX: Fazenda Santa Eufrásia, Fazenda Cachoeira Grande, Fazenda Galo Vermelho, Fazenda Cachoeira do Mato Dentro, Fazenda Mulungu Vermelho, Fazenda São Fernando, Fazenda do Secretário, Fazenda São João da Barra. Seguindo para Miguel Pereira, cidade bucólica de veraneio, dois museus são particularmente interessantes. O primeiro, o Museu Ferroviário, fica localizado na antiga Estação Ferroviária de Miguel Pereira, criada em 1898 pela Estrada de Ferro Melhoramentos, inicialmente com o nome de Estação da Estiva. Nos anos 1990, os moradores se organizaram pela preservação desse espaço de memória que havia sido comprado por uma rede de supermercados.A Prefeitura aderiu ao movimento social, embargando a obra e comprando a área que passou a abrigar o museu e preservar a memória coletiva dos antigos ferroviários e suas famílias. O museu é muito simples, e os objetos que ali estão patrimonializados, ainda que sem uma proposta clara de exposição, são muito curiosos e evocativos de uma história importante que perdurou por quase um século. São testemunhos da malha ferroviária que interligava os diversos municípios e foi crucial na ocupação humana
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de toda a região. Lá estão uma antiga locomotiva, vagões, bancos, sinos, dormentes de estradas de ferro, instrumentos de trabalho os mais variados, carteiras de trabalho dos antigos ferroviários, fotografias e um sem-número de objetos que perderam seu valor de uso e hoje são lugares de memória de um mundo que já se foi. Num outro recanto, ainda em Miguel Pereira, o Museu Francisco Alves relembra aquele que ficou conhecido como o Rei da Voz. Os mais jovens certamente não saberão quem foi esse cantor. Mas, os objetos ali expostos nos trazem a memória de uma era importante para a Música Popular Brasileira: a chamada “era do rádio”, em que muitos talentos musicais despontaram e ganharam celebridade. Dono de uma voz firme e potente, Francisco Alves começou sua carreira em 1918, cantando uma marchinha carnavalesca do compositor Sinhô, que fez muito sucesso na época: “O Pé de Anjo”. Discos, partituras, microfones, roupas, rádios dos anos 1940, instrumentos musicais e ampla iconografia do artista estão ali reunidos. E o museu, gerido pela prefeitura, assume o papel de tirar do esquecimento e homenagear Francisco Alves, talvez numa atitude de retribuição pelo fato de o cantor, já famoso, haver frequentado a cidade de Miguel Pereira e difundido suas qualidades. Há ainda muito a descobrir nesta região de grande riqueza do ponto de vista histórico e patrimonial. Vale destacar o Parque Ecológico e Ambiental de São João Marcos, em Rio Claro, primeiro sítio arqueológico urbano do país. Por fim, alguns museus curiosos e com acervos muito interessantes, como o Museu da Cachaça, em Paty do Alferes, criado por um colecionador, encontram-se abertos à visitação pública nos fins de semana. Quem sabe, em um futuro próximo, será possível a criação de outros museus que expressem histórias tão significativas?
Museu Casa da Hera - Vassouras, RJ
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Museu da Cachaรงa - Paty do Alferes, RJ
Museu Francisco Alves - Miguel Pereira, RJ
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Museu Ferroviário Miguel Pereira - Governador Portela – Miguel Pereira, RJ
Percurso Região Metropolitana: Para entrar em contato com os museus da Região Metropolitana, é preciso construir roteiros específicos, pois esta é a região que congrega maior número de municípios. Num primeiro momento e, levando em consideração o objetivo de percorrer museus pouco conhecidos, excluímos o percurso da cidade do Rio de Janeiro e elegemos dois percursos alternativos, um focalizando o município de Niterói e outro focalizando o município de Duque de Caxias. Percurso 1: Niterói e arredores No município de Niterói, encontramos uma grande concentração de museus, certamente pelo fato de ter sido, durante décadas, a capital do antigo estado do Rio de Janeiro. Partindo do Rio, nosso percurso teve início ao cruzarmos a ponte em direção a Niterói, cuja vista da Baía de Guanabara é deslumbrante, com destaques na paisagem para navios ancorados no porto, a bela Ilha Fiscal e os contornos dos morros sobressaindo no horizonte. Na região do Ingá, uma concentração de museus e casas históricas chamou nossa atenção. O mais importante é sem dúvida o Museu do Ingá, grande palacete que serviu de sede de governo até 1975, nos anos em que Niterói foi capital do estado, e que, hoje, abriga um importante acervo de arte, além de laboratórios e oficinas de gravura e educação artística. Um pouco adiante, visitamos o Museu Antonio Parreiras, que funcionou como casa e ateliê deste que foi um dos mais bem-sucedidos pintores do início do século XX. Tanto a casa quanto o ateliê conservam ainda as marcas de seu proprietário, inspirando o visitante a exercitar a imaginação e remontar aos velhos tempos em que a casa respirava arte e criação. Seu acervo de pinturas é
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precioso, guardando as principais obras de Parreiras. Algumas são monumentais, como a tela exposta em seu ateliê. Outras, em menor tamanho, focalizam temas ligados à natureza ou associados à experiência criativa do próprio pintor, que é autorretratado em diferentes fases da vida, sempre pintando ao ar livre, sua maior paixão. Bem próximo dali, está o Solar do Jambeiro, edificação arrojada que serviu de residência a grandes empresários e apresenta em sua fachada expressivo acervo de azulejos de padrão do Brasil. Em seu entorno, um jardim bucólico nos acolhe e nos permite um pequeno momento de contemplação e descanso. Quase em frente ao Solar, está o Museu Municipal Janete Costa, que abriga a coleção pessoal desta arquiteta que dedicou parte de sua vida a preservar a arte popular brasileira. Prosseguindo até o bairro da Boa Viagem, na região central, a visita ao Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC), projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, fez-se obrigatória. O museu é o cartão-postal e símbolo do município. O prédio é em si mesmo uma obra de arte e foi concebido para que o visitante desfrutasse de uma comunhão íntima com a beleza da visão da Baía de Guanabara interligando Niterói e Rio de Janeiro. Subir a rampa que dá acesso às exposições permanentes e temporárias constituiu rara experiência de fruição, preparando-nos para conhecer diferentes sensações provocadas pelo que há de melhor na arte contemporânea brasileira e internacional. Ao adentrar o prédio, deixamo-nos afetar pelas características do espaço criado pela genialidade de Niemeyer, um misto de monumentalidade e simplicidade. Beirando o litoral, indo em direção à Região Oceânica, seguimos para Itaipu. A vegetação do Parque Estadual da Serra da Tiririca nos surpreendeu pela exuberância. O Parque, a Praia de Itaipu, o Morro das Andorinhas e a Duna Grande formam um conjunto paisagístico de rara beleza. Chamou também nossa atenção uma comunidade indígena guarani que habitava o entorno. É nesse cenário que se localiza o Museu de Arqueologia de Itaipu. O prédio é bem simples e ainda tem o aspecto de ruína do antigo recolhimento de mulheres que lá funcionou. O museu, que pertence ao conjunto de museus do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram/MinC), é impecável em sua proposta de apresentar os vestígios arqueológicos do entorno, descobertas de sambaquis, referências de povos que lá viveram há milhares de anos, muito antes da chegada dos portugueses.
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Casa de Oliveira Vianna - Niterói, RJ
Museu de Arqueologia de Itaipu - Niterói, RJ
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Museu do Ingรก - Niterรณi, RJ
Solar do Jambeiro - Niterรณi, RJ
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Museu Antônio Parreiras - Niterói, RJ
Percurso 2- Município de Duque de Caxias: A partir do mapeamento de referências históricas no município, um grupo de professores, interessados na história da região, criou o Museu Vivo do São Bento, considerado um “museu de território”, voltado para dar a conhecer o núcleo inicial de ocupação do atual município de Duque de Caxias. O percurso tem início com as ruínas de uma antiga fazenda que pertenceu, no século XVI, à Ordem Beneditina, a Fazenda de São Bento, e que foi responsável pelo processo de colonização do Vale do Rio Iguaçu. Dessa fazenda, há ainda vestígios da casa grande, construída já no século XVIII. A capela, tombada pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), passava por processo de restauração na ocasião de nossa visita. Ainda em Caixas, algumas experiências museológicas importantes chamaram nossa atenção, como o Museu Ciência e Vida, um projeto realizado e em plena expansão da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado do Rio de Janeiro, por intermédio da Fundação Centro de Ciências e Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro (Cecierj). O museu foi concebido para promover a aprendizagem pela experimentação e a interatividade, estimulando futuras vocações científicas.Tratava-se também do primeiro planetário digital da Baixada Fluminense, com cúpula fixa, com capacidade para 68 pessoas, onde o céu e todas as suas possibilidades podiam ser exploradas. Percurso Baixadas Litorâneas: Em tempos remotos, a região foi fartamente habitada por grupos indígenas, entre eles, os tamoios e os goitacases. Os primeiros fixaram-se na região onde hoje se situam Cabo Frio, Arraial do Cabo e Armação de Búzios. Já os
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goitacases ocupavam as terras ao norte, onde hoje encontra-se Rio das Ostras. Muitas outras etnias circulavam pela região, interagindo com uma natureza tropical especialmente pródiga em espécies animais e vegetais, sobretudo pescados e árvores frutíferas. Há registros de desembarque de expedições europeias durante o século XVI, entre as quais, a famosa expedição de Américo Vespúcio. Destacavam-se a facilidade de atracação dos barcos na Baía Formosa e a abundância de recursos naturais, como o pau-brasil. O potencial econômico e a presença do colonizador foram os principais motivos para o rápido desaparecimento da população indígena que ali vivia e que ou foi dizimada ou foi incorporada pela nova sociedade que ali se implantou. Assim, alguns museus neste percurso destacaram-se por apresentarem alguns vestígios de formas muito diferentes de ocupação da terra e de modos de vida. Este foi o caso do Museu Arqueológico de Araruama, localizado na Rodovia 124 que faz a ligação entre o Rio de Janeiro e diversas cidades da região. Nesse museu, as exposições demonstravam grande ecletismo. Numa parte, eram apresentados testemunhos da passagem dos povos indígenas naquele território. A partir de pesquisas do Departamento de Arqueologia do Museu Nacional, eram focalizados vestígios arqueológicos de três grupos: os povos sambaquieiros, os goitacases e os tupinambás. Já em outra parte da exposição, eram destacadas marcas da presença do colonizador europeu e dos povos africanos escravizados. O próprio prédio, construído por um comerciante português em 1862, abrigava a sede de uma fazenda cujo principal negócio girava em torno do tráfico de escravos, mesmo após a proibição do comércio internacional de escravos (1850). Casa grande e senzala estavam ali preservadas, evocando memórias subterrâneas de tempos pouco glamourosos. Chegando a Cabo Frio, avistamos o Museu de Arte Religiosa Tradicional, notável testemunho das transformações pelas quais passou a região já sob a ocupação portuguesa. Localizado num antigo convento de frades franciscanos, o Convento de Nossa Senhora dos Anjos, cuja pedra basilar foi lançada em 1686, a instituição dialoga fortemente com a cidade e seu entorno, sediando manifestações de artistas e produtores culturais e atuando em festas tradicionais, especialmente as de caráter religioso. Em Arraial do Cabo, cidade vizinha a Cabo Frio, o Museu Oceanográfico do Instituto de Estudos do Mar Paulo Moreira é dedicado ao universo do oceano e seus múltiplos elementos. Um simulador de ondas reproduz o fenômeno de modo didático para o visitante. Já ao norte da região, em Rio das Ostras, a descoberta de ossadas de indivíduos sambaquieiros, durante uma escavação, levou à criação do Museu de Arqueologia Sambaqui da Tarioba.Trata-se de um dos poucos museus de arqueologia in situ do Brasil, ou seja, onde o material é exposto da forma como foi encontrado. As ossadas eram de indivíduos de grupos sambaquieiros que ocuparam a região do litoral fluminense há mais de sete mil anos. Ou seja, esse museu apresenta instigante material de uma das mais remotas ocupações populacionais de que se tem notícia. O Museu de Arqueologia Sambaqui da Tarioba divide espaço com a Casa de Cultura Bento da Costa Júnior, local onde residiu uma família de riostrenses. Seus pertences estão ali expostos, tais como mobiliário, quadros, utensí-
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lios domésticos. Curiosamente, a edificação foi construída sobre os vestígios de um sambaqui que ali permaneceu encoberto por milhares de anos.
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Embora pequenos, os museus encontrados neste percurso revelaram muitas memórias encobertas, hoje abertas para visitação e pesquisa. Valeu a pena se deixar levar. Percurso Norte-Fluminense: Partir em direção ao norte do Estado do Rio de Janeiro nos levou a um universo de contrastes profundos. Trata-se da região com maior PIB per capita do estado, em razão da exploração de petróleo na Bacia de Campos. Esse fenômeno muito particular vem contribuindo para transformar a feição da maior parte das cidades, não raro apagando vestígios de outros tempos. Museus e referências ao patrimônio histórico e cultural resguardam a memória da região, que está se transformando rapidamente. Nesse cenário de importantes empreendimentos econômicos e urbanísticos, alavancados pela indústria petrolífera, a cidade de Campos dos Goytacazes vem confirmando o protagonismo na região. Protagonismo que atravessou diferentes períodos históricos, desde tempos remotos em que os jesuítas ali instalaram uma fazenda voltada para o aldeamento dos índios goitacases e para a produção econômica, visando à sustentabilidade da ordem religiosa. De lá para cá, a cidade viveu épocas sucessivas de empoderamento, das quais se destaca o período áureo do plantio e da comercialização da cana-de-açúcar, fonte de enriquecimento de grandes fazendeiros durante o século XIX. Os vestígios desses tempos ali estão em alguns casarios, em algumas fazendas e, sobretudo, nos museus. O mais antigo é o Solar do Colégio, onde está sediado o Arquivo Público Municipal de Campos dos Goytacazes. O prédio constitui-se numa relíquia da maior relevância para os estudos históricos de uma dimensão nacional. O complexo arquitetônico foi construído entre 1650 e 1690 pelos irmãos da Companhia de Jesus do Rio de Janeiro, seguindo a planta de mesmo partido adotado em todos os colégios jesuítas: quatro alas, claustro assemelhado a um pátio interno e igreja. As paredes feitas de alvenaria de tijolo têm espessura de setenta centímetros. Os vãos de abertura apresentam moldura de pedra no térreo e madeira no segundo pavimento. Na fachada principal, destacada da sobriedade do conjunto, a capela com sobrevergas e porta almofadada. A torre do campanário tem a altura do frontão ondulado. A medalha que aparece no frontão indica as datas de antigas reformas em 1803 e 1934. A finalização do telhado é em beira-seveira. Foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1946. Em 1977, foi desapropriado pelo governo do estado. Depois de longo abandono, o processo de restauração de seu conjunto teve início em 1995. Um projeto elaborado pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf) viabilizou a cessão do prédio ao município para a instalação do arquivo público. Hoje, o antigo Solar do Colégio está vinculado à Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, órgão da prefeitura municipal de Campos dos Goytacazes, tendo sido inaugurado em 2002. Com séculos de história, o prédio impacta o visitante e estimulou nossa imaginação sobre suas diferentes ocupações e relevantes missões. Atualmente, guarda importante acervo arquivístico para a pesquisa, do século XVI aos nossos dias,
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inclusive documentos de escravos, entre os quais, ação de liberdade, devolução de escravo, furto, óbito, nascimento, impostos, escritura e testamento. Destacaram-se ainda o Museu Histórico de Campos e o Museu Olavo Cardoso. O primeiro, instalado num prédio histórico, o Solar do Visconde de Araruama, apresentava a trajetória da cidade em exposições permanentes e temporárias. O segundo era um museu-casa, onde conhecemos um pouco dos hábitos e costumes das elites campistas da primeira metade do século XX. Instalado na antiga residência de Olavo Cardoso, proeminente usineiro e filantropo campista, o museu expõe um acervo de mobiliário, louças, quadros e vestimentas. A casa, com 12 cômodos, é uma construção do fim do século XIX com face para a rua, porão e jardins. O salão principal serve de antessala para os quartos e a sala de jantar. Além de focalizar a memória de seu patrono, o museu certamente contribui para preservar e divulgar a memória da própria cidade de Campos dos Goytacazes. Já em Quissamã, fomos surpreendidos por um conjunto patrimonial peculiar. As antigas residências dos fazendeiros de açúcar foram restauradas e um trabalho de educação patrimonial e formação de guias abriu-nos a perspectiva de conhecer um pouco mais sobre a memória e a história locais. Seguimos para o Museu Casa Quissamã, instalado na antiga sede da Fazenda de Quissamã, símbolo nobiliário da região e residência de um dos mais influentes homens de seu tempo, José Carneiro da Silva, Barão e Visconde com Honras de Grandeza de Araruama. Centro produtor, base econômica e política da capital do Império, a Casa Quissamã integra um dos registros iconográficos mais importantes sobre o século XIX: o livro Brazil pittoresco, primeira obra de viajantes publicada na América Latina, em 1861. As litografias que a compõem foram feitas a partir de fotografias tiradas por Victor Frond, hóspede em Quissamã, com texto de Charles Ribeyrolles. Da varanda, situada no corpo central da casa, observamos extasiados a aleia de palmeiras imperiais e um centenário baobá, árvore sagrada para antigos escravos vindos da África e que ali está graças à diligência de um escravo que trouxe de além-mar uma semente para seu plantio em terras brasileiras. Assim como diversas outras propriedades imponentes construídas no século XIX na região, e que foram adquiridas com suas terras pela Cia. Engenho Central de Quissamã, o que restou do solar ficou abandonado durante várias décadas. Recentemente, a propriedade foi adquirida pela prefeitura municipal de Quissamã, restaurada e transformada no Museu Casa Quissamã, futura sede do Parque Municipal que utilizará o trecho local do canal Campos-Macaé como área de lazer. Ainda em Quissamã, o Complexo Cultural da Fazenda Machadinha é um dos pontos altos de um percurso de visitação a museus e referências patrimoniais nessa região. A Fazenda Machadinha, bem tombado desde 1979, é formada pela casa grande, hoje em ruínas, por antigas senzalas preservadas pelos próprios moradores – descendentes dos escravos que ali permaneceram após a abolição –, pela antiga cavalariça e pela capela de Nossa Senhora do Patrocínio. Em 2001, a prefeitura de Quissamã desapropriou todo esse conjunto, restaurou as antigas senzalas, criou o Memorial sobre a origem dos negros de Quissamã e a Casa das Artes, ligada ao projeto Raízes do Sabor, e a manifestação de danças como o fado, o jongo e o boi malhadinho, típicas da época da escravidão.
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Em 2009, famílias remanescentes dos antigos escravos, que ainda viviam na Machadinha, tiveram reconhecida a propriedade definitiva das terras e dos imóveis, sendo oficialmente reconhecidos como uma comunidade quilombola. Esse reconhecimento deveu-se ao fato de o conceito de quilombo ter sido revisto nas últimas décadas, abrangendo grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida. Esse é o caso dessa comunidade que manteve modo de vida próprio, possuindo laços familiares entre si. Todos descendem de apenas duas famílias que nasceram ali, e os que saíram em busca de trabalho e moradia em outro local continuaram mantendo contato com a região e seu estilo de vida. Em nosso percurso, fomos surpreendidos com o Solar dos Mellos – Museu da Cidade de Macaé. O próprio prédio, um singelo chalé de fundo romântico, construído em 1891, reforça o contraste com o panorama atual da cidade. Obra do mestre português Manuel Ribeiro Capellão, do carpinteiro Affonso de Souza e do pintor Alfredo de Almeida, foi construído a mando do coronel Bento de Araújo Pinheiro, sediando, mais tarde, a residência da família Mello.Vinculado à Fundação Macaé de Cultura, o Solar também abriga a sede da Subsecretaria de Acervo e Patrimônio Histórico (Semaph) e o Centro de Memória Antonio Alvarez Parada. Em seus jardins, é possível assistir a filmes e participar de eventos culturais, como o Café Literário, no qual cronistas da cidade compartilham com o público lembranças de uma Macaé que não existe mais. Partindo em direção ao Noroeste Fluminense, destaca-se o Museu e Casa de Cultura de Aperibé. A instituição está instalada numa antiga estação de trem, construída em 1896, preservando também uma antiga e representativa edificação da cidade. Guardião da memória e da identidade aperibense, esse “espaço de memórias” permite que o visitante conheça antigas formas de morar e de conviver na região por meio de objetos que foram doados pelos próprios moradores da cidade e que estão impregnados por marcas pessoais e coletivas. Para o pesquisador da memória e da história fluminense, a instituição constitui um “achado” repleto de fontes e de referências. Ainda na Região Noroeste, no município de Bom Jesus do Itabapoana, encontramos o Espaço Cultural Luciano Bastos, inaugurado em agosto de 2011. Trata-se de uma iniciativa familiar para preservar, na sede do Colégio mais tradicional da cidade, não só a trajetória dessa importante instituição, mas também a história do município. Muito ainda há por fazer com relação à dinamização e à construção de equipamentos culturais e museus numa região com tantos vestígios relevantes de memória para o estado do Rio de Janeiro e mesmo para o país. Os museus existentes nos chamam particularmente a atenção por constituírem empreendimentos da vontade de memória dos representantes da sociedade civil ou da administração pública. Torcemos para que iniciativas como essas proliferem.
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Solar do Colégio - Arquivo Público Municipal - Campos dos Goytacazes, RJ
Solar dos Mellos - Museu da Cidade de Macaé - Macaé, RJ
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Museu Casa Quissamã - Quissamã, RJ
Museu Olavo Cardoso - Campos dos Goytacazes, RJ
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Complexo Cultural Fazenda Machadinha - Quissamã, RJ
À guisa de (in) conclusão: O projeto "Museus do Rio" é um projeto "em processo" permanente de pesquisa e atualização. O formato do portal, concebido para difundir parte de seus resultados, é muito útil neste sentido. A facilidade de fazer alterações, ampliar a pesquisa e os comentários, permite que a cada ano, novas descobertas possam ser agregadas. Desse modo, ainda haveria muito a comentar, o que se torna inexequível no curto espaço deste artigo. Certamente, as entrevistas com as narrativas recolhidas formam um capítulo instigante da pesquisa. Para nossos leitores, é possível acessar por intermédio do portal <www.museusdorio.com. br> os vídeos com as filmagens editadas, onde nossos interlocutores podem ser ouvidos e vistos, bem como os membros da nossa equipe. As novas tecnologias digitais, bem empregadas, têm sido pois de grande utilidade para a pesquisa. Para finalizar, optamos pois por deixar aqui algumas das reflexões que a pesquisa nos instigou e que seguem nos alimentando em nossos cursos e seminários. Encontramos lado a lado grandes e pequenos museus, museus das elites e museus populares, museus centrados em personagens históricos, e também museus que se formaram pela nostalgia de mundos que desapareceram como os museus ferroviários, espalhados por todo o estado e que tão bem expressam a saudade dos antigos ferroviários que viviam do trem e para o trem. Há vestígios muito antigos como os solares de Campos e Macaé que testemunharam os primeiros aldeamentos indígenas, as missões jesuíticas, os ciclos econômicos da cana de açúcar, da transformação da cultura canavieira para a cultura cafeeira e depois para pastos de gado e que agora observam atônitos a transformação da região pela força do petróleo e do pré-sal. São prédios imponentes que abrigaram originalmente corporações de jesuítas que ali fizeram as primeiras fábricas
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e empresas lucrativas do país. Mas, há também museus que são coleções de toda uma vida como o museu de conchas de Mangaratiba, resultado do esforço de um colecionador que conta a história das transformações do local por meio das conchas que foram desaparecendo e que ali jazem testemunhas de épocas de bio-diversidades mais pulsantes num local hoje repleto de habitações precárias, lajes, puxadinhos, prédios de pequenos apartamentos lançando-se em penhascos que se projetam para o mar. Ou ainda o museu do surf em Cabo Frio, resultado de uma coleção de um surfista entusiasmado com o esporte que é capaz de narrar por meio de seus preciosos objetos minúcias da história internacional do surf: a primeira prancha enorme de madeira, miniaturas de surfistas famosos, fotos antológicas, prêmios recebidos por destemidos desafiadores de ondas no Hawaí... Ou ainda o museu da cachaça, resultado da coleção de um antigo aviador apaixonado por rótulos de garrafa de cachaça que disponibilizou “a coleção de uma vida inteira” para visitação pública na pequena cidade de Paty do Alferes no centro sul fluminense, iniciativa que vem contribuindo para a dinamização do turismo na região. Eles estão por toda a parte, espalhados pelo estado, sintoma de uma vitalidade enorme que abre um leque de inúmeras possibilidades de histórias e memórias. De espaços consagrados aos grandes heróis da história pátria a espaços de valorização de pequenos heróis das mais ínfimas localidades, os museus constituem hoje espaços cada vez mais relevantes respondendo ao nosso anseio por referências, elos, conexões com diferentes temporalidades. Como assinalou Andreas Huyssen, os museus nos seduzem e num certo sentido nos confortam. Aliviam o mal estar que parece fluir de uma sobrecarga informacional e percepcional combinada com uma aceleração cultural, com as quais nem a nossa psique nem os nossos sentidos estão bem equipados para lidar. Quanto mais rápido somos empurrados para o futuro global que não nos inspira confiança, mais forte é o nosso desejo de ir mais devagar e mais nos voltarmos para a memória em busca de conforto.”13 Mas, que conforto podemos esperar da memória e dos museus se hoje as grandes narrativas se perderam, se não há senão sentidos breves, fugazes, permanentemente construídos e negociados? Onde estão as memórias coletivas que se afirmavam em mitos e ritos? Onde estão os coletivos produtores de memórias persistentes? O que são os museus na contemporaneidade senão fragmentos cujos sentidos não escapam ao paradigma contemporâneo da fugacidade, da mudança, da velocidade? Mesmo estas instituições feitas para durar expressam cada vez mais dinâmicas de grande mobilidade. A metodologia da “etnografia audiovisual de percursos” vem nos sinalizando para múltiplas possibilidades de leitura de rotas e paisagens onde os museus do estado do Rio de Janeiro configuram-se em sinais de tempos e espaços variados. Se um prédio é conservado, se um acervo é preservado, se um museu é edificado e se isto faz parte de uma política cultural num município, podemos ler este fato como significativo. Guardamos aquilo que faz sentido para nós e descartamos aquilo que não nos serve ou não queremos lembrar. A memória não se faz espontaneamente, ela necessita de agentes e suportes, e os museus podem ser lidos como estes elementos que sinalizam algo sobre aqueles que os constróem e os mantém. E também sobre os que os modificam ou os renegam e destroem. Assim, os museus que habitam o estado do Rio de Janeiro emergiram 13 Huyssen, Andreas. Seduzidos pela memória, RJ, Ed. Aeroplano, 2000, pág. 33
Regina Abreu
para nós como seres vivos, pulsantes, expressivos, que contam histórias sobre espaços-tempos, e que despertaram em nós, pesquisadores-flaneurs do século XXI, certo sentido de alteridade absolutamente necessário para novos sentimentos e percepções das paisagens. É preciso experimentar o recurso flaneur na pesquisa, aceitando o convite de Walter Benjamin. Percorrer cada cidade e de uma cidade a outra deixando-se levar pela satisfação de encontrar aberta uma porta de museu e simplesmente entrar. Solicitar a alguém que ali está que nos conte sua história e a história daquele museu. Abrir os sentidos para narradores experientes no sentido que Benjamin atribui para a categoria “experiência”: alguém que tem uma história pra contar porque inicia seu relato a partir da sua vivência, da sua relação íntima com o prédio, com os objetos, com a instituição. Os sentimentos diante destes seres museais são diversos.Também porque são polifônicos estes lugares de memória. Assim como as lembranças. Fazer a etnografia dos percursos em museus tem possibilitado que ecoem múltiplas vozes. Os museus são espaços com muitas camadas estratigráficas, que não raro são contraditórias. No caminho da cidade do Rio de Janeiro para a cidade de Araruama na Costa do Sol, um museu apresentava à primeira vista a memória de uma fazenda de café com vestígios do que outrora foi uma casa grande. Na parte de trás, havia alguns fragmentos do que teria sido uma senzala. Mas, a grande surpresa foi encontrar neste mesmo espaço ossadas e conchas encontradas numa escavação, deixando visível a memória dos sambaquieiros, povos antigos que viveram no Brasil antes dos tupi. A memória é assim. Não tem fim. Por debaixo de uma camada tem outra e outra e outra e mais outra. Memórias que nem sempre se encontram ou se combinam. Memórias que por vezes se contrastam, se enfrentam, se contradizem. O território das memórias não é um território apaziguado, pelo contrário, constitui um campo de disputas e tensões. Não é tudo que fica. O campo das memórias pode ser descrito como um campo de forças, onde algumas se agenciam e outras se contrapõem. E seguindo nosso percurso sobre os museus do estado do Rio de Janeiro, encontramos também memórias que operam como contra-memórias. Museus que longe de narrar histórias glamourosas, valorizam o esforço de populações pobres em construir suas trajetórias. Museus construídos em comunidades carentes, como o Museu Vivo do São Bento, empreendido com baixíssimo recurso, muita simplicidade, mas como muita eficácia em sua "vontade museal" de dar corpo a memórias nunca antes relatadas. Ficamos com a impressão de que experiências como esta vêm trazendo formas de empoderamento social e de uma nova apropriação dos sentidos do espaço, transformando territórios lisos em paisagens rugosas, iluminando o que antes era opaco e invisível. Assim, a pesquisa em curso vem nos ensinando não apenas a ler os museus, mas lê-los em relação com o entorno, o contexto, as memórias, as narrativas. O Museu Vivo do São Bento é um bom exemplo. Seria mais um museu na paisagem do estado do Rio de Janeiro, não fosse o fato de estar localizado numa das localidade mais estigmatizadas da região e surgir juntamente com uma atitude proativa de transformação social, política e, sobretudo, da forma como particularmente tem sido visto o município de Duque de Caxias. Conhecido no imaginário do carioca e do fluminense como local de grupos de extermínio, milícias, aliado ao fato de abrigar o maior lixão da região – o aterro de Gramacho – e ainda uma refinaria de petróleo, onde tudo contribui para a degradação da qualidade de
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vida dos moradores. Os moradores destas paragens áridas da região metropolitana do Rio de Janeiro frequentemente internalizam um sentimento de baixa auto-estima associando-se a um lugar periférico e relacionando-se de forma negativa com o espaço onde vivem. Suas aspirações incluem a busca por uma porta de saída deste lugar e o acesso a outros espaços valorizados socialmente. É neste contexto que a iniciativa de alguns indivíduos, militantes da memória e do patrimônio locais, me parece significativa. Ao procurar recuperar ainda que idealmente uma história local, onde um passado mais digno é acionado, este grupo articula-se num esforço de re-existência, alterando a rota de um destino aparentemente letal. Os sujeitos desta nova narrativa de esperança para o bairro de São Bento em Duque de Caxias são professores do ensino médio, a maior parte de História. Estas iniciativas de patrimonialização e musealização inscrevem-se em novas construções de percepções espaciais e de ressignificações de paisagens visando a dignidade social num espaço socialmente degradado. A “etnografia audiovisual dos percursos” no estado do Rio de Janeiro tem nos conduzido a mundos jamais imaginados, mundos que se situam na fronteira entre temporalidades muito distintas que ao se mesclarem ressignificam as experiências de vida e as percepções da paisagem. Nossos narradores ou guias de museus são intermediários em nossos objetivos de restaurar elos perdidos, vínculos que se romperam entre as muitas histórias que se superpuseram no contexto do Rio de Janeiro. Alguns, como os narradores do Museu Vivo do São Bento são agentes do que Andreas Huyssen chama de rememoração produtiva, que podemos também denominar de rememoração propositiva, onde escrevendo a história de um modo novo os agentes sociais possam garantir um futuro de memória. O museu vivo do São Bento associa-se claramente à expansão e ao fortalecimento de esferas públicas da sociedade civil,onde me parece crucial esta ocupação da cidade pelos seus mais diversos cidadãos. É exatamente por meio de uma proposta de novas percepções de paisagens já tão sucateadas que se torna possível acalentar um fio de esperança no porvir. E este fio de esperança ancora-se na alteridade produzida por imagens esquecidas de um passado pleno de dignidade. E isto se dá justamente porque este passado antes de se fundar na nostalgia, pelo contrario, anuncia a potência de novos agenciamentos. Referências: ABREU, Regina . "Colecionando museus como ruínas: percursos e experiências de memórias no contexto de ações patrimoniais." In: Ilha. ������������������� Revista de Antropologia (Florianópolis), v. 1, p. 17-37, 2012. In: <www.reginaabreu.com> ALBERTI,Verena, Tratamento das Entrevistas de História Oral no CPDOC, in: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil –CPDOC / FGV –www.cpdoc.fgv.br1 < http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1505. pdf> acessado em: 9/2/2015 CHAGAS, Mario. A imaginação museal: museu, memória e poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro: Ibram/Garamond, 2009. GUIA DOS MUSEUS BRASILEIROS, IBRAM, MINC in: http://www.museusdorio. com.br/joomla/images/stories/guia/Guia_dos_Museus_Brasileiros_Regiao_Sudeste.pdf (acessado em 13/02/2015)
Regina Abreu
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Artigo recebido em março 2015. Aprovado em abril 2015
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RESUMO: O tema Acessibilidade Comunicacional está diretamente ligado ao conceito da Comunicação Museológica fundamentado pela nova museologia, cujo objetivo é ampliar o diálogo e a participação do público com o objeto cultural por meio de estratégias de mediação que ofereçam condições para que todos os públicos, em especial aqueles com deficiência, possam decodificar os conteúdos ali apresentados e, assim, o direito de se reconhecerem como parte desse patrimônio cultural. Esse artigo vem evidenciar que nenhuma estratégia de mediação entre o objeto cultural e o público com deficiência será eficaz se não vier acompanhada de um conceito de acessibilidade comunicacional e atitudinal previamente desenvolvido e incluído como política institucional e interdisciplinar de todas as instâncias museológicas e
ABSTRACT: The topic Communicational Accessibility is directly connected to the concept of Museum Communication substantiated by the new museology, whose aim is to increase the dialogue and the public involvement with the cultural object by mediation strategies that offer conditions for all publics, specially people with disabilities, to decode its contents and, therefore, to conquer the right to recognize themselves as part of this cultural heritage. This essay demonstrates that no mediation strategy between the cultural and the people with disabilities will be efficient if it is not by a previously developed communicational and attitudinal a concept of accessibility, included as institutional and interdisciplinary policy of all the museums and cultural bodies of these institutions.
culturais dessas instituições.
KEYWORDS: Museum Communication, Communicational Accessibility, Mediation Strategies, Inclusion of People with Disabilities.
PALAVRAS-CHAVES: Comunicação Museológica, Acessibilidade Comunicacional, Estratégias de Mediação e Inclusão de Públicos com Deficiência.
1 Conselho Regional de Museologia
Amanda Pinto da Fonseca Tojal
Introdução O tema Acessibilidade Comunicacional para os públicos com deficiência é daqueles que se renovam permanentemente. Acessibilidade no âmbito do espaço museológico, em especial, é uma questão que jamais se responde definitivamente. Os seus desafios são incontáveis, as dificuldades para transpô-los mostram-se infindáveis, muito em decorrência da própria complexidade das necessidades humanas. Mas, não se pense, então, que tal constatação é a evidência de um falso problema. Muito ao revés, o reconhecimento das inúmeras barreiras que impedem a efetiva acessibilidade dá a exata medida do caráter criativo e necessário da sua discussão e, principalmente, de que seja possível pensar em avanços, ainda que pautados por um processo dialético onde, às vezes, sobressaem os equívocos. É com este norte que se pretende discutir em que medida é possível pensar em processos de comunicação museológica que privilegiem estratégias de mediação e a utilização de recursos de acessibilidade de forma a efetivamente garantir-lhes uma maior eficácia qualitativa. Dito de outro modo, como é possível potencializar a função inclusiva dos diferentes instrumentos de mediação que vêm sendo disponibilizados nos museus aos públicos com deficiência e, consequentemente a todos os públicos frequentadores dessa instituição. A hipótese, que se pretende demonstrar, é que tal potencialização é função direta do desenvolvimento de políticas de acessibilidade cujo conceito tenha como base a interdisciplinaridade das áreas museológicas e como seu eixo principal a área comunicacional e suas estratégias de mediação. Nenhum recurso técnico voltado para a satisfação de exigências de acessibilidade efetivamente logrará êxito se desacompanhado de uma acessibilidade comunicacional e atitudinal previamente desenvolvidas, que permitam orientar o manejo desses mesmos recursos, viabilizando uma implantação efetiva e, por conseguinte, eficaz. Do contrário, acumular-se-ão recursos técnicos, cuja produtividade ficará aquém do realmente possível e desejado. A evidência vem do fato, que salta aos olhos, de que o público alvo das políticas de acessibilidade acaba não sendo por elas alcançado. A pergunta, pois, é essa: a quem ou a quê serve uma política de acessibilidade comunicacional? A resposta, óbvia num primeiro olhar, não tem sido, contudo, alcançada na maioria das experiências de acessibilidade no interior dos museus. Dessa forma, buscar-se-á, primeiramente, recuperar a memória do próprio processo de evolução do museu como um “espaço sacralizado”, elitizado, para o conceito do museu como um “espaço para todos”. Na compreensão desse público mais abrangente (todos), chegar-se-á especificamente ao público com deficiência e a importância de pensar menos na quantidade de pessoas com deficiências que possam ser acolhidas pelo museu e mais na qualidade de acolhimento de um público eventualmente menos numeroso. Nessa formulação, serão examinadas as políticas de acessibilidade que procuram prover os museus de estratégias de mediação com os quais possam enfrentar as exigências de uma sociedade que cada vez mais se importa com a inclusão de todos, ampliando as ações individuais institucionais para ações de
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parceria com outras instituições, assim como fazendo uso das diferentes leis de incentivo que possam viabilizar esse propósito.
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A expectativa é que, ao fim, se possa vislumbrar um caminho cujo percurso possa conduzir os operadores da acessibilidade na sua tarefa de contribuir para uma democratização do acesso aos bens culturais, para que estes possam ser usufruídos por contingentes cada vez maiores da população e que este acesso cumpra não apenas a função de permitir um deleite, mas, principalmente, a de servir como importante ferramenta de luta contra as exclusões sociais. A presença do público com deficiência no espaço museológico: um projeto ainda inconcluso A presença cada vez mais efetiva dos públicos com deficiência em museus foi alcançada a partir de um longo processo de abertura dessas instituições, inicialmente dedicadas a uma finalidade mais restrita e elitizada, fosse para atender os públicos especializados, fosse para, não raro, afirmar-se como um espaço restrito de um seguimento privilegiado da sociedade. É da compreensão, no entanto, da função social dos museus, que há de conformar sua atuação, conferindo-lhes um papel mais incisivo de transformação da ordem social, inequívoca e importante mudança de paradigma, que se experimentará o surgimento de um novo papel ao qual os museus hão de estar vocacionados. Essa evolução pode ser ilustrada pela própria experiência da autora, ao iniciar o seu percurso profissional como educadora de museu, no final da década de 1980, quando os principais museus brasileiros começavam a implantar em suas equipes e departamentos os núcleos educativos, cujas ações visavam a aproximação e a recepção dos diversos perfis de públicos, principalmente os públicos escolares. O grande desafio, porém, seria fazer com que a instituição museológica compreendesse a importância dessa ação educativa, vendo-a não somente como uma ferramenta de complementação pedagógica, similar à educação formal, mas reconhecendo a sua verdadeira força, isto é, a de mediar a relação entre o público e o objeto cultural, material e imaterial, fonte primária de conhecimento e sua função social transformadora. Surge, assim, um nova e próspera perspectiva para a profissão do educador, a da educação não formal, que, ao comunicar e valorizar o importante papel sociocultural do objeto cultural, amplia a função educativa para além da instituição escolar, atingindo os museus, espaços culturais e outras instituições. Nota-se claramente, da década de 1980 para cá, o aumento substancial do número de estudantes presentes no museu em decorrência das parcerias com escolas públicas e privadas, que não apenas promovem o incremento dessas visitas, como também incluem em sua grade curricular os conteúdos que os espaços culturais oferecem, permitindo e estimulando a exploração e a apropriação mais direta do objeto cultural, fonte primária do conhecimento e autoconhecimento. Nessa linha de desenvolvimento, percebe-se que o museu paulatinamente deixa a sua posição passiva de acolhimento de um público que vai ao seu encontro, para buscar novos perfis. Aqui, se evidencia, com muita clareza, o cumprimento da função social da instituição museológica, que lhe atribui o encargo
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de uma agenda pró ativa, que precisa ser traduzida por novas atitudes e políticas de atendimento e comunicação de novos públicos. Seguem-se, desta forma, ações de pesquisa e investigação sobre quem é o “não público”, aquele que, por questões de vulnerabilidade, tanto social como física, sensorial emocional ou intelectual, não reconhece os espaços culturais como algo que lhe pertença, na medida que não se lhe oferecem condições, pelas suas necessidades e diversidades, de usufruír desse pertencimento. Há, portanto, um crescente interesse por trabalhos de pesquisa avaliativa, diagnósticos esses adaptados às características socioculturais existentes em cada região em que a instituição se encontra localizada, buscando conhecer e compreender a razão do desconhecimento e também do desinteresse dos públicos dessas regiões em frequentar tais instituições. Esses diagnósticos acabam por revelar dados importantíssimos, como, por exemplo, o fato de pessoas que passam diariamente em frente de uma determinada instituição não se sentirem por elas atraídas, por razões sociais ou mesmo intelectuais. Esse estranhamento se revela em detalhes como, até mesmo, o não se ver capaz ou mesmo socialmente autorizado, porque supostamente não pertence ao mundo dos que podem efetivamente adentrar no espaço de um museu. Segundo Cury (2005:121 e 123): “A avaliação museológica constitui-se em atividade hoje considerada essencial à vida dos museus. (...) Recorrendo à literatura vemos a avaliação como uma maneira de se estabelecer diálogo com a realidade e um meio para transformá-la”. Outras ações não menos relevantes se dão a partir das parcerias com instituições educativas, culturais e sociais, ampliando o raio de ação na divulgação dos trabalhos desenvolvidos e na elaboração de projetos conjuntos, visando ampliar a visitação de públicos pouco ou ainda não frequentadores desses espaços. Sendo assim, ações visando o “não público” passam a ter um papel relevante para o desempenho da função social do museu, em tempos em que as propostas da nova museologia trazem à tona a abertura desses espaços a um número cada vez maior de pessoas. É, portanto, dentro dessa nova perspectiva de mudança de paradigma do museu elitista para o museu para todos, que ações dirigidas aos públicos com deficiência se iniciam. Em princípios da década de 1980, movimentos em prol dos direitos e inclusão social de pessoas com deficiência adquirem progressivamente força no Brasil com a implantação de políticas públicas de inclusão. A exemplo disso, nota-se um aumento crescente nas adaptações físicas de espaços públicos, políticas de inclusão no trabalho e na educação dessas pessoas. Esses movimentos atingem principalmente as escolas públicas que iniciam, já nessa década e nas posteriores, a política denominada à época de inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais. Essa política atinge diretamente as outras áreas da educação não formal, que passam a receber em seus espaços uma diversidade cada vez maior de públicos usualmente não frequentadores. As ações de ampliação dos públicos em museus e espaços culturais acabam por se deparar com esse público, perce-
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bendo que as suas características exigem mudanças de paradigmas tanto físicas como comunicacionais e principalmente atitudinais, para que se possa conceber e implantar uma política institucional efetiva.
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É esse, então, o primeiro e grande desafio dos museus, ao se depararem com esse novo público, pessoas com deficiência física, sensorial, emocional e intelectual, pois sua inclusão efetiva enfrenta as mesmas vicissitudes e exigências que se reproduzem nas instituições escolares, vale dizer, o conhecimento por parte dos profissionais sobre as características dessas pessoas, a formação de profissionais especializados, a implementação de infraestrutura física e comunicacional, parcerias e consultorias com entidades afins e, principalmente, a implantação de uma política de inclusão que atue de forma interdisciplinar em todas as áreas dessa instituição. Esse desafio pode parecer, a princípio, de fácil superação, mas o tempo e a realidade têm mostrado precisamente o contrário, com resultados muito aquém do desejado. A evidência das dificuldades que se vem de referir, traduzida especialmente pela poucas iniciativas reais que respondessem às exigências de mudanças dos paradigmas vigentes a propósito da acessibilidade dos museus, pôde, no entanto, ser confrontada pela trajetória da autora, notadamente a partir de sua participação efetiva nos primeiros debates sobre como adaptar os museus de arte para públicos com deficiência no Brasil, em princípios da década de 1990, naquela época como educadora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, e com a implantação do primeiro programa permanente de ação educativa em museu de arte para públicos com deficiência, no ano de 1991, naquela mesma instituição, à época sob direção da Professora Ana Mae Barbosa. A esse programa seguiu-se, também sob a responsabilidade da autora, a partir do ano de 2003, nova e importante iniciativa com a implantação do Programa Educativo para Públicos Especiais (PEPE) na Pinacoteca do Estado de São Paulo, à época sob direção do museólogo Marcelo Mattos Araújo, programa esse que prossegue em ação como referência de um trabalho bem sucedido de inclusão de públicos com deficiência em museu. Essas experiências contribuíram para uma melhor compreensão das verdadeiras necessidades que os espaços museológicos apresentavam e ainda apresentam, inviáveis, no entanto, de serem superadas sem que se tenha previamente clareza das imperativas mudanças de paradigmas pelas quais deverão aquelas instituições passar. Tais mudanças, de resto, já são alvo de atenção da nova museologia, que pensa o museu como um instrumento de transformação social. Assim é que, por exemplo, a concepção e implantação de uma política de acessibilidade solicita muito mais do que atitudes e envolvimento de profissional isolados. Elas requerem, isto sim, primeiramente, o compromisso de todos os profissionais do museu, bem como a realização de pesquisas e estabelecimentos de parcerias com outras instituições museológicas, educativas e culturais, além de uma aproximação e diálogo permanente com instituições especializadas. Destaca-se também como essencial a consultoria de profissionais com deficiência nessas ações.
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Mais uma vez, a conclusão que se impõe é de que pouca ou nada adiantarão iniciativas isoladas de inclusão e propostas de acessibilidade nos espaços expositivos se não houver de verdade uma política de inclusão que assuma esse conceito de forma permanente e que venha a plasmar todas as áreas da instituição, abrangendo não somente a área educativa, mas também as áreas de pesquisa, documentação, conservação e comunicação, além de todos os profissionais envolvidos com a recepção, segurança e o atendimento aos públicos do museu. Por óbvio que não se cuida de tarefa simples. Ao contrário, envolve ela mudanças de paradigmas atitudinais de todos os profissionais da instituição e de todos os projetos dirigidos aos públicos, que passam a incluir as questões de acessibilidade em sua concepção e, consequentemente, em sua planilha orçamentária. Como, pois, tornar presente esse conceito abrangente de inclusão de públicos com deficiência nos museus? Por que esse conceito específico é importante e deve ser perseguido? A questão aqui se coloca na exata e precisa medida em que se busque saltar de uma retórica absolutamente desacompanhada de resultados qualitativos representativos, para uma realidade em que a lógica do museu como instrumento de inclusão de públicos com deficiência se revele como realmente inclusiva de todos os públicos. É fato que, muitos profissionais de museus questionam a validade das implantações de acessibilidade museológica, especialmente nos termos aqui propostos, alegando que as estatísticas demonstram um número pequeno de visitação de pessoas com deficiência nesses espaços, em detrimento do número muito mais alto de visitação de públicos com outros perfis. Esse posicionamento, de resto absolutamente recorrente, tem sido alvo de permanentes debates, pois, não obstante o consenso de que a inclusão é um direito de todos, há um dissenso representado pelo fato de que muitos ainda julgam que são as pessoas com deficiência que devem se adaptar aos espaços públicos e não o contrário. Indo além, há ainda um sentimento bastante arraigado, é preciso que se reconheça, segundo o qual as exigências de inclusão podem ser perfeitamente respondidas a partir de uma aceitação acomodada, para a qual não é preciso que concorram atitudes positivas da parte de todos. A servir de apoio a esta visão há sempre o argumento do custo-benefício: diante da realidade da escassez de recursos, é preciso otimizar o seu emprego. Para tanto, o atendimento a públicos mais numerosos acaba por se impor como conclusão lógica. A evidência dessa realidade se expressa na não valorização, por exemplo, das mudanças implantadas nos espaços museológicos visando à adaptação e à mediação do objeto cultural com os públicos com deficiência. Não se compreende que, em realidade, tais mudanças qualitativas acabarão por atingir positivamente todos os públicos. Ao se pensar o museu como um espaço de diálogo, cujos conceitos possam ser explorados, reconhecidos e apropriados por todos os públicos, todos os processos de mediação que tenham por objetivo aproximar os públicos devem ser implementados.
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Ademais, a relação custo-benefício com que se pretende preterir determinadas iniciativas que financeiramente não se pagam, no caso concreto, por exemplo, o suposto aumento discreto de público que se alcança com o emprego de estratégias de inclusão que implicam em investimentos, não pode ser tomado como um argumento saudável já que, nesse ponto, é impossível dissociar a parte do todo. Toda e qualquer política pública de acessibilidade não tem por alvo apenas o público com deficiência. A inclusão desse público em especial aproveita a todos os públicos. De forma bastante concreta, um recurso que se empregue para permitir uma maior compreensão visual de um dado objeto cultural acaba por facilitar a compreensão de outros públicos. As exigências para a concretização do conceito de acessibilidade museológica: estratégias de mediação Se, como se afirmou no início deste texto, nenhuma estratégia de mediação entre o objeto cultural e o público com deficiência será eficiente se não vier acompanhada de uma acessibilidade comunicacional e atitudinal previamente desenvolvidas, importa discutir agora quais são essas estratégias. O conceito de acessibilidade comunicacional como estratégia de mediação está em congruência com as mudanças de paradigma do processo de comunicação museológica baseadas no modelo emergente de mediação expográfica, cujo objetivo é ampliar o diálogo e a participação mais integral do público com o objeto cultural. A compreensão do modelo emergente de mediação expográfica pode ser conduzida a partir de Cury (2005), que, apoiando-se na Ciências Sociais, se vale da dicotomia “tradicional x emergente”, para referir o antagonismo entre o modelo tradicional e o modelo emergente. Enquanto que, no modelo tradicional, o profissional de museu a quem compete a função de comunicação museológica atua no campo do conhecimento, sublinhando o conteúdo do processo comunicacional a partir da perspectiva do profissional especialista ou curador da exposição, o modelo emergente privilegiará não mais o conteúdo, mas sim o diálogo com o público, diálogo este desenvolvido a partir das referências aportadas pelo próprio público e os múltiplos significados que se possa obter a partir da sua interação com o objeto cultural. Como a autora afirmou em Tojal (2007:95), citando Cury, o “objeto museológico não é neutro e é o museu que faz desvelar não somente o seu sentido cultural, mas o introduz numa rede de repertórios simbólicos”. Mas, o sentido político do museu deve ser ainda identificado pela forma com que seus profissionais e educadores devam conduzir-se. Como comunicadores e mediadores que se colocam entre os objetos culturais e o próprio público, esses atores hão de perseguir de forma permanente, por meio de técnicas expográficas e ações educativas, a compreensão dos conteúdos, interpretando os códigos presentes em todo bem cultural. Para logo se vê, frise-se mais uma vez, que esse processo de mediação é inevitavelmente interessado. A concepção de uma expografia, como já afirmou a autora (2007:96), “deve partir de um olhar democrático, capaz de estimular o surgimento de ideias e experimentações mesmo sabendo de antemão, da
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impossibilidade de, ao se planejar uma exposição, obter-se um olhar totalmente neutro frente aos objetos nela apresentados”. Segundo Tojal (2007:96): A concepção de uma expografia, dentro do modelo emergente - que amplie o diálogo e a participação mais integral do público com o objeto cultural - deve contemplar tanto a mediação indireta, isto é, toda a forma de comunicação previamente concebida para aquele espaço expositivo (seleção dos objetos, textos, etiquetas, montagem, iluminação, recursos de apoio, multimeios, entre outros), como também a mediação direta, desempenhada pela ação educativa, contando com a participação do profissional educador e do público durante a sua visita à exposição. Da mesma forma, o modelo emergente, implantado nesse processo comunicacional, não poderá também prescindir de um trabalho de natureza interdisciplinar, realizado entre os vários profissionais do museu, pesquisadores e conhecedores dos públicos com os quais se pretende interagir, assim como com a presença e a atuação do profissional educador, ao compartilhar essa importante função cultural e social desempenhada por essa instituição museológica.
Cabe, portanto, aos profissionais e educadores de museus, a função de refletir permanentemente sobre a sua prática e sobre o seu papel de mediador, ao desenvolver estratégias aplicadas tanto às questões de produção expográfica, como às dirigidas às ações educativas, relacionadas ao conhecimento, necessidades e potencialidades referentes aos seus públicos, a começar pela valorização desses públicos como sujeitos, com plenas condições de interagir coletivamente e individualmente nesse espaço expositivo, criando e recriando seus códigos e interpretações, bem como, reafirmando a importância cultural e de inclusão social, presente de forma tão significativa na instituição museal. Vê-se, portanto, que concepção de uma expografia, cujo aspecto inclusivo se faz presente, não poderá deixar de atender ao caráter dialógico daquela que é a sua função primordial, a de estimular e ampliar a comunicação e a participação mais integral entre o objeto cultural e os diversos perfis de públicos. Sendo assim, e acompanhando o conceito da nova museologia, todos os processos de comunicação museológica deverão ter por objetivo garantir o pleno acesso ao patrimônio cultural, o que significa não somente permitir a entrada dos diferentes públicos, mas também possibilitar a esses visitantes estratégias de mediação que ofereçam plenas condições para que eles possam decodificar os conteúdos ali apresentados, e consequentemente, o direito de se reconhecerem como parte intrínseca desse patrimônio cultural, principalmente por parte daqueles que, por razões de vulnerabilidade social ou por deficiências sensoriais, físicas, emocionais e intelectuais fazem parte de grupos menos privilegiados. “Ao se pretender abrir o espaço museológico a todos os públicos, há de se levar em consideração novos fatores que impõem aos processos de comunicação múltiplas formas de diálogo, pois a igualdade de direitos está intrinsecamente relacionada ao respeito pela diversidade coletiva ou individual.” (Tojal, 2007:102) Profissionais de museus e de outras instituições culturais (arquitetos, curadores, pesquisadores, comunicadores visuais, educadores, entre outros),
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cuja função é a de atuar nas áreas de comunicação museológica, têm, por conseguinte, a importante incumbência de agregar às questões da produção expográfica e seus conteúdos, estratégias de mediação que possam ampliar e facilitar o diálogo e as múltiplas leituras e interpretações dos públicos participantes, como parte de um processo vinculado às questões da inclusão sociocultural priorizada pela museologia atual. Mais uma vez, nas palavras da autora (2007:102), É, dessa forma, que as estratégias de mediação deverão ampliar o uso dos canais de percepção, de forma não somente verbal (oral e escrita), mas também interativa e experimental, pois ao se pensar em todos os públicos, os profissionais de museus se deparam com uma importante e significativa parcela da sociedade – os públicos com deficiência – o que implica incremento e adaptação das estratégias para ações que também envolvam a percepção multissensorial. A percepção multissensorial é também parte inerente de uma postura semiótica aplicada à comunicação museológica que privilegia a compreensão da recepção, a partir dos estímulos provenientes dos objetos e dos sentidos, a eles atribuídos pelo público fruidor, sendo que, nesse caso mais específico, a ênfase da recepção está vinculada à fruição do objeto cultural a partir de todos os canais sensoriais além do visual, como o tátil, o auditivo, o olfativo, o paladar e o sinestésico.1 Esses canais sensoriais podem ser estimulados por meio de recursos mediáticos2, especialmente concebidos para facilitar a percepção do objeto cultural por parte do público fruidor, fator esse fundamental para a compreensão e significação deste objeto, principalmente aos públicos com necessidades especiais.
E conclui a autora (2007:105), As possibilidades de utilização e manipulação desses recursos poderão variar de exposição para exposição, incluir objetos originais ou reproduções em relevo desses objetos, agregar materiais similares e referenciais, introduzir propostas interativas utilizando-se dos sentidos, como forma de ampliar a percepção, decodificação e a interpretação dos objetos, a partir de uma perspectiva vivencial e concreta que permita também, àquelas pessoas com limitações físicas, sensoriais, emocionais e intelectuais, possam assimilar e potencializar as suas experiências por meio desses canais sensoriais.
Conclusão: Os desafios para a institucionalização do conceito de acessibilidade museológica Todos esses fatores, suportados pelo conceito da comunicação museológica dialógica e aplicados nas estratégias de mediação direta e indireta que priorizem a concepção e implantação de exposições cujo objeto cultural, material ou imaterial, seja decodificado e aberto às múltiplas leituras por meio de 1 Sinestesia: termo que caracteriza a experiencia sensorial dos individuos nos quais sensações correspondentes a um determindo sentido são associadas a outro sentido. Uma experiência olfativa pode nos remeter a imagens de infância ou uma sensação tátil poderá nos remeter a uma cor. 2 Recursos mediáticos: materiais multissensoriais que auxiliam a percepção e o reconhecimento de conteúdos de uma exposição como réplicas de objetos ou objetos referenciais, reproduções em relevo ou tridimensionais de imagens bidimensionais, maquetes e mapas táteis, extratos sonoros, aromatização de ambientes, audiodescrição, Janela de Libras e legendagem em português em documentários, videoguia, publicações adaptadas em dupla leitura (tinta com letras ampliadas e braille) incluindo imagens em relevo e audiocd, entre outros, utilizados como instrumentos mediadores entre o público e o objeto cultural.
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recursos multissensoriais que tenham por objetivo estimular e facilitar a aproximação, compreensão e interpretação desse mesmo objeto, estão de fato, em congruência com o conceito de acessibilidade comunicacional e permitem, por consequência, que os museus e instituições culturais se revelem reais espaços de inclusão sociocultural. Para os públicos com deficiências, físicas, sensoriais, emocionais e intelectuais, o conceito do modelo emergente de concepção expográfica, é, com certeza, aquele que, ao permitir o contato direto, isto é, a experiência concreta com o objeto museal, pela via multissensorial, garante uma maior gama de acessos e formas de decodificação desse objeto a essas pessoas. Essas diversas formas de acesso, instrumentalizadas tanto pelos recursos multissensoriais, como pelo contato direto com os profissionais de museus, por meio de visitas educativas, são as assim nomeadas estratégias de mediação inclusivas, um conceito hoje muito discutido e valorizado nessas instituições, mas ainda muito pouco concretamente efetivado, é preciso que se reconheça. A pergunta, por conseguinte, que se impõe e com a qual a autora, como consultora de projetos de acessibilidade, tem se deparado recorrentemente, é esta: se esse tema é considerado relevante, por que ela não passa a fazer parte de uma política institucional de comunicação museológica? Por quê a sua implantação é pouca ou raras vezes implantada de forma permanente em todas essas instituições? Por quê os projetos curatoriais não priorizam em seus escopos, desde a sua concepção, os recursos mediáticos, ainda que estejam previstos em rubricas orçamentárias? Por quê essas ações são, na maioria das vezes, as últimas a serem realizadas ou são realizadas de forma inconclusa, quando não há mais recursos ou restam escassos recursos que impedem a sua concretização de fato? Outro ponto frequentemente presente é a forma pontual e incipiente de incluir nas estratégias de mediação recursos multissensoriais, que, de forma isolada, e sem fazer parte de um contexto mais amplo, são simplesmente colocados à disposição do público com deficiência, que pouco ou nada participou dessa escolha, apenas como forma de divulgação e validação de uma política que se diz “engajada com as propostas sociais”. Exemplo disso é o mal hábito de dotar as exposições de recursos de acessibilidade que, isolados de um contexto mais abrangente, pouco ou nada contribuem para o acesso e a compreensão de públicos com deficiência, como etiquetas em Braille fixadas ao lado de obras de arte ou de vitrines expositivas, sem que esses objetos possam ser alcançados e reconhecidos por meio da exploração tátil ou audioguias que apenas informam e descrevem os espaços e os objetos, sem que o visitante com deficiência visual possa usufruir sensorialmente de nenhum objeto ou conteúdo da exposição. Assim também textos e informações difíceis de serem lidos e compreendidos pelos públicos e que, ao invés de estimularem a curiosidade e a experiência concreta, afastam ou desestimulam os públicos a se apropriarem efetivamente desses espaços.
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Para logo se vê que essas iniciativas não conseguem se afirmar como uma política institucional, não cumprindo aquela que é a função mais relevante do museu, o diálogo, a participação e o direito às múltiplas experiências e leituras que cada visitante com as suas especificidades poderá efetivamente realizar.
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O tema, como se percebe, é de enorme sensibilidade. As carências apontadas mostram à saciedade que as mudanças de paradigmas que estruturam a nova museologia precisam se traduzir em ações que realmente integrem um projeto verdadeiramente institucional, envolvendo todas as instâncias museológicas, a começar pelos seus gestores. Fica claro, assim, que as ações inclusivas da comunicação museológica fazem parte de um complexo de ações que demandam muito mais do que aquisição de equipamentos de alta tecnologia, textos ou etiquetas traduzidos para o Braille ou colocação de sinalização na forma de piso tátil (sem que esse último recurso possa oferecer uma real autonomia e participação do público com deficiência visual aos espaços expositivos), seja pela falta de contato direto com objetos liberados para a exploração tátil, seja também pela ausência de informações relevantes, adaptadas para permitir o conhecimento e a fruição dos conteúdos do objeto cultural. É importante, portanto, sublinhar que essas ações inclusivas necessitam de estratégias de mediação incluídas desde a concepção dos projetos curatoriais, participação de profissionais de diversas áreas para elaboração da expografia, comunicação visual, seleção de conteúdos e objetos que serão adaptados para o reconhecimento de outros sentidos, além do visual, como os sentidos tátil, sonoro, olfativo e espacial. Fazem parte também das estratégias de mediação a produção de mapas táteis, maquetes expográficas, reproduções bi e tridimensionais de objetos ou imagens planas (pinturas, fotografias, entre outras), objetos referenciais e documentais de conteúdos expositivos, além de publicações adaptadas e de recursos tecnológicos que auxiliem na tradução, complementação e interpretação dos conteúdos apresentados. Outros recursos muito requisitados atualmente são os audioguias para público com deficiência visual e os videoguias para o público surdo ou com deficiência auditiva. Os dois, obviamente, são recursos importantes, desde que, no entanto, acompanhados por outros recursos de apoio, como percurso interativo com objetos táteis sinalizado por piso tátil, no caso do audioguia e, para o videoguia, que a filmagem seja realizada no próprio espaço expositivo, propondo uma visita interativa apresentada em Janela de Libras (com a participação de um intérprete de Língua Brasileira dos Sinais), incluindo legendagem em português (para as pessoas surdas não alfabetizadas em Libras). Não obstante a necessidade do planejamento, produção e aquisição de recursos de acessibilidade necessários aos diversos perfis de públicos com deficiência, há de se prever e valorizar, por igual, a imprescindível participação dos profissionais responsáveis pela ação educativa dessas instituições, em todas as etapas de um processo de concepção, implantação e gestão de um programa de acessibilidade comunicacional. Na mesma linha, impõe-se o compromisso da continuidade e desenvolvimento de ações complementares de atendimento aos públicos, conhecimento
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das especificidades das deficiências, seleção e preparação de recursos de apoio complementares, formação de profissionais para recepção e atendimento ao público alvo, elaboração de publicações adaptadas e parcerias com profissionais especializados, consultores e com o próprio público alvo, além de avaliações periódicas de profissionais com deficiência e instituições afins.
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Deve fazer parte também da política institucional de acessibilidade do museu e das instituições culturais a inclusão de profissionais com deficiência, principalmente para desempenhar as funções de educação e atendimento ao público, como, por exemplo, educadores surdos para visitas educativas em Libras. Um programa de acessibilidade comunicacional que pretenda se ver como institucional deve, portanto, fazer parte de um conceito presente em todas as áreas do museu, estar presente nos projetos curatoriais e no seu escopo orçamentário. Não é, portanto, um item a mais ou complementar de uma ação isolada, mas faz parte de todos os itens que incluem a participação do público visitante e também do público potencial. É essa a questão que, se não efetivamente implantada, impede que o atual conceito de Comunicação Museológica, fundamentado no modelo emergente e executado pelas estratégias de mediação inclusivas, acabe por não ser realmente implantado. Passaram-se mais de duas décadas da implantação dos primeiros programas permanentes de inclusão de públicos especiais em museus no Brasil.
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Sem receio de erro, pode-se diagnosticar que ainda são poucos os museus e instituições culturais que incluem efetivamente no exercício de sua função a acessibilidade comunicacional com a abrangência e a permanência necessárias.
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Há, indubitavelmente, no Brasil instituições museológicas e culturais que são consideradas referência nesse assunto, prova de que é possível e viável implantar esse conceito, desde que um programa de acessibilidade comunicacional não seja apenas uma parte irrelevante na concepção das ações dirigidas aos públicos com deficiência, mas um dos ingredientes fundamentais que compõem essas ações. Assim, por exemplo, no Estado de São Paulo, há programas de acessibilidade e ação educativa de caráter permanente, muitos dos quais contaram com a participação de consultoria, concepção e implantação da autora, como o Programa Educativo para Públicos Especiais (PEPE) da Pinacoteca de São Paulo, o Programa de Acessibilidade do Museu do Futebol (PAMF), os Programas Educativos para Públicos Especiais do Museu Afro Brasil, Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre (Tupã) e Museu Casa de Portinari (Brodowski), todos pertencentes à Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Outros exemplos de programas de acessibilidade encontram-se no Memorial da Inclusão da Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, o Programa Igual Diferente do MAM - Museu de Arte Moderna de São Paulo e o Programa de Acessibilidade e Ação Educativa Inclusiva do Museu de Ciência e Tecnologia da WEG ( Jaraguá do Sul, Santa Catarina), além de programas de inclusão desenvolvidos por instituições culturais como Centro Cultural Banco do Brasil e diversas unidades do SESC no Brasil. São essas ações que vêm comprovar atualmente que é possível a implantação de programas permanentes de Acessibilidade Comunicacional e Atitudinal com o objetivo da inclusão sociocultural de pessoas com deficiência nos museus e espaços culturais e que esses espaços são locais onde, efetivamente, o exercício da cidadania e dos direitos de todos podem e devem se realizar na sua plenitude. De outra forma, para quê e para quem servem esses espaços senão para que todos possam dele se apropriar? Referências CURY, Marília Xavier. Comunicação Museológica: uma perspectiva teórica e metodológica de recepção.Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. TOJAL, Amanda p. da Fonseca. Políticas Públicas de Inclusão Cultural de Públicos Especiais em Museus. São Paulo, ECA-USP, (Tese de Doutorado), 2007. Disponível em: < www.arteinclusao.com.br/publicacoes/publicacoes.htm>. Artigo recebido em dezembro 2014. Aprovado em fevereiro 2015
INCLUSÃO SOCIAL E A AUDIÊNCIA ESTIMULADA EM UM MUSEU DE CIÊNCIA
Sibele Cazelli1 Carlos Alberto Quadros Coimbra2 Isabel Lourenço Gomes3 Maria Esther Valente4 RESUMO: O presente estudo discute as percepções que a audiência estimulada desenvolve a partir da visita a um museu de ciência, além de descrever o seu perfil sociodemográfico cultural e econômico. Os instrumentos de pesquisa foram: questionário auto-administrado a 1.258 visitantes, contendo questões sobre o perfil e parâmetros para medição do conceito de empoderamento, e entrevistas. Conclui-se que o empoderamento se dá pela associação entre ganhos cognitivos e a sua aplicabilidade ao mundo social do visitante. As ações de inclusão social em museus devem se materializar como uma política institucional. Para tal é fundamental que ocorram mudanças em sua postura profissional.
ABSTRACT: The present study discusses the perceptions that the stimulated audience develops when visiting a science museum and describes its socio demographic, cultural and economic profile. The survey tools were: questioners which were applied to 1.258 visitors, including questions about the profile and parameters for empowerment analysis, and interviews. In conclusion, the empowerment occurs through the association between cognitive gains and their uses to the visitor’s social context. The inclusion social actions in museums must materialize as an institutional policy. Therefore it is important a significant change in the professional attitudes of the institution.
PALAVRAS-CHAVES: museus de ciência; inclusão social; audiências de museu; empoderamento.
KEY-WORDS: science museum; social inclusion; museum audiences; empowerment.
1 Pesquisadora da Coordenação de Educação em Ciências do Museu de Astronomia e Ciências Afins / sibele@mast.br 2 Pesquisador da Coordenação de Educação em Ciências do Museu de Astronomia e Ciências Afins / caqcoimbra@mast.br 3 Bolsista de pesquisa do Projeto de Capacitação Institucional da CAPES/CNPq na Coordenação de Educação em Ciências do Museu de Astronomia e Ciências Afins / isabelgomes@mast.br 4 Pesquisadora da Coordenação de Educação em Ciências do Museu de Astronomia e Ciências Afins / esther@mast.br
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Introdução
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Há um discurso corrente que sublinha a importância do papel social do museu de ciência como agente na transformação da visão de mundo cristalizada no passado, construída no ambiente científico e reproduzida pelo senso comum. Visão esta manifestada como se a ciência pudesse ser reduzida a uma imagem de suprema autonomia em relação a sua ação e os cientistas estivessem distantes de todos os temas relativos ao cotidiano econômico e político da sociedade. Na atualidade, estão em jogo a valorização da ciência, os poderes instituídos, a denúncia de seus riscos e a aproximação com um público leigo. Conhecê-lo implica a instalação do debate democrático, introduzido por um sentido crítico. Desse modo, o debate sobre a educação e sobre a cultura científica se apresenta indispensável. Na mesma perspectiva, o museu se dá a conhecer. E é proposta dos museus de ciência, em particular, o esforço de aproximação de seus visitantes com as questões da ciência e tecnologia, sejam elas controversas ou não. Um elemento a ser discutido é a questão da visibilidade da ciência. Para grande parte da população, ela é reconhecida apenas por meio de seus produtos e não de seus métodos de investigação, teorias, conceitos e modelos.Tais produtos são, na grande maioria das vezes, artefatos tecnológicos, vacinas, remédios, entre outros, ou ainda discussões éticas que envolvem o uso e o desenvolvimento de determinadas tecnologias. Além disso, cabe observar a relação entre o nível de compreensão do conhecimento científico necessário para viabilizar o funcionamento dos produtos visíveis da ciência e o que é requerido do cidadão comum para usá-los. Os princípios científicos que embasam os produtos da ciência tornam-se cada vez mais complexos e de domínio restrito aos poucos que detêm determinada especialização, o que contribui para um crescente distanciamento entre a ciência e o cidadão comum. No modelo de consumo vigente, o uso dos produtos da ciência está quase sempre dissociado da compreensão de seus princípios científicos. Muitos são os exemplos nesse sentido. O computador é um deles. Até os meados da década de oitenta do século XX, o computador estava basicamente restrito a centros de pesquisa e grandes empresas. Aqueles que tinham acesso a um computador deveriam dominar alguma linguagem computacional e ainda estar familiarizados com algum sistema operacional. Hoje, esse quadro mudou radicalmente e o computador está em vias de ter status de eletrodoméstico. Para que isso pudesse acontecer, o problema da interação entre o usuário e o computador foi solucionado de uma maneira bastante pragmática. Foram criados sistemas de interface que mediam a comunicação entre o usuário e o sistema operacional de uma forma bastante amistosa. Não é necessário o domínio de nenhuma linguagem computacional para o uso satisfatório de um computador. Este é um exemplo paradigmático nesse sentido. Se, por um lado, isso facilitou a massificação do uso do computador, por outro, o descolamento entre a necessidade do conhecimento básico sobre computação e o seu uso construiu uma barreira entre seus usuários e os princípios básicos que viabilizam o seu funcionamento. Esse mesmo caminho foi trilhado por outras máquinas como o automóvel, o telefone, o relógio, a televisão, etc. Hoje, são todos “caixas pretas” naturalizadas.
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Construímos algo que, de certa forma, pode ser encarado como um paradoxo. Vivemos uma época na qual a ciência e a tecnologia passam a desempenhar importância cada vez maior. No entanto, a literatura evidencia que as pessoas não compreendem desde conceitos científicos básicos que datam de longo tempo até outros mais recentes. A educação em ciências nos dias atuais não pode mais se ater ao contexto estritamente escolar. Esta afirmação, cada vez mais presente entre profissionais da área, enfatiza o papel transformador dos espaços de educação não formal, como museus e centros de ciência. Tais equipamentos culturais constituem lugares ativos de divulgação da ciência. A segunda edição do guia de centros e museus de ciência editada pela Associação Brasileira de Centros e Museus de Ciência,ABCMC, em 2009, revela um acentuado crescimento do número deste tipo de equipamento cultural no Brasil nas últimas três décadas. Tais instituições estão presentes em pelo menos vinte estados brasileiros e têm em comum o compromisso de divulgar ciência como missão institucional. Um aspecto relevante que caracteriza estes espaços é o fato de estarem abertos à visitação pública em caráter permanente, articulados com a comunidade escolar e encarados como espaços de educação e entretenimento pela população. A partir de o início dos anos 2000, muito foi feito na área de divulgação da ciência no Brasil. O Departamento de Difusão e Popularização da C&T, DEPDI, vinculado à Secretaria de Inclusão Social, SECIS, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, MCTI, criado em 2003, foi um importante marco na área da divulgação da ciência e tecnologia no país. Esta iniciativa trouxe diretrizes para uma política de popularização da C&T e ações voltadas para a área vêm sendo contempladas nos Planos Plurianuais. No Plano Estratégico do MCTI, o lançamento de Editais de Seleção Pública de Apoio a Projetos de Difusão e Popularização da Ciência e da Tecnologia tornou-se um programa regular. Vale lembrar que esse impulso foi precedido por inúmeros empreendimentos promovidos pela Fundação Vitae que alocou recursos significativos na área de divulgação da ciência, viabilizando inclusive a criação de museus e centros de ciência. Essas primeiras ações foram seguidas por outras, de grande relevância para a área, como a criação do Comitê Temático de Divulgação Científica, no âmbito do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq em 2004. Neste âmbito, os museus e centros de ciência receberam do MCTI um apoio significativamente maior quando comparado a ações de governos anteriores a 2002. Internacionalmente, a popularização da C&T foi assumida dentro da grande área de Inclusão Social, implicando um compromisso marcado por questões como a participação cidadã, a formação de opinião e os processos ativos de tomadas de decisão, objetivando o engajamento público com as ciências. No Brasil, a mobilização empreendida ao redor do tema e a sua previsão na agenda política delinearam uma mudança no papel do Estado, no que se refere a uma nova relação entre a ciência e sociedade. Sublinha-se que o apoio financeiro para projetos de divulgação da ciência esteve atrelado ao objetivo de atender as prioridades estratégicas do Governo Federal de promover a melhoria da educação científica e estimular a popularização da ciência e tecnologia.
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Foram indiscutíveis os avanços realizados no domínio da divulgação da ciência, no nível de política pública. No entanto, o empenho para a consolidação do setor requer atualização constante, em face de novas demandas e de novas orientações conceituais. Divulgar ciência para aqueles que têm acesso à educação de qualidade e que dispõem de bom capital cultural familiar já é uma tarefa complexa, há muito conhecida pelas pesquisas na área de educação em ciências. Por outro lado, divulgar ciência para segmentos da população econômica e socialmente desfavorecida é um desafio ainda mais singular. Nesse contexto, os desafios da divulgação da ciência são o de integrá-la a processos dialógicos voltados à inclusão social e promover o empoderamento das populações que não possuem como prática cultural o “consumo” da ciência (por exemplo, frequentar museus e centros de ciência, ler revistas e livros de divulgação da ciência, assistir programas de televisão e usar a internet para se informar sobre temas sociocientíficos). Esta perspectiva demanda uma nova transposição didática, além de novas estratégias de mediação dos conteúdos da ciência. O caráter qualitativo da comunicação da ciência nos espaços não formais de educação tem o potencial de promover a motivação para um futuro aprofundamento ou, em outros casos, a mudança de atitude para com o aprendizado formal. O desafio está em conseguir explorar os temas de maneira que o público os transponha para a sua vida entre seus familiares, amigos e nas esferas sociais mais externas, como na escola e no ambiente de trabalho. Do contrário, a percepção da experiência com a ciência pode até ser reconhecida como importante e ter impacto cognitivo, mas será vista como um evento à parte do mundo em que se vive. O presente artigo procura problematizar os desafios que devem ser enfrentados em relação à investigação e à comunicação com os diferentes tipos de audiência de museus e sugere caminhos para que os museus se tornem espaços culturais menos socialmente excludentes. Para tal foram analisados aspectos do empoderamento de grupos de audiência estimulada em visita ao MAST. Foram também comparados os perfis sociodemográficos, culturais e econômicos da audiência estimulada e espontânea do museu. 2 - Interseções necessárias: audiências, inclusão social e empoderamento 2.1 - Os diferentes tipos de audiência de museu A distinção das audiências de museu proposta pela Coordenação de Educação em Ciências, CED, do Museu de Astronomia e Ciências Afins, MAST, envolve o aspecto de autonomia social dos indivíduos em relação ao evento ao qual ele se expõe. Pode-se distinguir a audiência espontânea, como aquela que apresenta o maior grau de autonomia no que diz respeito à decisão quanto à participação no evento. A audiência espontânea visita o museu por decisão própria, por livre e espontânea vontade. A audiência programada é aquela que mostra um grau de autonomia intermediário, ela assume certo compromisso de agendamento com o evento. E a audiência estimulada é aquela que apresenta pouco ou nenhum grau de autonomia quanto à decisão de participação no evento. Assim, o lócus de decisão sobre o evento está inteiramente fora dela, ou se encontra com uma instituição
Sibele Cazelli, Carlos Alberto Quadros Coimbra, Isabel Lourenço Gomes , Maria Esther Valente
organizadora e com alguma organização comunitária local. Este tipo de audiência participa do evento de visita a partir do protagonismo do museu em facilitar e estimular o acesso do grupo, como por exemplo, organizando a ida ao museu e financiando os custos de transporte dos visitantes (Coimbra et al., 2012). Há dois mecanismos distintos e não excludentes para categorizar uma audiência como estimulada. O primeiro toma como referência a busca de um perfil de visitante diferente daquele que já vai ao museu, na condição de visitação espontânea ou programada. A instituição museológica se coloca como uma ferramenta para a promoção da inclusão social ao prover condições para o público que não costuma frequentá-la, por falta de condições econômicas e de baixo capital cultural. Este é o caso quando, por exemplo, instituições disponibilizam ônibus gratuitamente para grupos advindos de regiões onde se imagina que os hábitos de consumo cultural podem ser enriquecidos pela visita ao museu. O segundo mecanismo se refere a eventos ou ações de divulgação da ciência que levam atividades do museu para fora da instituição. É o caso de projetos de ciência móvel que, às vezes, percorrem centenas de quilômetros para chegar a cidades desprovidas de equipamentos culturais de natureza científica, ou ainda, a regiões da própria cidade que ficam distantes destes locais. Nesta situação, podem ocorrer todos os tipos de audiência já citadas, porém na dimensão da inclusão social, uma vez que este é o propósito que orienta a realização da ação de itinerância (Coimbra et al., 2012). A descrição da audiência espontânea, mesmo sendo o tipo de audiência mais estudado, ainda carece de continuidade e de comparabilidade em suas pesquisas. No caso de a audiência programada, as pesquisas são menos comuns. A audiência estimulada raramente é considerada nas pesquisas e esse é o maior desafio, visto que os museus vêm se transformando em espaços de aquisição de conhecimento, e contexto onde ocorre interação e troca de experiências. O modelo atual nasceu de demandas do público que tem o hábito de frequentar museus. No entanto, sabe-se muito pouco acerca dos interesses e expectativas da parcela da população que não os frequenta. Dada a importância deste tipo de audiência para todas as iniciativas de divulgação da ciência e da cultura em geral, este desafio deve ser enfrentado. Faz-se necessária, portanto, a adoção de projetos que tragam esta audiência para os museus. A realização de pesquisas voltadas para avaliar a percepção dessas pessoas e os significados atribuídos por elas à visita deve afinal subsidiar adaptações e reformulações nas instituições museológicas (Cazelli e Coimbra, 2012). 2.2 - Discutindo inclusão social e empoderamento em museus As ações no âmbito da inclusão social estão, em geral, associadas a movimentos culturais na música, dança, esportes, artes e tradições populares. Raras são as vezes nas quais a ciência é tida como uma forma de cultura, sendo usada para a promoção de inclusão social. Mais frequentemente a ciência é apresentada como uma declaração superior da verdade, sem se inserir na cultura humana. Embora exista a tendência cada vez maior da promoção da interdisciplinaridade entre as diferentes áreas de conhecimento no enfrentamento das grandes questões da ciência, há ainda muito por se fazer. No interesse pelas catástrofes naturais, por exemplo, não basta desenvolver pesquisas sobre as mudanças cli-
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máticas, as tectônicas de placas ou a sismologia. É também importante se interessar pela forma como o homem representa o risco da produção da ciência a partir da sociologia, da história e da antropologia e entre outras disciplinas das ciências humanas (Wieviorka, 2014).
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A presente pesquisa vem ao encontro de um dos atuais desafios dos museus: estabelecer estratégias para promover o acesso físico e o engajamento intelectual de camadas mais amplas da sociedade. O interesse principal é conhecer o público que não costuma frequentar museus por falta de condições econômicas e baixo capital cultural (Bourdieu, 2001). A literatura na área de estudos de público oferece informações sobre a audiência que frequenta museus. Sendo assim, um levantamento de informações sobre o público que não costuma frequentar museus nos ajuda a compreendê-lo. Na medida em que aprendemos com os outros somos também convidados a ver no outro suas diferenças, experiências e suas formas alternativas de sociabilidade, reavaliando conceitos, repensando práticas, reinterpretando modelos e teorias. De acordo com Langevien-Joliot (2014: 193): Inscrever a cultura científica na cultura geral é essencialmente um meio de emancipação e desenvolvimento de todos. É uma necessidade reduzir o fosso de incompreensão que existe entre a ciência e a sociedade, entre cientistas e cidadãos. O desenvolvimento da cultura científica no século XXI é um objetivo importante para a democracia, assim como foi a alfabetização em outros tempos.
Essa concepção é adequada ao momento pelo qual passa o país, onde a educação e a cultura são usadas como mecanismos de desenvolvimento social e transformação política da sociedade (Rocha e Tosta, 2013). A intenção deste estudo é promover a aproximação com públicos de camadas da sociedade, identificadas pelo baixo capital cultural e econômico, o que tem sido uma tônica dos museus que desejam ultrapassar os limites do atendimento das audiências já consagradas. Nessa busca surge uma demanda: que lugar ocupam as ações sociais nas instituições museológicas? Ao pensar uma resposta, nela podem estar sugeridas duas implicações: há a exclusão de fato de certos públicos dentro do museu e a relação entre o museu e as diferenças sociais questiona os valores da própria instituição, caracterizada como lugar de memória e de esquecimento que molda a concepção de museu vigente. No confronto com essa problemática, Hatzfeld (2011), quando discute sobre o papel social do museu, sublinha que ao se tratar do aspecto da exclusão nesse espaço, as tensões tornam-se visíveis e devem ser enfrentadas. A exclusão é para ela, um revelador das questões dos museus. Portanto, ao sermos alertados sobre o “esquecimento” que há no museu, convém perguntar aos sujeitos denominados excluídos se desejam ser identificados e estudados; como o museu deve se apresentar para acolhê-los e por fim qual o impacto desse encontro, o do “não público” com os profissionais do museu? Na mesma linha de reflexão Guiyot-Corteville e Gachet (2011) observam que mais do que incluir e integrar esse público com a instituição museu, trata-se, antes de tudo, de mudar o olhar e a postura para ampliar o “fazer com”, mais
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que o “fazer para”. A mudança de atitude pressupõe o estabelecimento de novas relações entre profissionais de museu e dos outros atores do campo social cultural. É necessário construir uma nova relação que vá além de os dispositivos e estratégias clássicas dos projetos de mediação cultural que não incorporam os indivíduos que em virtude de suas diferenças não vão ao museu. É preciso, no mínimo, assimilar outra mediação que não seja encerrada em categorias que frequentemente os desvalorizam, na medida em que não estão representados no interior da instituição. A ideia se reforça nas palavras de Sandell (2003: 45) quando afirma que inclusão social em museus não é sinônimo apenas de ampliação do acesso e diversificação da audiência, mas deve incluir mudanças de modelo no que se refere à função do museu: “[...] o engajamento com conceitos de inclusão e exclusão social irá exigir que o museu [...] repense radicalmente seus propósitos e objetivos e renegocie seu relacionamento com o seu papel na sociedade.” A exclusão está relacionada em última instância à representação que se faz da sociedade como um todo e de seus diferentes grupos e, mais ainda, conforme o modelo de reconhecimento do que é compartilhado. Podem-se tomar por exclusão as concepções e as práticas que são legitimadas pelos museus, assim como por outras instituições, ou seja, em nome de quem ou de quê se aceita, mostra ou não o outro. Ao tratar dos dois conceitos em destaque, o autor adota uma definição abrangente de exclusão social, que, por sua natureza multifacetada, não se restringe a questões de ordem econômica como a renda, mas abarca também fatores sociais, políticos e culturais, dentre os quais se destaca o acesso à cultura. Desta forma, entende que: Há um crescente reconhecimento de que os problemas descritos por exclusão social não podem ser considerados de maneira isolada e que, similarmente, soluções devem ser encontradas por meio de um entendimento das relações complexas entre as múltiplas formas de desvantagem que o termo descreve (Sandel, 2003: 48).
É com esse ponto de vista que a questão da exclusão social não se resume a uma atividade técnica, mas merece também ser observada a partir das práticas e das representações que fazem os profissionais dos museus com relação aos excluídos do museu. Sandell (2003), reforçando a perspectiva mencionada acima, acrescenta como alguns dos fatores inibidores à adoção de práticas de inclusão social no museu: a resistência dos profissionais de museus; a natureza e composição da força de trabalho nos museus que fortalece a manutenção do status-quo; o fato de as instituições mais tradicionalmente associadas com iniciativas de inclusão social não considerarem o museu como parceiro e a falta de informação e direcionamento por meio de políticas públicas voltadas para o setor museológico. Inclusão social é um desafio a ser conquistado pelas instâncias da sociedade política e da sociedade civil brasileira. Moreira (2006: 11) a define como sendo “a ação de proporcionar para populações que são social e economicamente excluídas oportunidades e condições de serem incorporadas à parcela da sociedade que pode usufruir esses bens”. O que se entende por social e economicamente excluída significa o acesso muito reduzido aos bens (materiais,
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educacionais e culturais) e possuir recursos econômicos muito abaixo da média dos outros cidadãos. Ao se pensar em promover ações de inclusão social não se pode desprezar o conceito de empoderamento. Segundo Zamora (2001: 1):
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o termo empoderamento se refere ao aumento do poder e da autonomia de indivíduos e grupos sociais nas relações interpessoais e institucionais, em especial os setores submetidos a condições de discriminação e dominação social.
Retomando Sandell (2003), as audiências não são empoderadas para genuinamente influenciar os processos de tomada de decisão das instituições museológicas. Ou seja, há uma falta de diálogo e o estabelecimento de uma relação desigual.As práticas de trabalho não democráticas e exclusivas praticadas nestes espaços muitas vezes entram em conflito com princípios chave nos quais trabalhos de inclusão social de sucesso se baseiam. O processo de empoderamento envolve componentes de diversas naturezas – cognitiva, psicológica, econômica e política. A potencialidade do conceito de empoderamento está no fato de implicar “uma posição ética e política que reconhece que é a própria população quem pode identificar suas necessidades e propor caminhos de solução” (Zamora, 2001: 1). As novas relações consistem em passar do “não público” para o status de “sujeito cultural” (Guiyot-Corteville e Gachet, 2011). Cabe ressaltar que os aspectos levantados por Sandell (2003) objetivam chamar a atenção sobre a complexidade de atuar junto a essas camadas sociais tidas como excluídas do museu e não eliminam da instituição museu seu papel transformador. Nessa ordem, argumenta que o museu tem o potencial de empoderar indivíduos e comunidades e combater diversos fatores de exclusão social a que estão submetidos. Para o autor em questão, o museu pode contribuir para a inclusão social em três níveis: individual, comunitário e societário. No primeiro pode aprimorar a autoestima, confiança e criatividade dos indivíduos. O segundo tem a propriedade de incentivar a autodeterminação, o desenvolvimento da confiança e a habilidade para a aquisição de maior controle sobre suas próprias vidas e o desenvolvimento do ambiente em que vivem. Por fim o último nível pode promover a tolerância, quebrar estereótipos e incentivar o diálogo entre diferentes comunidades, por meio de sua participação na representação em coleções e exposições. Acredita-se que ao visitar um museu de ciência e tecnologia, algo fora de seu padrão de consumo cultural, um indivíduo social e economicamente excluído, inaugure em sua vida uma nova categoria de experiências que faça com que se reconheça importante, competente, integrante de um contexto em relação ao qual até então, não havia laços de pertencimento e identidade. Nesse sentido, pode-se também contar com Bondia que se debruça sobre a maneira como as informações que os indivíduos recebem são processadas e incorporadas em sua experiência de vida. Este autor defende que aquilo que importa é a maneira pela qual os sujeitos processam as informações e como elas interferem na qualidade de vida. Em suas palavras:
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[...] se a experiência é o que nos acontece e se o saber da experiência tem a ver com a elaboração do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de uma comunidade humana particular [...] por isso o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. (Bondia, 2002: 7).
Dessa forma, a experiência de visitar um museu de ciência e tecnologia pode ser considerada como uma abertura para o desconhecido, para aquilo que não se pode antecipar e nem prever. 3 - Descrição do estudo 3.1 - Construção da pesquisa A pesquisa “Visitação de Grupos de Audiência Estimulada”, VISEST, desenvolvida por pesquisadores e bolsistas de iniciação científica da Coordenação de Educação em Ciências, CED, do MAST, integrantes do Grupo de Pesquisa em Educação em Ciências em Espaços Não Formais, GECENF, foi realizada em três rodadas, nos anos de 2006-2007; 2007-2008 e 2013-2014, respectivamente. Ela refletiu a necessidade de se investigar de forma mais aprofundada o público de visitação estimulada. Seus principais objetivos foram, conhecer o significado que visitantes oriundos de comunidades de baixo poder aquisitivo e de baixo capital cultural desenvolvem a partir da visita a um museu de ciência e tecnologia e contribuir para a implementação de ações com intuito de promover inclusão social. O estudo tomou como referência os conceitos de experiência, inclusão social e empoderamento. O processo de empoderamento envolve componentes de diversas naturezas, cognitiva, psicológica, social, econômica e política. A potencialidade deste conceito está no fato de implicar uma posição que reconhece que é a própria população quem pode identificar suas necessidades e propor caminhos para solucioná-las. Acredita-se que as atividades de educação em ciências podem ser promotoras de um padrão de consumo cultural que tem a ciência como elemento protagonista, gerando competências, laços de pertencimento, identidade e uma relação afetiva e estética com o conhecimento científico. 3.2 - Sujeitos da pesquisa Os sujeitos da pesquisa foram pessoas convidadas para visitar o MAST, procedentes de áreas carentes da cidade do Rio de Janeiro e de municípios vizinhos que participaram das atividades aqui desenvolvidas no contexto da programação de atividades educacionais de final de semana e em eventos especiais de popularização da ciência como a III e a IV Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (2006 e 2007, respectivamente) e as Semanas de Astronomia do MAST (2006, 2007 e 2008). Os grupos de visitantes foram contatados por meio de lideranças comunitárias (vinculadas a organizações não governamentais, associações de moradores e igrejas), assim como de professores de escolas públicas e do Programa Academia Carioca da Secretaria de Saúde da Prefeitura do Rio de Janeiro. No caso de lideranças comunitárias, fazia-se uma solicitação para que fossem formados grupos de famílias para a visita ao MAST. Por sua vez, os estudantes de escolas públicas e idosos do Programa Academia Carioca eram orientados a vi-
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sitarem o museu acompanhados de seus familiares. A visita estimulada considera a presença da família fundamental para que não só o jovem usufrua e compreenda o museu como espaço de conhecimento, mas que essa apropriação se dê também no contexto familiar.
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Os participantes eram provenientes do município do Rio de Janeiro, de bairros e comunidades localizadas na Zona Norte (Brás de Pina, Coelho Neto, Cordovil, Engenho Novo, Manguinhos, Marechal Hermes, Maré, Penha, Rocha e Vigário Geral), Zona Oeste (Bangu, Cidade de Deus, Jacarepaguá, Jardim Sulacap, Padre Miguel, Realengo e Senador Camará) e Zona Sul (Laranjeiras) e também de outros municípios da região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro (São Gonçalo, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Belford Roxo, Mesquita, Nilópolis e São João de Meriti). 3.3 - Visita ao Museu de Ciência Nas primeiras duas rodadas da pesquisa, o MAST promoveu a visita a seus espaços dos grupos de audiência estimulada participantes da investigação, financiando o seu transporte. Na terceira rodada, contou-se com parceria do Instituto TIM que forneceu recursos financeiros para transporte, lanche, pagamento de mediadores e produção de material gráfico de divulgação da ciência. Foram elaborados roteiros de visitação especialmente criados para esse público, de duração de três horas e meia, com intervalo de 30 minutos para lanche, que consistiam em visitação livre e mediada: sessão de planetário inflável; palestra interativa; observação do Sol através de telescópio; visita orientada aos espaços expositivos (“Olhar o céu, medir a Terra”; “Estações do ano, a Terra em movimento”; “A química na história do Universo, da Terra e do corpo” e “Fotografia, ciência e arte”) e ao conjunto arquitetônico (Pavilhão da Luneta Equatorial de 21 cm; Pavilhão da Luneta Meridiana Zenital) e palestra interativa Após a visita ao museu, os participantes acima de 12 anos eram encaminhados a um auditório para responder o questionário da pesquisa, de forma voluntária. 3.4 - Procedimentos Metodológicos Esta pesquisa em grande parte é de natureza quantitativa. O instrumento foi um questionário auto-administrado, respondido por pessoas de 12 anos ou mais. Na primeira rodada, uma versão inicial do instrumento foi aplicada a 378 participantes. Na segunda e na terceira rodadas uma versão revisada e ampliada foi aplicada a 259 e 621 participantes, respectivamente. O questionário continha questões relativas ao perfil sociodemográfico, cultural e econômico da audiência estimulada e a parâmetros atitudinais ou comportamentais de interesse, de persistência e de motivação, relacionados ao conceito latente de empoderamento. A medição desse conceito foi feita por meio da questão “Marque a alternativa que melhor expressa sua opinião sobre a visita ao museu” que era constituída por assertivas relacionadas a dois aspectos, cognitivo e social, do conceito em questão. Os respondentes tinham a escolha de cinco categorias de resposta: discordo totalmente (1), discordo (2), não sei (3), concordo (4) e concordo totalmente (5).
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Figura 1: Observação do Sol através de telescópios Foto: Gomes (2013)
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Figura 2: Visita à Exposição “Fotografia, ciência e arte” Foto: Acervo MAST (2013)
Figura 3: Aplicação dos questionários Foto: Acervo MAST (2013)
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As questões relativas ao perfil foram idênticas nas três rodadas. Por outro lado, a questão voltada para a medição do empoderamento foi ampliada de 10 assertivas na primeira rodada para 28 na segunda e terceira rodadas, com objetivo de aumentar as qualidades estatísticas da análise.
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As respostas aos questionários foram codificadas e transpostas para uma planilha. As estatísticas descritivas do perfil sociodemográfico, cultural e econômico dos respondentes foram obtidas com o programa SPSS (Statistical Package for Social Science). Posteriormente, as respostas ao bloco de itens sobre o empoderamento, foram analisadas pela técnica da teoria de resposta ao item não paramétrica,TRIN, uma metodologia de análise que permite o estudo de escalas de medição estatística. Para isso foi empregado o programa MSP (Mokken Scale for Polythomous Items de Molenaar e Sijtsma, 2000). A utilização da TRIN se justifica, primeiro, por fazer menos exigências sobre os dados, e segundo, pela disponibilidade de se examinar a escalonabilidade do conjunto de itens, por meio da estatística H de Löewinger que indica o quanto a escala obtida se afasta da escala perfeita ou determinística de Guttman. (Sijtsma e Molenaar, 2002). A pesquisa utilizou-se também de técnicas de análise qualitativa. Foram realizadas de dezembro de 2009 a outubro de 2010 entrevistas com 16 pessoas que participaram da segunda rodada da pesquisa, cerca de seis meses a um ano após a visita ao MAST. Foi feito contato com as lideranças comunitárias responsáveis pelos grupos, que indicaram pessoas interessadas em participar desta etapa da pesquisa. As entrevistas foram realizadas em instituições (ONG, igreja ou escola) nas próprias comunidades, tiverem duração de 20 a 30 minutos e foram audiogravadas. 4 - Resultados A seguir apresentam-se os resultados referentes ao perfil sociodemográfico, cultural e econômico da audiência estimulada do MAST, em comparação com o de sua audiência espontânea. São discutidos também os significados atribuídos pela audiência estimulada à visita ao MAST, tendo como referência o conceito de empoderamento. Os dados a respeito da audiência estimulada foram obtidos na pesquisa VISEST, anteriormente descrita, e os relativos à audiência espontânea são referentes a duas rodadas da pesquisa “Observatório de Museus e Centros Culturais”, OMCC, de 2005 (428 participantes); OMCC de 2009 (654 participantes) e a rodada da pesquisa Observatório MAST, OBMAST, de 2013 (600 participantes). O OMCC constituiu-se como um sistema de produção, reunião, compartilhamento de dados e conhecimentos diversos sobre os museus em sua relação com a sociedade, que reunia instituições culturais variadas (Departamento de Museus e Centros Culturais/ IPHAN, o Museu da Vida/ Casa de Oswaldo Cruz/ FIOCRUZ, o Museu de Astronomia e Ciências Afins e a Escola Nacional de Ciências Estatísticas/ IBGE), integrando, por adesão, diversas instituições museológicas parceiras. Com a dissolução do OMCC em 2011, o MAST e outros museus de ciência e tecnologia que participaram das rodadas de 2005 e 2009 decidiram dar continuidade à investigação sobre seu público mantendo a periodicidade de quatro
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anos da pesquisa. Dessa forma, criou-se em 2013 o Observatório MAST que teve como referência os métodos e instrumentos utilizados pelo OMCC, de modo a garantir a comparabilidade dos resultados com as pesquisas anteriores. 4.1 - Perfil comparativo das audiências estimulada e espontânea do MAST Foram observadas diferenças marcantes nos perfis da audiência estimulada e espontânea do MAST, sobretudo em termos de cor, renda e escolaridade. Há uma predominância de visitantes do sexo feminino considerando-se o público de visitação estimulada (70% em 2006-2007; 63% em 2007-2008; 69% em 2013-2014), enquanto na audiência espontânea as mulheres representam pouco mais da metade em relação aos homens (56% em 2005; 53% em 2009; 56% em 2013).Ver Tabela 1. Tabela 1: Distribuição percentual da audiência estimulada e espontânea do MAST segundo o sexo VARIÁVEL OBSERVÁVEL Sexo Masculino Feminino
1ª RODADA 2006-07 2005
2ª RODADA 2007-08 2009
3ª RODADA 2013-14 2013
VISEST
OMCC
VISEST
OMCC
VISEST
OBMAST
30% 70%
44% 56%
37% 63%
47% 53%
31% 69%
44% 56%
Negros ou pardos estiveram mais presentes do que brancos no caso da audiência estimulada (63% negros e pardos em 2006-07; 69% em 2007-08; 65% em 2013-14). Já com a audiência espontânea ocorre o inverso: a presença de brancos é mais significativa (54% brancos em 2005; 61% em 2009; 58% em 2013). A presença de amarelos e indígenas é irrisória (de 1% a 4% e de 1 a 5% respectivamente) e não tem variação expressiva de acordo com o tipo de audiência (Tabela 2). Tabela 2: Distribuição percentual da audiência estimulada e espontânea do MAST segundo a cor/raça VARIÁVEL
1ª RODADA
2ª RODADA
3ª RODADA
2006-07
2005
2007-08
2009
2013-14
2013
Cor/Raça
VISEST
OMCC
VISEST
OMCC
VISEST
OBMAST
Branco Negro Pardo Amarelo Indígena
31% 18% 45% 4% 2%
54% 11% 31% 2% 2%
25% 20% 49% 1% 5%
61% 8% 28% 2% 1%
30% 21% 44% 3% 2%
58% 10% 29% 2% 1%
OBSERVÁVEL
A faixa de idade de 12 a 24 anos teve ocorrência mais expressiva na audiência estimulada, sobretudo nas duas primeiras rodadas (66% em 2006-2007; 67% em 2007-2008; 38% em 2013-2014). Enquanto que a faixa de idade entre 25 e 39 anos foi preponderante na audiência espontânea (41% em 2005; 36% em 2009; 37% em 2013). No caso da audiência estimulada nos anos de 2013-14, destaca-se a presença de idosos, com 18% de visitantes acima dos 60 anos. Isso
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Inclusão social e a audiência estimulada em um museu de ciência
se deveu à visitação expressiva de grupos provenientes do Programa Academia Carioca (Tabela 3). Tabela 3: Distribuição percentual da audiência estimulada e espontânea do MAST segundo a idade
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1ª RODADA
VARIÁVEL OBSERVÁVEL Idade De 12 a 14 anos De 15 a 24 anos De 25 a 39 anos De 40 a 59 Acima de 60 anos
2ª RODADA
3ª RODADA
2006-07
2005
2007-08
2009
2013-14
2013
VISEST
OMCC
VISEST
OMCC
VISEST
OBMAST
30% 36% 16% 16% 2%
28% 41% 29% 2%
12% 54% 18% 13% 3%
25% 36% 35% 4%
15% 23% 19% 25% 18%
33% 37% 26% 4%
OBS: A pesquisa OMCC e OBMAST investiga pessoas com 15 anos ou mais de idade. Grande parte da audiência estimulada estudou apenas até o ensino fundamental (55% em 2006-2007; 73% em 2007-2008; 35% em 2013-2014), o que não é observado para a audiência espontânea (6% em 2005; 8% em 2009 e 3% em 2013). Uma parcela pequena da audiência estimulada chegou ao Ensino Superior (17% em 2006-2007; 10% em 2007-2008; 18% em 2013-2014), em comparação à audiência espontânea que em sua maioria atingiu este grau de escolaridade (68% em 2005; 65% em 2009; 68% em 2013).Ver Tabela 4. Tabela 4: Distribuição percentual da audiência estimulada e espontânea do MAST segundo a escolaridade VARIÁVEL OBSERVÁVEL Escolaridade Sem instrução escolar E.F.completo/incompleto E.M.completo/incompleto E.S.completo/incompleto
1ª RODADA 2006-07 2005 VISEST OMCC 1% 2% 55% 6% 27% 24% 17% 68%
2ª RODADA 2007-08 2009 VISEST OMCC 1% 73% 8% 16% 27% 10% 65%
3ª RODADA 2013-14 2013 VISEST OBMAST 1% 35% 3% 46% 29% 18% 68%
Uma parcela expressiva dos representantes da audiência estimulada tem baixa renda familiar (43% em 2006-2007; 59% em 2007-2008 e 60% em 20132014) e grande parte da audiência espontânea apresenta rendas de média (43% em 2005; 35% em 2009; 53% em 2013) a alta (14% em 2005; 24% em 2009; 20% em 2013).Ver Tabela 5. Tabela 5: Distribuição percentual da audiência estimulada e espontânea do MAST segundo a renda VARIÁVEL OBSERVÁVEL Renda Baixa renda Média renda Alta renda Não sei informar
1ª RODADA 2006-07 2005 VISEST OMCC 43% 36% 21% 43% 2% 14% 34% 7%
2ª RODADA 2007-08 2009 VISEST OMCC 59% 21% 15% 35% 3% 24% 23% 20%
3ª RODADA 2013-14 2013 VISEST OBMAST 60% 18% 14% 53% 3% 20% 23% 9%
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OBS: Baixa Renda (aproximadamente de 1 a 3 salários mínimos); Média Renda (aproximadamente de 4 a 10 salários mínimos); Alta Renda (aproximadamente acima de 10 salários mínimos). Valor do salário mínimo considerado na primeira faixa de renda domiciliar bruta no questionário das pesquisas: 1) VISEST 2006-07 e 2007-08 – até 350,00 reais; VISEST 2013-14 – até 763,00 reais. 2) OMCC 2005 – até 260,00 reais; OMCC 2009 – até 350,00 reais e OBMAST 2013 – até 678,00 reais. Em relação às três rodadas da VISEST foi possível confirmar a diferença entre o perfil sociodemográfico, cultural e econômico da audiência estimulada e o da audiência espontânea do MAST, considerando as variáveis sexo, cor/raça, idade, escolaridade e renda. As diferenças entre os níveis de escolaridade da audiência estimulada e o da espontânea sugerem que as atividades educacionais e as exposições devem buscar estratégias para contemplar as especificidades dessa nova audiência. Foi possível ainda reafirmar a necessidade de realização de pesquisas que avaliem a percepção e os significados atribuídos pela audiência estimulada à visita, subsidiando reformulações nas instituições museológicas e concluir pela ratificação da eficácia do projeto em propiciar a visita ao MAST de um público de perfil diferente de seu público de visitação espontânea. Em relação às duas rodadas do OMCC 2005 e 2009 e à rodada OBMAST 2013 destaca-se que a audiência espontânea do MAST é adulta, relativamente jovem, que se declara branca e visita o museu em grupo, sobretudo acompanhado de seus filhos ou demais familiares. Tem níveis de escolaridade e renda elevados e costuma visitar museus e centros culturais com frequência. Dialogar com múltiplas audiências e ampliar as representações sociais e culturais no museu, ou seja, compreender o seu aspecto excludente é um desafio. 4.2 - O empoderamento da audiência estimulada do MAST A análise sobre a medição estatística do empoderamento foi feita usando a teoria da resposta ao item não paramétrica para itens politômicos. Os resultados abaixo dizem respeito à terceira rodada da pesquisa e são inteiramente consistentes com os resultados da segunda rodada publicada em Falcão, Coimbra e Cazelli (2010). Nos resultados abaixo todos os sete itens negativos tiveram seus escores revertidos. Isso se justifica para manter a mesma direção do empoderamento crescente. Assim uma afirmação como “Não valeu a pena” que antes de ser revertido tinha uma média baixa (1,52 entre discordo totalmente e discordo) depois de revertido apresentou uma média alta (4,48 entre concordo e concordo totalmente). Ou seja, o item revertido passa a funcionar como “Valeu a pena”. Quando todo o conjunto de 28 itens foi analisado pelo programa em seu modo confirmatório a escala resultante apresentou uma escalonabilidade fraca, com H=0,28, e confiabilidade C=0,83. Em seu modo exploratório o programa separou o conjunto de 28 itens em duas escalas com boas propriedades estatísticas: a primeira composta de 19 itens (H=0,39 e C=0,91) e a segunda composta de oito itens (H=0,44 e C=0,83). Um item do total dos 28 itens propostos foi
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Inclusão social e a audiência estimulada em um museu de ciência
excluído pela análise exploratória inicial por apresentar baixa discriminação e baixa escalonabilidade em relação aos demais.
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Uma análise de conteúdo dos itens da primeira escala mostrou que a maioria deles se referia a aspectos sociais da visitação com alguns itens de aspecto cognitivo entre eles. Por outro lado, a segunda escala ficou constituída quase exclusivamente por itens descrevendo aspectos cognitivos da visitação. Este resultado sugere que os itens podem ser reagrupados nas duas dimensões principais do empoderamento como já havia sido reconhecido na análise da segunda rodada do VISEST (Falcão, Coimbra e Cazelli, 2010). Assim, foram constituídas duas escalas: uma com itens de conteúdo cognitivo e outra com itens de conteúdo preponderantemente social. Ambas as escalas foram analisadas de modo confirmatório e mostraram ter boas propriedades estatísticas. Os resultados estão apresentados nas Tabelas 6 e 7 abaixo. A escala que corresponde à dimensão cognitiva do empoderamento ficou constituída de 13 itens (H=0,32 e C=0,84) e a escala correspondente à dimensão social ficou com 15 itens (H=0,39 e C=0,89). Tabela 6: Itens da Escala de Empoderamento, aspecto cognitivo, na ordem de popularidade decrescente (média) com sua escalonabilidade (H)
Posição dos Itens no questionário Item 19 Item 3 Item 11 Item 10 Item 21 Item 25 Item 15 Item 17 Item 1 Item 27 Item 23 Item 6 Item 26
Descrição dos Itens Atrapalhou meu dia Foi uma perda de tempo Não valeu a pena Possibilitou-me conhecer coisas novas Não me interessou Não me trouxe conhecimento útil Não trouxe novidade Fez-me pensar sobre ciência Despertou minha curiosidade sobre ciência Aumentou minha cultura geral Fez-me pensar sobre historia Pouco me acrescentou Fez-me gostar de ciência
Média
H do Item
4,52 4,51 4,48 4,46 4,42 4,31 4,25 4,21 4,19 4,19 4,12 4,07 3,96
0,41 0,32 0,40 0,33 0,39 0,34 0,32 0,29 0,22 0,33 0,30 0,32 0,23
Propriedades estatísticas: Confiabilidade (C) = 0,84; Escalonabilidade (H) = 0,32.
Os itens que expressam aspectos cognitivos são aqueles com os quais os respondentes mais demonstram concordância: o despertar da curiosidade sobre a ciência; o sentimento de surpresa; uma mudança favorável de atitude para com a imagem do museu; um convite para a reflexão sobre ciência associada a um sentimento positivo; a percepção de que a experiência da visita ao museu pode ser útil no mundo da escola ou do trabalho; a perspectiva do aumento da cultura geral e a reflexão sobre história. Estes aspectos, no seu conjunto, apontam uma dimensão eminentemente cognitiva associada a ganho de conhecimento. Eles permeiam a experiência da maioria daqueles que participaram da visita estimulada ao MAST e, neste sentido, constituem a base comum do empoderamento promovido pela visita ao museu. Tais expressões de empoderamento estão diretamente relacionadas às atividades educativas nas quais os visitantes participaram. Nestas atividades, conteúdos de diversas áreas eram apresentados segundo uma pedagogia voltada para a divulgação e popularização da ciência e tecnologia, pautada na mediação humana.
Sibele Cazelli, Carlos Alberto Quadros Coimbra, Isabel Lourenço Gomes , Maria Esther Valente
Por outro lado, observa-se que os itens de natureza social formam um bloco com valores médios em maioria menores que quatro (as respostas oscilam entre não sei e concordo), sugerindo que o público respondente não estabelece uma conexão forte entre as experiências vividas na visita e sua realidade cotidiana.Tal assertiva encontra eco na média alcançada pelo item “Tem tudo a ver com minha realidade” (3,26). Os outros itens associados à natureza social do empoderamento são: a valorização da relação com a comunidade; a mudança do modo de ver as coisas a partir da visita; a visita como promotora de conversas no seio da família, de inserção na sociedade, de um futuro melhor, de aumento de capacidade para a vida, de aumento de cidadania, de aumento de auto estima; a visita como facilitadora de troca de ideias no próprio grupo e de conversa com amigos. Na elaboração destes itens foi assumido um risco consciente, no sentido de que era esperado que os itens representariam assertivas extremamente ousadas e pretensiosas. Por outro lado, havia como base para tal abordagem os resultados das análises da primeira versão do questionário (primeira rodada da pesquisa VISEST 2006-2007: 378 respondentes). Tal resultado sugeria que, para a completude do processo de empoderamento desses visitantes, é necessária uma dimensão associada à percepção de aplicabilidade do ganho de conhecimento ao seu mundo social, segundo diferentes aspectos. Isto é, o processo de empoderamento está incompleto na ocorrência apenas na percepção do ganho de conhecimento. Tabela 7: Itens da Escala de Empoderamento, aspecto social, na ordem de popularidade decrescente (média) com sua escalonabilidade (H) Posição dos Itens no questionário Item 2 Item 13 Item 4 Item 24 Item 9 Item 7 Item 5 Item 14 Item 28 Item 18 Item 8 Item 12 Item 22 Item 20 Item 16
Descrição dos Itens Fez o meu dia diferente Surpreendeu-me Melhorou o meu modo de ver o museu Ajudou na troca de ideias com meu grupo Vai me ajudar nas conversas com os amigos Mudou meu modo de ver as coisas Vai me ajudar no trabalho ou na escola Vai me ajudar nas conversas com a família Vai promover minha participação na sociedade Vai me tornar um cidadão melhor Vai me tornar mais capaz para a vida Vai mudar meu futuro para melhor Valorizou minha relação com a comunidade Melhorou minha autoestima Tem tudo a ver com minha realidade
Média 4,40 4,14 4,03 3,97 3,95 3,89 3,89 3,82 3,78 3,75 3,75 3,73 3,61 3,51 3,26
Propriedades estatísticas: Confiabilidade (Rho) = 0,89; Escalonabilidade (H) = 0,39.
H do Item 0,27 0,36 0,38 0,35 0,42 0,38 0,28 0,42 0,43 0,44 0,46 0,47 3,61 0,40 0,33
Essa diferença entre as dimensões social e cognitiva do empoderamento também se reflete na média geral de cada escala. A dimensão cognitiva tem uma média geral (média entre todos os itens e todos os respondentes) igual a 4,29, mostrando que os respondentes tendem a ficar entre concordo e concordo totalmente no que diz respeito às afirmações da escala. E a dimensão social tem uma média igual a 3,83, mostrando que os respondentes tendem a ficar entre não sei e concordo nas afirmações da escala. Pode-se concluir então que o empoderamento pleno destes visitantes se dá pela associação entre as percepções de ganhos cognitivos e de aplicabilidade destes ao mundo social do visitante no nível de suas relações pessoais (família e amigos) e, de suas relações com esferas sociais mais externas (escola, trabalho, sociedade). Assumindo tal associação com o empoderamento pleno do visitante, podemos afirmar que a visita foi mais eficiente em promover a percepção de ganhos cognitivos
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e menos eficiente em estabelecer conexões com o mundo do visitante. Neste sentido, poderíamos especular se há formas de aumentar os níveis aplicabilidade social da visita criando atividades específicas para esta parcela da população, atividades estas que abordassem temas de interesse imediato, negociados previamente com os próprios grupos de visitantes. Ou ainda, uma segunda possibilidade poderia ser o uso de processos dialógicos baseados na mediação humana (mediadores) que em diferentes momentos da visita promovessem discussões explícitas de questões relacionadas ao uso de museus como locais importantes de interação social e a sua relevância para o exercício pleno da cidadania. Por meio de as entrevistas realizadas com 16 participantes da segunda rodada da VISEST, constatou-se que poucos são aqueles que visitaram museus após a visita ao MAST, incentivada pelo fornecimento de transporte gratuito e pela mobilização da comunidade por meio de lideranças. Apenas quatro participantes afirmam ter ido a algum museu, enquanto 12 não o fizeram, considerando-se o período de seis meses a um ano. Destes quatro, três retornaram ao MAST e um visitou outro museu. Uma fala típica das entrevistas é “Por falta de tempo e também porque não houve mais esse tipo de visita através de projetos. O fato de ter um ônibus disponível para a visita facilita muito [...] só existem dois ônibus que circulam aqui dentro. Tem que pegar um para ir até lá fora, depois pegar outro pra ir até tal lugar, fica muito complicado. [...] Sem contar que tem lugares que são pagos [...]. (Entrevistado 6, Mesquita/RJ).” Figura 1: Distribuição dos entrevistados quanto à visita a museus após a visita ao MAST
12
NÃO
SIM
4
Ou ainda, “[...] Por falta de oportunidade e de tempo. [...] Pra uma pessoa sair com a família pra ir ao museu é mais difícil, mas quando é um grupo, é um estímulo, uma motivação maior. [...] Eu e minha família saímos num domingo pra visitar a Quinta da Boa vista, nós passamos o domingo todo e não visitamos o Museu Nacional. Um grupo maior cria aquele estímulo” (Entrevistado 11, Mesquita/RJ). E também, “[...] Não frequento mais esses lugares por condições e companhia. [...] não há condição financeira [...]. Não sei ir de ônibus. Mas no meu caso é mais companhia. Alguém que diga: vamos! [...] Por que me falta tempo ou aquela coisa de você ter o bom hábito de ir.” (Entrevistado 1, São Gonçalo/RJ).
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A maioria dos entrevistados mencionou a falta de tempo. Sete participantes que não visitaram museus no período considerado alegaram falta de tempo para isto, o que em geral foi citado em conjunto com outros fatores. Outras justificativas citadas relacionaram-se à: dificuldade de transporte ou distância entre o museu e seu local de origem (4), falta de motivação/estímulo (3), falta de companhia (3) e limitações financeiras (2). Alguns afirmaram que não visitaram museus especificamente por falta de oportunidade (1), de hábito (1) ou por problemas de saúde (1) (Figura 2). Grande parte dos fatores citados, como a dificuldade de transporte e financeira, a motivação e a falta de companhia corroboram a importância de ações que viabilizem a visita de grupos de audiência estimulada a museus, pois o incentivo e a mobilização do grupo são fatores motivadores fundamentais. Figura 2: Distribuição das justificativas para a não visita após a visita ao MAST 7
Falta de tempo 4
Dificuldade de transporte / distância Falta de motivação / estímulo
3
Falta de companhia
3 2
Limitações financeiras Falta de oportunidade
1
Não tem o hábito
1
Problemas de saúde
1
Não especificado
1
5 - Considerações finais Com base nas análises realizadas, confirmou-se que o perfil social, demográfico, e econômico da audiência estimulada tem uma diferença marcante em relação ao perfil da audiência espontânea do MAST. A audiência estimulada valoriza a visita ao MAST e a associa ao aspecto cognitivo do empoderamento. Esta associação é mais fraca quanto ao seu aspecto social, que diz respeito ao cotidiano ou à melhoria das condições de vida das pessoas.A partir de as entrevistas realizadas, comprovou-se que tal empoderamento se restringiu ao momento da visita e ao espaço do museu durante a interação com as exposições selecionadas e atividades realizadas. Ou seja, esta experiência não é incorporada à prática social e cultural dos sujeitos após a visita ao MAST. Características do perfil desta audiência podem estar vinculadas a um baixo capital cultural, que explicariam essa apropriação limitada da experiência (Bourdieu, 1969). No estado incorporado, o capital cultural dá-se sob a forma de disposições duráveis do organismo, tendo como principais elementos constitutivos os gostos, o
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Inclusão social e a audiência estimulada em um museu de ciência
domínio maior ou menor da língua culta e as informações sobre o mundo escolar. A acumulação desta forma de capital cultural demanda que sua incorporação seja feita mediante um trabalho de inculcação e assimilação. Este trabalho exige tempo e deve ser realizado pessoalmente pelo agente, para que essa forma de capital se torne parte integrante da pessoa, ou seja, o habitus (Bourdieu, 2001).
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As ações de inclusão social em museus devem abarcar diálogo mais abrangente com o público de visitação estimulada, envolvendo uma maior democratização das práticas museológicas. É preciso renegociar a base do relacionamento com esta audiência e estabelecer mecanismos de participação mais efetiva na organização das ações a ela dirigidas. Isto significa compartilhar poder, recursos, habilidades e conhecimento. Significa ainda investir na capacitação de profissionais para torná-los capazes de adotar uma postura menos paternalista em relação a grupos de visitantes social e economicamente desfavorecidos (Sandell, 2003). O museu como instituição promotora de inclusão social é uma tendência. De fato, os museus têm o potencial para romper o ciclo reprodutor de capital cultural, fazendo uso da experiência marcante do deslumbramento da visita. As ações realizadas pelos museus para estimular a visitação de grupos social e economicamente excluídos devem se materializar como uma política institucional. É necessária uma mudança de atitude e de valores dos profissionais de museus. Segundo Sandel (2003), há forte reconhecimento no contexto museológico da necessidade de diversificação de suas audiências, mas há resistência quanto à noção de que o museu pode ter um impacto social mais abrangente do que suas práticas educativas. O papel social do museu deve ser considerado tão importante quanto as suas demais funções. É fundamental que o museu não continue a falar de dentro para dentro. Referências Bibliográficas ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CENTROS E MUSEUS DE CIÊNCIAS, CASA DA CIÊNCIA, FIOCRUZ E MUSEU DA VIDA. Centros e museus de ciências do Brasil. Rio de Janeiro: ABCMC e FIOCRUZ, 2009. BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro: ANPEd, n.19, p.20-28, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2014 BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. Lámour de l`àrt : les musées d`art européens et leus public. Paris: Les Èditions de Minuit, 1969. BOURDIEU, Pierre. Os três estados do capital cultural. In: Escritos de educação, 3ª ed., Petrópolis:Vozes, 2001, p. 73-79. CAZELLI, Sibele; COIMBRA, Carlos Alberto Quadros. Pesquisas educacionais em museus: desafios colocados por diferentes audiências. In: WORKSHOP INTERNACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM MUSEUS, 1., 2012, dez.12-14: São Paulo, SP. Anais... São Paulo: Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo/FEUSP, 2012. Disponível em: <http://www.geenf.fe.usp.br/v2/wp-content/ uploads/2013/01/Mesa1_Cazelli-protegido.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2014
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Artigo recebido em dezembro 2014. Aprovado em fevereiro 2015
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O IMAGINÁRIO SOBRE O INDÍGENA: UMA EXPERIÊNCIA DE APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA NO MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA DA USP1 Camilo de Mello Vasconcellos2
RESUMO: O artigo apresenta e discute os resultados de uma pesquisa realizada junto aos visitantes escolares do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo sobre o tema das sociedades indígenas que viveram no território brasileiro anteriormente à vinda dos colonizadores europeus. Essa pesquisa apoia-se nos princípios da aprendizagem significativa e dos conhecimentos prévios, referências fundamentais na obra de David Ausubel. PALAVRAS-CHAVE: museu, sociedades indígenas pré-coloniais, aprendizagem significativa, conhecimento prévio, Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.
ABSTRACT: The paper discusses the results of a research with students that had visited the Museum of Archaeology and Ethnology of the University of São Paulo about the indigenous people who lived in Brazil before the arrival of European settlers. This study supports the principles of meaningful learning and previous knowledge, based on the ideas of David Ausubel. KEYWORDS: museum, indigenous society of pre-colonial period, meaningful learning, previous knowledge, Museum of Archaeology and Ethnology of the University of São Paulo
1 Esta pesquisa foi realizada com o apoio da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da USP no âmbito do Programa Aprender com Cultura e Extensão. 2 Docente do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.
Camilo de Mello Vasconcellos
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM 2011a) colhidos a partir do Cadastro Nacional de Museus, existem no país aproximadamente 3.000 museus, a maioria deles concentrada nas regiões Sul e Sudeste. Para a coleta desses dados, que forneceu um amplo panorama qualitativo e quantitativo a respeito da condição museal em território nacional, o formulário de base utilizou algumas tipologias com o objetivo de conhecer as coleções museológicas constitutivas desses acervos: Antropologia e Etnografia, Arqueologia, Artes Visuais, Ciências Naturais e História Natural, além de outras. A partir disso, a presença indígena foi detectada fundamentalmente em museus antropológicos e etnográficos (29,5%) e arqueológicos (26,9%)1. Historicamente, as coleções indígenas estiveram reunidas no contexto de museus de história natural e, especialmente no Brasil, estiveram presentes desde a fundação dos principais museus do século XIX: Museu Nacional do Rio de Janeiro (1818), Museu Paulista (1895) e Museu Goeldi (1871). Eram nessas instituições que ocorriam as pesquisas em Arqueologia e Etnologia, tendo em vista que as universidades seriam criadas em nosso país apenas a partir dos anos de 1930 do século XX. Nesse sentido, o interessante é notar o protagonismo dos museus nesse processo de pesquisa científica até o início do século passado, característica muito singular dos nossos museus, quando comparada com realidades de outros países. Atualmente podemos, inclusive, encontrar coleções indígenas em museus artísticos, de história, de ciência e tecnologia e outros, mas o importante é deixar registrado que aquilo que define a tipologia de um museu não é a natureza dos objetos em si, mas sim a problemática apontada por determinada instituição em seu processo curatorial, aqui definido como o ciclo completo de atividades em torno do seu acervo, que inclui as atividades de pesquisa, salvaguarda e comunicação. Nessa direção corroboram Cury & Vasconcellos (2012: 17-18), Para tanto, necessitamos dos temas e abordagens, é preciso saber como o museu interpreta suas coleções e a problemática dessa instituição, assim como sua abrangência. Se tomarmos as culturas indígenas como uma problemática, explorável com abordagens específicas, será possível presumir que as questões indígenas façam parte de diversas tipologias de museus, independentemente da tipologia dos objetos. É mais fácil entender por que e como a Antropologia e a Etnologia compreendem os povos indígenas, assim como é coerente supor que a Arqueologia – sobretudo, mas não somente, a pré-histórica- aborde culturas autóctones brasileiras. Mas esses campos de conhecimento são mais amplos e alcançam diversas culturas e/ou aspectos culturais. Porém, a questão indígena vai além desses campos, uma vez que permite outras visões e possibilidades. A tipologia de objetos não fecha a problemática indígena nos museus e, em consequência, os campos antropológico e arqueológico não a encerram, embora contribuam substancialmente. 1 “Antropologia e Etnografia: coleções relacionadas às diversas etnias, voltadas para o estudo antropológico e social das diferentes culturas. Ex: acervos folclóricos, artes e tradições populares, indígenas, afro-brasileiras, do homem americano, do homem do sertão, etc. Arqueologia: coleções de bens culturais portadores de valor histórico e artístico, procedentes de escavações, prospecções e achados arqueológicos. Ex: artefatos, monumentos, sambaquis etc.”(Ibram, 2011a: 70).
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Sabe-se que as imagens e representações produzidas a respeito das sociedades indígenas no Brasil formaram-se a partir dos mais variados meios de comunicação e atenderam a diferentes interesses ideológicos ao longo de nossa história. Muitas dessas imagens – estereotipadas, inventadas, fragmentadas, equivocadas e preconceituosas – ainda estão presentes no imaginário do senso comum e constituem-se em objeto de pesquisa das mais diferentes áreas do conhecimento, especialmente nas duas últimas décadas. Na construção dessas primeiras imagens sobre os indígenas é impossível ignorar o papel desempenhado pela escola, pelo livro didático e também pelo professor do ensino fundamental e médio. A ideia do índio selvagem, preguiçoso, que vive da caça e da pesca, místico e guerreiro, segundo Bittencourt (1998), tem povoado o universo linguístico das crianças e jovens ao longo da vida escolar. Podemos notar, atualmente, que ocorreram muitas mudanças nessas abordagens, mas ao mesmo tempo, algumas ainda permaneceram e chegam até nós por meio da mídia na forma de filmes, noticiários e telenovelas. Dessa forma, é necessário refletirmos a respeito do papel que os museus vêm exercendo nas representações sobre as sociedades indígenas, na perspectiva de apresentar outras narrativas que possam se contrapor à visão tradicionalmente existente nas escolas e que, portanto, venha a colaborar efetivamente na construção de um novo saber a respeito das sociedades indígenas no Brasil. A museologia como área de conhecimento e os museus como instituições preservacionistas não ficaram imunes aos diferentes modelos, debates culturais e intelectuais que ocorreram em diversos momentos de nossa história. Ocorre, atualmente, um movimento interessante de estabelecer um diálogo maior com as sociedades indígenas no sentido de se distanciarem de um modelo tradicional de museus “sobre” os indígenas, na busca de um museu “com” ou “dos” indígenas (Freire, 2012). Dessa maneira, no contexto deste artigo, interessou-nos pesquisar os conhecimentos, ideias, referências e imagens que os alunos em contexto escolar possuíam a respeito das sociedades indígenas que viveram no território brasileiro anteriormente à chegada dos colonizadores europeus, no momento em que visitavam a exposição de longa duração do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, intitulada Formas de Humanidade2. Antes de apresentar a proposta de comunicação dessa exposição é necessário ressaltar que as exposições museológicas há muito deixaram de se constituírem em tão somente uma reunião de objetos expostos ao público num espaço determinado, que só faz sentido para o curador. Nesse sentido, há uma dimensão comunicacional da exposição, na qual “comunicar é criar sentido e não apenas difundir sentidos já produzidos”. (Meneses, 1992: 103). Isto ocorre por meio de objetos que não são neutros, mas assumem significados diferentes, dependendo do contexto em que são apresentados. São os chamados semióforos, ou seja, são aqueles objetos que estão fora do circuito comercial, mas assumem valor simbólico; “aqueles que não possuem utilidade, mas que representam o invisível, ou seja, dotados de um significado, não sendo manipulados, mas expostos ao olhar e que não sofrem usura”. (Pomian, 1984: 71). 2 Esta exposição foi fechada ao público em dezembro de 2010 para que uma nova proposta de longa duração pudesse ser concebida e inaugurada em uma nova sede.
Camilo de Mello Vasconcellos
As exposições museológicas vêm sendo compreendidas como um canal de comunicação entre a pesquisa que o museu realiza na sua área de atuação específica e o público. Esta visão atualmente é defendida quase por unanimidade, não só por museólogos, mas também por profissionais envolvidos com questões relativas ao mundo dos museus e que se debruçam sobre o tema das exposições. Ocorre, porém, que nem todos os autores entendem esse caráter comunicacional das exposições na mesma direção. Por exemplo, Scharer (s/d) reconhece que (...) a exposição representa o meio de comunicação mais importante do museu e pode ser considerada como um sistema cultural produtor de sentido, um fascinante meio de comunicação onde os objetos são os elementos fundamentais.
Ainda para este autor, em sua função de comunicação, o museu visualiza, através da exposição eventos ausentes no espaço e tempo, usando objetos que foram musealizados e que lhe servem como signos. Desta maneira, uma situação de exposição representa por definição uma realidade fictícia e não pode fazer outra coisa além de visualizar, representar, apresentar e explicar em um novo contexto. Meneses critica uma visão muito comum a respeito do papel dos museus entendidos apenas como difusores do conhecimento produzido. Assim, para ele, a função das exposições não seria a de meramente contribuir para a tão propalada socialização do conhecimento, mas fundamentalmente se constituir como uma convenção visual, ou melhor, uma organização de objetos para produção de sentidos predeterminados. É impossível tratar a exposição, por isso, como um processo natural, óbvio, espontaneamente operável. Meneses (1992:109) acaba interpretando as exposições museológicas como (...) a formulação de idéias, conceitos, problemas, sentidos, expressos por intermédio de vetores materiais. Não há dúvida que tal entendimento não é pacífico, nem deve ser proposto como uma camisa de força. Por outro lado, sua concretização é sempre espinhosa.(....)Também quanto a museus históricos e antropológicos, já se notou que não há exibição ingênua ou neutra de artefatos. A exposição museológica pressupõe, forçosamente, uma concepção de sociedade, de cultura, de dinâmica cultural, etc.
Outra interpretação a respeito das exposições museológicas é aquela que as define como espaços de visualidade, e o seu papel na questão educacional. Heloísa Barbuy (1999:42) caracteriza: Por ser um fenômeno de visualidade e com grande poder de difusão de imagens, as exposições passam a ganhar força na formação da educação social. O sentido visual que as exposições proporcionam tem grande valor na sociedade burguesa para a transmissão de conceitos e valores. É exatamente nesse momento, mais precisamente em Paris, na Exposição de 1867, que vemos pela primeira vez, em termos de Exposições Universais, um projeto museográfico, a conjugação de uma organização visual com a concepção intelectual e museológica da Exposição.
Em uma perspectiva fortemente marcada pela questão comunicacional, ao abordar o tema das exposições, Cury (2005:99) afirma que
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A comunicação museológica se expressa fundamentalmente na exposição que é uma linguagem condensada e altamente engenhosa. Condensa atitudes e valores, sentimentos, afetividade, razão e emoção, sensibilidade. Engenhosa porque requer uma elaboração cuidadosa e minuciosa, associa objetos patrimoniais musealizados com recursos multissensoriais, dosa inteligibilidade com sentido e conhecimento com significação, desvela o intangível do tangível, unifica espaço e tempo e trabalha em cinco dimensões – a tridimensionalidade do espaço e dos objetos, a interatividade e a criatividade como dimensões.
No caso da arqueologia, disciplina recente no Brasil, os objetos escolhidos para uma exposição passaram por diversas etapas de seleção: foram descartados por aqueles que os utilizaram num passado remoto (os indígenas); depois foram encontrados por profissionais (arqueólogos) que realizaram uma seleção no campo durante as escavações e, posteriormente, um outro processo de seleção foi realizado no momento de escolher quais os artefatos que entrariam na composição do discurso expositivo. Finalmente, existirá a seleção que o próprio público realizará quando do momento de sua visita às exposições. No caso específico de nossa pesquisa, realizada junto ao MAE-USP, essa instituição completou em 2014 vinte e cinco anos de criação e constituiu-se como o resultado da fusão de diferentes acervos e instituições, ocorrido no ano de 1989, e que até então funcionavam separadamente: os antigos Instituto de Pré-História e o Museu de Arqueologia e Etnologia, os componentes arqueológico e etnográfico do Museu Paulista e o acervo Plinio Ayrosa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Dessa maneira, a exposição de longa duração, inaugurada em 1989, era o primeiro desafio de musealização (Bruno, 1996) de uma nova instituição que reunia um acervo de diferentes proveniências e áreas culturais distintas: arqueologia clássica e mediterrânea (Egito, Grécia, Roma e Mesopotâmia), arqueologia brasileira (com ênfase às culturas indígenas já extintas) e as áreas de etnologia brasileira (os grupos indígenas contemporâneos) e africana e afrobrasileira. Essa exposição constituiu-se pelos olhares de especialistas em Arqueologia e Etnologia a partir de coleções historicamente constituídas de diferentes grupos indígenas de sociedades já extintas e ainda existentes no território nacional. A exposição foi concebida pela museóloga e docente do MAE-USP, Maria Cristina Oliveira Bruno, e foi estruturada em três setores: Brasil Indígena; África: culturas e sociedades; e Mediterrâneo e Médio Oriente na Antiguidade. A proposta temática apresentou um perfil sintético das sociedades que produziram, expressões materiais, que hoje estão reunidas no acervo da instituição. As diferentes formas de subsistência e organização econômica, as conquistas tecnológicas que norteiam a elaboração e transformação dos artefatos, as formas de celebrações sociais que marcam e diferenciam o cotidiano dos grupos humanos, as distintas formas de representação e de apropriação da natureza, estão na gênese da construção deste discurso expositivo; ao lado das expressões artísticas e ritualísticas (Bruno, 1996:62).
Camilo de Mello Vasconcellos
Os eixos conceituais desenvolveram-se a partir de três aspectos fundamentais das sociedades humanas: diversidade, temporalidade e territorialidade. No Setor Brasil Indígena, especialmente, existiam dois módulos em espaços diferenciados, a saber: um arqueológico intitulado Origens e Expansão das Sociedades Indígenas e outro etnográfico cujo título era Manifestações Sócioculturais Indígenas. Nossa pesquisa centrou-se no módulo arqueológico e esta exposição, por ser a única com um acervo desta natureza no contexto da cidade de São Paulo, e devido à sua linguagem, que procurava estabelecer uma maior proximidade com o público visitante (a partir de diferentes linguagens de apoio), constituiu-se em um marco referencial de grande importância na história das exposições de Arqueologia e Etnologia em nosso país. A pesquisa: aspectos teóricos e metodológicos Esta pesquisa foi realizada durante o ano de 2010 junto à exposição de longa duração do MAE-USP intitulada “Formas de Humanidade” e pretendeu conhecer o imaginário3 de jovens pré-adolescentes visitantes do MAE-USP em fase escolar, na faixa etária entre os 12 e 14 anos, com relação ao tema das sociedades indígenas que ocuparam o território brasileiro antes da chegada dos colonizadores portugueses e alvo de pesquisas arqueológicas. Além disso, o projeto previu também discutir modelos de mediação compatíveis com um museu da área de ciências humanas. A pesquisa foi aplicada para visitantes de sete escolas, sendo três da capital, três da Grande São Paulo (duas de Osasco e uma de Ribeirão Pires), e uma em município do interior de São Paulo (São Roque, na região de Sorocaba), num total de 327 alunos. Dessas escolas, seis pertenciam à iniciativa privada e uma à rede pública municipal. Os alunos cursavam entre o 6º e o 8º ano do Ensino Fundamental e foram atendidos por educadores do MAE em visita orientada ao espaço expositivo. O instrumento utilizado para identificar o imaginário dos visitantes escolares sobre a temática indígena foi um questionário, que acabou sendo aplicado em dois momentos bem demarcados: antes e após a visita mediada ao espaço expositivo. A aplicação desses questionários contou com o apoio da estagiária do projeto e então aluna do curso de Pedagogia da FEUSP, Mariana Garcia Cecci, que distribuía e orientava os respondentes quanto aos objetivos do projeto e eventuais dúvidas com relação ao entendimento das questões. Esses questionários foram aplicados apenas aos visitantes do módulo Origens e Expansão das Sociedades Indígenas- que integrava o Setor Brasil Indígena da exposição de longa duração do MAE-USP. O questionário distribuído antes da visita ao espaço expositivo era composto por três questões abertas e pretendia que os jovens se posicionassem sobre o modo de vida das sociedades indígenas que ocuparam o território brasileiro anteriormente à chegada dos colonizadores portugueses; quando e onde 3 Aqui nos apoiamos na definição de Baczko (1985: 38) para quem o imaginário “compõe-se de um sistema de representações que trazem junto de si ideologias, aspirações, valores, mitos e projetos que legitimam a ordem estabelecida. É através dos seus imaginários que uma coletividade designa a sua identidade, elabora uma certa representação de si e estabelece a distribuição de papeis e das posições sociais”.
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ouviram a respeito desse assunto pela primeira vez e, finalmente, se haviam entrado em contato com esse assunto por meio de algum veículo da mídia. Ao término da visita mediada ao espaço expositivo, os mesmos alunos respondiam a outro questionário, então com quatro questões, cujo principal objetivo era verificar qual havia sido o impacto que a visita à exposição trouxera a respeito da temática indígena. Com isso, poderíamos avaliar possíveis alterações/alcances/ permanências de aspectos relacionados à vida indígena, agora com o protagonismo da visita ao espaço expositivo e, dessa maneira, verificar o alcance dessa nova experiência com relação à mesma temática. É necessário ressaltar que esta pesquisa não pretendeu medir a quantidade de conhecimento dos jovens visitantes com relação ao conteúdo da temática indígena, numa perspectiva calcada em um modelo tradicional e ultrapassado de comunicação museológica4. A perspectiva desta pesquisa compreende que o impacto da visita ao espaço expositivo é uma experiência interativa baseada em uma relação de participação recíproca, onde convivem valores e conhecimentos produzidos por especialistas, e também aqueles referenciais que os visitantes já possuem e que passarão a povoar seu imaginário após um processo de ressignificação cultural. É desse embate entre os conhecimentos prévios que os alunos já trazem consigo e aquele experienciado na visita ao espaço expositivo, que emergirá um processo de aprendizagem significativo (Ausubel et al., 1980). Para os efeitos desta pesquisa, os conhecimentos prévios são aqueles reconhecidos em um processo onde os conceitos (nesse caso, sobre os indígenas no período pré-colonial) já se encontram preexistentes na estrutura cognitiva do estudante/visitante e podem ser reconhecidos tanto antes como após a visita ao espaço expositivo. Para Ausubel et al. (1980), estruturas cognitivas são estruturas hierárquicas de conceitos que explicitam as representações do indivíduo. “Assim, os conceitos já aprendidos determinam novas aprendizagens e são por elas modificados” (Alegro, 2008: 19). Em termos gerais, Ausubel et. al. (1980) definem aprendizagem significativa como o processo pelo qual uma nova informação recebida pelo sujeito interage com uma estrutura de conhecimento específica orientada por conceitos relevantes, os conceitos subsunçores – ou conceitos incorporadores, integradores, inseridores, âncoras determinantes do conhecimento prévio que ancora novas aprendizagens. Nesse processo, os conceitos subsunçores são reelaborados, tornandose mais abrangentes e refinados. Conseqüentemente, são aperfeiçoados os significados e melhorada a sua potencialidade para aprendizagens significativas posteriores (Alegro, 2008: 24).
A teoria da aprendizagem significativa, ao estabelecer o conhecimento prévio do sujeito como referência, explicita claramente que este é elemento básico e determinante na organização do ensino. Segundo Ausubel, “se eu tivesse que reduzir toda a psicologia educacional a um único princípio, diria isto: o fator singular que mais influencia a aprendizagem é aquilo que o aprendiz já conhece. Descubra isso e ensine-o de acordo” (Ausubel et al., 1980: 137). 4 A respeito dos diferentes modelos de comunicação museológica existentes é fundamental a leitura da tese de doutorado de Marília Xavier Cury defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP em 2005.
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Por esta razão, foi fundamental nesta pesquisa, identificar os conceitos prévios relevantes sobre as sociedades indígenas por parte dos visitantes do MAE-USP, para que pudéssemos integrá-los e relacioná-los ao novo contexto museal, quando da visita ao espaço expositivo e denominado de novo contexto de comunicação e aprendizagem. Esses conhecimentos prévios originam-se de aprendizagens mais amplas, caracterizadas por assimilações parciais ou “deformadas” do conhecimento sobre as sociedades indígenas, cujas origens podem ser detectadas em diferentes contextos: escolar, familiar, da mídia, etc. Ou seja, obedecem ao caldo cultural no qual estamos todos imersos, recebendo influências e também agindo de acordo com a nossa posição na sociedade, num duplo processo de ação e reação. Finalmente, é importante ressaltar que as pesquisas voltadas para uma abordagem ausubeliana são raras na área das humanidades5 e mais ainda no campo da museologia. Os trabalhos científicos com base na teoria de Ausubel são mais freqüentes no campo das ciências físicas, biológicas e da linguística. Por conseguinte, consideramos que a escolha por essa abordagem constitui-se em um referencial original ao pensarmos a área da museologia na intersecção com a psicologia da educação em um contexto de uma exposição de arqueologia brasileira, cuja principal demanda vem do Ensino Fundamental, especialmente da área de ensino de História. Os Resultados da Pesquisa Abaixo apresentamos os resultados e análises da pesquisa6 com base nas respostas dos alunos/visitantes ao espaço da exposição de longa duração do MAE-USP. Quanto à primeira questão “É sabido que antes da chegada dos colonizadores portugueses já existiam várias sociedades no território brasileiro, que são conhecidas como povos indígenas. Na sua opinião, como viviam esses grupos nesse período”?(Ver Tabela 1) A resposta majoritária, com mais de 50% (187 alunos), foi aquela relativa à categoria “viviam da caça, pesca, coleta e agricultura”- e refere-se às diferentes formas de subsistência dos grupos indígenas, enfatizando a importância que os jovens adolescentes conferem às questões do modo de vida e das atividades econômicas que permitiram a sobrevivência dessas sociedades no período pré-colonial7. Podemos inferir que ainda é forte e permanece o imaginário de que o indígena vivia o tempo todo trabalhando para atender às suas necessidades básicas de subsistência, uma vez que comparando com a nossa sociedade capitalista, a indígena possuía muitas dificuldades. Portanto, para conseguir o alimento e sobreviver era necessário o trabalho pesado e árduo que implicava a realização das atividades de caça, coleta, pesca e agricultura, “com poucos ou 5 As teses de doutorado de ALEGRO (UNESP, 2008) e de LIMA (MAE-USP, 2014) são referências de importância nessa área. 6 Em função de que algumas das respostas foram repetitivas, acabamos reunindo, nas tabelas, algumas dessas respostas em uma mesma categoria. Ao mesmo tempo, suprimimos algumas de menor relevância, por aparecerem em número muito insignificante em relação ao universo dos respondentes. 7 Preferimos a utilização do termo pré-colonial que pré-histórico, uma vez que esse último pode reforçar aspectos preconceituosos e confundir-se com sinônimo de atraso no que diz respeito à vida das sociedades indígenas que ocuparam o território brasileiro anteriormente à chegada dos colonizadores europeus.
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nenhum recurso tecnológico”, outra categoria também apontada pelos alunos nesse momento da pesquisa.
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Ao mesmo tempo, é interessante notar que houve um número de respostas (87) partindo de um ponto de vista aparentemente contrário ao primeiro, pois idealiza e romantiza a vida dos indígenas, uma vez que estes “viviam bem, na natureza, livres e sem preocupações”. Na verdade, este ponto de vista também reforça preconceitos e estereótipos, porquanto ainda se atém a uma visão idílica sobre o indígena ao confundi-lo como mais um elemento da natureza, uma vez que ele vivia no meio dos animais e da floresta, misturando natureza bruta e selvagem com a cultura indígena e, dessa maneira, muito diferente da sociedade capitalista atual. É válido ressaltar que tanto a primeira categoria de respostas (que reforça a questão do trabalho e das atividades de caça, pesca, coleta e agricultura) como a segunda (relacionada com a natureza em que o indígena e sua cultura se misturam), são ambas ainda fortes e vem há muito tempo sendo construídas e influenciadas, tanto por parte do sistema formal de ensino - onde entra a questão da formação do professor para lidar com esse tema, - o livro didático – que, por sua vez, vem mudando e já apresenta algumas abordagens interessantes e atualizadas concernentes ao período pré-colonial (Vasconcellos, 2000), na cobertura da mídia, com raras exceções, e também na literatura romântica do século XIX. Somada a isso, ainda tivemos a produção historiográfica da segunda metade do século XIX que, apoiada nos trabalhos do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, fundado em 1894, e nas primeiras representações do indígena no Museu Paulista (inaugurado em 1895), também colaboraram para a criação e difusão de uma determinada representação sobre o indígena brasileiro, ainda presentes no imaginário do senso comum. O aluno traz em si as marcas de seu tempo vividas em seu contexto sociopolítico e econômico, tanto para julgar com os seus valores sociedades não ocidentais, como também para tentar redimir o indígena de seu sofrimento e igualá-lo à natureza, ressaltando a sua “pureza”. Como destaca DaMatta, pode-se afirmar que o indígena está inserido na natureza que constitui-se de terra, mar e céu, fenômenos meteorológicos, as plantas e os animais, e “finalmente o homem”. Isso lhe confere uma posição particular nesse esquema. No Brasil, quanto mais próximo da natureza mais se é inferiorizado (DAMATTA, 1993, 98-99). A narrativa dos estudantes reapresenta estas contradições quando delineia um espaço físico no qual insere-se o indígena, e não ambientes sociais (dos povos indígenas) (ALEGRO, 2008: 108)
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Tabela 1
Temas indicados em resposta à questão “É sabido que antes da chegada dos colonizadores portugueses já existiam várias sociedades no território brasileiro, que são conhecidas como povos indígenas. Na sua opinião, como viviam esses grupos nesse período”? Possibilidades de resposta Escola 1 Escola 2 Escola 3 Escola 4 Escola 5 Escola 6 Escola 7 Total Viviam da natureza / livres / tribos. Viviam bem, sem preocupações. Procuravam alimentos / nômades. Caça, pesca e artesanato. Não tinham ideias religiosas. Caça, pesca e coleta. Pesca, agricultura e caça. Sem tecnologia, poucos recursos. Caça e coleta. Artesanato, agricultura e coleta. Caça, pesca, coleta e redes. Pesca e caça.Viviam em harmonia. Caça, pesca e coleta. Agricultura quando descobriram. Caça, pesca e instrumentos que faziam. Caça, pesca e agricultura.Viviam em ocas. Caça e pesca. Total
7
5
5
10
4
7
12
50
2
4
2
1
1
1
9
20
2
0
0
0
1
0
1
4
0
0
1
0
0
0
0
1
13
1
5
2
2
2
7
32
7
0
0
1
2
1
2
13
2
1
2
1
6
3
2
17
8
2
4
3
12
4
5
38
2
0
0
1
0
0
0
3
2
0
0
0
0
0
3
5
1
0
0
0
0
1
0
2
1
0
0
0
0
1
0
2
3
0
0
0
0
0
0
3
6
1
6
8
7
7
14
49
5
1
1
2
2
8
16
35
61
15
26
29
37
35
71
274
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O imaginário sobre o indígena: uma experiência de aprendizagem significativa no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP
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Já na segunda questão “Onde você ouvir falar sobre estes povos pela primeira vez? Quando ocorreu isso”? A maioria das respostas (280) apontou a escola e as aulas de história como as grandes referências para a visão dos alunos sobre os indígenas. (Ver Tabela 2). Aqui podem-se retomar os possíveis problemas do ensino formal onde os docentes especialistas ainda possuem dificuldades em trabalhar questões sobre as sociedades indígenas, por não terem noções básicas de Arqueologia ou Antropologia em seus cursos de História. Todavia, ao mesmo tempo, desses profissionais é exigido que se adaptem à Lei 11.645 de 10/03/2008, que tornou obrigatória a inclusão, no currículo oficial da rede de ensino, a temática “História e Cultura Afro-brasileira e Indígena”, cuja incumbência deve ser dos professores de História, Educação Artística e Literatura. Nesse contexto, caberia fazer menção à questão do ensino de História que, ao abordar a problemática indígena, historicamente se apoiou em interpretações presentes nas obras de Varnhagen e Von Martius, que a partir do século XIX serviam a um projeto de nação e de identidade nacional conservador forjado no âmbito da produção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Nos últimos vinte anos a abordagem sobre o período pré-colonial presente no livro didático (Vasconcellos, 1994; Vasconcellos et al.,2001) também vem mudando significativamente quando comparado com décadas anteriores. Atualmente, a maioria dos manuais didáticos destinam um ou dois capítulos na estrutura geral da obra, para abordar esse período, buscando ampliar as referências a respeito de um assunto que anteriormente nunca era abordado, ou quando raramente aparecia, as informações vinham plenas de interpretações marcadas pelo etnocentrismo, além de preconceituosas, pois aos indígenas só se atribuía sentido a partir da chegada dos colonizadores europeus, que em 1500 inauguravam a “História do Brasil”, negando a essas populações o direito à sua história. Além da escola aparece também a influência da família e da televisão (25 respostas) na formação da opinião dos adolescentes. É importante enfatizar que as sociedades indígenas do período pré-colonial são referenciadas com uma certa frequência pelas reportagens da televisão sobre o sítio arqueológico mais polêmico das Américas, visto indicarem datas de mais de 60.000 anos para a ocupação humana do nosso continente. Segundo a arqueóloga responsável por tais pesquisas – Niède Guidon, este sítio está localizado na Toca do Boqueirão da Pedra Furada, na serra da Capivara em São Raimundo Nonato, Estado do Piauí. Esta polêmica contradiz a corrente mais aceita de ocupação da América, que teria ocorrido pelo estreito de Bering e, portanto, nessa região é onde estariam os sítios arqueológicos mais antigos das Américas. Ademais, foram igualmente realizadas, nos últimos anos, algumas reportagens veiculadas pela Revista Veja e Jornal Folha de S. Paulo a respeito do “crânio da Luzia” (uma representante de grupos negróides como a “primeira brasileira” e encontrada em Minas Gerais, com datas de mais de 10.000 anos atrás). Tudo isso vem sendo veiculado pela mídia assistematicamente, ao lado da cobertura dos conflitos de terra contemporâneos com frequência ressaltados pela imprensa, que acaba misturando os indígenas do presente com aqueles do passado, e desta maneira, colabora para trazer maiores problemas para uma interpretação menos equivocada a respeito dessas sociedades, o que também influencia na resposta e no imaginário dos alunos.
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Tabela 2
Temas indicados em resposta à questão “Onde você ouviu falar sobre esses povos pela primeira vez? Quando ocorreu isso”? Possibilidades de resposta
Escola 1 Escola 2 Escola 3 Escola 4 Escola 5 Escola 6 Escola 7 Total
Na escola.
47
20
20
26
24
35
72
244
Na aula de história. Com o (a) professor (a) de História, na escola. Família e escola, quando pequeno.
11
0
4
1
4
4
6
30
2
1
1
0
1
1
0
6
0
0
2
1
0
0
4
7
Na televisão.
0
2
3
1
2
3
3
14
Na família / em casa.
4
1
0
0
3
1
2
11
64
24
30
29
34
44
87
312
Total
Tabela 3
Temas indicados em resposta à questão “Você já assistiu a algum filme ou leu em jornais e revistas sobre esse assunto? Você lembra qual o nome deste revista/jornal ou desse filme”? Possibilidades de resposta Escola 1 Escola 2 Escola 3 Escola 4 Escola 5 Escola 6 Escola 7 Total Não. Sim. "Tainá, o segredo da Amazônia". Sim. Filme "A Guerra do Fogo". Sim. "Tainá" e "A Era do Gelo". Sim. No Jornal Nacional. Sim, não lembra os nomes. Sim. Revista Veja. Sim. Jornal Folha de São Paulo. Sim. Discovery Channel. Total
20
0
10
14
12
10
33
99
18
0
7
3
5
4
2
39
0
0
0
0
0
4
0
4
2
0
0
0
0
0
0
2
1
0
0
0
0
1
4
6
15
1
12
9
19
16
33
105
0
0
1
0
1
6
3
11
0
0
0
0
0
0
5
5
0
0
3
1
0
0
0
4
56
01
33
27
37
41
80
275
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O imaginário sobre o indígena: uma experiência de aprendizagem significativa no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP
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É possível ainda apontar que a comunidade arqueológica no país apenas recentemente vem dando a devia importância à difusão da Arqueologia como área científica que se dedica também a pesquisar os povos pré-coloniais e, assim, sair do debate puramente acadêmico. Diríamos que a arqueologia passou a ter mais visibilidade, pois foram criados novos cursos de formação pelo país (tanto em nível de graduação como de pós) e ampliou-se o espectro de atuação desses profissionais em diversas regiões do país, por conta das grandes obras que impactam o meio ambiente, para as quais é necessário um laudo arqueológico como parte das exigências do Ministério do Meio Ambiente. Além disso, a partir do ano 2000 tivemos grandes exposições sobre o tema da Arqueologia brasileira: a “Mostra do Redescobrimento” em São Paulo no Parque do Ibirapuera, com grande estrutura promocional; em 2001, a exposição museológica “Brasil 50 mil anos- uma viagem ao passado pré-colonial” promovida pelo MAE-USP e ocorrida em Brasília, afora as mostras mais recentes do Centro Cultural Banco do Brasil ocorridas em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, que também destinaram à Arqueologia um papel de importância em termos da sua difusão ao grande público, e que colaboraram para que esta área científica saísse finalmente do anonimato. Quanto à terceira pergunta:Você já assistiu a algum filme ou leu em jornais e revistas sobre este assunto? Você lembra qual o nome desta revista/jornal ou deste filme? (Ver Tabela 3). Foi apontado o filme “Tainá”(39 respostas) que trata da vida cotidiana contemporânea de uma menina indígena na região Amazônica, e em menor referência, “A Guerra do Fogo” e a “Era do Gelo,” confundindo indígenas com homens pré-históricos da Europa, como se pudesse haver comparação entre o indígena do território brasileiro com as espécies que viveram na Europa durante o processo de hominização (Homo sapiens neanderthalensis e Homo erectus). Isso nos dá uma certeza de que ainda os indígenas são alvos de um imaginário marcado pela questão do evolucionismo social, visão segundo a qual as sociedades indígenas eram aquelas marcadas pelo atraso e viviam desde tempos remotos e até os dias atuais em uma “eterna pré-história”, estáticas e sem nenhuma mudança em suas diferentes culturas. Após a visita ao espaço expositivo os alunos eram convidados a responder a outro questionário, dessa vez contendo quatro perguntas que passamos a analisar em seguida. As questões primeira e segunda: “Durante a visita ao MAE, o que mais chamou a sua atenção em relação à vida dos indígenas que aqui viveram antes da chegada dos colonizadores? Justifique sua resposta e; “Após esta visita, quais as novidades que você aprendeu sobre a vida dos grupos indígenas que aqui viveram antes da chegada dos colonizadores”? Serão questões analisadas em conjunto, tendo em vista que as respostas foram muito semelhantes e ressaltaram os mesmos aspectos. (Ver Tabela 4) O que chamou a atenção foi a grande importância atribuída pelos alunos aos artefatos da cultura material indígena (por volta de 65%), observados e explorados durante a visita ao espaço expositivo e mediado pelos educadores do MAE.
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Dentre os objetos ressaltados pelos alunos encontramos majoritariamente os “crânios, urnas funerárias, pontas de projéteis, ossos em geral e a referência ao sítio arqueológico de sambaqui”8. Alguns desses artefatos foram mostrados aos alunos e puderam ser tocados antes da entrada no espaço expositivo, etapa que denominamos de acolhimento da visita mediada, pois consideramos que este momento é fundamental e estratégico para estabelecer a possibilidade do diálogo e do processo de aprendizagem, ao mesmo tempo que permite identificar aspectos do conhecimento prévio dos alunos a respeito da temática a ser explorada. Essa etapa permite criar um clima favorável ao processo de aprendizagem, por meio da sensibilização do tato e da exploração da percepção visual dos visitantes, permitindo a análise de alguns aspectos em relação à matéria-prima, forma, textura, função e utilização desses artefatos no contexto das sociedades do passado, além de possibilitar uma discussão sobre a natureza do trabalho do arqueólogo. A questão do potencial de aprendizagem dos alunos a partir do contato com a cultura material, observado durante a vivência no espaço expositivo (segunda etapa da mediação), ressalta a importância de se trabalhar aspectos relacionados ao concreto, fundamentais para o processo de aprendizagem dos visitantes. Acreditamos que durante a mediação nesse espaço de comunicação, a apreensão dos objetos numa perspectiva dialógica entre o educador e o visitante leva ao processo de compreensão daquela sociedade distante no tempo e no espaço, estabelecendo o entendimento das diferenças entre uma sociedade pretérita e esta do presente, à qual pertencem os alunos, e permitindo que ocorra, nesse “estranhamento”, um efetivo processo de ensino/aprendizagem. A partir dos conhecimentos prévios desses visitantes, estabelecendo comparações e associações com relação às diferenças entre a sociedade à qual eles pertencem e aquelas dos indígenas, é possível até mesmo aproximar estas sociedades, atentando, inclusive, para trabalhar na perspectiva daquilo que permaneceu e/ou que se alterou em função de novos contextos políticos/sociais/ econômicos. São abertas possibilidades para que eles possam afastar algumas posturas equivocadas, tais como a da superioridade de uma sociedade sobre outra, relativizando a dicotomia evolução/atraso, a fim de contribuir para a desmistificação de alguns preconceitos tão arraigados e presentes no imaginário sobre os indígenas desde o século XIX. O museu, ao contar com a presença concreta dos objetos que fazem parte da cultura material dessas sociedades indígenas, permite essas aproximações e amplia os referenciais a respeito delas e, neste sentido, abre uma infinidade de possibilidades que contribuem para a compreensão das mudanças das sociedades numa perspectiva temporal, espacial e de longa duração. Ou seja, o museu é apenas o início desse processo e não o fim. A necessidade do trabalho integrado com a escola é fundamental para o estabelecimento necessário desse cruzamento de saberes. Retomando os resultados da pesquisa nessas duas questões, chama a atenção o número de respostas relativas às diferenças de padrões e práticas 8 Sítios arqueológicos encontrados tanto no litoral como no interior do país, e formados por restos de peixes, conchas e outros organismos marinhos e fluviais, onde são evidenciados muitos vestígios de enterramentos e de rituais funerários.
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O imaginário sobre o indígena: uma experiência de aprendizagem significativa no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP
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relacionadas com a questão da morte e das práticas funerárias nas diferentes sociedades indígenas (onde aparecem os sambaquis, os crânios com adornos, as urnas funerárias, etc). Talvez um tema que, aparentemente, pudesse causar reações de estranhamento, medo e insegurança, permite uma aproximação com um assunto que discute a diversidade das práticas religiosas entre as sociedades ocidentais com aquelas vistas nos rituais das sociedades indígenas. Morte, tecnologia e atividades de subsistência foram as temáticas que mais mobilizaram os estudantes durante as visitas e puderam ser constatadas pelas repostas dadas à pesquisa: Tabela 4
Temas indicados em resposta à questão “Durante a visita ao MAE, o que mais chamou a sua atenção em relação à vida dos indígenas que aqui viveram antes da chegada dos colonizadores? Justifique sua resposta”. Possibilidades de resposta Objetos e maneira de viver, sua cultura. Urnas funerárias / forma de enterrar os mortos. Artefatos no geral (instrumentos, roupas, utensílios, crânio, ossos). Flechas / lanças / armas. Sambaquis. Total
Escola 1 Escola 2 Escola 3 Escola 4 Escola 5 Escola 6 Escola 7 Total 10
2
10
7
5
11
12
57
4
3
2
6
6
1
14
36
19
5
13
5
14
13
18
87
4
4
2
1
2
2
6
21
8
2
4
6
5
9
26
60
45
16
31
25
32
36
76
261
Na pergunta de número 3 “Após esta visita, como você definiria, numa frase, o modo de vida dos grupos indígenas antes da vinda dos colonizadores?, a categoria de respostas que mais chamou a atenção diz respeito à dicotomia “vida boa, simples e com liberdade na natureza (94) e vida difícil/trabalhavam muito, sem tecnologia, diferente da nossa” (88). (Ver Tabela 5) Consideramos que essa “contradição” apontada pelos alunos tenha relação direta com algo que os intriga e pode ser pensada na seguinte direção: Como uma sociedade que viveu da tecnologia da pedra (lascada e/ou polida) e da cerâmica – portanto “pobre e de tecnologia atrasada”, pode ter vivido tanto tempo nessas condições? Como uma sociedade, mesmo sendo considerada “atrasada” viveu de maneira tão diferente da sociedade atual e, no entanto, conseguiu ultrapassar limites existenciais para a sua sobrevivência, sem os problemas tão graves que hoje o homem vive na sociedade ocidental (miséria, escassez da água e energia, fome, poluição, violência nas grandes cidades, etc)? Essas questões remetem ao fenômeno do etnocentrismo que pode ser definido pela atitude que reflete a dificuldade de pensar em outros modelos de existência que não sejam aqueles aos quais estamos acostumados e que passamos a considerar como modelos únicos de vida em sociedade. Ou seja, a nossa sociedade (aquela dos alunos) é considerada como o “centro” onde a partir disso, deve ser pensada como referência e modelo a ser seguido.Todas as outras
Camilo de Mello Vasconcellos
sociedades que não possuem o padrão da sociedade do “eu”, é a sociedade da falta: falta de tecnologia, de lei, de fé, de estatuto jurídico, poder centralizado, etc. Daí seria natural que sociedades sem tecnologia e atrasadas fossem extintas em nome de algo que está relacionado ao progresso, ao avanço da ciência e de um mundo tecnologicamente superior. Eis aqui, mais uma vez, um imenso desafio a ser trabalhado, especialmente quando lidamos com a diferença em plena sociedade globalizada.
239
Tabela 5
Temas indicados em resposta à questão “Durante a visita ao MAE, o que mais chamou a sua atenção em relação à vida dos indígenas que aqui viveram antes da chegada dos colonizadores? Justifique sua resposta”. Possibilidades de resposta
Escola 1 Escola 2 Escola 3 Escola 4 Escola 5 Escola 6 Escola 7 Total
Caça, pesca e coleta. Vida boa, simples / liberdade.
9
0
2
4
3
3
11
32
3
10
8
8
8
15
18
70
Eles eram criativos.
1
1
0
0
2
0
7
11
Viviam da natureza. Espertos.Viviam sem tecnologia.
8
1
4
2
3
2
4
24
2
1
1
2
0
0
2
8
Muito difícil.
3
2
4
1
7
5
9
31
Trabalhavam muito.
4
0
1
2
1
6
3
17
Vida diferente da nossa.
3
2
0
5
1
2
6
19
33
17
20
24
25
33
60
212
Total
Na última questão “Você acha que a visita ao museu contribuiu para a sua aprendizagem sobre o tema da vida dos grupos indígenas que aqui viveram? Justifique sua reposta”(Ver tabela 6).As respostas, em sua ampla maioria (mais de 70% do total), consideraram e reforçaram o aspecto do museu como um local de “aprendizagens de coisas novas, pois permitiu conhecer os “objetos e o modo de vida dessas sociedades indígenas”, além também de considerarem que para a compreensão delas foi fundamental a presença dos educadores pela “boa explicação” que forneceram. Sobre a questão educativa e a afirmação dos museus como espaços de educação não formal, a partir dos anos 1990 a prática exercida em nossas instituições passou a questionar o modelo escolarizado (Lopes, 1991). Nesse sentido, foi estabelecida uma prática pedagógica que pretendia levar em conta os interesses do público visitante na transformação dos museus, tradicionalmente voltados para o estudo e catalogação de suas coleções, para uma maior abertura em relação ao seu papel social. Dessa maneira, foram ampliadas as experiências de educação não formal dirigidas à atenção de outras categorias de público que não apenas o escolar, passando-se a discutir dois eixos comuns na atuação de educadores de museus: a mediação e a interação. No propósito desse artigo e aproveitando que esta resposta apareceu por parte dos respondentes da nossa pesquisa, daremos maior ênfase à questão da mediação no contexto de um museu antropológico como o MAE-USP.
O imaginário sobre o indígena: uma experiência de aprendizagem significativa no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP
MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1V, nº 7, Out. / Nov. de 2015
240
A mediação vem sendo alvo de diferentes pesquisas a partir de diversos enfoques nos últimos anos, (Queiróz et al., 2002; Davallon, 2007; Cazelli et al., 2008; Nascimento, 2008; Marandino, 2008ª; Pinto, 2010; Vasconcellos, 2010; Gomes, 2013). O ponto comum dessas abordagens é o fato de considerar a mediação como uma ação que os educadores de museus estabelecem na relação entre o conhecimento produzido e o público, quer seja escolar quer não. A mediação não deve ser vista como a simples tradução do conhecimento especializado por parte dos educadores, mas sim na perspectiva da construção coletiva do conhecimento, uma vez que reúne o saber de vários atores a partir de diferentes lugares: o pesquisador da área básica do museu, o museólogo, o educador e o público, numa perspectiva dialógica e interdisciplinar. Acreditamos que o mediador colabore sobremaneira na realização de uma visita significativa, criando novos repertórios desde aqueles que o público traz consigo, e permitindo, a partir de diferentes estratégias, que a aprendizagem se torne significativa junto ao público visitante. Nesse contexto, o mediador deve estar atento, porquanto: Sua função é a de desenvolver modelos pedagógicos que sejam capazes de evidenciar os conceitos mentais alternativos aos da ciência e colaborar com programas e atividades para que o público seja envolvido no processo de construção de novos conhecimentos que sejam mais compatíveis com aqueles elaborados pela ciência e transposto para as exposições do museu. (Queiróz et al., 2002:79).
O grande desafio do mediador, nessa perspectiva, apoia-se no fato de que não se deve supervalorizar a informação científica como única e situada em um patamar inacessível, nem tampouco nivelá-la por baixo. Pelo contrário, deve-se manter o equilíbrio entre a ideia e a sua tradução, sem perder o brilho e a possibilidade da descoberta que o público possa experimentar. Para que isso ocorra é necessário, portanto, considerar uma mudança que possibilite um diálogo entre o educador e o público, de modo que se diminua a distância existente e seja implementada uma relação de proximidade entre estes e o conhecimento que está sendo mediado. Ademais, é necessária a adaptação da linguagem para os diferentes públicos que visitam o museu. No caso do público escolar, é imperioso que seja estabelecido um saber compartilhado com a escola e o professor numa relação de parceria, mas não de hierarquia. Finalmente, é importante que a história do museu e da instituição que propõe o diálogo também seja alvo de compartilhamento entre o público e o educador, facilitando a compreensão da especificidade de uma instituição cuja principal tarefa é a preservação de um acervo de diferentes sociedades e que pode, inclusive, despertar reflexões sobre modelos de existência alternativos ao nosso, tanto de sociedades do presente como daquelas do passado.
Camilo de Mello Vasconcellos
Tabela 6
Temas indicados em resposta à questão “Você acha que a visita ao Museu contribuiu para a sua aprendizagem sobre o tema da vida dos grupos indígenas que aqui viveram? Justifique sua resposta”. Possibilidades de resposta Sim. Instrumentos sobre a cultura. Sim. Aprender, melhorar notas. Sim. Aprender a cultura indígena.
Escola 1 Escola 2 Escola 3 Escola 4 Escola 5 Escola 6 Escola 7 Total
241
2
0
0
0
0
1
1
4
1
1
0
0
2
1
2
7
7
5
6
1
4
4
11
38
Sim. Tocar em objetos.
2
0
0
0
0
0
0
2
Sim.Ver objetos de perto.
6
2
2
1
3
5
2
21
Sim. Boa explicação. Sim. Com o museu é mais legal aprender / mais fácil.
2
1
2
1
1
2
6
15
0
0
0
1
3
1
1
6
Sim. Aprender coisas novas. Sim. Aprendi coisas novas e me interessei mais pelo assunto.
32
14
14
24
17
22
53
176
0
0
0
0
0
1
0
1
Sim. Muito interessante.
2
0
0
0
0
0
4
6
Não.
0
0
1
0
4
0
1
6
Não. Já sabia. Sim e não. Pouco tempo de visita. Sim. Complementar o que viu na escola. Sim. Aprender sobre as pessoas que formaram meu país.
2
0
3
0
2
1
0
8
0
0
1
0
0
0
0
1
7
0
5
0
0
5
3
20
0
0
0
0
0
1
0
1
Sim. Sim. Olhar objetos e imaginar a situação. Não corresponde à pergunta.
1
0
0
0
1
0
3
5
0
1
0
0
0
0
0
1
1
0
1
1
1
1
3
8
Não respondeu.
1
0
0
0
0
0
0
1
66
24
35
29
38
45
90
327
Total
O imaginário sobre o indígena: uma experiência de aprendizagem significativa no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP
Considerações Finais
MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1V, nº 7, Out. / Nov. de 2015
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Nossa intenção com a discussão dos resultados desta pesquisa, à luz da teoria ausubeliana, foi demonstrar a importância de começar pelos conhecimentos prévios dos alunos a respeito da temática indígena – tão pouco e mal conhecida- e estabelecer ações visando a modificar essa situação, dentro das nossas possibilidades, a fim de alcançarmos um processo de aprendizagem efetivo a partir do universo de atuação dos profissionais dos museus. Não é a partir de uma única visita a esse espaço que podemos modificar completamente esse processo que envolve não apenas a visita ao museu, mas todo um contexto educacional, histórico e político afora dificuldades de outras ordens. A visita ao museu ocorre num tempo de duas horas e constitui-se em um momento importante do trabalho dos professores e dos educadores dessa instituição, mas não é “tábua de salvação” (por contar com outra linguagem e com especialistas no assunto) para mudar essa situação apontada na pesquisa. É então necessária uma clareza dos nossos limites, alcances e possibilidades de interferência, com propostas concretas e de efetiva atuação junto ao ensino, tais como: oferecimento de cursos de formação e atualização sobre a temática indígena e outras afetas ao nosso acervo, além de explorar também a questão do trabalho educativo em museus; oferecimento de materiais pedagógicos a serem emprestados ao professor de ensino fundamental e médio, mediante capacitação por parte dos educadores de museus9; continuidade da formação de novos educadores e estagiários em parceria com as universidades, estabelecimento de políticas públicas que possam interferir na formação dos professores em conformidade com os museus, e outras tantas possibilidades. O indispensável é considerar que professores e alunos do ensino formal sejam coautores na construção de um saber que é coletivo, uma vez que trabalhamos com a constituição de processos identitários e, portanto, de uma perspectiva mais inclusiva, tolerante e aberta para a discussão do tema da alteridade em contextos contemporâneos. Temos claro que a proposta teórica e metodológica discutida nos limites deste artigo, a partir dos princípios da teoria de David Ausubel, é uma dentre várias outras perspectivas existentes no campo da psicologia da aprendizagem. No momento ela pode servir de modelo para a reflexão a respeito de outros projetos que envolvam a relação ensino formal-não formal, especialmente no contexto dos museus antropológicos existentes em diversas universidades públicas brasileiras. O desafio está lançado! Referências ALEGRO, Regina Célia. Conhecimento prévio e aprendizagem significativa de conceitos históricos no Ensino Médio. Tese de doutorado, Faculdade de Educação, UNESP-Franca, 2008. 9 O MAE-USP possui tradição na concepção e oferecimento de recursos pedagógicos sobre temáticas que envolvem as áreas da arqueologia e da etnologia e que são emprestados aos professores de escolas públicas e privadas.
Camilo de Mello Vasconcellos
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O imaginário sobre o indígena: uma experiência de aprendizagem significativa no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP
do mediações sócio-culturais em um museu de ciências. In: MASSARANI, Luisa. Workshop sul-americano & Escola de mediação em museus e centros de ciência. Rio de Janeiro/Museu da Vida/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz,2008.
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Artigo recebido em março 2015. Aprovado em maio 2015
A PARTICIPAÇÃO EM MUSEUS: CONTRIBUIÇÃO DA RECEPÇÃO PARA A MUSEALIZAÇÃO DA ARQUEOLOGIA MARÍTIMA Cristiane Eugênia Amarante
1
RESUMO: Este artigo tem como objeto um estudo cultural de recepção realizado com crianças, em Santos (SP/Brasil), para a musealização da arqueologia marítima nesta cidade. A pesquisa foi realizada com estudantes de 9 anos de uma escola pública do município e teve pressupostos teóricos da comunicação em museus e a arqueologia pública. Durante seis meses aplicou-se um multimétodo de intervenções que teve os temas museu, porto, arqueologia e arqueologia subaquática como norteadores da coleta de informações. A investigação dialoga com as propostas de musealização contemporâneas que valorizam a participação do público no processo de preservação do patrimônio. PALAVRAS-CHAVE: Estudo de recepção em museu. Participação em museu. Recepção em museu. Museu de arqueologia marítima. Público de museu.
ABSTRACT: The subject matter of this article is a reception study conducted with children in Santos, a city in the state of São Paulo, Brazil, for the musealization of marine archeology there. The survey was carried out with nine-year-old students from a public school in that city and included theoretical assumptions derived from museum communication and public archeology. A range of intervention methods was applied over six months whose topics for guiding the collection of information were museum, port, archeology and underwater archeology. The investigation enters into a dialogue with contemporary musealization proposals which value the public’s participation in the heritage preservation process. KEY WORDS: Reception study in museums. Participation in museums. Reception in museums. Marine archeology museum. Museum’s public.
1 Mestre em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/ USP). E-mail: criseugenia.arqueo@gmail.com.
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A participação em museus: contribuição da recepção para a musealização da arqueologia marítima
Introdução
MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1V, nº 7, Out. / Nov. de 2015
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Na missão de pensar um museu de arqueologia marítima para a cidade de Santos (SP/Brasil), optou-se pelo caminho do estudo de recepção, com a participação de público não acadêmico no processo de musealização. Para tanto, elaborou-se uma estratégia educativa com estudantes de 9 anos de uma escola pública, explorando temas pertinentes ao museu, para compreender como estes elaboram o conhecimento e o (re)significam. As ações com o público, ou intervenções, foram compostas por métodos diversos para cercar a problemática da comunicação no museu com esse público específico. O grupo foi composto por 25 alunos que estudavam em tempo integral na Escola Municipal Padre Lúcio Floro, no Morro do José Menino, cidade de Santos, litoral de São Paulo. O prédio, inaugurado em 2008 como ação do município em atendimento às reivindicações da comunidade local, possui vista panorâmica da cidade e da orla marítima. Dos andares superiores é possível observar o movimento de entrada e saída de navios no Porto. O estudo durou seis meses, de março a agosto de 2011, e as intervenções foram realizadas uma vez por semana, com duração de uma hora, aproximadamente. A investigação contou com o apoio da professora regente da sala, Ana Paula Pinho, que teve papel importante durante as intervenções e em outros dias em que esta pesquisadora não estava presente. Em alguns momentos, ela aplicou atividades complementares à pesquisa em suas aulas e, ainda, observou comentários das crianças, anotando as considerações pertinentes e compartilhando. A pesquisa se deu no âmbito da arqueologia pública (MERRIMAN, 2004), que visa a aproximar a ciência arqueológica do público não acadêmico. Há nessa perspectiva uma necessidade de fazer arqueologia “com” o público. As ações realizadas dialogam também com o conceito de nova museologia (MORAES WICHERS, 2011, VARINE, 2012), movimento que entende o público como agente dos atos de preservação e não mero espectador. Nesse sentido, o estudo de recepção tem papel primordial, pois leva em consideração a relação cultural dos visitantes com o museu. As análises culturais deslocam o olhar da relação emissor-receptor para as mediações culturais, consideram o cotidiano dos vários atores do processo museológico e extrapolam a visão sobre formas de aprendizagem no museu, tomando cultura, comunicação e educação como partes de um mesmo processo integradamente (CURY, 2004). Tais estudos se apoiam nos conceitos de Martín-Barbero, teórico da comunicação, que deslocou o foco de atenção da comunicação da emissão para a recepção, em se tratando das mediações que se dão no bojo da cultura (CURY, 2004). Com o objetivo de revelar a relação do público com a arqueologia, alvo da musealização, na sua complexidade, e concretizar o quadro teórico da pesquisa, recorreu-se a um conjunto de métodos, ou seja, multimétodo. O cruzamento de métodos possibilitou um melhor entendimento da relação entre o público, o museu e a arqueologia. Metodologia e desenvolvimento Para o desenvolvimento e a aplicação da metodologia, as intervenções – momentos de encontro com o público para geração de dados – se fundamentaram em três bases: no método Paulo Freire (BRANDÃO, 2005, FREIRE,
Cristiane Eugênia Amarante
1987, 1997), de círculo de cultura, em que o educador, no caso pesquisador, é mediador do conhecimento por intermédio do diálogo; no construtivismo (PIAGET, 1966, 1967, 1971, 1973, 1974,VIGOTSKY, 1932, 1996), que compreende as interações educacionais como construção do saber, ou seja, o educando como participante ativo na elaboração do seu conhecimento; e no hereduc (TROYLER, 2010), metodologia criada por cinco países da União Europeia que propõe quatro etapas de aproximação com o patrimônio: 1) ponto de entrada; 2) enchendo sua mochila; 3) desenvolvendo uma solução; e 4) resultados. Na adaptação do hereduc para utilização nesta pesquisa, optou-se por fazer as etapas ponto de entrada (1) e desenvolvendo uma solução (3) como na proposta original, ou seja, aplicando uma intervenção em que o estudante registra o que é solicitado, por meio de desenho, escrita ou os dois; em seguida, faz-se um círculo de cultura para que as ideias individuais sejam expostas para o grupo. A fase enchendo sua mochila (2) foi planejada com uma sequência de atividades para aprofundamento dos temas propostos. O resultado (4) foi comum a todos os temas, um storyboard seguido de um círculo de cultura. Os temas geradores foram: museu, porto, arqueologia e arqueologia subaquática. Cada etapa ponto de entrada e desenvolvendo uma solução teve questões a serem observadas (Quadro 1). Quadro 1: Questões norteadoras para os pontos de entrada e os desenvolvendo uma solução dos temas geradores.
Como pressuposto principal, partiu-se da ideia de que os envolvidos no processo já possuíam alguma opinião sobre os temas geradores e que havia um
Fonte: O autor.
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A participação em museus: contribuição da recepção para a musealização da arqueologia marítima
conhecimento sobre museus, sendo possível observar o que gostavam ou não nessa instituição. Procurou-se perceber também a relação que os estudantes possuíam com o Porto e a maritimidade da cidade, bem como identificar o que sabiam sobre arqueologia, o trabalho do arqueólogo e a arqueologia subaquática.
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Para a coleta de dados, a partir dos pontos levantados, optou-se por intervenções que unissem os círculos de cultura a outras estratégias, como desenho, listas de palavras e perguntas, que eram realizadas individualmente, em dupla ou em trio. O tema gerador era lançado para os estudantes sem que esta pesquisadora fizesse qualquer comentário sobre o assunto. As atividades desenvolvidas em papel precediam o círculo de cultura, porque o objetivo era que as crianças elaborassem internamente suas concepções antes de expô-las ao grupo. As discussões a partir dessas produções iniciavam no círculo, com todos sentados em roda, no chão, e ofereciam a oportunidade de todos os alunos verbalizarem o que pensaram para elaborar o desenho, ou a lista, ou responder à questão proposta. Os pontos a serem observados norteavam a coleta de dados, mas era necessário ter atenção a detalhes que não haviam sido previstos. Isso porque, ao fazer pesquisa com o público utilizando estratégias não quantitativas, é preciso estar aberto para perceber detalhes que não fazem parte da hipótese do pesquisador. Outra questão é que nos círculos de cultura iniciais havia um enorme cuidado em observar o que os estudantes colocavam verbalmente para o grupo sem acrescentar o que esta pesquisadora pensava a respeito dos temas geradores. Já nos momentos seguintes ao ponto de entrada – intervenções de enchendo sua mochila, com diferentes estratégias realizadas para que o grupo aprofundasse seus conhecimentos sobre o tema –, a pesquisadora apresentava um pouco de seus conceitos. No entanto, ressalta-se que o objetivo era que o estudante enchesse sua mochila individualmente, por meio de ações que o permitiria construir os conceitos dos temas geradores, tendo o pesquisador como mediador do processo. Por fim, a intenção dos círculos de cultura finais não era saber o quanto foi aprendido, mas, reconhecendo que os educandos possuíam conhecimentos prévios sobre os temas e encheram suas mochilas, verificar se eles ofereceriam novos dados de coleta – hipótese que foi confirmada ao longo das intervenções. No Quadro 2, observa-se como o multimétodo foi aplicado na prática. Para cada tema gerador organizou-se uma sequência de intervenções, ou seja, atividades específicas visando aprofundá-lo. Os dados foram coletados nas etapas ponto de entrada e desenvolvendo uma solução de cada tema, bem como nas intervenções propostas e nos círculos de cultura. As intervenções da fase enchendo sua mochila proporcionaram aos estudantes uma aproximação dos temas geradores. Nas atividades do primeiro tema gerador, sobre museu, com o baú, eles puderam notar que os objetos são dotados de significado. Um texto da Revista Ciência Hoje das Crianças (CAMARA; GRANATO, 2010) sobre museus permitiu conhecer a história dessas instituições e sua relação com o conceito de coleção.
Cristiane Eugênia Amarante
Quadro 2: Síntese das ações realizadas em cada etapa do multimétodo.
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Fonte: O autor.
A participação em museus: contribuição da recepção para a musealização da arqueologia marítima
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A visita da museóloga Marília Xavier Cury, que levou para o grupo a maquete e o catálogo da exposição Brasil 50 Mil Anos – Uma Viagem ao Passado Pré-Colonial (2001), causou grandes surpresas, pois puderam conhecer a intencionalidade no processo de montagem de uma exposição. Uma visita ao Museu do Porto finalizou o estudo do tema gerador, e notou-se que os estudantes tiveram um olhar crítico em relação ao museu levantando pontos positivos e propondo sugestões de mudanças. No segundo tema gerador, porto, as crianças observaram a movimentação de entrada e saída de navios na Barra, no quarto andar da escola, que possui vista panorâmica para a Baía de Santos. Também observaram fotos antigas do Porto e registraram sensações que elas lhes transmitiam; ao organizá-las cronologicamente, reconheceram as permanências e mudanças no Porto de Santos. Assistiram a um vídeo de dez minutos sobre a história do Porto (O PORTO, 2010) e ao curta-metragem, de mesma duração, Brevíssima História das Gentes de Santos (BREVÍSSIMA, 1996), que conta a história da cidade em tom cômico. Ao longo da semana, fizeram atividades sobre o Porto no material didático que utilizavam1 e, por fim, realizaram estudos do meio: a pé, às margens do Porto de Santos, e no mar, utilizando um transporte marítimo pequeno comumente utilizado na região e chamado pelos moradores de catraia. O terceiro tema gerador foi arqueologia. Os alunos entraram em contato com um kit de objetos arqueológicos produzido pelo setor educativo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP) e também observaram as pranchas elaboradas pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia (MAE/UFBA). Os estudantes conheceram o trabalho do arqueólogo nas várias etapas, além de diferentes tipos de artefatos e sítios arqueológicos. O curta-metragem sobre uma escavação no Engenho São Jorge dos Erasmos (ENGENHO, 2002) contextualizou o que se havia observado nas intervenções anteriores. Para finalizar, foi realizado um roteiro arqueológico no Centro Histórico de Santos, com a identificação de diferentes sítios arqueológicos, contextualizados pelo uso de fotografias antigas e de escavações atuais nos locais correspondentes. A arqueologia subaquática foi o quarto e último tema gerador. A primeira intervenção foi um artigo da Revista Ciência Hoje das Crianças (CAMARGO; CAMARGO, 2010) sobre o tema, com dados sobre as adaptações do trabalho do arqueólogo em ambiente aquático. Uma atividade com fotos de escavações em ambiente submerso permitiu aprofundar métodos e técnicas de pesquisa: solicitou-se aos alunos que observassem as fotos e tentassem identificar o que os arqueólogos estavam fazendo. O trabalho do tema se encerrou com a visita do arqueólogo subaquático, um dos autores do texto lido pelo grupo, Paulo Fernando Bava de Camargo, que trouxe roupas de mergulho para as crianças conhecerem. Elas puderam observar e experimentar algumas peças, bem como fazer perguntas ao arqueólogo, tais como: “Dá para mergulhar à noite?”; “Como se escreve embaixo d’água?”; “Você prefere arqueologia na terra ou na água?”. Após responder as perguntas, Paulo Bava apresentou o trecho de um vídeo que 1 O material didático utilizado pelos estudantes, intitulado Santos: Vivenciando a História e a Geografia, foi elaborado em 2005 por Adriana Negreiros Campos e Cristiane Eugênia Amarante enquanto fizeram parte da Equipe Interdisciplinar da Secretaria Municipal de Educação. O material foi distribuído gratuitamente aos alunos da rede municipal de ensino de Santos até o ano de 2012.
Cristiane Eugênia Amarante
mostrava a escavação submersa em um naufrágio, em Santa Catarina. As intervenções de enchendo sua mochila eram comentadas pelos alunos nos dias seguintes, conforme o relato da professora Ana Paula. Essas experiências enriqueciam o repertório dos estudantes e isso foi observado nos círculos de cultura do desenvolvendo uma solução. Por meio dessas etapas, experimentaram-se estratégias diferenciadas de coleta de informação. As análises, apresentadas na sequência, possibilitam reconhecer o amadurecimento do grupo em relação aos temas geradores propostos. Análise No tema museu, a coleta de dados inicial aconteceu com uma intervenção com desenhos sobre museu. Os alunos reproduziram o Museu do Café2, em Santos, o qual já tinham visitado (dos 21 desenhos, 15 remetiam a essa instituição). Em outras representações, os estudantes mostraram o museu como um acúmulo de objetos que, aos olhos desta pesquisadora, eram desconexos entre si. Somente um desenho mostrou os visitantes no museu. Foi possível observar nos desenhos algumas noções de recursos expográficos, como estantes e vitrines, bem como a utilização de manequins de pessoas e modelos de animais pré-históricos. No círculo de cultura, momento em que os desenhos foram tomados como base para a conversa, notou-se que eles realmente tinham o Museu do Café como um bom exemplo de museu. Também foi possível reconhecer que possuíam outras referências, principalmente a partir de filmes e desenhos, tais como o filme Uma Noite no Museu e o desenho Phineas e Ferb. Na coleta de dados final do tema museu, a modificação mais marcante nas representações desenhadas foi a presença de visitantes no museu. Na primeira intervenção, observou-se somente um desenho com essa característica; já na segunda produção, após o enchendo sua mochila, seis desenhos representavam pessoas visitando o museu. Um conceito que se fez presente na segunda intervenção foi o de coleções, pois as discussões e o texto da Revista Ciência Hoje das Crianças, na etapa enchendo sua mochila, aprofundou essa noção (CAMARA; GRANATO, 2010). Nas primeiras produções, existiam objetos relacionados somente quando se referiam ao Museu do Café. Na segunda intervenção, apareceram outras coleções, tais como: objetos de terror, como esqueletos, fantasmas, abóboras; outra produção retratava somente objetos infantis, como bonecas e outros brinquedos. No círculo de cultura, os alunos disseram que aprenderam muito sobre os museus. Observou-se que as ideias amadureceram, inclusive a consciência crítica, pois uma das crianças citou a falta de cuidados com os museus como algo negativo. Além disso, também destacaram muitas vezes o uso da tecnologia nos museus e questionaram se esses recursos eram necessários realmente. Eles lembraram que a tecnologia permite aproximações muitas vezes impossíveis no mundo real, como a reprodução de modelos de dinossauros em tamanho real com movimentos e sons. 2 Instituição museológica da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo que funciona no antigo prédio da Bolsa Oficial do Café, uma construção em estilo eclético, de 1922, situada no Centro Histórico de Santos.
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A coleta inicial do tema porto foi a elaboração de listas de cinco palavras ou frases: a maior parte delas fez referência aos produtos exportados e importados; nenhuma abordou as funções de trabalho; em algumas, observou-se a presença de palavras como “carrega”, “leva”, “transporta”, “voltam”, que revelam a percepção de que importação e exportação são atividades dinâmicas.
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Uma das listas de palavras ou frases apresentou uma ideia mais completa das funções do Porto: a dupla escreveu que “no Porto passa trem, os navios descarregam lá, tem contêineres dentro do navio, dentro do contêiner tem alimentos e tem bastante caminhões”. Há nessa sequência traçada pelos alunos uma noção sobre o transporte e a rede de relações envolvidas na movimentação portuária, o que revela que as crianças dessa idade são capazes de elaborar conceitos complexos a partir do conhecido e que existe uma elaboração de ideias importante a ser levantada antes de qualquer intervenção do pesquisador. Ainda no tema porto, o círculo de cultura se limitou à leitura das listas, tanto no ponto de entrada como no desenvolvendo uma solução. Na coleta final, as listas ficaram mais complexas, inclusive a maior parte delas trouxe frases e não palavras, ao contrário das iniciais. O foco das palavras e frases não foi mais nos produtos em si (café, soja, roupas e outros): embora ainda tenham aparecido, estavam relacionados a outras palavras, como o tipo de maquinário utilizado, por exemplo. Em outras produções, dessa vez, houve menção ao trabalhador portuário, chamado de carregador de café, função similar a de estivador. Em uma das listas apareceu a frase: “O Porto é o que dá vida a cidade”, ideia bem mais elaborada sobre a ligação entre o Porto e a cidade de Santos. As frases também abordaram aspectos de permanências e mudanças: “quando aumentou ficou mais bonito”, referindo-se à ampliação do Porto ao longo dos anos; “depois que o barco tem motor ficou mais rápido”, alusão às mudanças tecnológicas de construção naval. Notam-se outras listas com noções mais amplas sobre importação e exportação, como nos exemplos: “ele leva carga para outros países”, “o Porto é entrada e saída de cargas”, “ele traz coisas novas de outros países”. A primeira intervenção do tema arqueologia foi realizada com questões sobre o trabalho do arqueólogo, como: “O que os arqueólogos pesquisam e procuram?”; “Como os arqueólogos trabalham?”; “Quais instrumentos usam?”; “Por que a arqueologia é importante?”. As respostas mostraram um conhecimento sobre o assunto, mas o ponto central foram as escavações.Também houve menção ao trabalho de laboratório e ao fato de que o arqueólogo pesquisa coisas do passado. Na coleta final do tema arqueologia, em que as mesmas questões foram retomadas, notou-se um aumento no uso da palavra “pesquisa” em relação às intervenções anteriores de enchendo sua mochila. Os alunos ainda acrescentaram termos técnicos, tais como “campo” e “sítio”. Em comparação às respostas da primeira intervenção, apareceram expressões que se referiam aos artefatos arqueológicos, como pratos, talheres e garfos. Também utilizaram frases que demonstram noção do processo de pesquisa: “eles pesquisam a terra antes de desenterrar”; “eles estudam as coisas primeiro”; “eles acham, cavam, e depois desenham”; “uns desenham, outros limpam, outros escavam”.
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Uma questão que se ampliou foi a noção do espaço de trabalho do arqueólogo, conforme se observa nas seguintes frases: “trabalham nos sítios”; vão aos sítios”; eles estudam no campo para pesquisar as coisas”. Surgiram também colocações voltadas para a importância do patrimônio arqueológico e de preservação do passado: “nós ficamos sabendo do passado e de coisas importantes para nossa vida”; “eles trabalham em coisas que interessam as pessoas”; “[a arqueologia é importante] para as pessoas que nascem saberem que coisas antigas são importantes”; “[é importante] porque vai passando de geração”. No círculo de cultura sobre o tema, uma aluna completou: “aquilo que estava enterrado há muito tempo e parecia que não tinha valor, 'pra' o arqueólogo e 'pra' gente tem muito valor!”. Na coleta inicial sobre o tema arqueologia subaquática, tanto nas intervenções quanto no círculo de cultura, ficou claro que, para os alunos, arqueologia subaquática significava arqueologia embaixo da água. Em nenhum momento, tocaram no assunto caça ao tesouro, como alguns poderiam supor, uma vez que em experiências semelhantes com adultos essas colocações são frequentes, conforme arqueólogos subaquáticos relatam em palestras. Na coleta final, as produções ficaram mais ricas e detalhadas. Em muitos desenhos, apareceu o arqueólogo realizando um procedimento de campo. As metodologias foram sendo aprendidas e discutidas cada vez mais, tanto com esta pesquisadora, quanto com o arqueólogo3 que os visitou para expandir os conhecimentos sobre o tema. Resultados O objetivo de cada intervenção foi a coleta de dados. Observou-se que cada tema teve sequências ricas de diálogos nos círculos de cultura e informações relevantes nas produções de desenhos, listas de frases e respostas a questionamentos feitos pela pesquisadora. As leituras de texto e atividades dos momentos de enchendo sua mochila ampliaram as discussões iniciais – aliás, era exatamente esse o intuito dessas ocasiões –, e notou-se que a estratégia funcionou, pois havia aprofundamentos conceituais e novas reflexões sobre o assunto após cada fase de atividades, conforme analisado nas produções e nos círculos de cultura. O círculo de cultura com as informações mais ricas foi o último. Foi informado aos alunos que em outra oportunidade eles diriam como deveria ser um museu de arqueologia marítima para Santos. Imediatamente o grupo começou a dar várias sugestões, que, posteriormente, foram analisadas e convertidas em propostas museológicas. Entre as ideias levantadas está a ambientação de um museu. As sugestões foram desde a criação de um museu colorido à concepção de um espaço 3D. Eles indicaram ainda a colocação de manequins representando pessoas que viveram no passado e de arqueólogos em campo para facilitar a comunicação do passado e do fazer arqueológico. 3 Os estudantes receberam a visita do arqueólogo subaquático Paulo Bava de Camargo para discutir sobre o trabalho do arqueólogo. Para aprofundar o tema museu, os estudantes conversaram com a museóloga Marília Xavier Cury.
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Alguns alunos falaram sobre a importância de destacar as reconstituições de sítios arqueológicos, com um arqueólogo explicando. Sabe-se que a presença de um arqueólogo em uma exposição é difícil, mas é possível de acontecer esporadicamente ou permitir que um educador do suposto museu participe de escavações, para que possa falar delas com propriedade. Também pode ocorrer o diálogo do arqueólogo com o público não acadêmico em diferentes situações, basta que a organização do museu se disponha a planejar tais ações no próprio museu ou no sítio arqueológico. Aliada à sugestão anterior, houve também a opinião de um sítio interativo: “podia ter uma parte de baixo e uma parte de cima para as pessoas poderem escavar”. Ora, um sítio preparado no espaço externo do museu seria possível, assim como provam os sítios-escola e outros em espaços museais, a exemplo do que ocorre no Museu do Sambaqui de Joinville4. Eles também propuseram ambientação no museu para que houvesse a sensação de se estar próximo ao mar: “o museu é silencioso. No museu a gente não vê o mar...”. Além dessas ideias, houve menção à criação de um espaço para transmissão de vídeo e apresentações de teatro que remetessem ao passado. Como estratégias expográficas, recorreram também aos painéis: “podia ser um museu que não tivesse só objetos. Podia ter painéis e várias outras coisas. (...) Podia ter nas paredes uns desenhos da história de Santos”. Esse recurso se complementa às várias citações dos alunos sobre o impacto das fotografias de grandes proporções, conforme se observou no diálogo com o grupo sobre suas visitas aos museus. Outra preocupação dos estudantes, exposta no círculo de cultura, foi em relação à estrutura do museu. Eles sugeriram a criação de um setor de pesquisa, de uma biblioteca e de uma videoteca: “podia ter arqueólogos no museu”; “podia ter uns vídeos sobra arqueologia”; “podia ter livros sobre arqueologia”. Em linguagem simples, as crianças recomendaram a criação de um museu completo. Além de uma boa estrutura, propuseram um espaço de interação entre pesquisadores e não acadêmicos, com uma linguagem que aproxima o público da ciência não simplesmente como expectador, mas como participante e coautor das experiências museológicas. Considerações finais A grande contribuição deste estudo de recepção foi o levantamento de dados com o público infantil. As crianças, de 9 anos, ou seja, dentro do período operatório de construção do conhecimento, de 7 a 11 anos (PIAGET, 1966, 1967, 1971, 1973, 1974), baseiam-se no concreto para ordenar ideias; mas suas elaborações já são complexas, pois possuem reversibilidade, isto é, percebem relações de causa e efeito. Essa base no mundo concreto facilita a pesquisa museológica. As respostas dadas pelo grupo que participou da pesquisa trouxeram resultados além do esperado inicialmente, pois foram capazes de sugerir um museu com características bastante refinadas, tanto em termos de exposição quanto de estrutura museológica. 4 Museu situado na cidade de Joinville, Santa Catarina, onde são desenvolvidas atividades em um sítio experimental elaborado pela equipe de educação.
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Nesta proposta foi preciso criar metodologias que dessem conta de um objeto de estudo bastante complexo. Para tanto, as intervenções realizadas foram múltiplas, visando cercar o tema em diversos aspectos, tentando compreender o universo cultural do grupo e ao mesmo tempo coletar informações, como propósito da pesquisa. A pesquisa desenvolvida5, cujos resultados foram apresentados parcialmente, insere-se em um campo que ainda tem muito a expandir em termos metodológicos, pois grande parte dos estudos se desenvolve por questionários. Estes são necessários e possuem sua importância, mas devem ser reavaliados como prática, complementados e, dependendo do público e das situações, podem ser substituídos por estratégias que permitam a interação efetiva com os não acadêmicos em um universo em que se coleta a informação, ao mesmo tempo em que se ensina, criando-se assim uma situação criativa e um diálogo entre entrevistados e entrevistador, permitindo uma variedade e qualidade de dados. Oferecer informação ao público nos momentos de coleta não significa induzi-lo. Se bem planejadas e conduzidas, as intervenções permitem a ampliação do debate sobre os temas discutidos, uma vez que os participantes são instigados a participar e alimentados para elaborar. Entende-se que são justamente essas situações que devem ser criadas, para que a coleta de dados se torne mais eficiente e os dados mais eficazes. Por isto esta pesquisa se insere no universo dos estudos culturais: não se trata de recolher informação pura e simplesmente, mas compreender o universo cultural do visitante do museu e dialogar com as temáticas diversas propostas pela instituição, sendo ela de arqueologia, ou de qualquer outra modalidade. Referências bibliográficas AMARANTE, Cristiane Eugênia da Silva. Refletindo sobre musealização: um encontro entre público e arqueologia marítima em Santos. 2013. Dissertação (Mestrado) – Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é método Paulo Freire. São Paulo: Brasiliense, 2005. BREVÍSSIMA História das Gentes de Santos. Direção: André Klotzel. Produção: Marçal Souza. Intérpretes: Ney Latorraca, Daniela Souza, Zelus Machado, e outros. Narração: José Rubens Chachá. Roteiro: José Roberto Torero. Música: Mário Manga. São Paulo: Cinematográfica Filmes, 1996. 1 DVD (14 min), color., 35mm. CAMARA, Roberta; GRANATO, Marcus. Uma casa para colecionadores de tesouros: como surgiram os museus? Revista Ciência Hoje das Crianças, São Paulo, n. 211, p. 2-5, abr. 2010. CURY, Marília Xavier. Os usos que o público faz dos museus. A (re)significação da cultura material e do museu. MUSAS − Revista Brasileira de Museus e Museologia, Rio de Janeiro: IPHAN, DEMU, v. 1, n. 1, p. 87-106, 2004. 5 Dissertação de mestrado desta autora (AMARANTE, 2013), base para este artigo, defendida no MAE/ USP com orientação da dra. Marília Xavier Cury.
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_____________________. Comunicação museológica: uma perspectiva teórica e metodológica de recepção. 2005. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
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_____________________. Para saber o que o público pensa sobre arqueologia. Revista Arqueologia Pública, São Paulo, n. 1, p. 31-48, 2006. _____________________. Exposição – Concepção, montagem e avaliação. 2. ed. São Paulo: Annablume. 2008. ENGENHO dos Erasmos: Imagens da Redescoberta. Direção: Sílvio Cordeiro e André Costa. São Paulo: Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo/Olhar Periférico: grupo de estudos audiovisuais, 2003. 1 DVD (21 min), MiniDV, NTSC. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ____________. Pedagogia da autonomia – Saberes necessários a prática educativa. São Paulo, Brasil: Paz e Terra (Coleção Leitura), 1997. MERRIMAN. Nick. Public Archaeology. Published by: Taylor & Francis, 2004. MORAES WICHERS, Camila Azevedo de. Patrimônio arqueológico paulista: proposições e provocações museológicas. 2011. Tese (Doutorado em Arqueologia) – Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. O PORTO de Santos – Navegando pela História. Direção: vários autores. São Paulo: Neotrópica, 2010. 1 DVD (26 min). PIAGET, Jean. A construção do real na criança. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1974. ____________. A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. ____________. A linguagem e o pensamento da criança. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1973. ____________. O raciocínio na criança. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1967. ____________. O nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1966. TROYLER, Veerle de (Org.). Heritage in the classroom: a practical manual for teachers (the complete book). Het Gemeenschapsonderwijs: Internationalisation Departmentent, 2005. Disponível em: <http://www.hereduc.net/hereduc/i18nfolder.2005-04-15.8911096798/>. Acesso em: 4 dez. 2010. VARINE, Hugues de. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do desenvolvimento local. Porto Alegre: Medianiz, 2012. VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1996. _______________. Pensamento e linguagem. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1998.
Artigo recebido em março 2015. Aprovado em abril 2015
CURADORIA DO ACERVO PALEONTOLÓGICO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE Débora Diniz1 Helena loewenstein2 Paula C. Dentzien-Dias3 RESUMO: O acervo do Laboratório de Geologia e Paleontologia (LGP) é formado, em sua maioria, por fósseis da Planície Costeira do Rio Grande do Sul (PCRS). Estudos vêm sendo desenvolvidos desde meados da década de 1990 sobre este acervo, a despeito dos quais muitos trabalhos ainda devem ser realizados. Para que esta coleção seja internacionalmente conhecida, um amplo trabalho de normatização tem sido desenvolvido a fim de identificar e catalogar os fósseis depositados neste laboratório. Estes fósseis foram distribuídos em 21 classes taxonômicas, cada representada por uma letra. Até o momento 5806 peças/lotes já foram devidamente identificadas e tombadas. Os táxons mais representativos são os invertebrados, principalmente Mollusca e Echinodermata. Outros táxons incluem Teleostei, Chondrichthyes, Toxodontidae, Litopterna, Gomphoteriidae, Artiodactyla, Perissodactyla, Xenarthra, Carnivora, Cetaceae, Testudinata, e Aves. O grande desafio desta coleção é a normatização dos dados, visto que nunca houve uma metodologia de coleta estabelecida. Dados como procedência e data de coleta estão faltando, bem como quem os coletou e identificou. Grande parte destes fósseis foi coletada nas praias do litoral central e sul do Rio Grande do sul. Os fósseis são catalogados, etiquetados e armazenados em condições que garantam a integridade dos espécimes e sua disponibilidade para pesquisadores e estudantes. Para a continuidade do processo de identificação, parcerias dentro da instituição e com grupos da América Latina são de grande importância. Esta coleção possui um grande potencial científico, pois muitos fósseis ainda carecem de estudos aprofundados. PALAVRAS-CHAVE: Quaternário, Curadoria Científica, Vertebrados Marinhos e Continentais, Invertebrados marinhos, Icnofósseis
ABSTRACT: The Laboratório de Geologia e Paleontologia (LGP)’s collection is mainly formed by fossils from the Rio Grande do Sul Coastal Plain (RSCP). Many studies have been developed about this collection since the 1990s, however a lot of research for new studies need to be done. For this collection to be internationally known, a wide work of normative is being developed to identify and catalog the fossils of this laboratory.These fossils were distributed in 21 taxonomic classes, each one represented by a letter. Until now, 5806 fossils/groups were identified and registered. The invertebrates are the most representative taxonomic group, specially the Phyla Mollusca and Echinodermata. Other taxa include Teleostei, Chondrichthyes, Toxodontidae, Litopterna, Gomphoteriidae, Artiodactyla, Perissodactyla, Xenarthra, Carnivora, Cetaceae, Testudinata and Birds. The biggest challenge in this collection is the normative of the data, once the laboratory has never established a collection methodology. Some data, as origin and date of collect are missing, as well as who collected and who identified. However, is known that most part of the fossils was collected on the beaches of the central and south coast of Rio Grande do Sul. The fossil specimens are catalogued, labeled, and stored in conditions that will ensure their protection and availability to researchers and students. To continue the process of identification, partnerships inside the institution and with other groups of Latin America are very important. This collection has a big scientific potential, once many fossils still need to be studied deeply. KEY-WORDS: Quaternary, Scientific Curation, Marine and Continental Vertebrates, Marine invertebrates, Ichnofossils.
1 Doutoranda em Oceanografia Física, Química e Geológica, Instituto de Oceanografia, FURG, Rio Grande, RS. dede.p.diniz@gmail.com. Avenida Itália, s/n, Campus Carreiros, CEP 96203-900, Rio Grande, RS. 2 Graduanda em Oceanografia, Instituto de Oceanografia – FURG, Rio Grande, RS. 3 Doutora em Geociências, Instituto de Oceanografia – FURG, Rio Grande, RS.
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Curadoria do Acervo Paleontológico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Introdução
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Uma coleção científica deve conter os espécimes devidamente tratados, de acordo com as características do acervo; documentado, na forma de um livro tombo, para que as informações sejam preservadas; ser acessível; ter sua integridade, longevidade e qualidade asseguradas para pesquisas futuras (DOU, 2007; Carvalho, 2010).A fim de assegurar que os fósseis depositados na FURG atendessem a estes requisitos, deu-se início em 2012 a um extenso trabalho de limpeza, organização e catalogação de todos os espécimes. As coleções paleontológicas possuem um caráter único, pois todos os espécimes são insubstituíveis, devendo ser compreendidos como registros da história da vida em nosso planeta (Carvalho, 2010). Isto significa que todas as peças da coleção são importantes registros, não somente os holótipos, espécime tipo para a identificação de uma espécie, e parátipos, espécimes tipo pertencente ao mesmo lote do holótipo. Além do caráter científico, estas coleções despertam grande interesse da comunidade em geral. É notável que, quando abertas ao público, as coleções paleontológicas recebem grande número de visitantes (Figurelli, 2011; Ziemann et al., 2013), sejam leigos ou especialistas, além do interesse de escolas de ensino fundamental e médio (Almeida et al., 2013; Melo, et al., 2007; Santos e Carvalho, 2013). Várias coleções paleontológicas já estão exercendo seu poder transformador e informativo sobre as comunidades residentes no entorno de universidades e museus, bem como aquelas residentes em regiões de afloramento (Kellner, 2005). Experiências assim são notáveis no Ceará (Viana et al., 2005), Piauí (Dentizien-Dias, 2011), Espírito Santo (Almeida et al., 2013), entre outros. O trabalho de curadoria em uma coleção científica paleontológica não deve ser compreendido somente como responsabilidade de guarda e manutenção desta coleção (Carvalho, 2010). O curador deve também estar envolvido em atividades de ensino e pesquisa de modo a multiplicar o conhecimento dos espécimes da coleção e formar mais profissionais capacitados ao estudo paleontológico. A preparação dos fósseis para que estes sejam englobados em coleções pode ser bem variável. Ela está diretamente relacionada com a matriz sedimentar em que o fóssil se encontra e com o objetivo da pesquisa em curso. Muitas técnicas podem ser usadas, porém não há padronização e tampouco disponibilidade de equipamentos específicos para estes procedimentos (Nobre e Carvalho, 2010). A coleção paleontológica de Laboratório de Geologia e Paleontologia (LGP) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) existe desde meados da década de 1970, porém nenhum trabalho extensivo de catalogação havia sido realizado. Somente em meados da década de 1990, houve a apresentação de monografias e projetos de iniciação científica (Buchmann & Itusarry, 1994; Oliveira & Itusarry, 2001; Caron et al., 2004; Lima et al., 2004; Mesquita & Itusarry, 2004; Lopes & Itusarry, 2006) com os fósseis desta coleção.Ao longo dos anos, com a formação de alunos de graduação dos cursos de Oceanologia e Geografia, vários métodos de catalogação foram usados, mas nenhum deles foi adotado como padrão. Este trabalho objetiva a disseminação do conhecimento adquirido e armazenado na FURG ao longo dos 40 anos de trabalhos de campo e coleta de fósseis, bem como o trabalho de curadoria que vem sendo desenvolvido nos últimos anos. Proveniência dos fósseis do LGP-FURG As principais áreas de coleta de fósseis estão localizadas ao longo da Planície Costeira do Rio Grande do Sul (PCRS).A formação geológica desta região está diretamente associada com as oscilações do Nível Médio do Mar (NMM) durante o Quaternário.Ao longo dos últimos 400.000 anos, os processos de regressão e transgressão marinha formaram quatro sistemas Laguna-Barreira (Villwoch & Tomazelli, 1995) e, concomitantemente, deram margem à preservação de vestígios de animais que habitaram esta região neste intervalo de tempo. O Sistema Laguna-Barreira I, o mais antigo, é denominada Barreira das Lombas (Figura1). Embora provavelmente tenha se desenvolvido por uma região mais ampla, atual-
Débora Diniz, Helena loewenstein, Paula C. Dentzien-Dias
mente restringe-se a uma área da porção noroeste da planície costeira. Embora no afloramento a maior parte das estruturas sedimentares primárias tenha sido destruída, é possível observar a ocorrência de estruturas biogênicas, especialmente àquelas relacionadas com o crescimento de raízes (Villwoch & Tomazelli, 1995). O Sistema Laguna-Barreira III (Figura 1) encontra-se muito bem preservado ao longo da planície costeira e seu desenvolvimento foi fundamental para fase final de implantação do Sistema Lagunar Patos – Mirim. Esta barreira é constituída por fácies arenosas interpretadas como sendo de origem praial e marinho raso, recobertas por depósitos eólicos (Villwoch & Tomazelli, 1995). Em muitos afloramentos é notável a ocorrência de Ophiomorpha, associados à Callichirus sp. Fósseis de mamíferos pleistocênicos também são comumente encontrados em associação com os depósitos sedimentares desta barreira (Lopes & Buchmann, 2011; Lopes & Simone, 2012; Hubbe et al., 2013). O Sistema Laguna-Barreira II (Figura 1) corresponde ao primeiro estágio de evolução da Barreira Múltipla Complexa, responsável pelo isolamento do um gigantesco corpo lagunar, atualmente representados pela Lagoa dos Patos e Lagoa Mirim (Villwoch & Tomazelli, 1995). Este sistema é considerado afossilífero.
Figura 1: Mapa da PCRS apresentando a extensão atual dos depostos Laguna-Barreira I a IV e os principais pontos de coleta ao longo da linha de costa. Adaptado de Rosa, Barboza et al. 2011
Por fim, a Laguna-Barreira IV desenvolveu-se durante o Holoceno (Figura 1), consequência da última grande transgressão marinha pós-glacial. Durante o pico transgressivo holocênico, o NMM esteve cerca de 5 m acima do atual, escarpando os depósitos mais antigos e deixando depositada a sucessão de cordões litorâneos regressivos, durante a posterior regressão marinha (Villwoch & Tomazelli, 1995). Atualmente, vários exemplares do registro fóssil do Rio Grande do Sul podem ser encontrados depositados na superfície das praias oceânicas e lagunares do estado. Estes fósseis são oriundos de depósitos submersos, formados durante os processos de transgressão e regressão marinha, bem como por outros transportados pelos rios e lagoas
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costeiras. Estes fósseis não estão depositados em contexto geológico, sendo encontrada grande mistura de temporal. Os principais pontos onde o registro fossilífero é encontrado na PCRS estão assinalados na Figura 1. Note que estão associados normalmente com os inúmeros faróis que estão instalados na linha de praia. Isso ocorre devido à falta de outros marcos topográficos ou aglomerações urbanas nesta região que possam servir de referência para o posicionamento dos pontos de coleta. Uma pequena quantidade de fósseis provém dos depósitos mesozoicos e paleozoicos brasileiros, tendo catalogados representantes do Grupo Bauru (Cretáceo) e coprólitos da Formação Rio do Rasto (Permiano), ambos da Bacia do Paraná. Metodologia Quando coletados nos trabalhos de campo, os fósseis são encaminhados ao Laboratório de Geologia e Paleontologia (LGP) onde são lavados com água corrente, suficiente para remover os acúmulos de areia e secos em temperatura ambiente, quando estes são provenientes da PCRS. Os fósseis coletados nos depósitos continentais são preparados com o auxílio de cinzéis, prospectores e martelos, além de, quando necessário, é utilizado o martelo gravador. Depois de secos e limpos, um pequeno espaço nos fósseis é selecionado e pintado com tinta branca a base de água. Sobre este é escrita à sigla que o identificará junto à coleção. As identificações seguem um padrão taxonômico, onde cada ordem, ou nível taxonômico superior, é indicado por uma letra. Cada fóssil coletado e catalogado foi tombado sob o seguinte padrão: LGP/A – 0000, onde: LGP: acrônimo do Laboratório de Geologia e Paleontologia A: letra variável que representa a identificação taxonômica da peça (Tabela 1) 0000: numeração com quatro dígitos que segue a partir de 0001 para cada nível taxonômico. Tabela 1: Grupos taxonômicos tombados no LGP. Legenda
Coleção de Fósseis do LGP
Taxonomia
Legenda
Taxonomia
LGP/A
Aves
LGP/N
Pampateriidae/Dasypodidae
LGP/AC
Arroio Chuí
LGP/P
Glyptodontidae
LGP/B
Teleostei
LGP/PC
Plataforma Continental
LGP/C
Chondrichthyes
LGP/Q
Mylodontidae
LGP/D
Outros Grupos
LGP/R
Megateriidae
LGP/E
Toxodontidae
LGP/S
Echinodermata
LGP/F
Litopterna
LGP/T
Reptilia
LGP/G
Proboscidae
LGP/U
Carnivora
LGP/H
Icnofósseis
LGP/W
Mollusca
LGP/I
Artiodactyla
LGP/X
Cetacea
LGP/K
Perissodactyla
Fonte: Laboratório de Geologia e Paleontologia da FURG.
Para melhor conservação dos fósseis foram adquiridos quatro novos armários e duas bancadas com armários inferiores, aumentando para nove os locais de armazenamento adequado de fósseis. Fósseis de tamanho mediano (até 10 cm) são armazenados em caixas plásticas formando grupos com afinidade taxonômica e fósseis pequenos (como dentes e coprólitos) são armazenados em caixas plásticas e envoltos por algodão (Figura 2).
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Figura 2: Armazenamento dos fóseis no LGP, após o trabalho de limpeza e identificação. Os fósseis grandes são armazenados diretamente nos armários (A), os fósseis médios, em caixas plásticas (B), e aqueles de pequeno porte (menores que 10 cm) em caixas organizadoras (C e D). Fonte: LGP.
Foi desenvolvido um termo de empréstimo e intercâmbio de materiais seguindo a Instrução Normativa do Ministério do Meio Ambiente (DOU, 2007). Todo termo é impresso em duas vias, sendo assinado pelo curador e pelo pesquisador. Uma via fica com o pesquisador e a outra fica armazenada junto ao Livro Tombo no LGP (Figura 3). Além dessas normatizações da coleção, os curadores vêm realizando cursos de Curadoria e Preparação dos fósseis, a fim de otimizar o trabalho realizado.
Figura 3: Termo de empréstimo usado para a sessão de material fóssil a outras universidades, museus ou pesquisadores, a fim de desenvolverem estudos referentes a estes fósseis. Note que o termo é bilíngue, facilitando a compreensão por pesquisadores estrangeiros. Fonte: LGP.
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Figura 4: Representatividade de cada grupo taxonômico na coleção do LGP.
Resultados O trabalho de identificação e tombamento dos espécimes depositados no LGP está em curso.Até o momento o LGP já possui um acervo documentado de 5806 peças, distribuídos em 21 grupos taxonômicos (Figura 4). Dentre estes grupos taxonômicos estão representadas a megafauna sulamericana, que ocupava a região do sul do Brasil e América do Sul até cerca de 10 ka, e organismos marinhos, que tiveram seu espectro de distribuição alterado pelas variações do nível do mar e climáticas, mas que, em grande parte, ainda são encontrados na região sul do Brasil. Mollusca (LGP/W 0001-0963) é o grupo de organismos invertebrados mais abundantes na PCRS. Os principais registros referem-se à Ostrea puelchana, O. equestris, Crassostrea rhizophorae, C. virginica, além de registros menos numerosos de Amiantis purpuratus, Mactra marplatensis, M. isabelleana, Zidona dufresnei, Adelomelon brasiliana, Pitar rostratus, Glycimeris longoir, entre outras. Alguns trabalhos já foram desenvolvidos no acerco malacológico do LGP sobre a predação de poríferos sobre as conchas (Lopes, 2011), novas identificações importantes de espécies fósseis (Lopes & Simone, 2012) e aspectos tafonômicos dos depósitos malacológicos (Lopes & Buchmann, 2008). Echinodermata (LGP/S 0001-0980) é outro filo invertebrado muito comum na plataforma continental. Grande parte dos registros refere-se equinodermos irregulares, como Encope emarginata e Melita quinquiesperforata. Estes fósseis possuem um alto nível de abrasão, indicando retrabalhamento pela dinâmica costeira.Vários processos de fossilização foram analisados e descritos (Lopes, 2001). Os peixes cartilaginosos, Chondrichthyes (LGP/C 0001-0139) estão representados por dentes e placas dentárias de tubarões e raias. Até agora, encontram-se identificados dentes de Galeocerdo cuvier, Carcharodon carcharias e Myliobatiformes em geral. Os peixes ósseos, Teleostei (LGP/B 0001-0093), compreendem, em sua maioria, registro de peixes marinhos e estuarinos. As principais espécies encontradas são Pogonias cromis e Micropogonias furnieri, além de peixes não identificados das famílias Diodontidae e Ariidae. Os principais fósseis são vértebras,
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otólitos, placas dentárias, escamas e fragmentos de opérculos. Dentre os Reptilia (LGP/T 0001-0021) há a ocorrência somente de Testudinata (tartarugas). Pouco se estudou a respeito destas ocorrências e suas implicações paleoclimáticas para a PCRS. Outros Grupos (LGP/D 0001-0035) é a única categoria que abrange mais um de táxon. Alguns grupos taxonômicos depositados no LGP são provenientes de doações e trabalhos de campo muito específicos, os tornando pouco abundantes. A fim de evitar um número excessivo de categorias, estes táxons foram agrupados. Os principais representantes esta categoria são Titanossauridae provenientes da Formação Marília, Membro Serra da Galga, no estado de Minas Gerais, e Braquiopoda, provenientes da Formação Ponta Grossa Xenarthra foi subdividida em quatro categorias devido a grande quantidade de material pertencente a esta ordem. Pampateriidae e Dasypodidae (LGP/N 0001-0221) foram tatus de grande porte que se desenvolveram na América do Sul. As principais espécies registradas para a PCRS são Pampatherium humboldti, Pampatherium typum, Holmesina paulacoutoi, Holmesina majus, Propaopus sp. e Dasypus sp.. Todos os registros correspondem a osteodermos. Glyptodontidae (LGP/P 0001-0272) foram bastante semelhantes aos tatus gigantes e também habitaram a América do sul até a última glaciação quaternária. Os registros da PCRS englobam Glyptodon reticulatus, G. clavipes, Neuryurus rudis, Panochthus tuberculatus, Doedicurus clavicaudatus e Pachyarmatherium tenebris, em sua maioria osteodermos, além de tubos caudais e falanges. Mylodontidae (LGP/Q 0001-0292) é um grupo de preguiças gigantes extinto. Fósseis de Mylodon darwinii, Glossotherium sp., Catonix sp. e Lestodon sp. já foram coletados na PCRS. Os registros são compostos por dentes, osteodermos, astrágalos, tíbias, úmeros, dentários e metacarpais. Megateriidae (LGP/R 0001-0056) é representado somente por Megatherium sp., do qual são encontrados dentes, falanges, manúbrio, tíbia e parte de um crânio. Os registros de Artiodactyla (LGP/I 00001-0841) abrangem Morenelaphus sp., Antifer sp.,Ozotocrerus sp., além de vários Cervidae e Artiodactyla indeterminados.As principais ocorrências são de fragmentos de galhadas e dentes, além de astrágalos, tíbias, vértebras e naviculocubóides. Os Notoungulata – Toxodontidae (LGP/E 0001-0277) são mamíferos pleistocênicos exclusivos da América do Sul, que se assemelham bastante com os rinocerontes atuais (Lopes and Buchmann 2011). Os registros deste grupo incluem principalmente dentes molares e incisivos, provenientes da região dos Concheiros do Albardão. Os fósseis de Perissodactyla (LGP/K 0001-0194) identificados até o momento são representados, em grande maioria por dentes não identificados de Equidae. Dentre os identificados, constam dentes de Hippidion sp. e Tapirus sp. Os Proboscidea (LGP/G 0001-0139) são representados somente por fósseis de Stegomastodon waringi. As principais ocorrências são de molares e fragmentos de dentes, mas estão catalogados também dentários, tíbias e um processo espinhal de uma vértebra. Cetacea (LGP/V 0001-0120) engloba os fósseis de Mysticeti e Odontoceti. Dentre os misicetos, registram-se vértebras, fragmentos de costelas e discos intervertebrais. Para os odontocetos, os crânios de toninhas (Pontoporia blaivillei) ganham grande destaque. Os Liptoterna (LGP/F 0001-0005) são mamíferos extintos, endêmicos da América do Sul. Os registros são compostos por dentes molares, incisivos e uma vértebra cervical de Macrauchenia patachonica, e um astrágalo de Neolicarphrium recens.
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Na ordem Carnivora (LGP/U 0001-0023) foram encontrados fósseis de animais marinhos e terrestres na PCRS. Para os animais marinhos há representantes das famílias Otariidae e Phocidae. Os registros terrestres, menos frequentes, são representados por dois astrágalos e um úmero, identificados como sendo Smilodon populator. Na classe Aves (LGP/A – 0001-0004) existem somente quatro espécimes catalogados, identificados como três vértebras cervicais e um tibiotarso esquerdo (Lopes et al., 2006), pertencentes à família Thalassarche. Os Icnofósseis (LGP/H 0001-0310) pertencentes à coleção, em sua maioria, são traços fósseis de organismos que ocupam a região costeira. São encontrados rolados nas praias, transportados de regiões mais profundas pelas ondas e correntes costeiras. Cerca de 90% destes registros correspondem a Ophiomorpha, tocas horizontais e verticais características de ambientes rasos, que possuem uma estrutura externa formada por pellets, agrupados de várias formas (Frey et al., 1978; Pollard et al., 1993). Coprólitos provenientes da Formação Rio do Rasto (Dentzien-Dias et al., 2011), da Bacia do Paraná também enriquecem a coleção. Os fósseis procedentes do Arroio Chuí (LGP/AC 0001-0247) foram coletados ao longo de várias campanhas de campo. Esta região é considerada um dos principais afloramentos fossilíferos costeiros do Brasil (Lopes et al., 2009). As peças desta categoria não foram identificadas taxonomicamente até o momento. Isto ocorre devido a grande fragmentação destas peças, a similaridade de alguns fósseis de grupos distintos e da carência de especialistas neste laboratório para identificar os fósseis. A fim de minimizar estas questões, parcerias estão sendo estabelecidas com pesquisadores de diversas instituições para que o processo de identificação seja o mais preciso possível. Todos os fósseis que não possuem identificação taxonomia, exceto os provenientes do Arroio Chuí, estão incluídos na divisão ‘Plataforma Continental’ (LGP/PC 0001 – 0529). Estes fósseis são provenientes de todos os pontos de coleta ao longo da PCRS. Além de todas estas peças identificadas, estão depositadas no LGP algumas caixas contento centenas de fósseis que ainda carecem de identificação. Dentre estes fósseis estão peças de grande valor, seja pelo estado de preservação, seja pela relevância delas para o registro das modificações morfológicas da PCRS e das mudanças climáticas ocorridas ao longo do Quaternário. Dessa forma, toda semana novos fósseis e icnofósseis estão sendo identificados e adicionados à coleção do LGP. O desenvolvimento do termo de empréstimo do LGP foi fundamental para a organização de identificação de todas as peças que estão temporariamente sob guarda de outras instituições e pesquisadores. Além disso, contém todos os dados de contato e tempo pelo qual as peças ficaram emprestadas. Discussão A partir da identificação das demandas existentes no LGP, como a normatização, a disponibilização de espaço e o processo de identificação das peças, algumas medidas importantes têm sido adotadas. Os procedimentos de coleta foram estabelecidos de forma a contemplar todas as necessidades. São anotados dados como data (possibilidade de associação com condições climáticas), coletor e local (para associação com condições de transporte e deposição). É necessário ressaltar que, apesar de serem informações simples, a falta destas compromete os trabalhos científicos que se basearão nestes fósseis.
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O processo de identificação dos fósseis está sendo realizado em parceria com outros pesquisadores da FURG e de outras instituições. A FURG possui grande número de especialistas em Oceanografia Biológica e Biologia, com grande conhecimento dos táxons e de sua distribuição atual. Para os grupos da megafauna pampeana, extintos no fim do Pleistoceno, contatos com instituições e grupos latino-americanos, que possuem experiência internacionalmente reconhecida estão sendo estabelecidas. Uma visita à coleção do Museo de La Plata, vinculado a Universidad Nacional de La Plata já foi realizada e outras estão previstas. Apesar de todos os cuidados com os procedimentos de coleta, as amostras ainda devem ser analisadas quanto à origem geológica. A plataforma continental do Rio Grande do Sul possui alguns paleoníveis de praia (Corrêa, 1996), que estão relacionados a estabilizações no NMM durante a última transgressão marinha pleistocênica. Estes paleoníveis estão, atualmente, sendo retrabalhados pela dinâmica de ondas e correntes da plataforma, fazendo com que seu conteúdo fossilífero seja redisponibilizado e transportado até alcançar a atual linha de praia. Quanto se toma nota da posição de coleta do fóssil não é possível determinar com precisão por quanto tempo ele foi transportado e de qual destas paleopraias é proveniente. Algumas inferências baseadas em análises tafonômicas e no estado de preservação do fóssil podem ser feitas, mas a determinação mais aproximada de idade fica comprometida. As características tafonômicas são um importante meio de buscar identificar o ambiente no qual o organismo foi fossilizado. Analisando características como coloração, substituição química, trincas, e outras marcas, é possível associar o fóssil a um ambiente e, a partir deste, estabelecer uma idade relativa (Simões et al., 2010). Conclusão A curadoria de uma coleção científica, independente de sua natureza, envolve muito mais que somente a limpeza e manutenção do material. Cuidados na coleta, identificação, pesquisa científica e ensino também estão diretamente relacionados com as atividades de curadoria. A coleção de fósseis do Laboratório de Geologia e Paleontologia da FURG é muito rica, contemplando, principalmente, grupos taxonômicos que habitaram o Quaternário do sul do Brasil. Grande parte deste acervo ainda carece de identificação, estando tombando em classes generalistas como Arroio Chuí e Plataforma Continental. Além dos grupos quaternários, estão depositados no LGP fósseis provenientes de outros períodos geológicos. Entretanto, somente estão tombados fósseis de dinossauros do Cretáceo e coprólitos do Permiano. Todavia encontram-se no LGP exemplares de vertebrados proveniente do Triássico e Permiano gaúcho, além de fósseis doados por instituições estrangeiras, coletados a mais de cinco anos, ainda sem número de tombamento. Desta forma fica claro que a organização do laboratório é de suma importância, visto que até o momento não há catalogação destes exemplares. O potencial do laboratório como gerador de pesquisas científicas é evidenciada quando observada a vastidão do acervo. Com as parcerias internas, com pesquisadores da própria universidade, e parcerias externas, como o Museo de La Plata na Argentina, a produção científica tende a ampliar-se, apresentado importantes resultados para o estudo das mudanças climáticas durante o Quaternário. A partir de 2012 a curadoria da Coleção Paleontológica do LGP- FURG está sendo realizada com o maior cuidado para que o potencial desta coleção seja reconhecido nacional e internacionalmente como uma das mais completas acerca do Quaternário Marinho e Terrestre da América do Sul. O desenvolvimento de um Termo de Empréstimo do LGP foi fundamental para a organização da coleção e para evitar a perda de materiais. O armazenamento correto da coleção busca mitigar os
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impactos nocivos de um mau salvamento dos fósseis, evitando quebras e perdas dos fósseis, e facilitando o trabalho dos curadores e pesquisadores.
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Agradecimentos Os autores gostariam de agradecer ao Dr. Renato Lopes, Dr. Francisco Buchmann e Dr. Felipe Caron, que trabalham com o acervo desta coleção e se disponibilizaram a auxiliar na busca por importantes informações. A MSc. Ana Emília de Figueiredo, Dr. Leonardo Ávila, MSc. Dimila Mothé, MSc. Mariela Castro, Biol. Mara Loza e MSc.Victor Eduardo Pauliv pelo auxílio na identificação do material.A Fapergs, através do edital ARD 03/2012, Processo 12/2559-7. Ao CNPq, através do proceso PIBIC/FURG: 146718/2013-5, vigente até 31/7/14. Referências Bibliográficas ALMEIDA, L. F.; ZUCON, M. H.; SOUZA, J. F.; REIS,V. S.;VIEIRA, F. S. Ensino de Paleontologia: uma abordagem não-formal no Laboratório de Paleontologia da Universidade Federal de Sergipe. TERRÆ DIDATICA, Campinas, v. 10, p. 14-21, 2013. BUCHMANN, F. S. C.; ITUSARRY, M. E. G. S. Estudo macrofossilífero na porção sul da planície costeira do Rio Grande do Sul, Brasil. 1994. 82 f. Monografia de Graduação (Oceanografia) - Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande, RS. 1994. CARON, F.; ITUSARRY, M. E. G. S. Aspectos taxonômicos e tafonômicos dos fósseis de vertebrados terrestres (megafauna pampeana extinta) e marinhos (peixes e cetáceos) da Praia do Cassino, RS. 2004. 129 f. Monografia de Graduação (Oceanografia) – Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande, RS. 2004 CARVALHO, I. S. Curadoria Paleontológica. In: Carvalho I. S. (Org.). Palentologia. Rio de Janeiro: Interciência, 2010. p. 397-394 CORRÊA, I. C. S. Les variations du niveau de la mer durant les derniers 17.500 ans BP: l’exemple de la plate-forme continentale du Rio Grande do Sul-Bésil. Marine Geology, v. 130, n. 1, p. 163-178. 1996. DENTZIEN-DIAS, P. C., PRALOM, B. G. N.; SOARES, A.V. S.; FIGUEIREDO, A. E. Q.; LEAL, M. S. Coleção didática de icnofósseis da UFPI-CSHNB, Picos, Piauí. In: Carvalho, I. S. C.; Srivastava, N. K.; Lana, C. C. Paleontologia: Cenários da Vida. Rio de Janeiro: Interciência, p. 733-740. 2011. DOU (2007). Instrução Normativa 160. Ministério do Meio Ambiente, Instituto Brasileiro do Meio ambiente e Recursos Renováveis. Diário Oficial da União, v. 82, n. 1, p. 404-405. 2007. FIGURELLI, Gabriela R.Articulações entre educação e museologia e suas contribuições para o desenvolvimento do ser humano. Revista Museologia e Patrimônio, v. 4, n. 2, p. 97-109, 2011. FREY, R. W.; Howard, J. D.; Pryor, W. A. Ophiomorpha: its morphologic, taxonomic, and environmental significance. Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology, v. 23, n. 1, p. 199-229. 1978. HUBBE, A.; Hubbe, M.; Neves, W. A. The brazilian megamastofauna of the Pleistocene/ Holocene transition and its relationship with the early human settlement of the continent. Earth-Science Reviews,v. 118, n. 1, p. 1-10 118(1): 1-10. 2013. KELLNER,A.W.A. Museus e a divulgação científica no campo da paleontologia.Anuario do Instituto de Geociencias, Rio de Janeiro, v. 28, n. 1, p. 116-130. 2005. LIMA, L. G.; Itusarry, M. E. G. S. Perfil topo-batimétrico da Lagoa Mangueira e adjacências e aspectos estratigráficos relacionados. 2004. 115 f. Monografia de Graduação (Oceanologia) – Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, RS. 2004. Lopes, R. P. Fossil sand dollars (Echinoidea: Clypeasteroida) from the southern brasilian coast. Revista Brasileira de Paleontologia, v. 14, n. 2, p. 201-214. 2001. Lopes, R. P. Ichnology of fossil oysters (bivalvia, ostreidae) from the southern Brazil-
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FUNDAMENTOS DE UM CAMPO DISCIPLINAR: PERSPECTIVAS SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA TEORIA DA MUSEOLOGIA NO ÂMBITO DOS CURSOS DE GRADUAÇÃO DA UNIRIO Bruno Brulon - UniRio
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Elizabeth de Castro Mendonça - UniRio
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RESUMO: A partir da análise do papel da Teoria Museológica nos currículos dos Cursos de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, a pesquisa tem os objetivos de mapear as diferentes perspectivas teóricas que compuseram os projetos pedagógicos dos citados Cursos, e discutir os fundamentos da formação em Museologia a partir do caso do Rio de Janeiro. O artigo defende a hipótese de que a busca por legitimação dos cursos de Museologia, ainda no século XX, no Brasil, teria levado os pensadores do campo a divulgarem no país conhecimentos reconhecidos internacionalmente como Teoria da Museologia (ou Teoria Museológica), ao introduzi-los nos currículos dos cursos. PALAVRAS-CHAVE: Museologia. Teoria Museológica. Formação. Cursos de Museologia.
The foundations of a disciplinary field: perspectives on the development of the Theory of Museology in the undergraduate courses of UNIRIO ABSTRACT: Analyzing the role of the Theory of Museology in the curricula of the Museology Courses at the Federal University of the State of Rio de Janeiro – UNIRIO the present research aims to map the different theoretical approaches that have configured the Courses’ teaching projects, and to discuss the pillars of the Museology training in Rio de Janeiro. The paper sustains the hypothesis according to which the process of legitimation of the Museology courses in Brazil, in the 20th century, have influenced the thinkers of the field to disseminate in the country the knowledge internationally known as the Theory of Museology by introducing it in the courses curricula. KEYWORDS: MUSEOLOGY. Theory of Museology.Training. Museology Courses.
1 Bacharel em Museologia e bacharel e licenciado em História, Mestre em Museologia e Patri-
mônio, Doutor em Antropologia. Professor do Departamento de Estudos e Processos Museológicos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. E-mail: brunobrulon@ gmail.com. 2 Bacharel em Museologia, Mestre e Doutora em Artes Visuais. Professora do Departamento de Estudos e Processos Museológicos e do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO e do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da Universidade Federal de Sergipe – UFS. E-mail: elizabete. mendonca@unirio.br.
Bruno Brulon , Elizabeth de Castro Mendonça
“...one thing is certain: somewhere in the future individual witnessings and annunciations will merge into a compact system ...”1
(Tomislav Šola, 1984)
Historicamente, a concepção da Museologia como disciplina científica independente esteve atrelada à busca concomitante por uma Teoria Museológica entendida como um sistema compacto de conhecimentos integrados. A corrente mais conhecida por sustentar tal perspectiva, proveniente de países do leste europeu e da Europa central, chegou ao Brasil entre os anos 1970 e 1980 e aqui se desenvolveu a partir do processo de legitimação dos primeiros cursos universitários de Museologia no país. O presente artigo defende a hipótese de que a busca por legitimação dos cursos de Museologia, ainda nas últimas décadas do século XX, no Brasil, teria levado os principais pensadores do campo a divulgarem no país os conhecimentos reconhecidos internacionalmente como Teoria da Museologia (ou Teoria Museológica), ao introduzi-los nos currículos desses mesmos cursos, aplicando-os e ajustando-os aos conteúdos voltados aos processos socioculturais locais. A partir da análise do caso particular do Curso do Rio de Janeiro, incorporado, na década de 1970, à estrutura acadêmica da atual Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, buscamos apresentar o desenvolvimento da Teoria Museológica como vem sendo lecionada nessa instituição, enfatizando as suas características próprias e os diálogos com ‘outras teorias’ que foram estabelecidos ao longo dos anos. Tal estudo envolveu primordialmente a pesquisa com os documentos do Curso e, mais especificamente, os sucessivos projetos de Reformulação Curricular apresentados em diversos momentos da sua história, bem como as ementas e conteúdos programáticos que os acompanham. A presente pesquisa não tem como objetivo o de defender a existência de um corpo teórico sustentador da Museologia no Brasil, mas o de buscar entender como a ‘crença’ na existência latente de tal Teoria levou à estruturação do Curso de Museologia citado. Tratou-se de investigar como o corpo de conhecimentos existente foi interpretado e como ele vem estruturando os currículos do Curso e a formação em Museologia. A existência de uma Teoria Museológica no Curso de Museologia da UNIRIO está incontestavelmente atrelada às perspectivas diversas que foram disseminadas e sistematicamente ensinadas pelos pensadores desse Curso, primeiro do gênero no país e na América do Sul, nos anos de sua existência. 1. A formação em Museologia no Rio de Janeiro: entre teoria e prática O termo “Museologia” (inicialmente escrito como “Museulogia”) aparece pela primeira vez no Brasil em documentos do Curso de Museus do Museu Histórico Nacional – MHN, ainda em meados da década de 1930, no Rio de Janeiro (Brulon-Soares, Carvalho, Cruz, 2014).Tendo sido criado para responder a uma demanda do próprio MHN por profissionais com formação especializada para atuar nessa instituição, o Curso de Museus se caracteriza nessa década pelo perfil marcadamente técnico de seus conteúdos que tratavam quase que 1 “...uma coisa é certa: em algum lugar no futuro os testemunhos e anunciações individuais irão fundir em um sistema compacto...” (tradução nossa).
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exclusivamente dos diferentes tipos de acervos existentes no MHN. A partir de 1933, Gustavo Barroso (1888-1959), então diretor do MHN e do Curso de Museus, passa a ministrar a disciplina Técnica de Museus, primeira cadeira do Curso que tratou dos aspectos técnicos da prática em museus de modo geral2.
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O número da revista Les Cahiers de la République des Léttres des Sciences et des Arts, de Paris, único testemunho existente dos conteúdos iniciais da disciplina Técnica de Museus, consultado por Barroso para a sua formulação, tratava de questões centrais para o campo dos museus no início da década de 1930, apresentando “concepções museográficas” diversas e contemplando temas modernos como a função da “educação social”, a “utilização científica das coleções” e o papel dos museus nacionais como “instrumentos de propaganda” (D’Espezel & Hilaire, 1931: 5-12). Com a primeira Reformulação estrutural do Curso, em 1944, a disciplina Técnica de Museus foi ampliada para os três anos de duração do mesmo. Em 1946, Barroso publica a obra Introdução à Técnica de Museus (1946), em dois volumes, sistematizando os conhecimentos desenvolvidos ao longo dos anos na disciplina. A partir dessa obra, seria o próprio Barroso o responsável por introduzir no contexto brasileiro – com base nos referenciais disseminados por publicações internacionais3 – os conceitos ainda indefinidos de “Museologia” e “Museografia”, em relação à noção preconizada por ele até então de “Técnica de Museus”. No contexto internacional em que diversas publicações apresentavam textos voltados para a prática em museus, os termos “Museologia” e “Museografia” começavam a aparecer com mais frequência, ainda que apresentassem contornos imprecisos. Com a criação do Conselho Internacional de Museus – ICOM, em 1946, uma maior aderência a esses termos iria se manifestar, e a predominância do termo “museologia” ficaria marcada por ser este termo mais usado entre os profissionais dos museus de ciências (Mairesse & Desvallées, 2011). No entanto, apenas na década seguinte iriam se apresentar tentativas efetivas de defini-los precisamente. Em setembro de 1958, um estágio oficial organizado pela UNESCO, pelo ICOM e por autoridades e especialistas do Brasil, sobre a Função Educativa dos Museus, na cidade do Rio de Janeiro, levaria ao amplo debate sobre os termos fundadores do campo. Como resultado dos debates ocorridos nessa ocasião, Georges Henri Rivière, então diretor do ICOM, propôs a definição de Museologia como “a ciência que tem como fim o estudo da missão e organização do museu” e de Museografia como “o conjunto de técnicas em relação com a museologia”4. A definição redigida por Rivière consagra a separação entre uma via prática (a Museografia) e seus aspectos teóricos (a Museologia) (Mairesse & Desvallées, 2 O programa da disciplina em 1934 era dividido em três partes: organização, arrumação, catalogação e classificação. Cf. BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Museu Histórico Nacional. Instruções para matrículas no Curso de Museus. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1941. 3 Principalmente aquelas disseminadas pelo Office international des musées – OIM (Escritório Internacional de Museus) nos anos 1920 e 1930, como por exemplo a revista Mouseion, publicada a partir de 1927. 4 No seu relatório sobre o evento, publicado em 1960, Rivière apresenta as definições fundamentais dos três termos, para o entendimento das conclusões do seminário, a saber, “Museu”, “Museologia” e “Museografia”. A primeira retirada dos estatutos do ICOM em vigor, enquanto as duas últimas baseadas nos debates ocorridos nas sessões do seminário (Rivière, 1960).
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2011: 352). No entanto, a separação conceitual entre Museologia e Museografia ainda estava longe de ser clara, e seria aprofundada nos anos seguintes. Progressivamente, ao longo da segunda metade do século XX, a Museologia passava a ser vista como um corpo de conhecimentos teóricos e práticos, e a Museografia como uma área subsidiária que comporta um conjunto de técnicas dependentes do conhecimento museológico. No Curso de Museus, e sobretudo posteriormente no Curso de Museologia da UNIRIO, essa diferença conceitual seria interpretada e assimilada nos currículos, sendo a Museologia considerada como o termo mais abrangente para abarcar o que mais tarde se chamaria de Teoria Museológica e a Museografia, que continuaria a ser entendida como todo o conjunto de práticas estruturado pela teoria existente. 2. Os Currículos do Curso da UNIRIO e um novo modelo teórico-prático de Museologia Até o final da década de 1960 e início da seguinte se desenvolvem tentativas de se oficializar o uso do termo “Museologia” na nomenclatura do antigo Curso de Museus5. Em 1970, uma Resolução do Conselho Federal de Educação6 estabelece os primeiros Currículos Mínimos7 para cursos de “Museologia” no país. Neste documento, entre as disciplinas recomendadas para um “currículo de museologia”, já se colocava a distinção entre a “Museologia Teórica” e as “Práticas” dos museus. Tal divisão seria adotada pelo Curso do Rio de Janeiro quando, ao longo dessa mesma década, são criadas as disciplinas de Museologia Geral, Museologia e Museografia. Ainda nomeado Curso de Museus, o curso do Rio de Janeiro, em meados da década de 1970, passava por uma importante reformulação, que teria como base o novo Regimento aprovando para o Curso pelo Conselho Federal de Educação, em 6 de dezembro de 1974. Esse Regimento apresentava uma concepção mais ampla e engajada dos museus e priorizava a formação em Museologia. Abandonando a antiga divisão em habilitações de Museus Históricos, Artísticos, Científicos e Escolares Polivalentes, o Curso passa a oferecer uma formação integrada, envolvendo estágios e organização de exposições como partes obrigatórias do novo currículo (Sá, 2007), bem como uma perspectiva mais conceitual do estudo de museus que se refletiu nas novas denominações das disciplinas. O exemplo que aqui mais nos interessa refere-se à Técnica de Museus, que constituía o cerne do Curso e é, então, desmembrada em várias disciplinas 5 Em 1968, o então diretor do MHN, Léo Fonseca e Silva, empenhou-se em mudar a denominação do Curso de Museus para Faculdade de Museologia, tendo encaminhado esta proposta à Câmara de Planejamento do Conselho Federal de Educação. A Câmara pronunciou-se contrária ao projeto de mudança de nome, justificando a necessidade de o Curso estar vinculado a uma universidade e não a uma instituição cultural. É, então, providenciado pelo próprio Fonseca e Silva o anteprojeto de uma Escola Superior de Museologia, que seria apresentado em 1970 ao Conselho Federativo da recém-criada Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado da Guanabara – FEFIEG, que em 5 de junho de 1979 foi institucionalizada com o nome de Universidade do Rio de Janeiro – UNIRIO, e, em 24 de outubro de 2003, teve o seu nome alterado para Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, sendo a sigla mantida (Sá, 2007). 6 Cf. BRASIL. Conselho Federal de Educação. Currículos Mínimos cuja observância é obrigatória a partir do ano letivo de 1970. Resolução C.F.E. 14, de 27 de fevereiro de 1970. 7 O estabelecimento de currículos mínimos fazia parte de um projeto do Ministério da Educação e Cultura de reorganizar o ensino superior através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1961.
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de Museologia e Museografia (separadas sistematicamente), correspondendo à teoria e à prática museológicas. Tereza Scheiner, professora do curso desde início da década de 1970, seria a principal responsável, nesse momento, por reformular e ampliar essas disciplinas que estruturaram a formação em Museologia até o presente (Sá, 2007: 35). Esse modelo adotado pelo Curso de Museologia da UNIRIO foi posteriormente incorporado no então recém criado Curso de Museologia da Universidade Federal da Bahia – UFBA, e em outros cursos que seriam criados seguindo esse modelo teórico-prático. 2.1 Os Currículos vigentes nos anos 1970 e 1980 e a introdução da Teoria Museológica no Brasil Diversas pequenas mudanças na estrutura do Curso de Museus ao longo da primeira metade da década de 1970 iriam culminar com a introdução definitiva de disciplinas dedicadas à Museologia teórica nos currículos adotados a partir de então. Na matriz curricular experimental proposta no ano de 1970 são introduzidas duas disciplinas intituladas de Museologia Teórica I e II8 (do primeiro ano do Curso), que antecediam a também recém criada disciplina de Museologia (do segundo ano) (Sá, Tostes, Martins, 2012-2013), estas equivaleriam, junto à disciplina de Museografia, à antiga Técnica de Museus (Parte Geral) da matriz curricular do ano de 1967. A partir da matriz curricular de 1971, observa-se que é mantida a disciplina Museologia (no primeiro ano) e tem-se o retorno da disciplina Técnica de Museus (no segundo ano do curso). No mesmo ano, uma nova mudança iria transformar as duas disciplinas em Técnica de Museus I e II. Enquanto o programa da segunda disciplina estava voltado para uma série de diferentes técnicas ligadas a classificação, registro, acondicionamento, coleção, restauração, etc., a Técnica em Museus I estava dividido em três partes: (1) Museologia, em que se apresentavam noções da organização, arrumação, catalogação e restauração (parte Geral), além de noções de cronologia, epigrafia, paleografia, diplomática, bibliografia e iconografia (parte Básica); (2) Museografia, dividida em dois módulos voltados para noções relativas a Museus Históricos e Museus Artísticos; e (3) Parte aplicada, em que se ensinavam diferentes técnicas e estudos comparativos com base em coleções de Museus Históricos e Artísticos (Sá, Tostes, Martins, 2012-2013). Na matriz curricular proposta em 1973, essas mesmas duas disciplinas antecediam as disciplinas Museografia I e II, e disciplinas intituladas de Museologia seriam aquelas voltadas a tipos de acervos específicos, tais como Museologia: Mobiliário e Museologia: Arte Sacra. Em 1974, desaparecem mais uma vez as disciplinas de Técnica de Museus, e passam a existir quatro disciplinas das chamadas Museografia (I a IV). Esse é o momento em que no Brasil e no mundo os termos “Museologia” e “Museografia” ainda apresentavam imprecisões em seus usos, mesmo nos cursos especializados. No entanto, cabe apontar que são nos programas de Museografia adotados na primeira metade da década de 1970, no Curso de Museus, onde começam a aparecer os primeiros conteúdos relacionados ao que considera-se hoje como Teoria Museológica. O programa de Museografia 8 Os conteúdos nelas ministrados não puderam ser identificados na pesquisa, visto que não foram encontrados os programas das disciplinas.
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I, do ano de 1974, apresenta tópicos como a “definição” do museu, a “evolução da ideia de Museus”, “o papel do museu na sociedade moderna”, entre outros. A bibliografia adotada incluía a obra Introdução à Técnica de Museus, de Gustavo Barroso, e o livro Museus Brasileiros, de Fernanda Camargo de Almeida, ex-aluna do Curso, além de textos da UNESCO e as Revistas Museum9. Finalmente, uma nova reformulação curricular é consolidada em 1975 introduzindo cinco disciplinas intituladas Museologia (I a V), além de três disciplinas intituladas Museografia (I a III) e a Museologia VII10 e Museografia IV voltadas à Exposição Curricular. O Curso passava a entender a Museologia como o campo mais amplo que abarcava conhecimentos teóricos e a Museografia como o conjunto de práticas ligadas a esses conhecimentos. Curiosamente, os programas de Museologia eram exatamente os mesmos daqueles adotados como os programas das disciplinas de Museografia no currículo anterior – apenas o nome da disciplina é alterado, manualmente, no alto da página, para “Museologia”. Obedecendo ao que havia sido determinado pelo Regimento de 1974 sobre os Currículos Mínimos para o Curso, um perfil mais claro é traçado para cada uma das disciplinas de Museologia: a Museologia I reuniria os conhecimentos sobre a definição do museu e suas características, o prédio do museu e sua Arquitetura, a aquisição de coleções e a formação de acervo; a Museologia II trataria especificamente do “registro, tombamento e catalogação” de objetos, e dos conceitos da exposição; a Museologia III tratava do “planejamento educativo e cultural dos museus”; a Museologia IV, da relação entre o museu e o público e da “comunicação nos museus”; e a Museologia V, dos “museus especializados e seus recursos e técnicas” (Sá, Tostes, Martins, 2012-2013). A partir de 1977, na gestão de Diógenes Vianna Guerra (1977-1985), tem início o efetivo processo de incorporação do Curso de Museus à estrutura universitária. Em 1979 ele já havia sido transferido para o novo prédio do Centro de Ciências Humanas da então Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO)11, passando a se chamar oficialmente Curso de Museologia. A Teoria Museológica passaria a ter um espaço expressivo nos currículos adotados desde então, constituindo o eixo fundamental dos conteúdos do Curso e notadamente aqueles das disciplinas de Museologia. Não se pode ignorar que, paralelamente, no contexto internacional, foi também no final da década de 1970 que começou a se organizar a produção sistemática de estudos em Teoria Museológica a partir da criação do Comitê Internacional de Museologia – ICOFOM do ICOM. No cenário em que se buscava desenvolver uma discussão específica sobre a museologia e o seu caráter epistêmico localizada principalmente na produção de autores da Europa do leste, o ICOFOM foi criado por uma iniciativa de Jan Jelínek (1926-2004), então presidente do ICOM, e interessado nos problemas da interdisciplinaridade do 9 Revista editada pela UNESCO, trimestralmente, desde 1948. 10 Curiosamente, a disciplina Museologia VI só apareceria na matriz curricular a partir do ano de 1978, quando o currículo do Curso passa por pequenas alterações visando a vinculação à universidade. 11 A UNIRIO passa a ter os cursos de Museologia, Biblioteconomia e Arquivologia, entre outros, provenientes de cursos já renomados em outras instituições – como era o caso do Curso de Museus – e estes permanecem até o presente de forma autônoma mantendo as suas especificidades, embora incorporados ao mesmo Centro de Ciências Humanas.
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trabalho museal12. O principal objetivo do Comitê era o de desenvolver as diversas definições de “Museologia” já existentes através de pesquisas teóricas, mas, sobretudo, o de estabelecer a Museologia como uma disciplina científica. Essa perspectiva também ganharia os corações de alguns teóricos brasileiros sendo posteriormente inserida nos currículos dos cursos e nos debates nacionais. Marcadamente sob a influência de uma corrente específica da museologia do leste europeu, que havia nascido entre as décadas de 1950 e 1960, na República Tcheca, a perspectiva icofomiana se constituiu como o resultado de sucessivas trocas entre as interpretações da museologia em diferentes partes do mundo. A Museologia brasileira que se constituía nos anos 1980, por meio do contato de alguns pensadores com essa corrente e da reinterpretação da teoria proposta por Zbyněk Z. Stránský13, se tornou, então, uma das principais herdeiras dessa produção, que, ao longo dos anos, perdeu a sua hegemonia no resto do mundo para outras correntes sem que o mesmo acontecesse no Brasil. A abordagem deliberadamente científica – e inovadora para a época – adotada pelo ICOFOM, que nesse momento tinha uma maioria de membros proveniente do leste europeu, se concretizou (de forma intencional ou não) em contraposição a uma abordagem anglo-saxônica, hegemônica em alguns países do hemisfério norte e sobretudo na Inglaterra, que se diferenciava notadamente por estar atrelada a um sistema de ensino universitário14 e que era reconhecida como museum studies (ou estudos museais). A abordagem do ICOFOM desde sua fundação apresentou-se como fortemente diferente, tomando como tema de debate (e de suas publicações) questões como “Museologia: ciência ou trabalho prático?”, “Museologia e interdisciplinaridade” ou “Metodologia da museologia”, e declarava-se assim instituir a Museologia como uma ciência em formação, para além de um conjunto de estudos sobre os museus. Essa abordagem, que buscava pensar os fundamentos de uma Museologia científica, ganhou ênfase nos primeiros quinze anos do comitê, mas havia começado a ser pensada no leste europeu a partir dos anos 1950, particularmente por russos, alemães orientais, poloneses e tchecos. A Museologia disseminada pelo ICOFOM, nos primeiros anos de sua existência, ganhou diversos adeptos no Brasil – entre eles, a professora Tereza Scheiner15 – uma vez que aqui se buscava legitimar a Museologia como um campo profissional, e este Comitê Internacional, no pensamento de alguns “teóricos” brasileiros, poderia ser visto como um aliado no movimento por legitimação. 12 No presente texto consideramos a distinção semântica entre os termos “museal”, como relativo ao museu, e “museológico”, como relativo à museologia, segundo estabelecido por Desvallées e Mairesse (2011). Cf. DESVALLÉES, André & MAIRESSE, François. Dictionnaire encyclopédique de muséologie. Paris : Armand Colin, 2011. 13 Ao longo dos anos 1980, o pensamento teórico de Stránský ganharia visibilidade a partir da tradução de alguns dos seus textos para o inglês e sua publicação pelo ICOFOM. Ele seria reconhecido, então, como o principal propositor de uma museologia científica, considerando os desafios filosóficos e epistemológicos que os pensadores da disciplina deveriam enfrentar para concebê-la como ciência. 14 No momento em que o ICOFOM passava pelos seus primeiros anos de organização, tendo como membros uma maioria de alemães (ocidentais e orientais), russos, tchecos, dinamarqueses, holandeses e brasileiros, a perspectiva anglo-saxônica se desenvolvia em universidades como Leicester ou Newark. 15 Antes de Tereza Scheiner se tornar membro do ICOFOM, outros brasileiros como Fernanda de Camargo e Almeida Moro e Waldisa Russio Camargo Guarnieri já haviam contribuído com o comitê. Nos anos seguintes, nomes como os de Maria Cristina Oliveira Bruno, Marilia Xavier Cury, Maria de Lourdes Parreiras Horta e Mário de Souza Chagas apareceriam entre os autores publicados pelo ICOFOM ou como participantes dos eventos anuais do comitê.
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A partir dos anos 1980 várias tentativas foram feitas, e ensaios teóricos de cunho filosófico foram escritos almejando a formulação de uma via única de pensamento para se estudar os museus e a Museologia.Tais estudos seriam adotados no Brasil como os referenciais teóricos de uma Museologia que chegava ao ensino universitário almejando formar pensadores e não apenas técnicos de museus16. Consequentemente, no Curso da UNIRIO, entre o final dos anos 1970 e meados dos anos 1980 as disciplinas de Museologia (I a VII) se identificavam mais claramente como disciplinas de Teoria Museológica. Uma disciplina intitulada Introdução à Teoria Museológica foi criada, em 1986, mas logo foi assimilada à Museologia I. Até hoje, as disciplinas explicitamente reconhecidas por seus conteúdos de Teoria Museológica são aquelas intituladas como “Museologia” nos currículos do Curso. O processo de transformação curricular seria acentuado na medida em que o Curso de Museologia da UNIRIO e seus professores se adequassem à nova estrutura acadêmica. Em 1985, a departamentalização do Centro de Ciências Humanas, organizando as disciplinas dos vários cursos em departamentos, leva à criação do Departamento de Estudos e Processos Museológicos (DEPM), e em 1991 é criada a Escola de Museologia. O Curso sofreria pequenas alterações, até que, entre novembro de 1995 e agosto de 1996, seria elaborado um novo Projeto de Reformulação Curricular, coordenado por Tereza Scheiner e implantado a partir de 1997. 2.2 A Reformulação Curricular de 1996 A Reformulação Curricular cujo projeto foi coordenado pelas professoras Tereza Scheiner, então diretora da Escola de Museologia, e Maria Gabriella Pantigoso, em 1996, representou a mais significativa assimilação dos conteúdos de Teoria Museológica pelas disciplinas do Curso.As disciplinas que apresentavam os conteúdos de Teoria Museológica abarcavam desde o panorama contemporâneo dos museus na disciplina Museus no mundo contemporâneo, oferecida no primeiro período do curso, e as teorias do patrimônio e a relação entre identidade, memória e patrimônio na Introdução à Museologia, oferecida no segundo período, passando pela Museologia I (terceiro período), que tratava do desenvolvimento da “ideia de Museu na cultura ocidental” e da “Museologia como disciplina científica: objeto, método, posição no sistema das ciências”; a Museologia II (quarto período) que tratava da “Teoria do Objeto”, das “Teorias da percepção” e dos “princípios básicos da Semiologia aplicados ao Museu”; Museologia III (sexto período), tratando da relação entre “museus, educação e ação comunitária”, do “estudo da função social do Museu e sua relação com grupos sociais”, da relação entre Museologia “educação ambiental e Desenvolvimento Sustentável”; 16 A circulação de publicações apresentando trabalhos de Teoria Museológica tem início também neste período. Entre os anos de 1989 e 1990, a museóloga Maria de Lourdes Parreiras Horta coordenou três volumes do periódico Cadernos Museológicos, publicados pela Fundação Nacional Pró-Memória, com uma coletânea de textos selecionados a partir das publicações do ICOFOM, particularmente os ICOFOM Study Series, traduzidos pela primeira vez para o português nesta ocasião. Nestes três volumes encontravam-se textos de autores como Desvallées, Sofka, Van Mensch, Sola e Rússio Guarnieri. Cf. Cadernos Museológicos, Rio de Janeiro, n. 1, 2 e 3, 1989-1990. Em São Paulo, professores do Instituto de Museologia da FESP, liderados por Waldisa Rússio Guarnieri, publicaram o periódico Revista de Museologia, que teve apenas um número, lançado em 1989. Cf. Revista de Museologia, São Paulo, ano 1, n. 1, 1989. Entre 1989 e 1992, foi editada a revista Ciência em Museus, pelo Museu Paraense Emílio Goeldi, onde foram publicados textos sob influência de publicações do ICOFOM. Cf. Ciência em Museus, Belém, v. 1-4, 1989-1992.
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chegando à Museologia IV (sétimo período) com os conteúdos de “introdução às teorias da Administração e sua aplicabilidade ao planejamento, criação e administração de Museus e centros culturais” (Scheiner & Pantigoso, 1995-1996: 26-32), com destaque para as noções de marketing cultural e da ética profissional.
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Considerou-se como Teoria Museológica os conteúdos que abarcavam os seguintes temas, segundo apresentado no projeto de Reformulação Curricular: Museologia como ciência ou disciplina científica, cujo campo de atuação é o Real Abordagem holista da Museologia – considerando a relação existente entre natureza, Homem, cultura e sociedade Museu como espaço de saber, como gerador de conhecimentos Museu e Museologia enquanto processos Museu como parte integrante dos sistemas de pensamento de cada sociedade, em cada época Conceito de Patrimônio: Patrimônio integral (natural e cultural) (Scheiner & Pantigoso, 1995-1996). Buscando evidenciar o caráter científico da Museologia, esse projeto atendeu a reivindicações de alunos e professores pela inclusão no currículo de disciplinas como Filosofia, Sociologia, uma segunda disciplina de Metodologia da Pesquisa, Filosofia da Ciência e Epistemologia. Por outro lado, foram retiradas disciplinas tradicionais que haviam se mantido no currículo do Curso desde que foram introduzidas pelo Curso de Museus, tais como Armaria e Instrumentos de Suplício, Tapetes e Tapeçarias e Meios de Transporte17. Entre os objetivos do projeto, buscava-se uma formação que integrasse “experiências de ensino, pesquisa e extensão”, além de “definir linhas de pesquisa” compatíveis com a Museologia que pudessem “levar o formando aos estudos de pós-graduação” (Scheiner & Pantigoso, 1995-1996: 6). Pela primeira vez se estabeleciam linhas de pesquisa para trabalhos monográficos de pesquisa museológica que perpassavam tanto a teoria quanto a prática a ela atrelada. A reformulação de 1996 se apresentava como fortemente alicerçada em uma fundamentação teórica centrada no referencial da Teoria Museológica, que define a Museologia como ciência ou disciplina científica, e o Museu como “fenômeno cultural”, “como parte integrante dos sistemas de pensamento de cada sociedade, em cada época” (Scheiner & Pantigoso, 1995-1996: 2). Os referencias teóricos adotados na elaboração do projeto e na reestruturação das disciplinas incluíram as principais obras de autores da Museologia internacional, em particular os franceses, como Georges Henri Rivière, André Desvallées, Jean Davalon e Hugues de Varine, e as publicações periódicas do Comitê Internacional de Museologia – ICOFOM do ICOM. A ênfase no caráter científico da Museologia, adotada nesse novo projeto, não nega uma clara influência do pensamento de autores do leste europeu, particularmente aqueles responsáveis pelo currículo 17 Além disso, foi recomendado, atendendo a pedidos de alunos, que disciplinas como Indumentária e Mobiliário fossem oferecidos como cursos de extensão.
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do curso da Universidade de J. E. Purkyne, em Brno, na República Tcheca18. Além disso, a elaboração do projeto contou com a análise de obras de literatura específica sobre currículos e programas de Museologia provenientes do Comitê Internacional de Formação de Pessoal para Museus – ICTOP, do ICOM, e da Reinwardt Academy, na Holanda19. Nos programas de disciplinas criados a partir da reformulação de 1996, os autores que mais aparecem nas bibliografias20 são: Fernanda de Camargo e Almeida Moro, Hugues de Varine-Bohan, Waldisa Russio Camargo Guarnieri, Georges Henri Rivière, Zbynek Stránský, além de dois volumes do Museological Working Papers21 (1980-1981), publicações inaugurais do ICOFOM, e a Revista Museum da UNESCO. Outros autores não diretamente ligados ao campo da Museologia aparecem recorrentemente nos programas da década de 1990, entre eles, no campo da Comunicação, Umberto Eco; na Semiologia, Jean Baudrillard e Roland Barthes; na Filosofia, Abraham Moles; na Educação, Paulo Freire. Entre os principais traços da Teoria Museológica, fica evidenciada a indissociabilidade entre uma “velha” disciplina e a dita “Nova Museologia”, polaridade conceitual disseminada nos anos 1980, e passa-se a entender a contínua evolução da Museologia, como disciplina que “permite a incorporação permanente do novo, a nível teórico” (Scheiner & Pantigoso, 1995-1996: 2). Ao estabelecer os fundamentos da teoria e o lugar da Museologia como disciplina científica, o Currículo que foi implantado efetivamente em 1997 determinou para uma geração de museólogos do século XXI um olhar reflexivo e aberto sobre a Museologia, que influenciaria a formulação dos novos cursos no país e o entendimento da Teoria Museológica no campo acadêmico que se constituía. 2.3 A Reformulação Curricular de 2006 à 2010 Ao assumir a direção da Escola de Museologia em 2005, o professor Ivan Coelho de Sá coloca em prática a mais recente Reformulação Curricular para o Curso da UNIRIO, contando com a ampla participação dos professores e alunos. O projeto de Reformulação Curricular do Curso de Museologia que começa a ser desenvolvido em 2006, é aprovado em 2007 e implantado em 2008, apresentando o objetivo de tornar o curso compatível com as políticas de currículo propostas pelo Ministério da Educação desde 199722 e com as Diretrizes Curriculares Nacionais, aprovadas em 200123. Desde 1997, quando a última 18 Com destaque para a figura tutelar de Stránský, que cria a cadeira de Museologia em Brno, ligada à Faculdade de Filosofia. ��������������������������������������������������������������������������������������� Tais como REINWARDT STUDIES IN MUSEOLOGY – The Management Needs of Museum Personnel. Proceedings of the Annual Meeting of ICTOP, Leiden, Sept. 24/Oct. 2, 1984; e ICOM/ICTOP – Museum Training as Career-long Learning in a Changing World (career development: a shared responsibility). Proceedings of the Annual Meeting, ICTOP, Aug. 5/10, 1990, Smithsonian Inst., Washington D.C., USA. 20 Foram consultados os programas disponíveis nos Arquivos da Escola de Museologia e no Núcleo de Memória da Museologia no Brasil (NUMMUS) na UNIRIO, referentes aos diferentes períodos da década de 1990 a partir do momento em que o novo currículo havia sido implantado. Os autores citados são aqueles que aparecem ao menos duas vezes ou mais nos programas consultados. 21 Documentos de Trabalho em Museologia. ���� Cf. MUWOP: Museological Working Papers/DOTRAM: Documents de Travail en Muséologie. Stockholm: ICOM, International Committee for Museology/ICOFOM; Museum of National Antiquities, 2v, 1980-1981. 22 Cf. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Orientação para as Diretrizes Curriculares dos Cursos de Graduação. Parecer CNE nº 776/97, de 3 de dezembro de 1997. 23 Cf. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Diretrizes Curriculares para
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reformulação havia sido implantada, doze turmas de bacharéis em Museologia haviam se formado, e passados quase dez anos da implantação do Currículo anterior, julgou-se necessário uma avaliação e reformulação atendendo às novas diretrizes.
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Pensado por uma Comissão Interna de Reformulação Curricular coordenada pelos professores Ivan Coelho de Sá e Mário de Souza Chagas, o novo projeto pedagógico e a Matriz Curricular propostos se pautaram na reflexão sobre “o processo dinâmico por que atravessaram os museus e a Museologia nos últimos anos, especialmente pela intensificação das relações entre os museus e a sociedade e pela sedimentação da Museologia como campo disciplinar” (Almeida, Sá, Chagas, 2006). As abordagens teóricas que continuaram a fundamentar o curso, passaram a enfatizar as relações da Museologia e dos museus com a sociedade, “construídas a partir de novos sistemas de pensamento”, e as particularidades do contexto museológico brasileiro. Na nova proposta curricular, foram apresentados eixos programáticos que estruturaram as disciplinas matriciais, sendo estes: (1) Estudos gerais; (2) Museologia específica; (3) Museologia aplicada; (4) Museologia geral; e (5) Pesquisa. As disciplinas com os conteúdos de Teoria Museológica constituíram o eixo (4) Museologia geral. Nesse processo, é, então, ampliado o quadro das disciplinas de Museologia teórica, que no currículo anterior constituíam seis disciplinas apenas, e agora passam a ser um total de oito disciplinas obrigatórias. São disciplinas de Teoria Museológica: Introdução à Museologia (primeiro período); Museologia, patrimônio, memória (primeiro período); Museologia de I a VI (do segundo ao sétimo período) e Museus, cultura e sociedade (sétimo período). Aos conteúdos que já estavam contemplados no currículo de 1996 – redistribuídos agora em um maior número de disciplinas – foram acrescentados aspectos ligando mais diretamente a teoria à prática museológica contemporânea e, sobretudo, ao contexto brasileiro, tais como a relação entre museus, Museologia e o pensamento social brasileiro (Museologia III), o panorama das experiências nacionais e internacionais no campo dos museus comunitários, ecomuseus, museus de território, dentre outras experiências análogas (Museologia IV), e as políticas culturais e políticas museológicas no Brasil (Museologia V). A disciplina Museus, cultura e sociedade, que é criada inicialmente como obrigatória (e se torna optativa com a alteração curricular de 2010), tem como conteúdo a aplicação à Teoria Museológica da literatura sociológica, antropológica e histórica sobre a construção sociocultural do Brasil contemporâneo (Almeida, Sá, Chagas, 2006). Entre os referenciais teóricos utilizados no projeto, se mantiveram os nomes de autores internacionais como Georges Henri Rivière e André Desvallées, e foram incorporados outros como Peter van Mensch e Tomislav Šola. Os estudos publicados pelos comitês especializados do ICOM, em especial o ICOFOM, pela sua contribuição significativa à construção de uma Museologia disciplinar (Almeida, Sá, Chagas, 2006: 37), se mantiveram entre as referências fundamentais do projeto, com destaque para as obras de André Desvallées, Mathilde Bellaigue e Tereza Scheiner como os principais sintetizadores das teorias estruturantes do campo. os cursos de Museologia. Resolução CNE/CES 21, de 13 de março de 2002.
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No Brasil, foram apontados como contribuições relevantes os estudos reflexivos de Regina Real, Heloísa Alberto Torres, Guy de Hollanda, Florisvaldo dos Santos Trigueiros, Mário Barata, Waldisa Russio Camargo Guarnieri, Ulpiano Bezerra de Menezes, Maria Cristina Oliveira Bruno, Tereza Scheiner, Mário de Souza Chagas, Maria Célia Moura Santos, Marília Xavier Cury e Margareth Lopes (Almeida, Sá, Chagas, 2006: 39). Contemplando a relação da Museologia com outras disciplinas no campo das Ciências Sociais, o projeto de 2006 incluía no escopo dos referenciais teóricos para a Museologia nomes emblemáticos como os de Mário de Andrade, Rodrigo de Mello Franco de Andrade e Gilberto Freyre. Nos programas de disciplinas consultados, os autores que mais aparecem nas bibliografias24 são: Maria Cristina Oliveira Bruno, Waldisa Russio Camargo Guarnieri, Suely Moraes Cerávolo, Tereza Scheiner, Mário de Souza Chagas, Marília Xavier Cury, Duncan Cameron, André Desvallées, Peter van Mensch, Hugues de Varine, Bernard Deloche, Jan Dolák, Roland Schaer, além das publicações do ICOM e da UNESCO já citadas. Entre os autores ligados a outros campos do conhecimento, destacam-se: na Semiologia, Jean Baudrillard; nas Ciências Sociais, Pierre Bourdieu e Michael Pollak; na História, Dominique Poulot e Jacques Le Goff, na Antropologia, Regina Abreu e José Reginaldo Gonçalves, nos estudos da Memória, Andréas Huyssen, Maurice Halbwachs e Pierre Nora; nos estudos do Patrimônio, Françoise Choay. Observa-se claramente um aumento no número de autores brasileiros no campo da Museologia, e sobretudo produzindo obras interpretadas como de Teoria Museológica, em comparação com os autores citados nos programas da década de 1990. Além disso, a inserção de autores de outras áreas do conhecimento não contempladas antes se dá em grande parte em função da especialização em nível de pós-graduação em outras áreas por parte dos professores do Curso. Partindo das linhas gerais que já definiam a Teoria Museológica na UNIRIO desde o projeto curricular de 1996, o novo projeto tende a aplicar as premissas anteriores ao contexto prático do Brasil, deixando em segundo plano a perspectiva holista para se voltar aos particularismos da realidade brasileira.Volta-se a fazer referência aos paradigmas de uma disciplina dita “tradicional” e à Museologia dita “nova” (Almeida, Sá, Chagas, 2006: 40) – já superados no projeto curricular de 1996 – e apropria-se dos princípios da Nova Museologia para discutir uma teoria aplicada à prática dos museus no Brasil, destacando conceitos como o do “caráter inclusivo” dos museus e o de “afirmação identitária” (Almeida, Sá, Chagas, 2006: 42), entre outros que não faziam parte dos aspectos que figuravam nos currículos anteriores como integrantes da formação em Museologia. O projeto de Reformulação Curricular de 2006 é implantado em 2008, no entanto, uma Proposta de Alteração da Matriz Curricular (Saladino, Almeida, Sá, Chagas, 2010) é apresentada em 2010 e implantada nesse mesmo ano, visando a criação e implantação do Curso de Museologia noturno, com o mesmo currículo do Curso integral, cujo projeto havia sido coordenado por Alejandra Saladino, Cícero Antônio Fonseca de Almeida, Ivan Coelho de Sá e Mário de Souza Chagas. Mantendo o mesmo referencial teórico do projeto de 2006, a proposta de 2010 amplia as disciplinas teóricas com a criação de oito disciplinas optativas, 24 Novamente, os autores citados são aqueles que aparecem ao menos duas vezes ou mais nos programas consultados.
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que perpassam temas ligados a relações contemporâneas entre os museus e as sociedades, temas estes que são identificados por alguns dos professores do Curso como conteúdos da dita Museologia Social (Saladino, Almeida, Sá, Chagas, 2010: 40). Entre essas disciplinas, que unem a Teoria Museológica conhecida a questões sociais e a teorias e métodos da Sociologia e da Antropologia, destacam-se as inéditas Etnomuseologia I e II, Museologia Social Urbana I e II, Museus e Memória dos Movimentos Sociais no Brasil I e II, e Museologia e Território. Desenha-se um novo quadro de disciplinas teóricas que são o resultado direto da assimilação das teorias e correntes do pensamento museológico internacional às questões, reflexões e problemas específicos da realidade brasileira. Concomitantemente, delineia-se um novo olhar sobre a Teoria Museológica que é o resultado do desenvolvimento dos conhecimentos museológicos ao longo dos anos de existência do Curso de Museologia e da ligação profícua entre teoria e prática, sendo ressaltado o papel da primeira no aprimoramento da segunda. 3. Os contornos da Teoria Museológica brasileira como resultado de teorias múltiplas A partir da análise histórica do desenvolvimento dos currículos dos Cursos de Museologia da UNIRIO (Integral e Noturno), somos confrontados com o panorama vasto das diferentes abordagens da Teoria Museológica ensinada como os fundamentos da Museologia brasileira. O forte empenho dos teóricos brasileiros em disseminar a Teoria Museológica produzida e discutida nos fóruns internacionais levou ao ensino sistemático de uma via teórica no Brasil. Hoje, diante do fortalecimento sem precedentes da Museologia acadêmica, em função sobretudo da multiplicação dos cursos de Museologia nos últimos dez anos, a Teoria Museológica ensinada na UNIRIO pode ser entendida como o resultado do encontro e da assimilação das múltiplas teorias ou vertentes teóricas que povoaram a disciplina desde o final do século XX até o presente. Ao longo dos anos em que o Curso de Museologia se consolidou, provou-se a impossibilidade de se ensinar uma só Teoria da Museologia, diante da real diversidade das perspectivas teóricas reconhecidas como tal. As diferentes correntes de pensamento que compõem os conteúdos das disciplinas de Teoria Museológica na UNIRIO – desde a Museologia “icofomiana”, Metamuseologia, à Sociomuseologia ou Museologia Social – contribuem para uma formação reflexiva e polivalente do museólogo nos Cursos do Rio de Janeiro. Com efeito, até o presente a Museologia vem sendo ensinada e praticada como um campo disciplinar específico, com pretensões de se tornar um campo científico. A clara contraposição entre uma prática diversa organizada segundo as necessidades das instituições e uma possível ciência bem fundamentada é diretamente endereçada no primeiro número dos Museological Working Papers, publicado pelo ICOFOM, em 1980. A primeira conclusão apresentada nessa publicação, a partir das opiniões de diversos profissionais de museus do leste europeu nos anos 1970, generalizadas por Villy Toft Jensen, foi a de que “uma única museologia comum não existe”25. As reflexões internacionais que tiveram 25 Villy Toft Jensen resumiu o resultado de uma pesquisa em museologia realizada entre profissionais de museus europeus durante o ano de 1975, que foi apresentado nos Museological Working Papers, em 1980. Cf. JENSEN,Villy Toft. Museological points of view – Europe 1975. In: MUWOP: Museological Working Papers/DO-
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início nos anos 1960 e foram disseminadas no Brasil a partir da década de 1980 nos levam a perguntar a que nos referimos como Teoria Museológica, afinal. A partir dos nomes de autores citados nas diferentes propostas de Reformulação Curricular aqui estudadas, fica evidenciado um traço particular daquilo que geralmente é interpretado como Teoria Museológica no Brasil. A Teoria, em geral, é percebida como o conjunto de estudos teóricos e práticos sobre os museus e a Museologia, e os textos ou ensaios dos agentes da prática são recorrentemente tomados como “teoria” e equiparados a pesquisas desenvolvidas pelos pensadores ou “teóricos” do campo. Essa característica marcante do desenvolvimento da Teoria Museológica no Brasil, isto é, a interpretação de profissionais e autores que se voltaram para a prática museal como “teóricos da Museologia”, considerando os seus textos teórico-práticos como referências de uma Teoria da Museologia, também se vê em relação ao plano internacional. Este é o caso de autores como André Desvallées e Mathilde Bellaigue, que não são considerados teóricos em seu país de origem e se autoproclamam como agentes da prática, mas que são reconhecidos como pensadores ou teóricos no Brasil. Esses diferentes olhares constituintes da Museologia ou Teoria Museológica considerados pelos Cursos de Museologia da UNIRIO atestam o caráter teórico-prático diverso do projeto pedagógico que vem vigorando, ainda que considerando as diversas transformações aqui analisadas. Tal diversidade do pensamento brasileiro foi responsável por constituir uma base para se pensar e ensinar a Museologia no país. O modelo curricular – e, também, epistemológico – da Museologia na UNIRIO, foi adotado como uma das principais referências para uma parcela considerável dos novos cursos brasileiros criados por incentivo do REUNI26, seja em sua configuração inicial ou nas adaptações de seus projetos político-pedagógicos27. Em 2001, o Conselho Nacional de Educação do Ministério da Educação cria um novo currículo mínimo para os cursos de Museologia do país, recomendado pela Rede de Professores do Campo da Museologia28 e fortemente influenciado pelo curso da UNIRIO. Nesse documento, entre as competências previstas para os formandos dos cursos está “compreender o Museu como fenômeno que se expressa sob diferentes formas, consoante sistemas de penTRAM: Documents de Travail en Muséologie. Interdisciplinarity in Museology. Stockholm: ICOM, International Committee for Museology/ICOFOM/Museum of National Antiquities, v. 2, 1981. p.9. 26 Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, iniciado em 2003. 27 Como exemplo podemos citar os cursos de graduação das Universidades Federais de Pelotas (UFPel), de Ouro Preto (UFOP), do Recôncavo da Bahia (UFRB) e de Sergipe (UFS). Tendo os dois primeiros adotado o modelo da UNIRIO como referência na primeira versão do projeto e os dois últimos na primeira reforma do projeto pedagógico. Esse número equivale a um terço dos novos cursos criados no período de 2006 a 2010. Depois de 2010 foram criados mais dois cursos (Universidade Camilo Castelo Branco e Faculdade de Educação Ciências e Artes Dom Bosco de Monte Aprazível) que ainda não iniciaram formação de turma. Os artigos de Oliveira, Costa e Nunes (2012) e de Oliveira, Costa, Mendonça e Nunes (2012) ao analisar os perfis dos cursos de graduação e proposta de diretrizes para um currículo, apesar de não afirmarem tal questão, permitem observar até o ano de 2010 pontos de intercessão do projeto pedagógico da UNIRIO com um número maior de cursos. 28 Criada em 2008, a Rede é responsável por dar início à discussão sobre os parâmetros da Museologia e sua formação efetivamente em âmbito nacional.
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samento e códigos sociais”29. Tem-se aí expressa a clara influência do Currículo de 1996 na elaboração do Currículo Mínimo para a formação em Museologia.
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Hoje, diante de um quadro ainda mais complexo em que não só os cursos de graduação se multiplicam, mas também os cursos de pós-graduação stricto sensu – o primeiro no Rio de Janeiro (2006), o segundo em São Paulo (2012) e os dois mais recentes na Bahia (2013) e no Piauí (2013) – a Museologia brasileira busca se tornar um campo de pesquisa autônomo, capaz de criar os seus próprios caminhos ao explorar as bases teóricas existentes. Os percursos são múltiplos no exercício constante de se pensar a Museologia em relação às transformações dos modos de concebê-la e dos nossos próprios olhares sobre esse campo de teorias e práticas. Referências: ALMEIDA, C. A. F.; SÁ, I. C.; CHAGAS, M. de S. Projeto de Reformulação Curricular do Curso de Museologia. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Rio de Janeiro, julho/outubro de 2006. Consultado nos Arquivos da Escola de Museologia, UNIRIO. BARROSO, Gustavo. Introdução à Técnica de Museus, 2v. Rio de Janeiro: Olímpica, 1946. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Diretrizes Curriculares para os cursos de Museologia. Resolução CNE/CES 21, de 13 de março de 2002. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/ CES 492/2001, publicado no Diário Oficial da União de 9 de julho de 2001. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Orientação para as Diretrizes Curriculares dos Cursos de Graduação. Parecer CNE nº 776/97, de 3 de dezembro de 1997. BRASIL. Conselho Federal de Educação. Currículos Mínimos cuja observância é obrigatória a partir do ano letivo de 1970. Resolução C.F.E. 14, de 27 de fevereiro de 1970. BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Museu Histórico Nacional. Instruções para matrículas no Curso de Museus. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1941. BRULON-SOARES, B.; CARVALHO, L. M. de, CRUZ, H. de V. O nascimento da Museologia: confluências e tendências do campo museológico no Brasil. pp.242260. In: MAGALHÃES, A. M.; BEZERRA, R. Z. 90 anos do Museu Histórico Nacional em debate (1922-2012). Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2014. D’ESPEZEL, Pierre & HILAIRE, Georges. Avant-propos. Musées. Les Cahiers de la République des Léttres des Sciences et des Arts [Cadernos da República das Letras das Ciências e das Artes], Paris, n. 13, 1931. DESVALLÉES, André & MAIRESSE, François. Dictionnaire encyclopédique de mu29 Cf. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CES 492/2001, publicado no Diário Oficial da União de 9 de julho de 2001. p.50.
Cristiane Eugênia Amarante
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A participação em museus: contribuição da recepção para a musealização da arqueologia marítima
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MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1V, nº 7, Out. / Nov. de 2015
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Artigo recebido em janeiro 2015. Aprovado em junho 2015
A MULTI-TEMPORALIDADE DO MUSEU: MEIO EXPOSITIVO E REALIDADE MISTA
Giovanna Graziosi Casimiro1
RESUMO: O uso de ferramentas computacionais no espaço de exposição gera uma série de reflexões, as quais permitem construir conceitos acerca da História da Arte Contemporânea e da Tecnologia Binária. Neste artigo são discutidos conceitos sobre a Realidade Mista aplicada aos Museus. O caráter multi-temporal é evidenciado a partir do espaço museal e da tecnologia binária, na construção de conexões através de processos interativos, da compreensão da interface computacional e da construção do Meio Expositivo. PALAVRAS-CHAVE: história da arte contemporanea, meio expositivo, realidade mista, museus, multi-temporalidade.
ABSTRACT The use of computational tools in the exhibition space generates a series of reflections, which allow you to build concepts about the history of contemporary art and Binary Technology. This paper discusses concepts of Mixed Reality applied to museums. The multi-temporal character is evidenced from the museum space and binary technology, building connections through interactive processes, understanding of computer interface and the construction of Expository Half. KEYWORDS: history of contemporary art, medium, mixed reality, museums, multi-temporality.
1 Laboratório de Pesquisas em Arte Contemporânea, Tecnologia e Mídias Digitais. LABART – Unicamp.
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A multi-temporalidade do Museu: Meio Expositivo e Realidade Mista
Introdução
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A historiografia da arte e a museologia se deparam com a acessibilidade da tecnologia binária e de formas inéditas de comunicação, socialização, informação e criação, no início do seculo XXI. A rapidez do ciberespaço faz com que as metodologias e projetos, no campo cultural, sejam revistos, afinal, a produção em arte e tecnologia questiona diversos aspectos da participação, do tempo e do espaço, através do processo interativo. Além da produção artística, o museu enquanto instituição pode encontrar soluções e questionamento potentes nas ferramentas computacionais e em suas formas híbridas, no entanto, é preciso visão crítica para compreender o jogo de interesses que articula um determinado museu, quando próximo de linguagens interativas. Ainda que se perceba relativa mudança, a questão crucial é o modo como tais instituições se comunicam com seu público, o qual busca um nível aberto, compartilhado e coletivo de relação, em constante avaliação dos padrões e informações. O desenvolvimento e o uso da ciência e da tecnologia por artistas sempre foi e sempre será parte integrante do processo de fazer arte. Não obstante isso, o cânone da história da arte ocidental não enfatizou suficientemente a centralidade da ciência e da tecnologia como co-conspiradoras, fontes de ideias e/ou mídia artística. Para aumentar o problema, temos o fato de que não existe um método claramente definido para analisar o papel da ciência e da tecnologia na história da arte. (SHANKEN, Edward. In: DOMINGUES, Diana (org.). 2009, p. 140.)
É de grande valia compreender as formas em que essa tecnologia computacional é aplicada nos ambientes museológicos, sobretudo, em se tratando de Realidade Mista. Esses novos modelos de exposição e comunicação, reafirmam a transversalidade entre arte e tecnologia binária e denotam a necessidade de uma abordagem diferenciada para a história da arte (SANTOS, IN:CBHA, XXXI, 2011). Arte e tecnologia são sinônimos segundo Arianne Vellosillo (2014), que afirma ser na antiguidade onde ambos eram delimitados enquanto habilidade e destreza na execução de determinadas tarefas. Ao longo do avanço tecnológico e científico, os artistas foram atraídos pelas possibilidades de expressão através de materiais e técnicas inéditos, incorporando-os com certa liberdade em sua produção. As ferramentas, os dispositivos e os elementos tecnológicos utilizados na produção, exposição e difusão de propostas artísticas multiplicaram-se exponencialmente, a onipresença da tecnologia em todos os seus aspectos de nossa vida modificou nosso comportamento e nossas posturas estéticas. (VELLOSILLO in BEIGUELMAN, 2014:137)
Além da postura estética, há uma noção inédita de tempo e espaço. Eles se reconfiguram na interatividade, na presença do dispositivo computacional, e quando aplicados ao espaço institucional, tornam visível o aspecto multi-temporal do museu, o qual se apresenta como uma entidade atualizada, ao colocar no cerne de sua comunicação o presente, o passado e o futuro. Lev Manovich (2002) reflete como as interfaces computacionais atuam sobre a arte e a comunicação, num processo de digitalização cultural evidenciando a emergência de formas culturais inéditas, como reflexo da revolução binária sobre a cultura visual. Ele afirma que essa relação entre arte e tecnologia é cada vez mais estreita, o que estimula a participação de outras áreas do conhecimento
Giovanna Graziosi Casimiro
e da inovação científica como a genética, a robótica, a biologia e a inteligência artificial como parte de propostas artísticas. Steven Johnson (2001) afirma que tecnologia e cultura caminham juntas desde sempre, pois constroem a experiência humana. Artistas, filósofos, escritores, todos tão cientistas quanto os cientistas, e esses tão criativos quanto os primeiros. Mais complexo ainda, são as estruturas socio-culturais estabelecidas no século XXI, evidenciadas pela Cultura da Interface e do Software, em que humano e dispositivo parecem simbióticos. A sociedade hiperconectada experimenta a onipresença pela internet e computação móvel. Cada indivíduo usufrui do livre arbítrio da comunicação, da pesquisa e do acúmulo de novas informações. Nesse sentido, o museu passa a lidar com uma demanda complexa e em constante obsolescência das informações, cuja renovação dos interesses de seus visitantes se dá freneticamente. Por essa razão, torna-se fundamental avaliar como a tecnologia binária é implementada no campo museológico, razão pela qual se propõe pensar o termo museu enquanto Meio Expositivo (espaço expositivo modificado pela computação, com caráter interativo). Analisa-se neste artigo, especificamente, a tecnologia de Realidade Mista através de diversos exemplos que denotam a diversidade de aplicações e interesses, e viabilizam a soma de realidades (física e virtual) através da ação do visitante sobre o espaço. A Realidade Mista parece bem aceita em instituições pelo mundo, pois pode ser aplicada na dinâmica expositiva e acervo sem alterar a natureza das obras e da instituição. Essas aplicações contribuem na reprogramação do espaço do museu, na exploração do seu caráter multi-temporal (presente, passado e futuro) e na soma de realidades, através da interatividade do usuário sobre os conteúdos e ambientes. A multi-temporalidade presente na essência do museu o torna muito mais próximo das dinâmicas computacionais do que se imagina e esse aspecto é a grande justificativa para associar o ambiente museológico aos modos interativos de exposição. Museu e Tecnologia O termo museu de origem grega, significa “templo das musas” e é usado desde o período de Alexandria para designar o local de estudo das artes e das ciências. Já a definição do International Council of Museums (ICOM, 2001) para “museus” é de uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público e que adquire, conserva, investiga, difunde e expõe os testemunhos materiais do homem e de seu entorno, para educação e deleite da sociedade. A disputa em torno da história da arte tem como o seu lugar atual e também o futuro no museu de arte contemporânea. Nesse local não exposta apenas a arte contemporânea, mas se encontra a história da arte. Porém, exatamente aqui existem dúvidas pertinentes sobre se a ideia de expor a história da arte no espelho da arte contemporânea ainda é universal e se ela ainda se sustenta (...) Portanto é uma questão de instituições e não de conteúdo, e muito menos de método, se é como arte e história da arte sobreviverão no futuro. Afinal, as catedrais sobreviveram, há muito tempo, à fundação dos museus. Por que os museus atuais não devem vivenciar a fundação de outras instituições em que a história da arte não tem mais lugar ou tem uma aparência completamente diferente? (BELTING, 2006: 135-167)
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A multi-temporalidade do Museu: Meio Expositivo e Realidade Mista
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Avaliar essa tensão estabelecida entre a museologia tradicional e o futuro desconhecido, pode gerar apreensões no campo cultural. No entanto, a relação de práticas museológicas às computacionais é mais próxima do que se imagina, e a inclusão de tecnologias interativas em museus é naturalmente compreendida segundo Gerfried Stocker (in BEIGUELMAN, 2014). Ele defende que o primeiro episódio da organização de uma biblioteca foi feito pelo matemático Leibniz1, contratado pela aristocracia do século XVII para organizar uma enorme coleção de livros. Ele criou um algoritmo para solucionar o pedido e a partir de sua iniciativa, os estudiosos Paul Marie Gislain Otlet (1868-1944) e Henri La Fontaine (1854-1943) utilizaram a matemática para melhorias em processos de catalogação, desenvolvendo, na Bélgica, o Mundaneum: um centro de registro intitulado como Repertório Universal Bibliográfico, similar ao conceito de museu. Esse projeto reunia informações e se aproximava de propostas atuais, como Wikipédia e Google, pois em 1895 continha um catálogo de arquivos e registros em mídias de todos os tipos, disponíveis na época. Em 1910, iniciou-se a construção de um museu que concentrava toda a tecnologia utilizada para comunicação e informação.2 O episódio demonstra a proximidade entre os métodos de organização por cálculo e o conceito de catálogo dos espaços expositivos. Ou seja, o processo de catalogação do ponto de vista da museologia se estrutura a partir do século XVI/XVII com as primeiras coleções particulares e, simultaneamente, os estudos de lógica matemática e máquinas de automação do cálculo também se fortalecem desde então. O museu e o cálculo, ainda que em áreas de conhecimento distintas, são muito similares e altamente complementares. Giselle Beiguelman (2014) reforça a origem dos museus no século XVI, período no qual as coleções pertenciam à aristocracia: havia uma força de classes, onde a elite era privilegiada. Essas coleções originaram os museus modernos, criados no século XVII. O primeiro museu surgiu através da coleção de John Tradescant, feita por Elias Ashmole, à Universidade de Oxford (Ashmolean Museum); o segundo, foi criado em 1759, por obra do parlamento inglês com a aquisição da coleção de Hans Sloane (1660-1753), hoje o Museu Britânico; o primeiro museu público surgiu na França pelo Governo Revolucionário, em 1793, atualmente conhecido como o Louvre. Ao longo do século XIX surgem o Museu do Prado (Espanha) e o Museu Mauritshuis (Holanda). No Brasil, em 1862 é criado o Museu do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano. Ao longo do século XX outros foram inaugurados e desde os anos 1950, houve um reposicionamento do limite dos museus: “o papel do museu conservador e propagador de uma narrativa histórica deu lugar ao de museus hospedeiros e propagadores de pacotes expositivos”. (CASTILLO, 2008: 230) No contexto contemporâneo, a proximidade entre museu e tecnologia binária é evidenciada pela revisão dos modos expositivos, em dinâmicas interativas implementadas por espaços tradicionais, os quais repensam sua estrutura. Para compreender o conceito de espaço expositivo contemporâneo e sua transição para o Meio Exposito, é preciso retomar brevemente o processo de 1 Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1726) desenvolveu a lógica pelo sistema binário, processo no qual passou a utilizar “1” e “0” como representações de conceitos: verdadeiro e falso, ligado e desligado, válido e inválido, entrada e saída. Disponível em: http://ecalculo.if.usp.br/historia/leibniz.htm. Acesso em: 12/04/2014. 2 Disponível em: http://www.google.com/culturalinstitute/exhibit/the-origins-of-the-internet-in-europe/ QQ-RRh0A. Acesso em: 22/12/2014.
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consolidação do museu nos últimos séculos. Marília Cury (2005) constrói a ideia de museu a partir de figura de Orfeu: na Grécia Antiga, Museu era filho de Orfeu, uma personificação que o torna capaz de agir, fazer, recuperar, coordenar a poesia e o conhecimento, através de um olhar que encontra os significados e valores. Segundo ela, essa concepção trata de um museu dissociado da ideia de lugar e sim no ato de pensar o sentido das coisas no mundo e na vida, cuja missão poética - tal como a visão grega - é constantemente elaborada. Essa concepção apontada por Cury já evidencia a multi-temporalidade do museu, pois da mesma forma que não se consolida na ideia de lugar e sim na elaboração do sentido das coisas, o processo de construção de sentido de estende entre passado, presente e futuro. O tempo é expandido e contraído a partir das associações, bem como a realidade, que se distorce em muitas prováveis, através da compreensão, da imaginação, da visualização. Em parte esse reposicionamento é resultado de uma crise do museu compreendida por Belting (2006) como parte de crise da arte, que inicia nos anos 1970. No entanto, segundo ele, essa crise é abafada por uma identidade do museu reconstruída a partir das necessidades de entretenimento do público. A estrutura dos museus, desde então, parece diretamente vinculada à comunicação de massa e ao consumo, equiparando-os a uma espécie de encenação, com uma agenda diversificada e cheia de espetáculos. Lisbete Gonçalves (2004) explica que o perfil do museu como instituição e suas coleções são colocadas em cheque, devido a popularização de algumas de suas obras enquanto ícones de massa. Ela aponta que os museus são questionados como instrumento cultural e acusados por sua passividade. Em 1971 ocorre a conferência ICOM de Paris e Grenoble, cujo tema “O museu a serviço do homem da atualidade, do futuro” coloca as instituições museais numa posição inédita. Em 1977, a inauguração do Centro Georges Pompidou marca um novo tipo de instituição, simbolizada por um espaço de ação museológica renovadora, segundo Gonçalves (2004). O lema da convenção é o de um “museu aberto, instrumento de difusão e comunicação permanente, cuja eficácia depende, antes de tudo, da estrutura arquitetônica em ligação com a vida urbana”. Surgem os novos museus, considerados instrumentos de consagração da nova museologia, levando em conta a “heterogeneidade do grande público que se quer atrair. Buscam-se novos métodos e tecnologias de comunicação e procura-se marcar com dinamismo sua ação cultural. Universalizam-se os princípios de uma museologia contemporânea”. (GONÇALVES, 2004: 78) No século XX, a comunicação em massa altera o modo como se constrói a cultura dos registros imagéticos. Sonia Castillo (2008) aponta que a contemporaneidade vem adquirindo um caráter múltiplo, em uma espécie de colagem e entrelaçamento de especialidades além da esfera artística. Há certa pressão por parte do púbico, que segundo Belting (2006), busca nos museus aquilo que não pode encontrar nos livros. Ele afirma que os museus não são mais capazes de satisfazer as reivindicações de seu visitante, e por isso, criam exposições alternadas e uma programação controversa. Segundo Maria Helena Martins (2005), o museu é apresentado como um espaço de experiência de apropriação do conhecimento e a exposição, por sua vez, é vista como um espaço de diálogo, de negociação de sentido, entre
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o “produtor” e o público. O processo museológico adota formas variadas de cumprir seu papel comunicador, através de artigos científicos, estudos e catálogos de coleções, material didático, vídeos, filmes, palestras, oficinas. Dessa forma, o mundo dos museus evolui do ponto de vista de suas funções e de sua materialidade - um dos principais elementos que sustentam seu trabalho. Em meados de 1980, as funções estruturais de museus e espaços expositivos sofrem mudanças evidentes, pois tais espaços se veem frente a um processo de transição de um ambiente elitista para outro de grandes exposições de massa, com programações populares, em um jogo de consumo e aproximação com o público. O ICOM mantém a afirmação de que o “campo museal ainda está em vias de se transformar” (MAIRESSE e DESVALÉES, 2013: 24) e um dos fatores é o aspecto comercial que explora o marketing e o turismo institucional. Na segunda década do século XXI, há reformulações na concepção da materialidade a partir do avanço computacional no campo da arte. A concepção de tempo e espacialidade também é revista. Castillo (2008) coloca os espaços expositivos como pólo cultural, em uma soma de tempos: passado, presente e futuro, em forma de espetáculo. Dessa reformulação estrutural, percebe-se, segundo ela, que o objeto de arte não é simplesmente exposto, mas que sensibiliza o público, possui mediações e tematizações. Em concordância com Belting, Castillo (2008) afirma que a estrutura do espaço expositivo se aproxima cada vez mais do teatro, exigindo maleabilidade do espaço, oscilando entre a neutralidade e a flexibilidade institucional. Rudolf Frieling (2014) pontua a mudança do local da produção, pois as obras não são apenas representadas e feitas para os espaços expositivos, e sim, em parcerias e através deles destacando o papel (co) produtor desses espaços, que atuam na revisão dos trabalhos expostos. Ainda que seja pensada a existência de dinâmicas renovadoras, de uma comunicação efetiva e da construção de novos museus, talvez seja prudente avaliar a necessidade do público desses espaços. É inegável que a ação do interator no espaço museal é diferente da do visitante. Sob esse ponto de vista, pode ser preciso rever a existência do espaço padrão e elaborar espaços desvinculados das convenções dos séculos anteriores. Com a inserção da tecnologia binária, a simulação modifica a estrutura do espaço, condicionando-o a uma profundidade maior, a partir do mundo virtual e da interatividade. Belting (2006) levanta a questão da emergência de dinâmicas renovadoras no espaço expositivo e o surgimento de conceitos inéditos que classifiquem as novas arquiteturas especiais expositivas. Entre esses novos conceitos, propõe-se o Meio Expositivo, que caracteriza o espaço dotado de interatividade e fluxos de dados. A noção de um espaço (co)produtor é reforçada no Meio Expositivo, pois diante do processo interativo as relações surgem “através” do Meio e não somente “no” espaço. O caráter de revisão da estrutura museológica em prol de atividades interativas e imersivas, é percebida em exemplos como do ZKM e do Google Web Lab. O primeiro é definido enquanto instituição única no mundo da cultura, Centro de Arte e Mídia que, segundo a própria instituição, é tanto museu e mais do que um museu. Propõe uma espaço para todos os meios de comunicação, aberto para a arte baseada no tempo, como cinema, vídeo, mídia arte, música, dança, teatro e performance. O caráter temporal é super valorizado, pois se torna essencial na construção do museu e reflete o modo como a tecnologia binária altera a continuidade e univalência de um tempo.
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Através da combinação de arquivo e colecções, exposições e eventos, pesquisa e produção, o ZKM está em uma posição única para ilustrar adequadamente o desenvolvimento da arte nos séculos XX e XXI, e não menos importante, porque coleção, exposição e pesquisa do ZKM atividades são acompanhadas por simpósios e outras plataformas de discurso teórico na filosofia, ciência, arte, da política e da economia. (Disponível em: http://zkm.de/en/about-us. Acesso: 01/05/2015)
O segundo exemplo foi desenvolvido pelo Google em parceria com o Museu de Ciência de Londres. Considerado o primeiro de seu tipo, Web Lab foi uma experiência global de museu, no qual havia cinco experimentos físicos interativos - trabalhos invisíveis da internet visível - controlados por usuários do navegador Chrome, do Google. O projeto viabilizou um museu, no qual as pessoas agiam de todos os modos - pela internet ou presencialmente - , cujo tempo era determinado pelos acesso via web, interferindo sobre a existência do tempo físico e da estrutura institucional, de fato. "On-line visitantes poderia criar música juntos, assistir a um robô desenhando seus retratos na areia e descobrir os limites cada vez mais amplos do que é possível fazer em um navegador como o Chrome" (Disponível em: https://www.thinkwithgoogle.com/campaigns/ chrome-chrome-web-lab.html. Acesso: 01/12/2014). Ou seja, qualquer um, em qualquer lugar, podia visitar o Web Lab e suas instalações, em uma experiência de presença além do corpo físico. Nesse aspecto, novamente a condição do tempo é remodelada e, sobretudo, a presença.
ZKM
Google Web Lab
Em uma análise fria, a experiência remota de visitação em museus pode ser a crise detectada por Belting, porém não a partir de uma produção interativa que não se adequa ao padrão estrutural da instituição, mas a partir do surgimento de ferramentas (Google Art Project, por exemplo) que permitem ao visitante fruir o acervo em seu próprio ritmo, dar zoom nas imagens, perceber detalhes, construir sua prórpria curadoria. Portanto, a tecnologia é aliada do museu, mas dá um nó na estrutura vigente até o momento. O conceito de Meio Expositivo ajuda a compreender essa etapa da renovação museológica, porém é importante ressaltar que por trás de grandes ações de massa (interativas ou analógicas) existe um sistema de controle complexo, gerido por cooporações e interesses, os quais aproveitam a suavidade do campo da cultura para impor tecnologias, ideais e condutas. Esse
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tipo de manipulação não é o centro de discussão deste artigo, mas é preciso apontar tal aspecto para que a tecnologia não seja entendida com deslumbramento, no contexto do Meio Expositivo. O Meio Expositivo
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O Meio Expositivo trabalha como conector e reator entre obra e público, e evidencia a proximidade entre tecnologia binária e a instituição museal. André Lemos (2014) afirma que a evolução das mídias digitais tem levado a um retorno para experiências consagradas, onde novidades são colocadas lado às experiências passadas, vinculadas aos hábitos culturais tradicionais. É nesse ponto que o Meio Expositivo se fortalece, bem como o caráter multi-temporal do museu. Afinal, o Meio representa um reposicionamento do espaço tradicional, através de ferramentas interativas. Coloca lado a lado o tradicional e o renovador de uma determinada instituição cultural, através de experiência interativas. Já a multi-temporalidade afirma a constante troca de fluxos pelas experiências entre um tempo presente, passado e futuro, um tempo imaginário e os muitos tempos das realidades existentes. Frieling (2014) confirma esse proposição e coloca que o museu, acima de tudo, rege as relações humanas sob três aspectos temporais simultaneamente: passado, presente e futuro, considerando que o passado é o futuro. Essa concepção também é apontada por Castillo (2008), ao considerar a presença do passado, presente e futuro nos museus, em uma espécie de camadas de tempo. A tecnologia binária se constrói em camadas de dados e contribui na expansão da temporalidade do museu. Há uma evidente soma de camadas de tempo e informação, o que gera novas camadas de realidade e fluxos. Castells (1999) pontua que o sistema de comunicação baseado na tecnologia binária muda radicalmente o espaço e o tempo, pois a localidade se reintegra através das redes, em um espaço de fluxos que substitui o espaço de lugares. Segundo ele, o tempo é apagado, pois presente, passado e futuro podem ser programados em uma mesma mensagem. O vínculo construído entre tecnologia binária e espaço físico, portanto, é reforçado pela interatividade. A noção de um espaço permeado por dados, em consolidação como Meio, pode ser pensada a partir da troca de informação entre usuário e computador, que segundo Daniela Kutschat Hanns (2014), gera um ambiente onipresente. Para ela, esse ambiente estimula habilidades cognitivas de criar empatia, de reconhecer e decifrar relações, de aprender a compartilhar. Steven Johnson (2001) afirma que a paisagem da informação representa simultaneamente um avanço tecnológico e uma obra de criatividade, sem precedentes, capaz de alterar o modo como as máquinas são utilizadas, e principalmente, imaginadas. Percebe-se a construção de um entorno informacional, um ambiente e um conceito diferenciado de espaço, regido pelas regras da computação sobre o mundo físico. Multi-temporalidades em Muitas Realidades. Para compreender a transição do espaço para o Meio, é preciso aprofundar os conceitos e o modo como a sociedade constrói seus espaços e relações. O conceito de espaço é compreendido etimologicamente do latim "spatium" e signi-
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fica espaço, lugar ou espaço de tempo (novamente é possível uma associação de multi-temporalidade). Do ponto de vista antropológico “é um sistema de proximidade próprio do mundo humano e por conseguinte, dependente das técnicas, significações, linguagens, culturas, convenções, representações e emoções humanas" (LÈVY, 1999: 15). A partir do século XVI há uma transformação do espaço pelos avanços mercantis, caso das grandes navegações e conquista de novos territórios nas Américas. O princípio organizacional do novo espaço é o fluxo; fluxo de energias e matérias primas, mercadorias, capital, mão de obra e informações. A concepção de fluxo é retomada através do Meio Expositivo, porém a partir da linguagem binária, referindo-se à troca constante de dados e informações. Esse processo de imaginar o mundo através da organização espacial está longe de se limitar ao texto sagrado da catedral gótica. Lembremos como a agora da Grécia Antiga - com seu escambo animado e debate público - corporificava a vitalidade e a sociabilidade da cidade-estado (...) O modo como escolhemos organizar nosso espaço revela uma enormidade sobre a sociedade em que vivemos - talvez mais que qualquer componente de nosso hábitos culturais ( JOHNSON, 2001:52)
Fica clara a importância do espaço na construção da identidade humana. Por essa razão esse artigo trás o questionamento sobre as estruturas tradicionais de espaços de exposiçao, pois elas parecem descompassadas às necessidades e hábitos contemporâneos. Margaret Wertheim (1999) pontua os vários tipos de espaço construídos entre a Idade Média e o século XX, os quais transitam da noção de alma à do espaço cibernético no século XX. Ela afirma que até o século XVII a noção do espaço não estava diretamente ligada a delimitação do geométrico-físico em um sistema de coordenadas tridimensional. Segundo Johnson (2001), a história da arte é marcada por espaços imagéticos de ilusão, criados especialmente na Europa em diferentes séculos, caso de pinturas de paredes datadas do final da República Romana, em que Oliver Grau (2001) destaca o Segundo Estilo de Pompéia com elementos miméticos e ilusórios. São espaços-imagem que criam ilusões, as quais demonstram um esforço na reprodução de ambientes através de técnicas características do período. Os espaços de ilusão trabalham com impressões sensoriais, mutáveis de acordo com a movimentação do observador e sua capacidade de foco. Tal exemplo faz pensar os mundos virtuais concebidos pela computação e permite avaliar as possibilidades atuais de soma de realidades. Já o século XXI é marcado pelo espaço-informação, cujo começo e fim são incorpóreos. Trata-se de um ambiente ampliado por meio de ferramentas que tornam visíveis um conjunto de palavras, imagens, conceitos, fórmulas e diagramas. Segundo Grau (2005) Um mundo artificial proporciona ao espaço imagético certa totalidade. No campo da computação o termo espaço remete à ideia de ambiente, cenário, local (ciberespaço, navegar, janelas, arrastar, etc). Porém, surge o conceito de espaço cibernético a partir da existência de redes informacionais e do ciberespaço, o qual reforça a ideia de limites físicos inexistentes, do espaço contido nos dispositivos tecnológicos e da interface computacional. O espaço se perde enquanto território e delimitação física, sobretudo, pois o mundo é rearranjado sem um ponto de fuga. O dispositivo binário atua sobre a forma como esse espaço se constrói, afinal, o espaço do dispositivo é neutro e o espaço em que age está em hesitação constante entre sua existência e seu aniquilamento:
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Eis-nos, pois, com uma reformulação das duas perspectivas espacial e temporal: lugar e tempo, para o dispositivo eletrônico, são incorporais. Eles só assumem corpo em determinadas circunstâncias e retornam a sua neutralidade, a sua indiferença, a partir do momento em que a ocasião - um sinal ou um impulso - se extingue. (CAUQUELIN, 2006:162)
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No momento em que o espaço expositivo se abre à interatividade constrói um Meio Expositivo fundamentado em fluxos informacionais e camadas de realidades. São portanto, ligações instantâneas, instáveis, em constante evolução. Evidencia-se um grau diferenciado de ação, cujo objetivo não é somente a exposição material, mas a construção intelectual e cultural por meio da interatividade, em relações colaborativas e híbridas. O visitante do Meio Expositivo é um sujeito remodelado pelo processo interativo, cuja subjetividade é fractal, segundo Pierre Lèvy (1999), pois a ação do dispositivo computacional está fora, entre e no indivíduo. O que rege o Meio é a dinâmica insitu<>influxu. Trata-se de um ambiente delimitado por fluxos que unem tempos e realidades, construindo um novo meio simbólico, rearquitetando a noção de virtualidade e realidade. O fluxo ultrapassa a presença do espaço e do tempo, construindo um ritmo próprio. Sua presença evidencia as muitas realidades. O resultado é o processo de trocas existentes entre máquina e humano no espaço expositivo, o que determina uma outra percepção do mundo físico. Couchot (2003) afirma que a união de físico e virtual gera uma nova natureza e uma consciência diferenciada das dimensões do planeta, do tempo e do espaço. À medida que o espaço e o tempo são alterados, a concepção de realidade também sofre remodelações. O termo realidade vem do latim realitas, que significa “coisa”. No uso comum, remete à “tudo o que existe”: inclui tudo o que é perceptível ou não, acessível ou entendido. A presença do termo “real”, em sua etimologia, leva a pensar o que existe fora da mente ou dentro dela, seja a ilusão, a imaginação, ainda que não expressas na realidade comum. Portanto, real pode ser ilusório ou não, pois a ilusão, por si só, possuí a realidade de si mesma. Segundo Grau (2010), ao longo da história da arte se percebe a construção de realidade diversas, construídas individual e coletivamente. Segundo ele, além do campo artístico, na neurobiologia há descobertas que questionam o que é definido como realidade. Pois ela não representa uma verdade absoluta, e sim o que é possível ou não de se observar. Ela está diretamente ligada aos limites e percepções humanos, os quais levam em consideração a conduta mental e física do indivíduo. A determinação de uma realidade leva as muitas realidades resultantes da particularidade do individuo, de sua aplicação, de sua percepção. Grau (2001) apresenta as realidades possíveis, como a realidade emocional, que gera uma “segunda realidade" (GRAU, 2001:181) resultante da percepção emocional, e a Realidade Virtual3 como uma visão panorâmica sensório-motora de um espaço imagético, produzindo a impressão de um ambiente vivo. Para ele a Realidade Virtual descreve um espaço composto de possibilidades por estímulos ilusórios dirigidos aos sentidos humanos e uma essência imersiva No campo da computação, o conceito de realidade se desdobra diferentemente das realidades individuais, sensoriais e artísticas, pois seu objetivo é muitas vezes - o de copiar e reproduzir um mundo físico através da linguagem binária. Trata-se da ideia de simulação, que segundo Couchot (2003) não é uma 3 Termo criado em 1989 por Jaron Lanier, que se popularizou nos anos 90 diante do avanço tecnológico que possibilitou a execução da computação gráfica interativa em tempo real.
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realidade projetada sobre o mundo físico e sim para fora dele. Em se tratando das realidades vinculadas à tecnologia binária, a Realidade Virtual divide espaço com a Realidade Mista. Ela evidencia os fluxos de realidade, regidos por dados binários. O termo Realidade Mista ou Realidade Misturada pode ser definido como a soma de objetos virtuais gerados por computador com o ambiente físico, viabilizando a conexão de espaços reais, através de imagens e ambientes virtuais. Paul Milgram e Fumio Kishino (1994) definiram o conceito de Realidade Misturada (RM) como "qualquer lugar entre os extremos de uma Contínua Virtualidade". Cláudio Kirner (2006) afirma que a Realidade Mista permite ao usuário, ver, ouvir, sentir e interagir com informações e elementos virtuais inseridos no ambiente físico, através de algum dispositivo tecnológico. Segundo ele a Realidade Mista4 vai além da capacidade da Realidade Virtual de concretizar o imaginário ou simular, pois a RM incorpora elementos virtuais ao ambiente físico, ou o contrário. Não se trata de gerar um ambiente puramente virtual, cuja dinâmica esquece o mundo físico do usuário, e sim criar um ambiente realista a ponto do usuário não perceber a diferença entre objetos virtuais e físicos.Trata-se de uma cena só, sem distinção de elementos. A Realidade Mista engloba duas categorias: a Realidade Aumentada e Virtualidade Aumentada. A primeira ocorre quando objetos virtuais são colocados no mundo atual, cuja interface é adaptada para visualizar e manipular os objetos virtuais colocados no espaço físico. A segunda ocorre quando elementos físicos são inseridos no virtual, cuja interface transporta o usuário para o ambiente virtual, mesmo que ele veja ou manipule elementos físicos ali inseridos: A realidade aumentada e a virtualidade aumentada são casos particulares da realidade misturada, mas geralmente o termo realidade aumentada tem sido usado de uma maneira mais ampla. A realidade aumentada usa técnicas computacionais que geram, posicionam e mostram objetos virtuais integrados ao cenário real, enquanto a virtualidade aumentada usa técnicas computacionais para capturar elementos reais e reconstruí-los, como objetos virtuais realistas, colocando-os dentro de mundos virtuais e permitindo sua interação com o ambiente. Em qualquer dos casos, o funcionamento do sistema em tempo real é uma condição essencial. A realidade aumentada envolve quatro aspectos importantes: renderização de alta qualidade do mundo combinado; calibração precisa, envolvendo o alinhamento dos virtuais em posição e orientação dentro do mundo real; interação em tempo real entre objetos reais e virtuais. (KIRNER, 2006: 24)
A consolidação do Meio Expositivo é percebida pelo uso da RM e RA. É válido considerar que o Meio é resultado do modo como a sociedade se estabelece na segunda década do século XXI, em que “as mensagens do novo tipo de sociedade funcionam em um modo binário: presença/ausência no sistema multimídia de comunicação” (CASTELLS, 1999: 461). Essa condição social reforça a presença do Meio, que se consolida através de ações interativas em espaços artísticos relevantes, como o MoMA e o Museu de Londres. Os exemplos analisado em seguida confirmam o progresso de construção do Meio e as formas de estabelecer relações de interatividade a partir de instituições convencionais, em uma revisão espacial inédita. 4 Segundo Claudio Kirner (2006) o termo Realidade Aumentada é muito confundido com o termo Realidade Mista. No entanto, o primeiro compõe o segundo, e cada qual possui especificidades técnicas. A Realidade Mista abrange tanto a Realidade Aumentada quanto à Virtualidade Aumentada, e como Paul Milgram (1994) delimita, pode ser classificada de acordo com suas diversas formas de visualização.
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Consolidação do Meio Expositivo: WeARinMoMA, Sukiennice Museum, Cardboard e StreetMuseum
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Jenkins (2014) faz pensar o quanto os criadores, nos mais diversos níveis, observam o modo de comunicação do público direcionando aplicações, não apenas do ponto de vista da instituição, mas do ponto de vista do próprio interator. Ele apresenta a questão da cultura participativa, que pode ser entendida enquanto cultura interativa. Esse conjunto de condições da contemporaneidade estabelece relação inédita de poder entre usuário e Meio Expositivo. A construção do Meio Expositivo depende diretamente da existência do usuário e da interatividade, condição fortalecida com a implementação da RM. Os diferentes modos de aplicação da Realidade Mista no Meio desencadeiam classificações variadas. Para compreender sua aplicação, nesse artigo são apresentados quatro exemplos de utilização da RM no espaço de exposição convencional, remodelando os padrões e afirmando a construção do Meio. Cada qual aponta como o Meio Expositivo pode ser classificado, seja ele no ambiente urbano, institucional ou na condição móvel. Os casos analisados demonstram o caráter de compartilhamento presente na produção contemporânea de arte e tecnologia. No entanto, Jenkins (2014) aponta que é preciso cuidado para não supor que meios mais participativos de circulação sejam justificados exclusivamente pelo surgimento da infraestrutura tecnológica (binária). Ainda que o dispositivo computacional seja neutro em essência, no momento de sua aplicação não o é. Museus e espaços expositivos também parecem neutros, no entanto possuem um posicionamento crítico que resulta na legitimação de obras. O uso de soluções computacionais pode funcionar de forma complementar às instituições. Segundo Patrícia Canetti (2014), o uso de aplicativos e visualizações em rede levanta questões importantes no sistema e circuito da arte, propiciando transformar a organização de arquivos e acessos. Malkin (2011) acredita que a visão de rede trás mudanças para a história da arte e museologia, da mesma forma que transforma a história e a arqueologia. Trata-se de uma reviravolta nas metodologias até então aplicadas.Torna-se evidente o caráter de disseminação de informação, considerado por Jenkins (2014), em que as pessoas são levadas a propagar informação. O Meio Expositivo está conectado (seja através das Realidades que assume ou pela conectividade de seu público) e estabelece uma série de trocas informacionais, absorvidas e disseminadas por seus usuários. O poder de disseminação e a credibilidade não são absolutos da instituição, pois quem propaga é o próprio usuário. Sua presença se iguala em poder à existência da obra, e a instituição gera um ciclo-chave de relações: o público<>obra<>meio. Ele resume as trocas e associações presentes no Meio Expositivo. Esse ciclo reafirma a posição de Frieling (2014), em que pontua o pedido de colaboração aos museus, para que participem formalmente como (co) produtores das obras de arte contemporânea. Tradicionalmente, os museus assumem um papel sem interferências sobre a obra. Constroem uma estrutura supostamente neutra para organizar mostras e acervo. Gonçalves (2004) define o padrão do espaço apropriado para a arte moderna como aquele que apaga sua função social. No entanto essa neutralidade é um equívoco. Museus e insti-
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tuições culturais têm posicionamento evidente no sistema, e mais do que nunca, são requisitados pelos próprios artistas e público para agirem em transversalidade às obras. Ela afirma que enquanto o museu consolida o seu espaço expositivo como lugar neutro, os artistas contemporâneos consideram a noção de lugar diferenciada e fundamental enquanto linguagem, e a arte passa a explorar a construção do espaço como sintaxe básica da criação artística. O MoMA exemplifica essa tentativa de neutralização, ao oferecer uma sensação de privacidade, reforçada por Gonçalves (2014), pois suas salas são pintadas de branco, com mínima interferência sobre as obras. A distribuição das peças é feita com certo alinhamento à altura do olhar do visitante e simetria. No entanto, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, vê seu método completamente questionado por um grupo de artistas, em 2010. WeARinMoMA (outubro de 2010) é uma exposição clandestina realizada no MoMA por dois artistas, Sander Veenhof e Mark Skwarek. A iniciativa utiliza a Realidade Aumentada e cobra uma remodelação da ação do museu e seu papel como co-produtor: À distância, via GPS, a dupla de artistas acionou comandos de informática e fez com que dezenas de peças tridimensionais produzidas por eles e por outros 30 artistas convidados surgissem na tela dos celulares e tablets de quem circulava pelo MoMA naquele dia. (...) Em vez de se enfurecer com os artistas, a diretoria do museu aplaudiu o atrevimento e incorporou as peças virtuais à sua coleção. E, por conta disso, diversos museus dos Estados Unidos e da Europa pararam para repensar sua relação com a tecnologia. Desde então, muitos se debruçaram sobre a realidade aumentada e lançaram projetos vanguardistas. (Disponivel em: m.oglobo.globo.com/cultura/museus-dos-eua-europa-lancamprojetos-vanguardistas-de-realidade-aumentada-4961365 > Acesso em: 22/04/2014.)
A tecnologia utilizada é a Realidade Aumentada, e o episódio descrito é uma pequena prova do impacto que as possibilidades virtuais têm sobre os espaços de exposição. A interface computacional utilizadas são dispositivos móveis (smartphones e tablets) e o aplicativo de Realidade Aumentada desenvolvido pelo grupo. Por meio da própria estrutura física do MoMA e as obras permanentes de seu acervo, é possível visualizar a exposição virtual lado à lado às obras consagradas do modernismo. Trata-se de uma proposta de dissolução do espaço expositivo material e um convite a instituição rever seu padrão. A interatividade ocorre via obra e o Meio Expositivo se estabelece no ambiente institucional, especificamente pois depende da estrutura física do MoMA como desencadeadora da dinâmica interativa de RA. A ação do MoMA retoma o caráter de questionamento do espaço museológico, no qual se percebe que a relação tradicional de poder é abalada. Jenkins (2014) aponta que os colaboradores são cúmplices dos regimes dominantes de poder, ainda que muitas vezes também usem sua incorporação nesse sistema para redirecionar as energias e reencaminhar os recursos. O MoMA incluiu a exposição “clandestina” em seu acervo, porque sem dúvida, seu padrão estrutural foi questionado e colocado frente a possibilidade da obsolescência. Esse conjunto de questionamentos evidencia a necessidade de rever modelos museais, o desejo de inclusão dos artistas em grandes acervos e a importância, cada vez maior, do público sobre a ação institucional. Trata-se de uma condição de propagabilidade, que parte “do pressuposto de que a circula-
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WeARinMoMA: http://www.markskwarek.com/We_AR_in_MoMA.html
WeARinMoMA: http://www.markskwarek.com/We_AR_in_MoMA.html
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WeARinMoMA: http://www.markskwarek.com/We_AR_in_MoMA.html
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ção se constitui como uma das forças-chave que dão forma" (JENKINS, 2014: 241) ao ambiente de mídia e de cultura contemporânea. A partir de então, diversas instituições, como o Museu de História Natural de Washington, o Brooklyn Museum de Nova Iorque, o Sukiennice Museum da Cracóvia, o Louvre de Paris, passaram a incorporar em suas dinâmicas espaciais e institucionais tais possibilidades tecnológicas. O Museum of London desenvolveu um aplicativo chamado StreetMuseum, que permite acessar, em meio ao espaço urbano, mais de 200 imagens de seu acervo através da realidade aumentada. Em se tratando de disseminação em redes sociais, outro projeto de remodelação institucional pela Realidade Mista se destaca, no Sukiennice Museum. Equivalente a uma galeria do século XIX de arte polonesa, no Museu Nacional da Cracóvia, desenvolveu a campanha Secrets Behind Paintings: designada para ampliar o alcance de público, após um período de completa renovação. Foi desenvolvido o aplicativo de Realidade Aumentada New Sukiennice, cuja utilização trás “vida” às pinturas ao apresentar suas histórias por meio de curtas, em que os personagens emergem de cada uma das obras. A tecnologia utilizada é a de Realidade Aumentada e a interface predominante é mobile, através de smartphones oferecidos enquanto audio-guias para visitação do museu. Para seu funcionamento, foi desenvolvido o aplicativo de RA New Sukiennice, cuja utilização trás vida às pinturas ao apresentar suas histórias por meio de curtas, em que os personagens emergem de cada uma das obras. A interatividade ocorre via Meio, pois o acervo se torna parcialmente interativo e o público, ainda que em uma exposição convencional e analógica, passa a ser interator - não pela obra - mas sim pela instituição. O Meio se estabelece em um ambiente institucional. Por trás da instituição pode existir uma série de interesses mercadológicos e corporativos, e o contínuo interesse de grandes empresas como o Google no setor museológico, pode significar o grande pontencial que uma espaço cultural possui para a minipulação de ideias e revisão de parâmetros. É nesse ponto em que a tecnologia aliada aos museus pode resultar em uma arma de controle. O aplicativo Cardboard exemplifica como o Google se aproxima de seu usuário através do campo cultural, na tentativa de personalização do acesso, seguindo a premissa de Jenkins (2014) de que as práticas participativas coexistem à tradição, mas que são modos de intercâmbio e adaptação. Segundo ele, esse noção de propagabilidade aumenta a diversidade e é impulsiona pela curiosidade, promovendo todo tipo de trocas culturais. O Cardboard foi anunciado pelo Google durante o evento I/O 2014. Competindo com o Oculus Rift, do Facebook, o Cardboard explora a acessibilidade, pois se trata de um aplicativo (gratuito e disponível na PlayStore) que roda em qualquer smartphone acoplado a uma carcaça artesanal de papelão. Ele torna o celular uma espécie de lente para os olhos do usuário, onde são exibidos conteúdos de serviços já existentes do Google, como Google Earth, Youtube e Google +. O equipamento é de baixo custo, o que acessibiliza a aplicação de Realidade Aumentada. A câmera do smartphone detecta o ambiente para movimentar a imagem exibida na tela do aparelho conforme o usuário se move, e um par de lentes de 40 mm de distância focal trabalham para manter as imagens sem borrões, independente para onde apontem os olhos da pessoa. O resultado é um dispositivo portátil, leve e, principalmente, muito barato. Embora não haja um preço final definido, mesmo porque o produto ainda é experimental, basta adquirir um
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Sukiennice Museum - Secrets Behind Paintings: http://mnk.pl
Sukiennice Museum - Secrets Behind Paintings: http://mnk.pl
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conjunto de peças simples para montar o próprio gadget – é necessário ter um celular com o aplicativo Cardboard instalado, é claro. Atualmente, há sete atividades imersivas possíveis de serem realizadas usando o Cardboard, incluindo passeio por imagens do Google Earth, visualização de vídeos do YouTube em tela grande e fotos esféricas no Google+, e visitas em pontos turísticos de Paris e Versalhes. ( Disponível em: https://www.google.com/get/cardboard/) Essa análise se concentra no acesso ao palácio de Versalhes, delimitando-o enquanto espaço cultural de caráter museal. O aplicativo permite que o usuário selecione o tipo de passeio desejado, que pode ser pelas ruas do Streetview, por exposições, tours pelo mundo, entre outros. A visita por Versalhes condiciona o usuário remotamente. No entanto, aqui parece haver uma confrontação com a ideia de Realidade Virtual. Por mais que pareça uma aplicação de RV, a visita ao Palácio de Versalhes pelo Cardboard se trata de uma Realidade Mista, pois os comandos são feitos em tempo real e vinculados com a presença do usuário no seu próprio mundo físico. Retomando as delimitações de Kirner (2006), trata-se de uma aplicação no ambiente virtual que depende de objetos e ações do mundo físico, e não uma aplicação que pretende causar a total imersão do usuário no ambiente virtual. Nesse ponto, o Cardboard é delimitado por Realidade Aumentada por algumas fontes e Realidade Virtual, por outras. No entanto, com base nas questões técnicas dessa pesquisa, proponho defini-lo enquanto Virtualidade Aumentada, já que propõe uma dinâmica virtualizada diretamente ligada ao deslocamento, movimentação e presença física do usuário. Cada movimento físico do usuário representa uma ação dentro do aplicativo. Do mesmo modo que uma grande empresa desenvolveu um projeto interativo e imersivo de caráter cultural, percebe-se que o episódio ocorrido em 2010, no MoMA, desencadeou ações institucionais interativas em diversos museus. O Streetmuseum é o aplicativo desenvolvido pelo Museu de Londres que permite acesso, pelo ambiente urbano, à fotografias de diferentes períodos da história da capital do Reino Unido (mais de 200 imagens de seu acervo). As imagens são adicionadas à visão das ruas, construções, pontos turísticos, por meio de um sistema de GPS que identifica a localização do usuário, mapeia a imagem do espaço e aplica a fotografia sobre ele. Streetmuseum dá a oportunidade única de uma antiga Londres, enquanto você descobre a capital pela primeira vez, ou revisita seus lugares favoritos. Milhares de imagens da extensão coleção do Museu de Londres, com fatos cotiadianos e históricos (...) Selecione uma localização no seu mapa de Londres ou utilize o GPS para localizar uma imagem próxima. Aponte sua câmera para uma rua/ cena urbana, e veja a mesma cena antiga de Londres, oferecendo duas janelas simultâneas. Deseja mais informações? Apenas clique no ícone de acesso para obter fatos históricos. (Instruções de uso de StreetMuseum. Disponível em: http:// www.museumoflondon.org.uk/Resources/app/you-are-here-app/home.html. Acesso 02/07/2014 15:32)
A tecnologia utilizada é a de Realidade Aumentada. A interface computacional são os dispositivos mobile com acesso a internet sem fio, com sistema de GPS. Com o aplicativo instalado, o usuário pode definir a sua localização e ativar a imagem virtual sobre a física. A interatividade está nessa ação, estabelecida pelo interesse do publico e pela instituição, ao construir uma dinâmica no ambiente urbano através do aplicativo.
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Cardboard Google: https://www.google.com/get/cardboard/get-cardboard/
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Streetmuseum: http://www.museumoflondon.org.uk
Streetmuseum : http://www.museumoflondon.org.uk
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Essa ação, diferentemente dos casos anteriores, não se dá no ambiente do museu, mas fora dele. Isso comprova que o Meio Expositivo não depende da especificidade do ambiente, e sim da interface e da interatividade. A aplicação de RM/RA também não depende, pois nesse caso ela é construída no ambiente urbano em tempo real, devido ao uso do GPS como referencial. Para pensar a dinâmica museal Percebe-se quanto o campo da museologia e da historiografia da arte se confrontam com as questões da cibercultura. A condição contemporânea produz características inéditas, modos de comunicação diferenciados e uma série de novas necessidades culturais e comunicacionais. O futuro do museu não deve ser questionado, inclusive, pois cada vez mais se produz, armazena e compartilha informações, cujo mundo toma a forma de um grande arquivo de experiências individuais e coletivas. O culto à tecnologia faz surgir uma nova mitologia, cheia de signos, símbolos e figuras onipresentes e onipontentes, vinculadas às funcionalidades da computação. A computação da Nuvem, a mobilidade, as mídias locativas e tantas ferramentas que condicionam o homem à experiência de estar em todos os lugares e em nenhum ao mesmo tempo, tornam a consciência humana diferenciada. Enquanto o mundo dos museus é condicionado pela sacralização dos registros materiais humanos, na atualidade, a sacralização ocorre por meio dos dispositivos móveis. O valor do objeto parece ser substituído pelo valor da informação em si, e a concepção do templo se desloca dos museus para os centro de processamento de dados, redes sociais e dispositivos mobile. Pela primeira vez na história, cada usuário pode carregar consigo uma parcela do conhecimento humano, em um “templo” disponível para acesso imediato. No entanto, a experiência sensível pode ser perdida caso haja uso demasiado e inconsciente do saber. A questão é que museus e tecnologia binária são parceiros na construção do conhecimento humano, do século XXI. A presença da mutli-temporalidade confirma essa premissa e constrói uma relação sólida entre o templo físico e o cibernético, arquitetanto uma realidade comum e interativa. A Realidade Mista entra nesse processo como uma das tecnologias capazes de evidenciar as muitas realidades, a reconfiguração do tempo e do espaço, e o gradual fortalecimento do interator. Por mais que se conceba um presente possivelmente distante da concepção tradicional da instituição, os regimes de controle e vigilância ainda permanecem. No entanto, estão deslocados para as grandes empresas como Google e Apple através de sistemas de geolocalização e monitoramento. O sistema de arte atual se encontra regido pelo poder da tecnologia binária, e ainda que ela não seja aplicada diretamente, os processos de venda, comunicação e catalogação são dependentes dos sistemas em rede. Ainda não se avalia os impactos reais da tecnologia binária sobre as estruturas museais ou sobre a produção artística, mas se pode prever um deslocamento efetivo de poderes e um aparente nivelamento de papéis dentro e fora da instituição. Essa impressão de igualdade, no entanto, pode significar que os grandes articuladores da tecnologia encontraram, no campo cultural, seu meio de acesso aos desejo e ideias humanos, pois a igualdade de poderes é, na
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verdade, a concentração de informações. Em todos os exemplos apresentados, à medida que a dinâmica museológica se torna interativa, um sistema digital de controle se estabelece. De fato, a visitação e a relação público-instituição são modificadas, positivamente, porém além do âmbito do ambiente expositivo, pode-se especular que as grandes empresas da informática estão controlando a movimentação de seus usuários e clientes. A crise apontada por Belting, em diversos momentos deste texto, questiona a permanência do museu a partir da produção de arte e tecnologia em sua estrutura funcional, fato que leva a pensar uma atual crise pelos novos modos interativos de visualização, catalogação e exposição do próprio museu, que modifica a natureza de seu acervo e a relação com o visitante. No entanto, este artigo arrisca afirmar que a maior crise do museu, no futuro próximo (senão, já no presente próximo), não está em seu desaparecimento ou obsolescência, do ponto de vista de sua inutilização, mas sim em um processo de musealização de tudo. O interesse repentino do setor da informática sobre o setor cultural, especialmente os museus, está na importância que esses espaços possuem na cultura comum. Além disso, são ferramentas em potencial para o controle do usuário, em uma sociedade em que há o desejo na apreensão do passado, da personalização, do vintage. É preciso cuidado para que os espaços culturais não se tornem um catalisador de dados para empresas maiores, ou que esses locais absorvam e modifiquem a identidade urbana, em prol de interesses coorporativos. Sendo assim, independentemente de qual crise museológica está em estabelecimento, a tecnologia é uma faca de dois gumes que, se bem aplicada, é capaz de entrecruzar realidades e sensibilidades infinitas. Se mal utilizada pode render uma das maiores armas de controle que já se imaginou, mas esse é tema para outro artigo. Bilbiografia BEIGUELMAN, Giselle. Futuros Possíveis. São Paulo: Ed. Peirópolis, 2014. BELTING, Hans. O Fim da Historia da Arte. São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2006. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. v. 1. CASTILLO, Sonia Salcedo Del. Cenário da Arquitetura da Arte. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2008. CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2006. CBHA, XXXI. [Com/Con]tradiçoes da História da Arte. Universidade Etadual de Campinas, 2011. COUCHOT, Edmond. A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2003. CURY, Marília Xavier. Exposição, concepção, montagem e avaliação. São Paulo: Ed. Anna Blume, 2005. FRIELING , Rudolf. Das Archiv, die Medien die Karte und der Text. MedienKunstNerz, 2014. Disponível em: http://bit.ly/WYKPqu. GIANETTI, Claudia. Estetica Digital: sintopía del arte, la ciencia y la tecnologia.
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Artigo recebido em janeiro 2015. Aprovado em abril 2015
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A EXPERIÊNCIA MUSEAL: DISCUTINDO A RELAÇÃO DOS MUSEUS COM SEUS VISITANTES NA CONTEMPORANEIDADE Manuelina Ma. Duarte Cândido1 Gabriela Aidar2 Luciana Conrado Martins3 RESUMO: Este artigo pretende se debruçar sobre o tema da experiência museal e sobre as discussões em torno do papel dos visitantes nos museus contemporâneos. Entendemos essa experiência como a relação que o visitante estabelece com os museus e a capacidade dessas instituições se dirigirem a cada um, provocando no indivíduo experiências significativas, especiais e únicas. Consideramos que, na atualidade, os públicos não se limitam a serem meros espectadores passivos, e buscam ter sua identidade e/ou necessidades culturais contempladas pelas instituições museais.
RÉSUMÉ: Cet article a l’intention de pencher sur le thème de l’expérience muséal et sur les discussions autour du rôle des visiteurs dans les musées contemporains. Nous comprenons cette expérience comme la relation que le visiteur établit avec les musées et la capacité de ces institutions toucher à chacun, provoquant à l’individu des expériences significatives, spéciales et uniques. Nous avons considéré que, actuellement, les publiques ne se limitaient pas à être des simples spectateurs passifs et ils cherchent à avoir son identité et/ou des besoins culturels inclus par les institutions muséales.
PALAVRAS-CHAVE: Museus, visitantes, experiência
MOTS-CLÉS : Musées, visitants, expérience
1 Universidade Federal de Goiás. 2 Pinacoteca do Estado de São Paulo. 3 Universidade Federal de Goiás.
Manuelina Ma. Duarte Cândido, Gabriela Aidar, Luciana Conrado Martins,
Introdução O presente artigo pretende discutir a capacidade dos museus, como meios de comunicação muitas vezes próximos da comunicação de massas, se dirigirem a cada visitante e provocarem no indivíduo experiências significativas, especiais e únicas. Consideramos que os museus estabelecem dinâmicas de comunicação com seus públicos a partir de modelos comunicacionais distintos, definidos em virtude daquilo que é considerado prioritário para cada instituição museal. Essas diferenças nos processos comunicacionais dos museus se revelam de maneira enfática nos programas de comunicação e educação dessas instituições, trazendo consequências para o relacionamento dos museus com seus públicos. Os públicos, por sua vez, não se limitam a serem meros espectadores passivos. Cada vez mais os museus têm se deparado com demandas de grupos específicos, que buscam ter sua identidade e/ou necessidades culturais contempladas pelas instituições museais. A resposta dos museus – em um mundo cada vez mais competitivo em termos de ofertas midiáticas – tem sido acolher essas demandas, transformando seu discurso e estabelecendo novos e instigantes patamares de comunicação com seus públicos. Mas, qual o limite dessa transformação? É possível vislumbrar um museu no qual os visitantes se sintam plenamente acolhidos em suas expectativas e agendas pessoais? Será esse o papel da instituição museal no século XXI? Este artigo pretende se debruçar sobre essa discussão, a partir de referências teóricas da área de comunicação e educação em museus. Nosso objetivo é o de contribuir para o debate acerca do conceito de museu em relação ao visitante na contemporaneidade. A experiência do público nos museus: alguns apontamentos iniciais A ideia de que os museus participam dos mass media está presente em diversos autores e é sintetizada por Pastor Homs (2004). Essa autora propõe um modelo que inclui a tipificação da audiência como ampla, indiferenciada, sem consciência de si mesma, incapaz de atuar como grupo e passiva, e da comunicação realizada como unidirecional, do comunicador para o receptor. Ao mesmo tempo, a autora registra a coexistência deste modelo com as exposições de enfoque mais didático, baseadas em um modelo de comunicação mais interpessoal e interativo, ainda que reconheça que o mais comum seja a exposição desenhada de acordo com o primeiro modelo e a adaptação, a posteriori, pelo pessoal dos serviços educacionais, deste discurso aos diferentes públicos. O modelo interativo ou interpessoal é caracterizado por uma audiência em pequenos grupos ou mesmo individual, diferenciada, consciente de si mesma, interconectada e ativa, para qual a comunicação proposta é baseada em uma multiplicidade de métodos, construída em um processo de mão dupla, onde o poder é partilhado equitativamente e existe o feedback. Da mesma forma, Hooper-Greenhill (1994) propõe uma compreensão das perspectivas teóricas educacionais presentes no trabalho educativo dos museus. Para essa autora, duas abordagens podem ser percebidas, a partir da influência de teorias de conhecimento (epistemológicas) e de aprendizagem: uma primeira abordagem mais positivista, ou realista, na qual o conhecimento é visto como externo ao aprendiz e passível de mensuração exata; e uma segunda, mais
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construtivista, que entende o conhecimento como algo oriundo da relação do aprendiz com o meio, e dessa forma mais processual e passível de subjetividades.
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No que se refere ao impacto dessas perspectivas no ambiente museal, Hooper-Greenhill aponta não existir consenso acerca de qual a melhor abordagem para o estabelecimento de um processo de comunicação eficaz entre as coleções e os públicos, mas que ambas abordagens estão presentes tanto no trabalho dos profissionais dos museus quanto na maneira como o público utiliza esses espaços. A autora aponta, entretanto, a necessidade do estabelecimento de processos investigativos que dêem conta da compreensão dos processos de ressignificação que o visitante estabelece em contato com os objetos expositivos. Para ela, a forma mais adequada de captar esse processo é a extrapolação dos instrumentos quantitativos em direção a abordagens mais sociológicas e qualitativas. Essa perspectiva se contrapõe àquela que, comumente, os profissionais de museus têm que lidar em seu cotidiano. Na avaliação de museus, especialmente quando se trata do olhar de fora (potenciais patrocinadores, governos, entre outros), um indicador essencial do sucesso institucional dos museus é sempre a visitação, e por uma abordagem normalmente quantitativa. É um desafio constante para essas instituições gerenciar a necessidade de boa performance nestes indicadores e de, ao mesmo tempo, provocar no visitante experiências significativas. Mas, o que seriam experiências significativas dos públicos nos museus? Larrosa Bondía, propõe a este respeito que: A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-seia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. (Larrosa Bondía, 2002: 21)
A educadora Milene Chiovatto, ao debruçar-se sobre as ideias do mesmo autor, relacionando-as à promoção de experiências significativas nos museus, propõe que: A experiência ao nos passar, nos forma e nos transforma. Assim, o ´saber da experiência´ é o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que lhe vai acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece, sendo, portanto um contínuo. Por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente e pessoal. Estes conceitos de experiência são aplicáveis apenas se considerarmos o conhecimento, e os processos de aprendizagem que se desdobram a partir dele, numa perspectiva também de cunho mais particular, incluindo e se concretizando em consonância com as subjetividades e particularidades do aprendiz. (Chiovatto, 2010: 15)
Nesse mesmo sentido, em uma provocação substancial, Mário Moutinho (2008) coloca para os museus o dever de ‘customização’, ou seja, exatamente ser para cada visitante, ou cliente, um novo museu. Para este autor, é imprescindível que os museus, se desejam mesmo estar a serviço da sociedade, compreendam e se aproximem do que é esperado de prestadores de serviços, cuja atuação tem como características fundamentais a inseparabilidade, a variabilida-
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de, a intangibilidade e a perecibilidade. Adotar estes quatro vetores implica uma transformação na maneira de o museu atuar na sociedade: Inseparabilidade: o consumo não é um bem que se guarda, a exposição, como exemplo, é ‘comprada’ e usada simultaneamente. O museu tem, portanto, um tempo de crédito para provar que a visita foi válida e que a relação tempo/qualidade é positiva. Variabilidade: serviços são variáveis de acordo com o prestador e com o cliente (relação museu – público). O museu, entretanto, se recusa à “customização” dos seus serviços, nunca está disponível para se adaptar às necessidades de cada visitante. Intangibilidade: serviços não são palpáveis, a experiência do visitante no museu é intangível. Perecibilidade: serviços são perecíveis, não podem ser estocados. Os museus precisam apresentar novas exposições, por exemplo, e não manter a mesma por muitos anos. Diante disto, as inovações possíveis, segundo o autor, dizem respeito a expandir o campo das ideias e minimizar a apresentação de objetos (intangibilidade), aprender que há um tempo limitado para se justificar e se fazer necessário (inseparabilidade), perceber que há um limite de validade que exige renovação (perecibilidade) e tornar-se sensível à necessidade de cada visitante (variabilidade). É neste aspecto da variabilidade e no da intangibilidade que queremos centrar nossas reflexões, são eles que se relacionam com a ideia da experiência significativa para o individuo. Porque é a subjetividade do indivíduo que em relação com as referências culturais musealizadas (objetos polissêmicos), dentro de uma proposta de comunicação que não deseje impor um discurso unidirecional, mas procure uma construção de significados processual e em conjunto com o visitante, irá gerar para cada um uma experiência singular. E o quanto esta experiência será significativa cabe ao terreno da intangibilidade – ainda que se tenham objetivos, estratégias, avaliação – o resultado desta experiência no indivíduo é imprevisível. Aqui se trata, portanto, não apenas do museu ter uma oferta educativa e de serviços diferenciados para seus distintos públicos, mas de deixar “vazios” para serem ocupados pela experiência do visitante. Estes “vazios” podem ser provocações, perguntas, ou espaços de participação, entendidos como apropriação do museu. Neste sentido, é possível inclusive rever o papel da educação em museus, não mais como provedora ou “tradutora” de conteúdos curatoriais, mas como mediadora entre os significados construídos pelos visitantes e aqueles propostos pelos museus. Segundo Lisa Roberts, The once prevalent view that knowledge is objective and verifiable has been widely challenged by the notion that knowledge is socially constructed and shaped by individuals’ particular interests and values. Language about facts and certainties has been replaced by language about context, meaning, and discourse. [...] This shift has important implications for what museums are and do. It would appear that these onetime Towers of Babel comprise, as foretold, not a synopsis of wisdom but a multitude of voices. Objects, it follows, hold multiple stories and meanings, and, depending on the context, all of those stories and meanings are potentially valid. (Roberts, 1997: 02-03)
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Entretanto, é importante considerar que essa perspectiva da experiência museal, como algo a ser construído na interação do indivíduo com o museu, é bastante recente entre os profissionais dessas instituições. A seguir, ao discutir algumas possibilidades da relação dos visitantes com os museus, trataremos das modificações que se estruturaram nas últimas décadas e que transformaram nossa percepção das possibilidades de uma visita a museus, bem como do papel dos visitantes. Possibilidades e sentidos: trajetórias de conformação da experiência museal A transformação da perspectiva do papel dos públicos nos museus é bastante recente e vai na direção de um empoderamento cada vez maior dos visitantes na relação com a instituição museal. A bibliografia sobre o tema, principalmente a partir da década de 1990, é bastante significativa e traz como norte a ênfase na importância da participação popular em todos os estágios e atividades da cadeia operatória museológica, não só nas práticas museológicas propriamente ditas, como nos processos de tomada de decisão que configuram essas práticas e as conectam em um todo coerente. A ampliação das possibilidades de participação de todo tipo de público nas esferas decisórias dos museus traz em sua base uma noção ampliada de cultura, na qual diferentes manifestações culturais, principalmente aquelas oriundas de camadas menos favorecidas economicamente da população, passam a dividir espaço com a denominada “alta cultura”, historicamente alvo da preservação museológica. Modelos para a compreensão dos diferentes níveis dessa participação popular podem ser vistos nos trabalhos das autoras Anik Meunier e Virginie Soulier (2010: 309-330), Cristina Bruno (2006: 119-140) e Gerard Corsane (2005: 01-14), cujas proposições e análises são guiadas por um forte princípio de participação dos diferentes públicos na decisão do que deve ou não ser preservado e exposto pelos museus. Discussões sobre multiculturalismo, pluralismo e diversidade cultural entram com força no universo museológico trazendo novos desafios para as instituições que devem, dessa forma, criar novas práticas que respondam às demandas da sociedade e dos debates da arena intelectual de referência. Outro aspecto das influências “democratizantes” no universo museal pode ser verificado nos debates sobre a participação pública na ciência, nos movimentos Ciência, Tecnologia e Sociedade e de controvérsia científica, que buscam trazer para a arena de discussões as formas como a ciência e a tecnologia são divulgadas e disponibilizadas para as populações. Nos museus essas questões surgem por meio da existência de formas de comunicação e educação que apresentam a ciência não como um produto “pronto e acabado”, mas como uma arena de debates nos quais diferentes posições podem ser tomadas. O incentivo à participação dos públicos nessa “tomada de decisão” também é alvo de estudos e práticas recentes nos museus de ciência e tecnologia (Cameron, 2005; Mintz, 2005; Pedretti, 2004). Essa virada em direção a uma maior participação pública e perspectiva dialógica também é encontrada em museus de arte. Ao analisar a preparação e a qualificação dos educadores em museus de arte nos Estados Unidos, David Ebitz aponta a transição do modelo pedagógico do que ele denomina empty vessel – de
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comunicação e educação unidirecional e transmissiva, tributário das Pedagogias Tradicionais – para uma pedagogia dialogada, “no qual o educando está engajado em um processo pessoal e social de descobrimento e construção de sentidos” (Ebitz, 2005: 152). De acordo com esse autor essa transformação ocorre a partir do último quarto do século XX em virtude do crescimento do número de visitantes e da já apontada necessidade de financiamento. “Novas e mais diversas audiências têm expectativas diferenciadas – e algumas vezes demandas – de para quê os museus de arte dever servir em suas vidas” (idem: 151). No que se refere às ações educacionais a autora Melinda Meyer (2005: 356-368) justifica essa transformação a partir da existência de uma verdadeira “virada cultural” nos setores educativos dos museus de artes visuais. Para Meyer, essa virada aconteceu a partir dos anos 1970, em grande parte devido ao impacto do que ela denomina de influência das teorias pós-modernas no campo da história da arte e da educação, com consequentes repercussões na forma como os educadores dos museus passaram a enxergar o papel do público nessas instituições. Os questionamentos pós-estruturalistas, que dialogam com as chamadas perspectivas pós-modernas, permitem, de acordo com Meyer, a construção de um novo posicionamento educacional nos museus de artes plásticas que “transfere a construção de sentidos do objeto e do artista para quem interpreta” (idem: 359). Nesse sentido, pode-se afirmar que a educação em museus de arte trilhou caminho semelhante à educação em museus de ciências humanas e museus de ciência e tecnologia, em direção a uma maior abertura para o público. Percebe-se a transformação na concepção de público, de “recipiente vazio” para sujeito com conhecimentos e expectativas prévias. Essa transformação reflete o quanto os visitantes – com seus hábitos, representações e expectativas pessoais – foram se tornando importantes para os educadores de museus ao longo do século XX. Essa idéia levou, no início da década de 1990, a uma percepção bastante ampliada das necessidades decorrentes da “alfabetização visual”, como aponta a já citada autora, Melinda Meyer: The role of the educator was to function like an ethnographer who has the task of interpreting the cultures of visitors and scholars for one another. Museum educators wanted to empower visitors as freely functioning agents not dependent os morsels of scholarly information in order to navigate the strange, labyrinth worls of museums (idem: 365).
Mesmo que, como alerta Mayer, as práticas educacionais dos museus não tenham se transformado tão rapidamente quanto as tendências teóricas se impuseram, suas consequências geraram uma transformação nos hábitos educacionais museais. O discurso do especialista não é mais a única voz ouvida nesses espaços, nos quais as necessidades do público passam também a ser consideradas, na medida em que encontram nos educadores de museus seus principais defensores. Essa mesma trajetória de transformação, e de “empoderamento” dos públicos, também pode ser percebida nos museus de ciências e tecnologia. Se em um primeiro momento Sibele Cazelli e outros autores (Cazelli et al, 2002) apontam a influência dos paradigmas advindos das pedagogias tradicionais na concepção das exposições e ações educacionais dos museus de ciências e tecnologia, em um segundo momento os autores enfatizam a mudança em direção a preceitos pedagógicos mais inovadores também nessas instituições.
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Desta forma, nos afastamos da noção do público dos museus como uma grande massa homogênea e passamos a pensar, no mínimo, em comunidades de interesses, ou as chamadas comunidades interpretativas. Tais comunidades podem ser identificadas por grupos que compartilham as mesmas estratégias interpretativas, ou seja, por grupos que atribuem sentidos utilizando-se de estratégias interpretativas comuns.1 Considerar essas particularidades tem se mostrado cada vez mais produtivo para o desenvolvimento de ações educativas e comunicacionais nos museus, uma vez que implicam no reconhecimento da diversidade e da participação ativa do visitante em seu processo de construção de conhecimento, levando em conta seus saberes prévios, repertórios e motivação pessoal. Trabalhar com comunidades tem sido a missão fundamental de museus inspirados pela chamada Nova Museologia e pela Museologia social. Segundo Victor, [...] os estudos de públicos aplicados à realidade dos museus tradicionais, não servem de todo, para captar a essência da museologia social, pelo que será aconselhável “espreitar” outras ciências e ferramentas em busca de respostas. (Victor, 2005: 167)
Experiências decorrentes desta facetas da Museologia colocam o museu como um espaço para acolher as demandas sociais, onde seus profissionais muitas vezes atuam como catalisadores e possibilitadores dos projetos comunitários. Em muitos casos reconhecem que não atendem simultaneamente a todo seu público, mas sucessivamente se abrem à realização do projeto de um grupo social, depois outro, conseguindo desta forma uma atuação mais representativa da diversidade presente em seu entorno. Mais uma vez, essa atuação não se caracteriza pela ênfase no indivíduo, mas no grupo social. Portanto, o tema proposto pelo ICOFOM em 2013 nos desafia, neste ponto, a confrontar os limites entre ‘customização’, exclusividade e o compromisso educativo dos museus. Entretanto, ainda que as ações comunicacionais e educativas dos museus sejam elaboradas tendo em mente grupos e comunidades, a vivência e elaboração das experiências nos museus será sempre individual e de caráter subjetivo. Bibliografia BRUNO, Maria Cristina Oliveira,“Museus e pedagogia museológica: os caminhos para a administração dos indicadores da memória”. In: MILDER, Saul Eduardo Seiger (Org.) As várias faces do patrimônio. Santa Maria: Pallotti, 2006. p. 119-140. CAMERON, F. Duncan, “Contentiousness and shifting knowledge paradigms:The roles of history and science museums in contemporary societies”. In: Museum Management and Curatorship, 20, p. 213-233, 2005. CAZELLI, Sibele et al. Tendências pedagógicas das exposições de um museu de 1 “Given that the process of interpretation involves prior knowledge, and that the world is
known through culture, our interpretation will be that which fits our particular time and place in the world. What we know is what we need to know to enable us to take our place in a particular society or group [...] It is within interpretive communities that the meaning-making of an individual is tested, revised, supported and developed. The interpretive community both sets limits for and constrains meaning, and enables meaning. Interpretive communities are not stable, but may change as people move from one to another.” (Hooper-Greenhill, 1994: 49-50)
Manuelina Ma. Duarte Cândido, Gabriela Aidar, Luciana Conrado Martins,
ciência. In: Guimarães, Vanessa; Silva, Gilson Antunes, Implantação de centros e museus de ciência. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. CHIOVATTO, Mila Milene, “Educação líquida: reflexões sobre o processo educativo nos museus a partir das experiências do Núcleo de Ação Educativa da Pinacoteca do Estado.” In: CHIOVATTO, Mila Milene (coord.). Anais do Encontro Internacional Diálogos em Educação, Museu e Arte [CD-ROM]. ����������������� São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2010. CORSANE, Gerard, “Issues in heritage, museums and gallerires: a brief introduction. In: CORSANE, Gerard, Heritage, museums and galleries. An introductory reader. New York: Routledge, p. 1-14, 2005. EBITZ, David, “Qualifications and the professional preparation and development of art museum educators”. In: Studies in Art Education. A Journal of Issues and Research, v. 46, n. 2, p. 150-169, 2005. HOOPER-GREENHILL, Eilean (ed.) The educational role of the museum. Londres e New York: Routledge, 1994. LARROSA BONDÍA, Jorge. “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”. In: Revista Brasileira de Educação Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19, p. 20-28. Disponível online em: http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/rbde19/rbde19_04_ jorge_larrosa_bondia.pdf, acesso em 13/02/2013. MEUNIER, Anik; SOULIER,Virginie, “Préfiguration du concept de muséologie citoyenne”. In: CARDIN, Jean-François; ÉTHIER, Marc-André; MEUNIER, Anik, Histoire, musées et éducation à la citoyenneté. Quebéc: MultiMondes, 2010. p. 309-330. MEYER, Melinda M., “A postmodern puzzle: rewriting the place of the visitor in art museum education”. In: Studies in Art Education. A Journal of Issues and Research, 46, n. 4, 2005, p. 356-368. MINTZ, Ann, “Science, society and science centres”. In: História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz, v. 12 (suplemento), p. 267-280, 2005. MOUTINHO, Mário Canova. “Os museus como instituições prestadoras de serviços”. In: Revista Lusófona de Humanidades e Tecnologias, n. 12. Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, 2008. PASTOR HOMS, Maria Immaculada. Pedagogia Museistica: nuevas perspectivas y tendencias actuales. Barcelona: Ariel, 2004. PEDRETTI, Erminia. G., “Perspectives on learning through research on critical issues-based science center exhibitions”. In: Science Education, v. 88, issue S1, p. 34-47, 2004. VICTOR, Isabel. Os museus e a qualidade - Distinguir entre museus com "qualidades" e a qualidade em museus. Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, 2005. (Cadernos de Sociomuseologia, 23) ROBERTS, Lisa C. From knowledge to narrative: educators and the changing museum. Washington e Londres: Smithsonian Institution Press, 1997.
Artigo recebido em abril 2014. Aprovado em agosto 2014.
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Ana Ruas
Ana Ruas, Balaústre, 2004, MARCO,Campo Grande, MS; fonte: http://anaruas.com.br/obras
Ana Ruas, Apagamento, 2014, MARCO,Campo Grande, MS; fonte: http://anaruas.com.br/obras
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Ana Ruas
R&M: A intervenção Balaustres de 2004 no Museu de Arte Contemporânea do Mato Grosso do Sul durou dez anos e (re)configurou o edifício durante este período. Como foi o processo de manutenção da obra neste período, seu relacionamento com o museu e, por fim, o “apagamento” da obra em 2014? Ana Ruas: Eu tenho orgulho de apresentar no meu portfólio a intervenção Balaústre. Penso que era um trabalho bem resolvido, ao contrário de alguns outros que eu não faria de novo. Também foi realizado no MARCO, um espaço generoso e de grande potencial. Durante os 10 anos, não houve manutenção, pois não era o objetivo estar lá para sempre, por outro lado não havia data para acabar. Parecia que o trabalho tinha se incorporado ao museu, marcava presença e criava diálogos. De forma geral, a intervenção provocava questionamento sobre tempo e espaço, sobre a relação do antigo e do novo, do ontem e do hoje, e do que realmente podemos considerar contemporâneo. Durante o período de permanência da obra, o saldo geral foi positivo. Um ou outro arquiteto inicialmente, ficou incomodado com aquele elemento arquitetônico, que transformava uma rampa em uma escada. Outra vez, um grupo finalizou uma performance, jogando tinta pelo chão e pela parede, atingiu assim a obra. Fiquei surpresa e na hora, comecei limpar para retirar a tinta. Depois, percebi que, minha reação foi impulsiva e provoquei um desconforto desnecessário com o grupo, a tinta era lavável e creio que os respingos não foram intencionais. Tudo foi resolvido com água! Num outro momento, um artista selecionado para um salão de arte, criou uma obra usando barro que subia por cima da balaustrada, como se estivesse engolindo a rampa, e foi premiado por isso! A coordenadora do museu não foi consultada para autorizar tal obra e, eu só fiquei sabendo quando entrei no museu para prestigiar o salão, parecia então, que não existia diálogo com o propósito de tal ação! Nunca publiquei o texto que escrevi à respeito. Preferi o silêncio! Em 2014, solicitei ao museu a autorização para apagá-lo, durante o seminário Entre vários Olhares – da pintura à intervenção, meu projeto contemplado pelo Prêmio FUNARTE Mulheres nas Artes Visuais. Convidei as 200 pessoas participantes a ajudar apagar os balaústres, aproveitando assim, a discussão do efêmero na arte contemporânea. Foi emocionante! Pessoas ajudaram, outras fotografaram e outras ficaram perplexas. A obra Balaústres e o Apagamento foram igualmente significativas. O happening que marcou o Apagamento criou um estranhamento e um suspense incrível. Na hora seguinte, o vazio, o silêncio e o branco deram margens à discussão sobre a ausência dos balaústres. Penso que a obra ganhou ainda mais força. R&M: É indubitável que no conjunto de seu trabalho a ocupação e a transformação do espaço podem ser compreendidas para além das possibilidades museológicas. Do mesmo modo, sua compreensão do elemento arquitetônico, seja na acepção convencional, seja na amplitude da condição urbana, nos apresenta o estranhamento e a suspensão do cotidiano habitado. Penso, por exemplo, em Projeção, de 2008, no viaduto Pedro Chaves em Campo Grande e Colunas, de 2009, na Pinacoteca da UFAL. De onde você parte para compreender o espaço a intervir? Ana Ruas: Crio arquiteturas efêmeras que embora possam atribuir novos significados ao espaço, a obra continua dialogando com ele. O assunto é sempre o lugar habitado, por isso, eu preciso entender e estar nele para tomar as
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decisões. Durante a pré-produção, levo em consideração todos os elementos e detalhes arquitetônicos, a localização/movimentação do espectador, assim como, o tempo que ele tem para ler a obra. No viaduto Pedro Chaves, a intenção era transformar uma estrutura plana em uma superfície dobrável, como um origami. Na Pinacoteca da UFAL, em Maceió, a pintura criava a sensação de que estávamos em um mezanino e que as colunas continuavam abaixo do chão da sala.
Colunas,2009, Pinacoteca de Alagoas, Maceió,AL; fonte: http://anaruas.com.br/obras
R&M: A partir de sua experiência, quais as dificuldades de um artista contemporâneo em produzir intervenções/alterações em espaços museológicos convencionais ou alternativos. Há diferenças consistentes? Ana Ruas: Quando a intervenção faz parte de um período de exposição, algumas instituições não acreditam que eu posso realizar em 3 ou 4 dias. Outra situação frequente é que nem sempre há permissão para interferir nas salas, no meu caso com a pintura. Em espaços externos ou espaços alternativos, isso ocorre com menos frequência e se tem menos burocracia. Nas duas circunstâncias, todavia, a questão da documentação do processo artístico é crucial. Tanto em espaços convencionais quanto alternativos minhas obras são criadas sob o signo do efêmero. Assim sendo, busco documentar ao máximo o processo, como forma de guardar alguma memória das e sobre as obras. R&M: Em seus projetos poéticos é visível o diálogo com programas e projetos educativos. Muitos artistas contemporâneos são contrários ao atual sistema de mediação, qual a sua relação com os educadores dentro e/ou fora das instituições? Ana Ruas: Considero importante os programas e os projetos educativos, inclusive, quando faço exposições em Campo Grande, minha presença é constante no museu. Acredito na mediação quando ela provoca questionamentos e não quando é feita de forma a despejar informações. No meu ateliê, desde 2011, realizo projetos educativos com escolas públicas e particulares, contemplando
Ana Ruas
workshop para alunos e para professores com ou sem Leis de Incentivo! Entre os projetos tenho “Como introduzir a arte contemporânea na escola”, “Leitura de imagem” e “Motivos e estratégias para evitar o desenho estereotipado na escola”. Meu ateliê tem também a função de criar público e ampliar discussões de arte contemporânea com artistas, curadores, críticos de arte, professores universitários, acadêmicos e apreciadores de arte. Como artista e como cidadã, penso ser importante criar estratégias, para formação do público e de ações que visem a Educação do olhar, assim, além de produzir, dou minha contribuição para que as próximas gerações talvez estejam mais interessadas e motivadas a contemplar e discutir a arte, em especial a arte contemporânea. Ana Ruas . www.anaruas.com.br. vive e trabalha em Campo Grande – MS. Tem como pesquisa, num repertório conceitual, o espaço e o lugar habitado ; a intervenção urbana de sua e de outras cidades; a luz do centro-oeste; os imensos espaços aéreos e a arquitetura tipicamente horizontal da cidade de Campo Grande. O desejo de intervir leva a artista a criar arquiteturas efêmeras, capazes de imprimir um caráter de ilusão e magia. As pinturas não tem qualquer finalidade prática, mas, mostra como é possível criar novas sensações e, portanto, novos significados ao espaço. Usa a pintura como linguagem e a superfície de viadutos, muros, paredões , no centro e nos bairros de periferia. O mesmo ocorre nas intervenções em ambientes internos, como museus e galerias. Em 2014, participou da Bienal del Fin del Mundo, em Mar del Plata, na Argentina e pintou a fachada do MACP – Museu de Arte e de Cultura Popular, Cuiabá, MT, em comemoração aos 40 anos da Instituição. Em 2013, foi contemplada com o prêmio FUNARTE Mulheres nas Artes Visuais, com o projeto Seminário Entre Vários Olhares: da Pintura à Intervenção. O projeto foi executado em 2014 atingindo um público de 205 pessoas. Entre 2001 e 2003, idealizou o projeto A Cor das Ruas, contemplando 53 bairros de Campo Grande, com a participação de 720 adolescentes de diversas instituições. Em 2015, a artista venceu o Prêmio PIPA na categoria Popular.
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