Universidade de Brasília
Faculdade de Ciência da Informação
Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação - UnB
nº 8,Vol. 4, 2015 ISSN 2238-5436
Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação - UnB PPGCINF/FCI/ UnB
REITORIA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
COMISSÃO EDITORIAL
Ivan Marques de Toledo Camargo
Celina Kuniyoshi Deborah Silva Santos
DIRETORIA DA FACULDADE DE
Elizângela Carrijo
CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO
Luciana Sepúlveda Köptcke
Elmira Luzia Melo Soares Simeão
Marijara Souza Queiroz Monique Batista Magaldi
COODENADOR DA PÓS-GRADUAÇÃO
Silmara Küster de Paula Carvalho
EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO Fernando César Lima Leite
EDITORES Ana Lúcia de Abreu Gomes
CONSELHO CONSULTIVO
Andrea Fernandes Considera
Cecília Helena L. de Salles Oliveira
Emerson Dionisio Gomes de Oliveira
James Counts Early Lena Vânia Pinheiro Ribeiro
SECRETARIA
Lillian Alvares
Vivian Miatello
Luiz Antonio Cruz Souza Marcus Granato
PROJETO GRÁFICO/
Maria Célia Teixeira Moura Santos
EDITORAÇÃO ELETRONICA
Maria Cristina Oliveira Bruno
Núcleo de Editoração e Comunicação/FCI
Maria Margaret Lopes
Cláudia Neves Lopes
Marília Xavier Cury
Bruna Ribeiro de Freitas
Mario de Souza Chagas Mário Moutinho
CAPA
Myrian Sepúlveda dos Santos
André Maya Monteiro
Renato Monteiro Athias Tereza Cristina Moletta Scheiner Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses
Universidade de Brasília
Faculdade de Ciência da Informação
Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação - UnB
nº 8,Vol. 4, 2015 ISSN 2238-5436
M u s e o l o g i a & I n t e r d i s c i p l i n a r i d a d e Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCInf) Faculdade de Ciência da Informação (FCI), Universidade de Brasília Edifício da Biblioteca Central (BCE), Entrada Leste, Mezanino, Sala 211 Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte, Brasília CEP: 70910-900 e-mail: revistami@unb.br ; Contribuições devem ser submetidas pelo site: http://seer.bce.unb.br/index.php/museologia
Todos os direitos reservados A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei no 9.610). Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Museologia e interdisciplinaridade: publicação eletrônica do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Universidade de Brasília. Faculdade de Ciência da Informação. – v.4, n.8 (2015) – Brasília: UnB/FCI, 2015v. Semestral Resumo em português e inglês. Disponível no SEER: http://seer.bce.unb.br/index.php/museologia ISSN 2238-5436 1. Museologia. 2. Patrimônio e memória. Artes Visuais. Antropologia. História. Interdisciplinaridade em Museologia. I. Universidade de Brasília. Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Faculdade de Ciência da Informação. CDU: 069.01(051)
SUMÁRIO
EDITORIAL 9 Ana Lúcia de Abreu Gomes Emerson Dionisio Gomes de Oliveira DOSSIÊ: PATRIMÔNIO 12 Diana Farjalla Correia Lima LUGARES DE MEMÓRIA DA DITADURA E A PATRIMONIALIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA POLÍTICA 15 Icléia Thiesen; Priscila Cabral Almeida PATRIMÔNIO ÍNTIMO: A EXPERIÊNCIA DO AUTÊNTICO NAS ARTES PRIMEIRAS 31 Bruno Brulon A MUSEALIZAÇÃO DA COLEÇÃO ETNOGRÁFICA DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI Alegria Benchimol
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O LIVRO RARO E ANTIGO COMO PATRIMÔNIO BIBLIOGRÁFICO: APORTES HISTÓRICOS E INTERDISCIPLINARES Valeria Gauz
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PROGRAMA NACIONAL DE PATRIMÔNIO IMATERIAL E MUSEU: APONTAMENTOS SOBRE ESTRATÉGIAS DE ARTICULAÇÕES ENTRE PROCESSOS DE PATRIMONIALIZAÇÃO E DE MUSEALIZAÇÃO Elizabete de Castro Mendonça
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PATRIMÔNIO MEIO AMBIENTE E MUSEOLOGIA DE RELAÇÕES: REFLEXÕES SOBRE UM PATRIMÔNIO NO DEVIR 107 Luisa Maria Rocha LYGIA MARTINS COSTA: NARRATIVA SOBRE SUAS CONTRIBUIÇÕES À MUSEOLOGIA E AO PATRIMÔNIO 129 Ivan Coelho de Sá DIREITO À MEMÓRIA E MUSEUS 147 Andréa Fernandes Considera “MUSEU DO MANGUE PEGA FOGO”: EXPLOSÃO DISCURSIVA E PRODUÇÃO DE SENTIDOS SOBRE O MUSEU DO MANGUE DE ARACAJU/SE 158 Clovis Carvalho Britto Roberto Fernandes dos Santos Júnior HÁ SENTIDO NA EDUCAÇÃO NÃO FORMAL NA PERSPECTIVA DA FORMAÇÃO INTEGRAL? 171 Fernanda Rabello de Castro A DOCUMENTAÇÃO ARQUEOLÓGICA SOBRE AS FIGURAS ZOOMORFAS DE CERÂMICA DO SÍTIO BRAZABRANTES I NO CENTRO OESTE BRASILEIRO José Luiz Lopes Garcia Francesco Palermo Neto POR UMA POLÍTICA DE CIDADANIA: O ECOMUSEU “DOS CAMINHAMENTOS DO SERTÃO” Alcidea Coelho Costa Sulivan Charles Barros
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PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO: FERRAMENTA INDISPENSÁVEL NA GESTÃO EFICIENTE DE MUSEUS Ednaldo Soares
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O PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO MUSEAL (PNEM) E SUA ARTICULAÇÃO NA REGIÃO DOS INCONFIDENTES Valéria da Conceição Chaves
223
CURIOSIDADE E ENCANTAMENTO: A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DOS VISITANTES DE UM MUSEU DE CIÊNCIAS Gustavo Lopes Ferreira Daniela Franco Carvalho
239
DECIFRANDO CONCEITOS EM MUSEOLOGIA: ENTREVISTA COM MÁRIO CANEVA MOUTINHO Ana Carvalho
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UMA POSSIBILIDADE DE INTERLOCUÇÃO ENTRE ARQUIVOLOGIA, BIBLIOTECONOMIA, MUSEOLOGIA E CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO Daniele Galvão Pestana Nogueira
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MUSEUS E PATRIMÔNIO CULTURAL NO ENSINO DE HISTÓRIA Renato Rodrigues Lima
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CAPA Elida Tessler
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EDITORIAL
Ana Lúcia de Abreu Gomes Andréia Fernandes Considera Emerson Dionisio Gomes de Oliveira
Como uma revista que tem a interdisciplinaridade não apenas como meta, mas em sua base, conforme afirmamos no primeiro número da revista, não poderíamos deixar de trazer aos nossos leitores um campo de difícil fronteira com a Museologia e os museus que é o do Patrimônio. Nesta oitava edição de nossa revista, convidamos a Prof.ª Dr.ª Diana Farjalla Correia Lima, pesquisadora de referência no campo e professora da Escola de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro para coordenar o dossiê sobre o tema. Diana Farjalla, ciente dos deslizamentos semânticos do campo do patrimônio, nos apresenta em sete artigos essa pluralidade reveladora de usos e práticas diversos. Os artigos do dossiê discutem desde a institucionalização de espaços de resistência e a ressemantização dos museus etnográficos e processos de musealização de suas coleções até os desafios da patrimonialização do meio ambiente e das coleções bibliográficas. Há que se destacar ainda o debate acerca das relações entre os processos de musealização e patrimonialização apresentados aqui por meio da política pública de salvaguarda do patrimônio imaterial. Por fim, ciente de que o maior patrimônio são as pessoas, Diana Farjalla nos brinda com o artigo do Prof. Ivan Coelho de Sá, que nos apresenta a trajetória da longeva museóloga Lygia Martins Costa a quem esta revista teve a honra de entrevistar em outubro de 2010 e cuja transcrição da entrevista compõe o primeiro número da Museologia & Interdisciplinaridade. Na sequencia de nosso Dossiê, oito artigos, uma entrevista e duas resenhas. Os artigos de Andrea Considera, Alcidea Costa e Sulivan Barros se debruçam sobre os diferentes aspectos da relação entre museus, cidadania e memória. Clovis Britto e Roberto Fernandes dos Santos Junior adensam a discussão acerca do político nos museus a partir de um museu incendiado e dos arquivos concernentes. A discussão acerca da produção de documentação também se faz presente no artigo de José Luiz Lopes Garcia e Francesco Palermo Neto. A relação dos museus com o seu público é o objeto dos estudos e pesquisas de Gustavo Lopes Ferreira, Daniela Franco Carvalho, Valéria da Conceição Chaves e Fernanda Rabello de Castro. O tema da Gestão e do Planejamento estratégico também se encontra contemplado por meio do estudo de Ednaldo Soares.
Aproveitamos esse editorial para agradecer a Ana Carvalho, pesquisadora e professora da Universidade de Évora que, por meio de sua entrevista com Mario Moutinho, nos aproxima dos processos de institucionalização do campo de conhecimento da Museologia nos estudos de pós-graduação em Portugal.
MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1V, nº8, dez. de 2015
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NOSSOS PARECERISTAS
A publicação de revista Museologia e Interdisciplinariedade não seria possível sem a constituição de um corpo de pareceristas que atuam como avaliadores dos trabalhos submetidos à Revista. Um trabalho coletivo que agrega pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento. Pesquisadores que gentilmente colaboraram de maneira voluntária. Agradecemos nominalmente aos colegas que atenderam a nossa solicitação e tornaram-se parte integrante da história dessa jovem publicação: Adriana Mortara Almeida (Museu Histórico do Instituto Butantan) Alda Lucia Heizer (Inst. de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro-JBRJ) Ana Lúcia de Abreu Gomes (UnB) Ana Maria Dalla Zen (UFRGS) Andréa Fernandes Considera (UnB) Camila Azevedo de Moraes Wichers (UFG) Camilo de Mello Vasconcellos (USP) Carlos Alberto Ávila Araujo (UFMG) Carmen Irene Correia de Oliveira (UNIRIO) Cátia Rodrigues Barbosa (UFMG) Elizabete de Castro Mendonça (UNIRIO) Emanuel Sousa Ribeiro (UFPE) Emerson Dionisio Gomes de Oliveira (UnB) Fabíola Andreá Silva (MAE-USP) Francisco Sá Barreto (UFPE) José Cláudio Alves de Oliveira (UFBA) Karla Estelita Godoy (UFF) Ligia Maria Arruda Café (UFSC) Lillian Maria Araújo de Rezende Alvares (UnB) Luciana Ferreira da Costa (UFPB) Luciana Sepúlveda Köptcke (UnB/Fiocruz) Luiz Antonio Cruz Souza (UFMG) Maria Esther Alvarez Valente (MAST/UNIRIO) Maria de Fátima Morethy Couto (Unicamp) Maria Júlia Estefânia Chelini (UnB) Maria Margaret Lopes (UnB/Unicamp) Martha Marandino (USP) Milton Terumitsu Sogabe (Unesp) Monique Bastista Magaldi (UnB) Renato Athias (UFPE) Robson Xavier da Costa (UFPB/UFPE) Sidélia Santos Teixeira (UFBA) Silmara Küster de Paula Carvalho (UnB) Suzana Cesar Gouveia Fernandes (Instituto Butantan) Thérèse Hofmann Gatti Rodrigues da Costa (UnB) Valdir José Morigi (UFRGS) Zita Rosane Possamai (UFRGS)
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DOSSIÊ: PATRIMÔNIO
MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.1V, nº8, dez. de 2015
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Diana Farjalla Correia Lima1 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
A Revista Museologia & Interdisciplinaridade neste número temático dedicado ao Patrimônio apresenta oito profissionais – autores e organizadora da coletânea -- afinados com o perfil da publicação criada pelo Curso de Museologia, vinculada ao Grupo de Pesquisa Museologia, Patrimônio e Memória do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília. A composição do grupo escolhido retrata pontos de conexão firmados nos entrelaces dos caminhos cotidianos que o espectro do conhecimento desenvolve no contexto da Museologia. E, em especial, pela graduação em Museologia: Bruno Brulon, Diana Farjalla Correia Lima, Elizabete de Castro Mendonça, Icléia Thiesen, Ivan Coelho de Sá, Luisa Maria Rocha; pela pós-graduação em Ciência da Informação; Alegria Benchimol, Diana, Icléia, Luisa, Valéria Gauz; em Memória Social: Diana, Priscila Cabral Almeida; pelo exercício docente: Bruno, Diana, Elizabete, Icléia, Ivan, Luisa (Museologia e Patrimônio, História); pela vivência nos espaços dos museus de Ciências e de História: Alegria, Luisa,Valéria. Portanto, um elenco cujas experiências são a razão de estarem partilhando na Revista as facetas das questões patrimoniais no panorama museológico. Seus olhares dizem da multiplicidade das feições interpretativas e nominações que o assunto apresenta ao modo de um mosaico de cuidadosa elaboração. E no âmbito das perspectivas do Patrimônio integradas ao campo museológico, domínio detentor de aspectos da ordem do patrimônio musealizado e do patrimônio musealizável, e do duplo efeito da musealização ao efetivar a patrimonialização, os autores nas abordagens construídas compõem um painel da representação patrimonial cujos conteúdos ensejam estimulantes reflexões. Assim, perpassando o conjunto conceitual e instrumental dado a patrimônio, patrimonialização, museologia, musealização nas interpretações emprestadas e nas discussões encetadas a presente edição faz-se composta pelas seguintes proposições: Icléia Thiesen e Priscila Cabral Almeida em “Lugares de memória da ditadura e a patrimonialização da experiência política” focalizam a problemática que envolve a institucionalização de espaços vinculados a memória das lutas da resistência ao regime de exceção. A pesquisa no que concerne à reconstrução 1 Museóloga (MHN-UFRJ), professora: curso de graduação em Museologia, UNIRIO, e Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio UNIRIO/MAST, pesquisadora CNPq.
da memória coletiva destaca o emblemático e ainda obscuro episódio nomeado Guerrilha do Araguaia (1972-1974), indica a relevância da justiça de transição como espaço e processo interdisciplinar conceitual e operacional para elucidação das ocorrências. O artigo vem a representar um aporte estratégico para apropriar, musealizar e patrimonializar os lugares de memória “dando publicidade aos fatos encobertos”, até agora. Bruno Brulon em “Patrimônio íntimo: a experiência do autêntico nas artes primeiras” relaciona a experiência do visitante de uma exposição museológica de material etnográfico à questão da atribuição de valor pelo museu a este tipo de coleção. E ao ser classificada como artes primeiras sob o prisma do valor estético alija do contexto a interpretação antropológica. Como exemplo da situação focaliza o Museu do quai Branly. Aponta a necessidade de rever os referenciais aplicados no âmbito da Museologia e do Patrimônio para analisar os processos de “autentificação” e valoração dos objetos de culturas ‘estranhas’ aos olhares etnocêntricos europeus e, para tanto, articula proposta baseada na “perspectiva axiológica para investigar a patrimonialização e a musealização como processos sociais”. Alegria Benchimol aborda “A musealização da coleção etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi”. No largo período temporal da realização do processo museológico envolvendo a coleção, em especial representativa da região amazônica, dá a conhecer os aspectos conceituais e as ações que foram aplicados e desenvolvidos pelos especialistas responsáveis. Relaciona ao conceito de objeto etnográfico o de artefato, de mentefato e de documento. A pesquisa revela que as etapas da musealização se processam de forma interdependente, em modo complementar e definindo o “status do objeto como patrimônio”. Valeria Gauz em “O livro raro e antigo como patrimônio bibliográfico: aportes históricos e interdisciplinares” no quadro das tipologias e da polissemia patrimonial apresenta o aspecto singular detido pelos Livros Raros: mantêm o caráter original na patrimonialização, isto é, permanece livro com sua função de leitura, diferentemente de outras classes do patrimônio que sofrem ressignificações. O contexto de construção do patrimônio bibliográfico é debatido e a pesquisa alerta para carências de investigações sobre o tema, “uma quase invisibilidade”, situando que “Praticamente não existem grupos de pesquisa no país, integrantes do CNPq, que se dediquem especificamente ao livro raro e ao patrimônio bibliográfico na atualidade”. Elizabete de Castro Mendonça apresenta o “Programa Nacional de Patrimônio Imaterial e museu: apontamentos sobre as estratégias de articulações entre processos de patrimonialização e de musealização” e faz ver a Musealização atuando como instrumento de Patrimonialização no contexto de ação da esfera oficial, âmbito de planos de salvaguarda (2002-2013) voltados às expressões culturais imateriais. A pesquisa toma como estudo de caso a proposta de criação do Museu do Samba (em andamento), transmutação do perfil do Centro Cultural Cartola: da titulação ao seu conteúdo de representação. A análise busca identificar e questiona as condições conceituais e práticas que poderiam respaldar a mudança. Sua reflexão aponta as estratégias de articulação para patrimonializar e musealizar encaminhando reconhecer o papel dos museus ao modo de um equipamento cultural “no cenário das políticas públicas federais para bens imateriais”.
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Dossiê: Patrimônio
MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol. IV, nº 8, dez. de 2015
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Luisa Maria Rocha vem expor e discutir em “Patrimônio meio ambiente e museologia de relações: reflexões sobre um patrimônio no devir” as dificuldades enfrentadas pelos museus com suas práticas atuais para atuar de modo ativo no tema da conservação de um meio ambiente que irá se perpetuar no futuro. E o patrimônio ambiental no seu senso coletivo merece ser encarado segundo valor de “patrimônio ético”, articulando-se ambiência de relações entrecruzando questões de ordem política, econômica, social, cultural, infocomunicacional entre outras, expandindo conceitos tradicionais de preservação e patrimônio que redefinem o papel do museu na guarda e na gestão de “projeto de patrimônio” alicerçado “nas gerações futuras”. No espaço da musealização desse patrimônio emergem a cidadania e direito ao meio ambiente construído no presente e voltado ao tempo vindouro, assumindo o museu o caráter social de território conceitual de adequação temática e de ação para “exposições, sensibilização, debates, mobilização e legitimação”. Ivan Coelho de Sá no artigo “Lygia Martins Costa: narrativa sobre suas contribuições à Museologia e ao Patrimônio” permite conhecer na conjugação patrimônio e museologia a trajetória de D. Lygia, “atualmente com quase 101 anos de idade”, a atividade desempenhada peça primeira mulher museóloga a atuar no IPHAN (anos 50) ao lado de nomes emblemáticos da história da instituição. Sua vida profissional assinala ativa participação na identificação e classificação de acervos artísticos no Museu Nacional de Belas Artes e no IPHAN, na criação e efetivação de associações profissionais: Organização Nacional do ICOM (ONICOM); Associação Brasileira de Museologia (ABM), e na responsabilidade por exposições de grande vulto. Sobretudo, sua vida revela caráter pioneiro descortinando caminhos para os museólogos e permite acompanhar momentos da história da Museologia e do Patrimônio no Brasil. Ao encerrar a breve introdução refletindo o conjunto dos artigos e na qualidade de coordenadora desta edição, eu convido os leitores a desfrutarem do prazer que tive ao ler cada um dos textos. As mãos hábeis dos autores irão conduzi-los para as interessantes vias que descortinam.
LUGARES DE MEMÓRIA DA DITADURA E A PATRIMONIALIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA POLÍTICA Icléia Thiesen1 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Priscila Cabral Almeida2** Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro RESUMO: Lugares de memória vêm se institucionalizando em espaços outrora utilizados por instituições públicas cujas atividades foram marcadas pela violência e sobretudo pelo segredo em torno do seu cotidiano. Na região do Bico do Papagaio, na cidade de Marabá (PA), está situada a Casa Azul, onde funcionou o DNER nas décadas de 1970 e 1980, encobrindo suas reais funções, pois constituía, na prática, um centro clandestino de tortura. Em Xambioá, norte de Goiás, hoje Tocantins, houve diversos combates no mesmo período. Este artigo tem por objetivo analisar acontecimentos ocorridos no âmbito do episódio conhecido por Guerrilha do Araguaia. Trata-se de uma estratégia da memória voltada para a apropriação, patrimonialização e musealização desses espaços, dando publicidade aos fatos encobertos pela zona cinzenta da violência de Estado perpetrada durante a Ditadura de 1964. PALAVRAS-CHAVE: patrimônio; lugares de memória; Casa Azul; Guerrilha do Araguaia; justiça de transição.
Sites of Memory of the Dictatorship and the process of patrimonialising the political experience ABSTRACT: Places of memory are being institutionalized in places occupied in the past by public institutions marked by the violence and the secret surrounding their activities. In the region of Bico do Papagaio, in the city of Marabá (PA) it is located the Casa Azul, where the National Road’s Department (DNER) worked in the 1970’s and the 1980’s, covering up its real function, because in practice the place worked as a clandestine center of torture. In Xambioá, north of Goiás state, now Tocantins state, several combats occurred in the same period. This article aims to analyze the events that took place in this site in the occasion of the episode known as Araguaia Guerrilla.This is a strategy of memory to appropriate, patrimonialization, musealization and turning into museums these spaces to promote the publicity of the facts covered up by the grey area of the State violence practiced during the Dictatorship of 1964. KEYWORDS: cultural heritage; places of memory; Casa Azul; Araguaia Guerrilla; transitional justice.
1 Professora Titular do Departamento de História da UNIRIO, do PPGH e do PPGB. Membro da Comissão de Altos Estudos Memórias Reveladas (AN/MJ). Pesquisadora do CNPq. 2** Mestre em Memória Social (PPGMS/UNIRIO) e Doutoranda em História Política e Bens Culturais (PPHPBC-FGV). Bolsista de doutorado FAPERJ, vinculada ao Projeto de Pesquisa Arqueologia da reconciliação: formulação, aplicação e recepção de políticas públicas relativas à violação de direitos humanos durante a ditadura militar, que tem como finalidade gerar subsídios aos trabalhos desenvolvidos pela Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-RIO).
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Lugares de memória da Ditadura e a patrimonialização da experiência política
« Le devenir de la mémoire est un devenir du savoir fait d’expérience, récits, lectures : le savoir nouveau permet d’expliciter l’insu de l’obscure mémoire. » Gérard Namer
MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol. IV, nº 8, dez. de 2015
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1.Introdução A noção de patrimônio nos remete a um juízo de valor, atribuído a objetos, áreas geográficas, cidades, edificações e outros bens culturais. Nascido do vocabulário romano Patrimonium, ganha conotação jurídica e frequentemente assinala um direito adquirido por laços de família, herança do pai, representação da pátria, testemunho do passado, memória. A nova dimensão do termo, que apareceu há cerca de dois séculos, conforme assinala André Chastel (1997: 1433), é global e vaga ao mesmo tempo. A proposta deste artigo é discutir o processo de reconstrução da memória coletiva tendo como foco um espaço que serviu de palco para episódios dramáticos ocorridos na Floresta Amazônica, na região do Bico do Papagaio, cidade de Marabá, conhecidos como Guerrilha do Araguaia. Entre as premissas que estão na base do presente artigo, encontram-se algumas ideias e conceitos norteadores das discussões sobre patrimônio, valores e lugares de memória. Trata-se de destacar o contexto das discussões que serão aqui desenvolvidas, assim como a situação de nosso objeto no campo da experiência. Isso nos permitirá recolocar o tema em um quadro social da memória – espaço-tempo, no sentido articulado por Maurice Halbwachs e por seu estudioso e crítico maior, Gérard Namer, em diálogo com Pierre Nora que detém a paternidade do termo “lugares de memória”. Seria possível uma articulação de ideias em torno de um acontecimento histórico atualizado pela memória coletiva? Em que medida um conceito se atualiza, no tempo histórico, e pode funcionar como operador do pensamento, conforme assinalado por Gilles Deleuze e Félix Guattari? A Guerrilha do Araguaia constitui um dos eventos mais emblemáticos e obscuros de nossa história recente. Ocorridos na região do Bico do Papagaio, no norte de Goiás (atual Tocantins), a oeste do Maranhão e no sul do Pará, entre 1972 e 1974, os diversos episódios que ali tiveram lugar são ainda hoje objeto de inúmeras questões não esclarecidas pela historiografia, sobretudo no que se refere aos desaparecimentos dos guerrilheiros que ali tombaram. No contexto histórico marcado pelos 50 anos do golpe que instituiu a Ditadura no Brasil contribuir para os estudos sobre lugares de memória da ditadura pode constituir também uma oportunidade para a atualização das discussões sobre o deslocamento de conceitos no espaço-tempo do conhecimento científico DELEUZE; GUATTARI: 1992) . Discutiremos questões que se colocam no espírito da Justiça de Transição e do eixo contido no Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), da 1
1 “A Justiça Transicional é um ramo altamente complexo de estudo, que reúne profissionais das mais variadas áreas, passando pelo Direito, Ciência Política, Sociologia e História, entre outras, com vistas a verificar quais processos de justiça foram levados a cabo pelo conjunto dos poderes dos Estados nacionais, pela sociedade civil e por organismos internacionais para que, após o Estado de Exceção, a normalidade democrática pudesse se consolidar.” (ABRÃO et alii, 2009).
Icléia Thiesen, Priscila Cabral Almeida
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, aprovado pelo Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009, cujo Eixo Orientador VI aborda o Direito à Memória e à Verdade. Não por acaso esse é o objetivo maior de diversos segmentos da sociedade e dos movimentos sociais, especialmente dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, em busca ainda do reconhecimento dos crimes de Estado cometidos na Ditadura de 1964 no Brasil. Esse Plano constitui um documento bastante avançado em seus objetivos e deveria ser mais claramente conhecido da sociedade brasileira, carente de políticas públicas de direitos humanos e de ações traduzidas em práticas sociais2. Apesar dos acontecimentos terem sido fartamente documentados pelas forças armadas, segundo informações constantes de diversas fontes3, os arquivos relativos a esse acontecimento ainda não se encontram inteiramente localizados e/ou recolhidos a alguma instituição arquivística e disponíveis para consulta, como seria esperado, se considerarmos que 30 anos se passaram após o final dos governos militares. Durante mais de 40 anos se negou a existência desses arquivos, muitos dos quais hoje já conhecidos. A prática de documentar sistematicamente as ações empreendidas por agentes do Estado em períodos de exceção se confirma, da mesma forma fica evidente que boa parte da produção documental com valor de prova e peso jurídico jamais chegou ao seu destino, vale dizer, o Arquivo Nacional ou os arquivos estaduais. Em julho de 2001, o Ministério Público Federal e a CEMDP estiveram na região, em missão de investigação realizada nas cidades de Marabá, São Domingos do Araguaia, Palestina, Brejo Grande, São Geraldo e Xambioá, conforme explica Janaína Teles, membro da referida Comissão e participante da viagem. Presa aos cinco anos de idade com sua família no DOI-CODI de São Paulo, em 1972, relata em obra que organizou a partir de um seminário realizado em 1997, na USP, que “o Ministério Público colheu cinquenta depoimentos de moradores” (TELES, 2001: 17) das cidades antes mencionadas, o que denota a existência de uma memória viva que sobreviveu ao tempo. A violência utilizada pelas Forças Armadas entre os anos de 1972 e 1974 marcou definitivamente a região e a vida dos moradores. Janaína Teles, sobrinha de André Grabois, desaparecido na Guerrilha do Araguaia, em 1973, explica o alcance dos danos sofridos: Quase a totalidade da população masculina foi presa e torturada, muitos perderam suas terras e criação de animais e, até hoje [2001], não receberam nenhuma reparação material ou moral em função dos danos sofridos. [...] Os primeiros a serem presos durante essa fase da Guerrilha foram os comerciantes das cidades, depois, os moradores mais afastados dos vilarejos. A população também passou fome, pois as árvores frutíferas e parte da floresta foram destruídas pelos militares e madeireiras. (TELES, 2001: 17)
Em suas investigações na região de Marabá, segundo relata a autora, o Ministério Público [...] descobriu o escritório do Exército, onde encontrou documentos secretos amplamente divulgados na imprensa. [...] Depois da divulgação 2 Disponível em: <www.sedh.gov.br>. Acesso em: 04 set. 2014. 3 MORAES; SILVA (2005); MORAES (2008); NOSSA (2012); CAMPOS FILHO (2012); CAMPOS FILHO (2015), entre outros.
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Lugares de memória da Ditadura e a patrimonialização da experiência política
dos documentos encontrados em Marabá, o Exército instaurou um Inquérito Policial Militar para apurar possíveis irregularidades cometidas pelo grupo de procuradores que tentam encontrar os restos mortais dos guerrilheiros. A Advocacia Geral da União também fez um pedido para investigar os procuradores. (TELES, 2001: 20)
MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol. IV, nº 8, dez. de 2015
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Décadas se passaram desde que se iniciaram as buscas por informações, documentos, vestígios. Contudo, apesar dos avanços alcançados, os lugares marcados pelos acontecimentos traumáticos do período guardam memórias e histórias em grande medida desconhecidas, o que alimenta um conjunto de representações distorcidas que circulam em veículos de comunicação massiva sobre a história recente do Brasil. Daí a decisão de analisar a literatura interdisciplinar, assim como documentos primários produzidos sobre o tema, como notícias publicadas em jornais, ao longo do tempo, além do Relatório final da Comissão Nacional da Verdade, entre outras fontes. A discussão sobre a natureza dos documentos produzidos em regimes de exceção é imprescindível para a compreensão do trabalho da memória realizado no âmbito da justiça de transição, o que colocará em evidência o testemunho e a experiência não apenas dos que participaram nos episódios aqui analisados e sobreviveram aos mesmos, mas dos juristas e pesquisadores integrantes da Comissão Nacional da Verdade. Afinal, conforme a compreensão de Paul Ricoeur, “com o testemunho inaugura-se um processo epistemológico que parte da memória declarada, passa pelo arquivo e pelos documentos e termina na prova documental” (2007: 170). O cruzamento dos documentos sensíveis4 com os testemunhos colhidos ao longo do tempo abriu caminho para os esclarecimentos necessários à configuração da verdade e ao reconhecimento dos fatos ocorridos, sem os quais não há inscrição na história nem na memória coletiva nacional. Nesse caso, permaneceria o conhecimento fragmentário e distorcido que circula nas instâncias do senso comum, cujo imaginário é formado e reforçado por representações sociais comprometidas com os mesmos episódios. Daí a importância de se distinguirem fatos e representações (PORTELLI, 1996). Partimos do pressuposto de que o tema aqui tratado diz respeito não apenas aos campos da Museologia, da História, da Arquivologia e da Memória social, mas ao do Direito e, sobretudo, ao da Ciência da Informação que reconhece as fronteiras interdisciplinares desses campos por terem a informação e o documento como parte de suas respectivas problemáticas. O tema enfocado neste artigo situa-se exatamente nesses limites epistemológicos, na medida em que recolhemos de cada campo as diferenças e semelhanças de abordagem dos lugares de memória enquanto expressões de um passado revisitado. 2. Lugares de Memória, lugares de experiência e as batalhas da memória O tema da experiência é recorrente nas temáticas abordadas na obra de Walter Benjamin. O narrador, texto clássico da década de 1930, o coloca no centro das discussões quase como um lamento, uma ode à narração como transmissão de experiências, que estaria perdendo espaço para a informação, 4 Trata-se de documentos produzidos no curso das atividades administrativas em regimes de exceção, situados entre a memória vivida (individual) e a memória histórica (THIESEN: 2014).
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sobretudo aquela que se confunde com notícia e já vem interpretada na origem. Aponta para as perdas trazidas no pós-guerra que impediam as pessoas de contar suas experiências dolorosas, caladas pela dor. Em Experiência e Pobreza, texto originalmente escrito em 1933, Benjamin pergunta: “Na verdade, de que nos serve toda a cultura5 se não houver uma experiência que nos ligue a ela?” (BENJAMIN, 2012: 86). Antevendo as “atrocidades em massa do século XX” (RICOEUR, 2007: 170), Benjamin denuncia as mídias que valorizam o instantâneo em detrimento da arte de narrar, o que levaria, por via de consequência, à perda da memória do ofício (BENJAMIN, 2012). Os lugares de memória são objeto de novas discussões em nossa contemporaneidade e ganham força no âmbito da chamada justiça transicional. Isto porque acontecimentos não revelados em sua inteireza por instituições do Estado passam a ser problematizados por narrativas de personagens que vivenciaram experiências vinculadas a determinados espaços utilizados como centros de tortura durante a Ditadura de 1964. Esclarecimentos das circunstâncias através das quais se deram tais episódios são fundamentais para que as evidências venham à tona e o silêncio se quebre num trabalho de reconhecimento dos crimes então cometidos. Outrora configurados como lugares privilegiados da tradição e das nações, as linhas que os definiram ainda permanecem vivas em nosso trabalho contemporâneo de reaproximação conceitual.Vejamos a assertiva do autor: Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento [de] que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais [...]. [Os lugares de memória] são bastiões sobre os quais se escoram. Mas, se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los. (NORA, 1993: 13)
A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, instalada em 28 de agosto de 2001, a partir da Medida Provisória nº 2.151, tem tido papel fundamental para acolher e promover iniciativas de memorialização. Ao alargar o conceito de reparação para além do ressarcimento monetário, tem promovido ações para cumprir com um dever de cunho moral em relação ao passivo da ditadura, que se ancora no plano simbólico e na perspectiva de promover um debate público sobre o assunto. Para Paulo Abrão (ABRÃO; TORELLY, 2011), presidente da Comissão, apesar do processo de indenização constituir o eixo estrutural da justiça de transição no Brasil, a partir do artigo 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias houve o reconhecimento da anistia aos perseguidos políticos, do direito de resistir, da ideia de anistia ligada à reparação (com variedade de medidas e dirigida aos perseguidos políticos), e sua extensão no tempo e em seu alcance – 1946-1988. O processo de reparação deu visibilidade às lutas das vítimas, grupos ganharam capacidade de ação, o que impulsionou outros movimentos de direitos humanos. A reparação como reconhecimento mostra que as vítimas não foram só 5 Em outra edição, em vez de “cultura” o tradutor usou a expressão “patrimônio cultural”.Ver BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ___. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.115. (Obras Escolhidas, 1)
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despojadas de suas posses materiais, mas também sofreram perdas no plano subjetivo. Para a recuperação da confiança cívica, a Comissão da Anistia promove as Caravanas da Anistia, a construção do Memorial da Anistia e o projeto Marcas da Memória. As Caravanas da Anistia consistem em sessões públicas itinerantes para pedidos de reparação por perseguição política, quando são realizadas homenagens e atividades culturais e educativas. Ao final das sessões, a palavra é dada ao anistiado, seguido de um pedido de perdão público oficial do Estado, diante do qual a reparação moral e individual ganha âmbito coletivo. Esse ato público transforma a concessão do pagamento em algo secundário, pois os anistiados recuperam seu sentimento de pertencimento ao país, recompondo suas identidades e o próprio sentido de comunidade política. No âmbito coletivo, os atos públicos e homenagens permitem que as novas gerações se sintam inseridas na pluralidade de histórias do país. A construção do Memorial da Anistia nasceu da necessidade de disponibilizar o acervo dos processos levados a cabo pela Comissão da Anistia, totalizando quase 74.000 processos, contendo documentos escritos, testemunhos, materiais de áudio e vídeo. Estes documentos mostram a perseguição política sofrida pelas vítimas e relatam a história do Brasil na perspectiva dos perseguidos pelo Estado. A partir de grande influência de um processo de memorialização, a materialização desse espaço público de reparação coletiva funcionará como um pedido de perdão do Estado e reconhecimento do direito à resistência e preservação da memória das vítimas. O projeto Marcas da Memória, por seu turno, tem como objetivo financiar a coleta de testemunhos e práticas de memória executadas e elaboradas por grupos da sociedade civil. As ações do projeto se dividem em quatro campos: (1) Audiências públicas (escuta pública dos perseguidos políticos sobre o passado); (2) História oral (entrevistas com quem viveu a resistência, realizadas pelas universidades UFPE/UFRGS/UFRJ, e que serão disponibilizadas no Memorial da Anistia e nos acervos das respectivas universidades); (3) Convocatórias públicas (seleção de projetos para preservação da memória a partir de editais públicos, e divulgação de iniciativas de memória que surgem de organizações da sociedade civil); e (4) Publicações (memórias de perseguidos políticos, dissertações e teses sobre a ditadura e a anistia, reimpressão de obras e registro de atas de eventos).Tais iniciativas têm o intuito de conhecer melhor o passado através de uma reflexão crítica e de melhorar as instituições democráticas, evitando uma visão única do passado. As experiências das transições argentina e chilena também são paralelos importantes para pensar o processo de institucionalização desses lugares de memória. Por terem instaurado comissões da verdade logo após suas respectivas aberturas políticas, incorporaram em seus informes a identificação de locais relacionados à prática de crimes contra os direitos humanos durante regimes de exceção. A identificação e publicidade desta geografia da repressão impulsionaram a disputa pela memória destes locais por parte de grupos organizados da sociedade civil, quase sempre representados pelas vítimas e familiares de mortos e desaparecidos, assim como iniciativas do próprio Estado, como medida de reparação simbólica e de promoção de valores que fortaleçam a conscientização em relação aos direitos humanos.
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Nesse sentido, destacamos importantes processos de memorialização no Chile, como o centro clandestino de detenção, tortura e extermínio da ditadura de Pinochet (1973-1990), hoje ressignificado e concebido como o Parque por la Paz Villa Grimaldi6; e o Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos7, projeto concebido pelo primeiro mandato presidencial de Michelle Bachelet (2006-2010), que se destaca como o museu mais visitado de Santiago. Na Argentina, o complexo da antiga Escuela de la Mecánica de la Armada (ESMA), formado por diversas edificações utilizadas pela Marinha argentina, funcionou como centro de detenção durante a ditadura militar (1976-1983), sendo um dos locais principais de práticas sistemáticas de tortura e assassinatos de opositores ao regime.Tombado durante o mandato do presidente Néstor Kirchner, o complexo foi concebido como Espacio Memoria y Derechos Humanos8, um lugar de memória de múltiplas ações e de referência no desenvolvimento de reflexões acerca da temática das políticas de memória argentina. As discussões sobre o patrimônio são de natureza política e traduzem “o problema da consciência coletiva face às ameaças, mais ou menos precisas, mais ou menos obscuras, à sua integridade” (CANCLINI, 1995: 126). Na medida em que resulta de uma operação de seleção, combinação e encenação, expressão do antropólogo argentino Néstor Canclini, o patrimônio nacional é legitimado por grupos hegemônicos, que definem o que deve ou não ser preservado. Em seu processo de institucionalização, as ações patrimonialistas ritualizam, repetem e renovam os valores que instituem. E aqui o patrimônio está definitivamente vinculado ao poder instituído. As relações entre patrimônio e memória se estreitam à medida que compreendemos o quanto ambos se determinam e são seletivos em suas práticas. Elegemos sempre aquilo que consideramos digno de integrar nossos acervos, nossas coleções, nosso ideário, nosso panteão cívico, enfim, nossos bens culturais. Nesse processo, promovemos também o esquecimento de tudo aquilo que, por uma razão ou por outra, foge aos nossos critérios de relevância. O argumento justificador dos novos lugares de memória considera os processos de institucionalização, articulando-se em inúmeros embates com as cadeias da tradição. Lembremos que o reenquadramento da memória institucional passa necessariamente por processos de negociação e de justificação (POLLAK, 1989). Aqui não se encontra mais em jogo apenas a inscrição da experiência vivida na memória coletiva, mas a própria memória coletiva nacional agora colocada em cheque ao atualizarmos o conhecimento sobre o passado. A informação desempenha um papel crucial, pois trabalha com as bases do conhecimento – aqui incluído o novo – realimentando a pesquisa documental e histórica. Os documentos, arquivos, testemunhos, lugares, vestígios, rastros compõem também os sítios de memória e consciência, agora não mais encobertos pela clandestinidade e pelo silêncio. Ao contrário, propõe-se uma educação para a memória, exposta aos olhares da sociedade. Longo e conflituoso caminho a ser pavimentado palmo a palmo! Valores sociais e políticos entram nessa equação complexa e devem por isso ser explicados e compreendidos em sua inteireza. 6 http://villagrimaldi.cl/ 7 http://www.museodelamemoria.cl/ 8 http://www.espaciomemoria.ar/
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Em sua “agenda de questões”, visando propor uma revisão de premissas relativas ao trabalho no campo do patrimônio cultural, Meneses discute a interação entre práticas e representações, que devem ser mobilizadas pela sociedade, e explica que “atuar no campo do patrimônio cultural é se defrontar, antes de mais nada, com a problemática do valor, que ecoa em qualquer esfera do campo” (MENESES, 2012: 32). No fio da sua argumentação, elenca [...] os principais componentes do valor cultural: valores cognitivos, formais, afetivos, pragmáticos e éticos. [...] vale acentuar que tais componentes não existem isolados, agrupam-se de forma variada, produzindo combinações, recombinações, superposições, hierarquias diversas, transformações, conflitos. (MENESES, 2012: 35)
Embora estejamos analisando e discutindo a institucionalização de lugares de memória, parece haver uma aproximação com as ideias destacadas pelo autor, no que se refere à qualificação dos valores citados. Valores cognitivos, por exemplo, poderiam dialogar com a presente reflexão, uma vez que nesse caso o bem “está sendo tratado, então, como documento, ao qual se dirigem questões para obter, como resposta, informação de múltipla natureza” (MENESES, 2012: 35). Trata-se, no caso, de trazer para o plano das ideias a produção de informações sobre os episódios relativos à Guerrilha do Araguaia, na perspectiva da memória e da identidade, valores que o autor classifica de afetivos e envolvem “mecanismos complexos, como as representações sociais e o imaginário social” (MENESES, 2012: 36). Os lugares de memória da Ditadura, pouco conhecidos da sociedade, não poderiam se impor como patrimônio cultural. Suscitam, por essa razão, um trabalho de articulação entre a história e a memória social que levaria à aceitação e convencimento dos diferentes grupos envolvidos nos respectivos episódios, com seus conflitos, disputas e contradições. Para que exerçam plenamente seu papel social, os lugares mencionados cumpririam a principal função dos museus, vale dizer, a produção de conhecimento. A diversidade de ideias – sejam elas políticas, culturais, sociais – define a categoria dos valores éticos que Meneses associa “não aos bens, mas às interações sociais em que eles são apropriados e postos a funcionar, tendo como referência o lugar do outro” (MENESES, 2012: 37). Na prática, certamente há fortes tensões e barreiras contendo o avanço dessas iniciativas. A história recente ainda não produziu os efeitos esperados, por força de inúmeros fatores que ainda interferem na comunicação dos saberes produzidos sobre a Ditadura. Será preciso a persistência e o alargamento dos processos de institucionalização do conhecimento que, como assinalado por Michel Foucault, é sempre fruto de uma batalha (FOUCAULT, 1996). O caso Gomes Lund e outros versus Estado Brasileiro e a condenação do Brasil na sentença exarada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA (24.11.2010) são reveladores dos aspectos mais complexos das lutas políticas em processo de verificação da verdade. Essa condenação impulsionou diversas ações relativas ao Direito à Memória e à Verdade. Cecília Santos, em seu estudo sobre o tema, destaca a implantação do 3o Programa Nacional de Direitos Humanos, já citado anteriormente, lançado em dezembro de 2009 pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH),
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que elegeu o direito à memória e à verdade como um dos seus principais eixos norteadores, “o que veio a acirrar divisões já existentes entre alguns setores do governo”. De um lado estaria a SEDH e o Ministério da Justiça, ambos a favor das investigações do passado e contra a aplicação da Lei da Anistia (1979) aos crimes de tortura; e por outro, a Advocacia Geral da União e o Ministério da Defesa, ambos a favor do esquecimento (SANTOS, 2010: 125). Com o tema da justiça de transição no centro da agenda política da SEDH e do Ministério da Justiça, a autora abre o debate sobre medidas e o papel da justiça de transição no Brasil, partindo do pressuposto de que a literatura sobre a transição homogeneíza a atuação do Estado, ignorando ações civis e a mobilização de grupos em prol dos direitos humanos. Nesse sentido, Santos faz um estudo de caso das denúncias de tortura e desaparecimentos encaminhadas à Comissão Nacional dos Direitos Humanos a partir de 1969 – em especial os casos de Olavo Hansen1 e da Guerrilha do Araguaia – evidenciando que a crescente globalização do paradigma de “justiça de transição” desempenha pressão política importante para a formulação de novas políticas públicas de reparação. As denúncias analisadas foram importantes para a mobilização jurídica em escalas nacional e transnacional, buscando, para além da reparação civil, a reconstrução da memória e da verdade das violações ocorridas durante o regime militar (SANTOS, 2010: 132). No caso da Guerrilha do Araguaia, que teve início em 1966, as forças armadas foram responsáveis pela morte de 59 militantes e 17 moradores locais, e pelo aprisionamento de 13 militantes que sofreram torturas sistemáticas. Desde a década de 1970, os familiares de mortos e desaparecidos protagonizam a luta pela recuperação dos corpos de seus entes queridos. Em 1982, este agrupamento impetra uma ação extraordinária contra a União, exigindo a localização e trasladação dos corpos, o esclarecimento das circunstâncias das mortes e o acesso a informações das Forças Armadas. Entre idas e vindas do processo2, que levou cerca de 25 anos até que o STF executasse sua sentença final condenando o Estado, as organizações representantes dos familiares de mortos e desaparecidos buscaram respaldo internacional. De acordo com Soares e Quinalha (2011), a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em dezembro de 2010, no caso conhecido como “Guerrilha do Araguaia”, obrigou o Estado brasileiro a investigar e punir os autores de graves violações de direitos humanos durante o regime militar. Nos pontos estabelecidos pela corte também foram incluídas ações como a realização de atos públicos e a busca, sistematização e publicação de toda a informação relativa à Guerrilha e das violações perpetradas pelo Estado na ocasião. Para os autores, a sentença reforçou 1 O caso do líder sindical Olavo Hansen, ocorrido em 1970, nas dependências do DOPS/SP, é objeto de análise da autora no artigo citado e não será tratado neste trabalho. Segue o padrão repetido inúmeras vezes pelas instituições oficiais que sequestraram, torturaram e mataram inúmeras pessoas no período, alegando posteriormente que as vítimas atentaram contra a própria vida, como nos casos bastante conhecidos de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho. 2 Santos (2010) esmiúça a trajetória do processo tramitado no STF contra a União, expondo a postura de negação do Estado em reconhecer seus crimes, ancorando-se inicialmente na Lei da Anistia (1979) e, posteriormente, na criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos (1995), que havia indenizado e declarado como mortos os militantes desaparecidos no Araguaia.
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[...] a necessidade de que promovam a memória da resistência à ditadura militar, seja pelo resgate e sistematização das diversas formas de manifestação cultural, seja pela gestão de monumentos e locais que lembrem as atrocidades do passado e as violações de direitos humanos. (SOARES; QUINALHA, 2011: 78)
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O trabalho da memória e da justiça prossegue em várias frentes.Veremos a seguir ações direcionadas à divulgação de informações necessárias ao estabelecimento de lugares de memória, em busca da patrimonialização e consequente musealização dos espaços que outrora ancoraram a memória das lutas da resistência ao regime de exceção. Os processos de disputa política e legitimação dos lugares de memória da ditadura no Brasil não são homogêneos, tendo em vista o grupo que os reivindica, os contextos políticos em que estão inscritos e as suas próprias condições materiais e espaciais. Em São Paulo, o Memorial da Resistência, inaugurado em janeiro de 2009, foi pioneiro na busca pela legitimação do espaço. Ocupando parte do primeiro andar do prédio que fora utilizado pelo Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS), de 1940 a 1983, refletiu uma grande conquista no âmbito das políticas patrimoniais do Estado de São Paulo. Após 23 anos tramitando no Condephaat, em 1999 foi decretado o tombamento estadual pautado mais pelas características arquitetônicas e fachadistas da edificação, datada de 1914, do que propriamente por seus usos no passado (NEVES: 2011). Esta disputa pelo uso e concepção museológica do espaço ganhou força com o tombamento, permitindo que o Núcleo Memória – organismo que se instituiu a partir do Fórum Permanente de Mortos e Desaparecidos Políticos do Estado de São Paulo – articulasse com a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, então gestora do espaço, a concepção e construção do Memorial. Para seus idealizadores, a conquista deste lugar de memória superava o caráter de reparação até então realizado pelo Estado, pautado pela indenização econômica e individual, estendendo simbolicamente a reparação a toda a sociedade. Em Minas Gerais, o convênio entre a Universidade Federal de Minas Gerais e a Comissão de Anistia, assinado em dezembro de 2012, prevê obras no edifício onde funcionava o Teatro Universitário e o antigo edifício que abrigava a Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais, conhecido como “Coleginho”. A conclusão das obras de restauro e a construção de um prédio anexo de quatro andares para abrigar a administração do Memorial estavam previstas para 2014, ano de descomemoração dos 50 anos do Golpe de 1964. Mesmo ainda não entregue à sociedade, a concepção do Memorial da Anistia reitera o empenho do Estado brasileiro “em compensar os prejuízos causados a milhares de pessoas pelo uso discricionário do poder”, reafirmando sua postura de corrigir os erros do passado através de princípios de accountability3, que reforçam sua convicção na democracia (MEZAROBBA, 2003: 146). Por outro lado, ao lançar suas funda3 Mezarobba utiliza a expressão “princípios de accountability” para designar o caráter dos desdobramentos
mais recentes do processo de anistia no Brasil. A autora avalia que até 2003 “a trajetória percorrida pelo Estado não deixa dúvidas de que o investimento principal foi feito em justiça administrativa, especialmente aquela forma restauradora, voltada à compensação financeira”, não havendo “empenho em buscar a verdade, tampouco punição” (MEZAROBBA, 2003, p.146). Em nossa avaliação do cenário transicional atual, entendemos as iniciativas de projetos de cunho simbólico capitaneados pela Comissão de Anistia como um esforço de adequação ao PNDH3 (2007), no qual fica definida a política pública de Direito à Memória e à Verdade.
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ções a partir de duas edificações tombadas pela esfera municipal, inscreve como bem comum de Belo Horizonte espaços vinculados à trajetória de militância e resistência política do movimento estudantil e da intelectualidade que compunha os quadros acadêmicos da Universidade. A medida para a preservação de suas fundações e fachadas modernas de pouco valor estético reiterou o valor histórico destas edificações no plano simbólico da cidade como lugar de memória. Em Petrópolis, a partir de uma campanha veiculada na internet, iniciou-se o movimento pela desapropriação do antigo centro clandestino de tortura e extermínio da Ditadura, a Casa da Morte, para transformá-la no Centro de Memória,Verdade e Justiça. A possível tomada desta propriedade particular pelo poder público revela uma nova alternativa para os lugares de memória da Ditadura. Primeiro, por esta casa ter sido utilizada clandestinamente pela estrutura da repressão e por ter seus usos revelados a partir da denúncia de sua única sobrevivente, a militante da organização VAR-Palmares, Inês Etienne Romeu, recém-falecida. Preservar esta memória a partir da desapropriação de um espaço privado reforça o interesse público em revelar a verdade e reconhecer os crimes cometidos no local, multiplicando ainda ações pedagógicas e de informação através da preservação da memória coletiva. 3. A Casa Azul: um futuro lugar de memória? A região do Araguaia guarda, desde a década de 1950, memórias de inúmeros conflitos e disputas pela terra que até hoje se repetem (CAMPOS FILHO: 2012; 2015), razão pela qual há diversas iniciativas no sentido de revelar essa experiência à sociedade. Uma das formas encontradas para cicatrizar as feridas e impedir novas formas de violência é inscrever esses acontecimentos, no âmbito da justiça transicional, na memória coletiva nacional via lugares de memória. A Casa Azul, palco de diversos episódios de violações dos direitos humanos do período em foco4, está situada no km 1 da rodovia Transamazônica, em Marabá, no sul do Pará. Nesse local funcionava, na década de 1970, o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER). Hoje é o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) que desenvolve suas atividades nesse espaço. Na realidade, tratava-se de um centro clandestino de tortura, pelas mãos do Centro de Informações do Exército (CIE), aliás, como outros tantos existentes à época e hoje conhecidos em todo o país. O uso de diversas instalações oficiais de instituições do Estado para a prática de tortura, morte e desaparecimentos chamou a atenção da Comissão Nacional da Verdade, que mapeou, em seu relatório final, 231 locais5 associados a graves violações de direitos humanos no território nacional, funcionando entre 1964 e 1985. Era preciso documentar tais crimes. Em setembro de 2014 a Comissão promoveu diligências de reconhecimento do local, com a presença de testemunhas das violações de direitos humanos, para levantar e/ou consolidar informações já 4 “Estima-se que ali foram mortos por tortura ou execução mais de trinta guerrilheiros, militantes do PCdoB e moradores acusados de apoiar a Guerrilha.” (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014. Disponível em: < http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf>. Acesso em: 08 jun. 2015) 5 Estes locais foram identificados como unidades militares e policiais, estruturas clandestinas e navios-prisões, distribuídos por região: centro-oeste, 8; nordeste, 47; norte, 28; sudeste, 90; e sul, 58 (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014: 727-839).
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conhecidas. Estiveram presentes, ainda, representantes da Comissão da Verdade do Pará, assim como da Comissão Especial de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP).
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Embora ainda não haja uma ação concreta visando à transformação desse espaço onde hoje funciona o DNIT em um lugar de memória dos conflitos, há uma vigilância comemorativa, através de atos simbólicos, como a Caravana da Anistia e as diligências da Comissão Nacional da Verdade, cujo relatório final deu “publicidade” aos crimes. Apesar de não ter tampouco gerado debate público, na justa medida, conforme Heymann (2006: 20), essas ações foram fundamentais para envolver a comunidade de Marabá, profundamente marcada pelos episódios dramáticos ocorridos na Casa Azul, o que pode se tornar uma ação pela apropriação futura desse espaço. É importante destacar a dimensão simbólica desses atos, pois permitem nos anos que virão reparar danos sofridos pelos envolvidos e/ou seus familiares e descendentes, trazendo esses personagens esquecidos para um lugar público de fala. Os camponeses e moradores locais, que foram obrigados a colaborar como “mateiros” para o Exército, após bárbaras sessões de tortura praticadas no local, até recentemente ainda carregavam essa culpa. O impacto na região, como já assinalado, foi considerável, pois muitas pessoas perderam também seus meios de cultivo e sobrevivência. Além disso, os camponeses que sofreram perseguições e torturas talvez nunca tenham entrado em um programa de reparação por falta de conhecimento sobre seus direitos. O trauma produzido na geração que viveu o evento e nas posteriores é constatado em diversos relatos, indicando que essas pessoas nunca se recuperaram das marcas do passado, vagando como “loucos” pela comunidade. Por outro lado, é fácil perceber que, diferentemente das outras iniciativas antes mencionadas, mais direcionadas e estruturadas com vistas a patrimonializar e musealizar esse espaço, a Casa Azul desponta nos relatos de antigos moradores como uma memória viva, com forte potencial para tornar-se um lugar de memória na Floresta Amazônica, em cujas matas conflitos violentos tiveram lugar. Constituindo uma das seis unidades montadas pelo Centro de Informações do Exército para desarticular a guerrilha rural no município de Marabá, a Comissão Nacional da Verdade destacou a Casa Azul, em seu relatório, por ter sido denunciada como local de tortura e extermínio por diversas testemunhas, entre elas, Pedro Matos do Nascimento e Raimundo de Souza Cruz, camponeses acusados pelo Exército de colaborarem com os militantes do PCdoB. Ambos reconheceram a sala onde foram torturados durante suas respectivas prisões em 1973. Abel Honorato, preso em 1972, na Casa Azul, também relatou os maus tratos sofridos no espaço sob a acusação de ser amigo de Oswaldão, militante procurado pelo Exército na região. No caso de Abel, a liberação após as sessões de tortura não significou o fim de sua perseguição. Obrigado a atuar como “mateiro”, espécie de guia da região, ficaria sob o comando do major Curió até a década de 1980. Disseram pra mim: “Você vai agora voltar e vai ter que dar conta dos seus companheiros”. [...] Fui obrigado a trabalhar de guia até depois da guerra, sob os olhos de Curió o coronel Sebastião Alves (sic) [Rodrigues] de Moura. Até em Serra Pelada [garimpo dirigido por Curió na década de 1980], fiz missões para ele. Tem 40 anos dessa guerra, mas pra mim é
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um desgosto. Fui muito judiado, fui muito acabado. Até hoje eu não sou ninguém. [...] Eu tive de contar até o que não sabia para escapar. Eu tive que dizer, forçado, que fui um amigo do Oswaldão, mas hoje eu posso dizer, de verdade, que fui amigo dele, pois ele foi amigo da região, ajudou muita gente. (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014: 796)
O relato de Manuel Messias Guido Ribeiro, ex-soldado do Exército que atuou na Casa Azul entre 1974 e 1980, também revelou os verdadeiros usos do local, assim como o funcionamento e a circulação de informações dentro da instituição. Além de confirmar os espaços internos utilizados para torturar militantes e camponeses – confirmando que todos os soldados que participavam das operações militares na região presenciavam e tinham conhecimento das torturas praticadas no local –, conta que a mesma estrutura era utilizada para torturar os militares que apresentavam uma conduta mais humanizada com os prisioneiros. Já o sargento João Santa Cruz Sacramento, que atuou nas operações na região do Araguaia a partir de 1972, afirmou que o comando dado pelas Forças Armadas era de matar os guerrilheiros ou levá-los com vida diretamente para a Casa Azul, onde seriam interrogados sob tortura e, em muitos casos, assassinados no local. 4 .Considerações finais O processo de reenquadramento da memória dos episódios do Araguaia está em curso. Expressão de Henry Rousso (1985), citada por Michael Pollak (1989: 9), aplica-se à análise de memórias coletivas ou memórias enquadradas que, em momentos de crise, tendem a ser modificadas no curso de um lento trabalho de comprovação, negociação e justificação. Nenhuma memória pode ser imposta arbitrariamente. Daí se dizer que as memórias subterrâneas permanecem vivas, a espera das condições de possibilidade de seu afloramento e posterior inscrição na memória coletiva. Por essa razão não podem ser confundidas com o esquecimento. A institucionalização dos saberes passa por um processo de legitimação (THIESEN: 2013), sem o qual permanece circulando sem a validação que precede sua aceitação social. Nesse sentido, os lugares de memória da Ditadura são alvo permanente de disputas e conflitos entre os que pregam a inscrição dos episódios do Araguaia na memória coletiva nacional e os que clamam por “virar a página” do passado, sob a justificativa de que a anistia de 1979 perdoou a todos, como vimos. Com o passar do tempo, à medida que diversos projetos direcionados ao campo da memória, da justiça e da verdade se desenvolvem, paralelamente à atuação dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, da Comissão de Anistia, dos Grupos Tortura Nunca Mais, entre outros grupos, fragmentos do passado são reconstituídos. Contudo, as condições necessárias à inscrição dos acontecimentos em lugares de memória ainda não se materializaram. Os valores que rondam as ações de patrimonialização, no contexto aqui discutido, refletem uma “matriz de valores”, usando expressão de Meneses (2012), que desconhece o direito à pluralidade das memórias de grupos, organizações, movimentos sociais. O boom ou surto de memória, pontuado por diversos autores, como Andreas Huyssen (2000) e Pierre Nora (2009: 9) sinaliza a força desse “momento da memória”. Nora explica que
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[...] o que é novo, e isso está relacionado ao terrível infortúnio do século, é a reivindicação de uma verdade que é mais verdadeira do que a verdade da História.A memória é um tipo de justiça. Em outras palavras, a memória lembra e a História esquece. Hoje em dia, a História deve proporcionar o conhecimento, mas a memória [lhe] dá o significado (NORA, 2009: 9).
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Para além da polarização que permeia as discussões sobre a experiência do período analisado, as nuances surgem à medida que as pesquisas avançam. A memória tem dado significado ao passado, apesar da presença ainda predominante em nossa sociedade de valores conservadores que se impõem ao campo político como verdade. Finalizamos a discussão sobre a institucionalização de lugares de memória fazendo referência à Nostalgia da luz, documentário de Patrício Guzmán, sobre a distância entre o céu e a terra, entre a luz do cosmos e os seres humanos. No Chile, a três mil metros de altura, os astrônomos vindos do mundo inteiro se reúnem no deserto de Atacama para observar as estrelas. Ao mesmo tempo, a secura do solo preserva intactos os restos humanos de múmias, mineiros, indígenas e ossadas dos prisioneiros políticos da ditadura de Pinochet. Enquanto astrônomos buscam a vida extraterrestre, um grupo de mulheres revolve diuturnamente as pedras em busca de vestígios de seus familiares desaparecidos. Guzmán explica: A memória tem a força da gravidade. Sempre nos atrai. Os que têm memória são capazes de viver no frágil tempo presente. Os que não a têm não vivem em parte alguma. Cada noite, lentamente, impassível, o centro da Galáxia passa por cima de Santiago. (GUZMÁN: 2010)
Memória, verdade e justiça são personagens conceituais que caminham inseparavelmente na reconstrução do passado, mas dependem da solução de uma equação política e social – como falar de temas sensíveis numa sociedade que ainda não se reconciliou com seu passado? Referências ABRÃO, Paulo et alii. Justiça de transição no Brasil: o papel da comissão de anistia do ministério da justiça. Brasília, Revista Anistia Política e Justiça de Transição, n.1, jan./jun., 2009. ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. El programa de reparaciones como eje estructurador de la justicia transicional en Brasil. In: Justicia Transicional: manual para América Latina. Parte IV: Reparaciones y Reformas Institucionales. Brasília: Comisión de Amnistía, Ministerio de Justicia; Nueva York: Centro Internacional para la Justicia Transicional, 2011, p.477-521. ALMEIDA, Priscila Cabral. Direitos Humanos e espaços concretos: paralelos e reflexões acerca da experiência memorial em antigos centros clandestinos no Brasil e no Chile. In: CARRARA, Ozanan Vicente (org.). Direitos Humanos na América Latina. Nova Petrópolis: Nova Harmonia / São Leopoldo; Karywa, 2015, p.191-210. BENJAMIN,Walter. Experiência e pobreza. In: ___. O anjo da história. Org. e trad. de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012, p. 85-90. CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Guerrilha do Araguaia: a esquerda em armas.
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Artigo recebido em julho de 2015. Aprovado em agosto de 2015
PATRIMÔNIO ÍNTIMO: A EXPERIÊNCIA DO AUTÊNTICO NAS ARTES PRIMEIRAS
Bruno Brulon1 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
RESUMO: O patrimônio etnográfico, reapresentado aos olhos europeus como “artes primeiras”, para ser pensado como “arte”, deve ser “autentificado” por um conjunto de valores específicos. O artigo analisa, do ponto de vista da sociologia dos valores, a gramática axiológica, como proposta na obra de Nathalie Heinich, que leva objetos do patrimônio a serem percebidos como “artes primeiras” na Europa, e particularmente no caso do Musée du quai Branly, na França. Considerando uma revisão dos referenciais utilizados para pensar a autenticidade no campo da Museologia e do Patrimônio, o artigo propõe a perspectiva axiológica para investigar a patrimonialização e a musealização como processos sociais. PALAVRAS CHAVE: Patrimônio. Autenticidade. Etnografia. Artes primeiras.
Intimate heritage: experiencing the authentic in the arts prémiers ABSTRACT: In order to be conceived as ‘art’, the ethnographic heritage reenacted to the European eyes as “arts prémiers” must have its “authenticity” attested by a specific set of values. The paper analyses the axiological grammar, as proposed in the work of Nathalie Heinich, from a perspective of the sociology of value, leading the objects of heritage to be perceived as “arts prémiers” in Europe, and particularly in the case of the Musée du quai Branly, in France. Considering a revision of the references used to think authenticity in the field of Museology and Heritage, the paper proposes an axiological perspective to investigate patrimonialization and musealization as social processes. KEYWORDS: Cultural Heritage. Authenticity. Ethnography. Arts prémiers.
1 Bacharel em Museologia e bacharel e licenciado em História, Mestre em Museologia e Patrimônio, Doutor em Antropologia. Professor do Departamento de Estudos e Processos Museológicos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. E-mail: brunobrulon@gmail.com.
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Patrimônio íntimo: a experiência do autêntico nas artes primeiras
“While animals can deceive by presenting what is false as true, only humans... can deceive by presenting what is true as false.1” (Slavoj Žižek, Welcome to the Desert of the Real!)
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1. Introdução: o patrimônio, entre a etnografia e a arte Entre março e junho de 2005, a exposição Brésil indien – les arts des Amérindiens du Brésil 2 figurou nas Galeries nationales do Grand Palais, em Paris, na ocasião do Ano do Brasil na França. Tratava-se de um projeto ambicioso de expor ao público francês a arte ameríndia do Brasil compreendendo a sua produção desde o período pré-colonial até a contemporaneidade. Como definiram os seus curadores, o projeto era o de uma exposição de “arte primitiva” (Grupioni; Müller; Barreto, 2005: 18), categoria que já merecia problematização na época. Entre os cerca de 350 objetos provenientes de museus brasileiros e europeus, algumas peças raras predominavam em razão do seu “exotismo”. A contextualização por meio de artifícios cenográficos também se fazia presente no discurso expositivo, ainda que este se distanciasse da tentativa de reproduzir as práticas e os contextos “originais” em que os objetos expostos estavam inseridos em suas vidas precedentes – método este que, nos museus etnográficos, já havia se provado limitado. O objetivo da exposição da arte ameríndia do Brasil na França era permitir que os franceses fossem ambientados em universos de pensamento “outros” por meio das diferentes expressões estéticas da arte ameríndia. Com esse propósito, o primeiro módulo da exposição introduzia o visitante em um ambiente “muito diferente do seu cenário habitual”, e chamava a atenção, “por meio de imagens e sons da floresta”, para o contexto natural em que vivem os ameríndios. Tal encenação de um Brasil indígena imaginado e particular à visão de uma cultura hegemônica busca aguçar os sentidos para iniciar o público na visita a um “mundo desconhecido” (Grupioni; Müller; Barreto, 2005: 19). Aquilo que existe de “autêntico” nessa performance do Brasil ameríndio são, a priori, apenas os traços materiais de uma história narrada pelo viés da estética dita não ocidental, e assim percebida pelo ponto de vista da história europeia. No prefácio escrito para o catálogo da exposição Brésil indien, Claude Lévi-Strauss autoriza um olhar artístico sobre os objetos, também valorizados por sua “ancianidade”. O etnólogo francês, cujo trabalho de campo mais emblemático ocorreu entre indígenas do Brasil central nos anos 1930, lembra que a mais antiga apreciação estética das artes ilustradas por essa exposição remonta ao século XVI, com a presença dos franceses no Novo Mundo (Lévi-Strauss, 2005). Esse patrimônio deslocado, recolhido dos museus em dois continentes e reapresentado aos olhos dos franceses na performance das artes ditas primitivas, ou primeiras, para ser pensado como “arte”, deve ser “autentificado” por um conjunto de valores específicos. O presente artigo se propõe a analisar, do ponto de vista de uma sociologia dos valores, a “gramática axiológica” – como proposta por Nathalie Heinich (2009a) – que leva objetos do patrimônio etnográfico a serem percebidos como “artes primeiras” no contexto europeu. 1 “Enquanto os animais podem enganar apresentando o que é falso como verdadeiro, somente os humanos... podem enganar apresentando o que é verdadeiro como falso” (tradução nossa). 2 “Brasil indígena – as artes dos Ameríndios do Brasil” (tradução nossa).
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Entendemos o patrimônio etnográfico como o conjunto de performances produzidas a partir do olhar distanciado do etnógrafo e, geralmente, legitimadas pelos museus. Ele se constitui em “lugares etnográficos”, na expressão utilizada por Gaetano Ciarcia (2002) para designar os contextos que foram objeto de uma intensa atividade de pesquisa etnográfica a partir da qual os seus produtos adquirem o status de objeto científico. Os objetos e coleções, caracterizados atualmente como “artes primeiras”, foram organizados ao longo do século XX como objetos etnográficos3 nos museus europeus, interpretados como “peças de convicção” ou “testemunhos” de outras culturas. Ao serem reintroduzidos em uma cadeia museológica particular ao mundo da arte – que abarca desde o mercado das artes aos museus das artes primeiras –, os mesmos objetos passam a ser regidos por uma nova axiologia, que privilegia o valor do objeto raro, único e, neste caso, também exótico. Os objetos, que “renascem” no contexto europeu em uma nova gramática patrimonial, não deixam de estar ligados aos contextos culturais em que foram produzidos e colocados em uso, mas passam a ser requalificados por novos “regimes de valorização” (Heinich, 2009b). A partir da perspectiva axiológica sobre a passagem de objetos etnográficos à arte, a presente análise tem como foco o estudo do valor do autêntico nas artes primeiras considerando os processos de transmissão desse patrimônio não europeu na Europa. Por meio de uma perspectiva axiológica, aqui proposta, a partir da revisão dos referenciais teóricos para se pensar a autenticidade no campo da Museologia e do Patrimônio, é possível partir da noção segundo a qual a transmissão das artes primeiras se dá por meio da passagem de um patrimônio marcado pela alteridade (o valor do “outro”) a um patrimônio íntimo, autentificado por valores comuns e marcado pela identidade (o valor de “si”). 2. A autenticidade como produção de intimidade: o caso das artes primeiras Eu nunca estive na Floresta Amazônica. Mas, mesmo assim, quando morei na cidade de Paris, e enquanto estudava o Musée du quai Branly4, me reconfortava entrar em uma instalação de arte onde se podia escutar os sons e ver imagens da Amazônia brasileira e seus nativos. Nessa “caixa de música”5, criada pelo museu, era possível escutar o barulho da chuva na floresta tropical e ouvir os sons da natureza sobrepostos à canção de um ritual indígena. Depois, a chuva passava e as vozes se dissipavam, restando apenas os ruídos da floresta. Assim, todas as vezes em que me colocava em contato com a obra, aquela performance patrimonial, inventada para permitir aos franceses sentirem a floresta e adentrarem no universo particular das artes primeiras, me transportava 3 Segundo escreveu Marcel Mauss no seu Manuel d’ethnographie, a principal fonte para as comparações entre os fatos sociais era o objeto etnográfico coletado pelos etnógrafos no campo, de acordo com critérios prescritos pela etnologia (Mauss, 2002). 4 A pesquisa etnográfica que deu origem ao presente texto ocorreu por meio de um Estágio de Doutorado financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes / PDSE, entre os anos de 2011 e 2012, na École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, na cidade de Paris, França. 5 O museu chama de Boîte à musique as salas dedicadas a instalações de som e imagens no espaço expositivo de longa duração.
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de volta aos meus referenciais culturais mais íntimos. Com efeito, o fato de eu ter a floresta como meu patrimônio não justificava a sua presença em um museu francês. As referências transplantadas da minha “cultura” na França colocavam para mim a questão sobre os processos de revaloração das artes primeiras. Em outras palavras, diante da emoção que me despertava a instalação, fui obrigado a me perguntar o que sentiam os franceses ao entrarem em contato com aquela representação. E, assim como ela, por que tantos outros objetos que remetiam a uma origem brasileira e ameríndia no museu – desde uma coleção inteira de cocares amazônicos até objetos rituais do candomblé – estavam sendo apresentados ao público europeu como autênticas obras de arte? A presença da floresta encenada no museu francês me chamara a atenção para a noção de que toda intimidade com o patrimônio é construída – a minha tanto quanto a deles. Distintos dos objetos que se dão (dádivas) e dos que se vendem (mercadorias), os bens patrimoniais são considerados como aqueles objetos os quais nos recusamos a dar ou a vender para conservá-los, ou, nas palavras de Maurice Godelier, “guardá-los para transmitir” (Godelier, 2007). Eles se encontram inseridos na mais profunda rede de relações sociais e afetos individuais estruturantes dos processos humanos de identificação no mundo contemporâneo. Por essa razão, a antropologia se vê diante do desafio de ampliar o campo nocional dos objetos avaliados e/ou valorizados como “patrimônio” (Heinich, 2009b). Tal perspectiva implica uma análise voltada para aquilo que os atores têm em comum, mais do que aquilo que os separa ou os distingue (Bourdieu, 1979). Logo, cabe ao olhar antropológico interrogar a categoria coletiva de “patrimônio” a partir da análise dos “registros de valores” e de uma gramática axiológica específica em que tal categoria é produzida e reificada. Pensar o valor da autenticidade nas artes primeiras por meio de uma reflexão axiológica e pragmática implica observação dos atores humanos e não humanos que desempenham papéis determinantes na construção das origens inventadas para serem compartilhadas no ato de se criar e recriar esse patrimônio. Reconhecer uma referência ou objeto como patrimônio demanda uma identificação de ordem absoluta que requer múltiplas mediações para que um laço simbólico que é ao mesmo tempo individual e coletivo seja estabelecido. Escutar um som, ou ouvir uma música, ou se deparar com uma paisagem real ou artificial que remete a uma origem imaginada são experiências patrimoniais que articulam uma identidade que integra (o “eu” como “brasileiro” ou “francês”) e uma outra que singulariza (o “eu” que sinto em meu corpo e em minha memória, essa relação com o patrimônio). É, então, nesse duplo registro da identificação o lugar onde os valores do autêntico se solidificam e o patrimônio se torna íntimo, mesmo para aqueles a quem ele poderia ser estranho. 2.1 Produção e reprodução do valor etnográfico: o patrimônio que “vai e volta” A introdução no patrimônio europeu de objetos representativos de culturas não europeias se deu por meio de um processo de assimilação da “cultura”, com aspas, dos povos colonizados à cultura, sem aspas, dos colonizadores. Essa “cultura” que “vai e volta”, segundo o movimento analisado por Manuela
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Carneiro da Cunha (2009)6, sendo exportada como categoria relacional inicialmente pelos próprios antropólogos, é construída no bojo dos processos de colonização e transplantada no contexto europeu pelos museus na constituição de um patrimônio etnográfico “extraeuropeu”. O conjunto de coleções organizadas ao longo dos últimos séculos no processo de colonização, conduzido pela Europa, perpassou, ao longo dos anos, sucessivos processos de ressignificação e revaloração, de acordo com a transformação do imaginário europeu sobre as outras “culturas”. A primeira instituição guiada por uma busca etnográfica a exibir “os objetos dos Outros” na França foi o Musée d’Ethnographie du Trocadéro, criado em 1878, tendo como fundador o etnólogo americanista Ernest-Théodore Hamy. O que estava em jogo, nesse momento, era a questão da especificidade da etnografia. Com a entrada para o Trocadéro, as coleções, provenientes tanto das missões científicas do Muséum national d’histoire naturelle7 quanto de coleções particulares, eram, então, classificadas como etnográficas. O vasto conjunto de objetos do museu8, incluindo as coleções das Américas, da Europa, da África e da Oceania, representou, cada vez mais, um desafio para a museografia bem como para a própria organização do espaço do museu. Nomeado, em 1928, para a cadeira de antropologia do Muséum national d’histoire naturelle – nomeação que teve como consequência a ligação do Musée d’Ethnographie a essa cadeira –, Paul Rivet9, tendo como assistente o jovem Georges Henri Rivière, assumiria o desafio de realizar a transformação do grande “bric-à-brac” resultante do processo vasto de acumulação extensiva de objetos pelo museu em um espaço de ciência e aprendizado. Responsável pela renovação museográfica do Trocadéro, Rivière apresentou as salas do museu acessíveis ao público seguindo uma classificação geográfica, depois por tribos, e enfim por materiais. O valor “etnográfico” estava associado à capacidade atribuída a esses objetos-testemunhos de produzir conhecimento sobre as culturas de onde provinham. Tal capacidade devia ter base em um conjunto de documentos etnográficos, de modo que os objetos originais das culturas dos Outros estavam sempre expostos, acompanhados de mapas geográficos, fotografias e etiquetas para complementá-los. Como explica Gorgus, sobre a museografia de Rivière: Le regard de l’observateur devait se porter tout d’abord sur l’objet authentique, puis sur la photo ou la carte. C’est pourquoi, dans la 6 O movimento de “ida y vuelta”, analisado pela autora, se refere às apropriações da cultura como é disseminada pelos antropólogos nos contextos periféricos e a como ela retorna ao contexto europeu tendo sido adotada e renovada na periferia. A “cultura”, com aspas, ou a “cultura para si” é então passível de ser exibida para o mundo todo como uma “performance de si” que, como já apontado por diversos antropólogos desde os anos 1960, obriga os seus possuidores a mostrá-la performativamente a um “outro” em posição dominante (Cunha, 2009). 7 O Muséum nacional de história natural, em Paris, foi responsável pela institucionalização do domínio da história natural, ciência fundada em coleções de espécimes e objetos materiais, desde 1793. Ele procurava um modelo metodológico a se seguir para uma descrição científica dos povos, e aproximou a etnografia das ciências naturais (Grognet, 2005: 3). 8 O número de objetos passa de 6.000, em 1880, a 100.000 em 1920. 9 Paul Rivet (1876-1958) era professor no Muséum national d’histoire naturelle quando foi designado diretor do Musée d’Ethnographie, no momento de sua reformulação. A partir de meados da década de 1930 ele desenvolveria o projeto do Musée de l’Homme, que iria dirigir a partir de 1937.
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muséographie des expositions du Trocadéro, prévalait comme principe directeur la visibilité parfaite de tous les objets exposés. (Gorgus, 2003: 58, grifos nossos)10
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A museografia, colocada em prática, tinha o objeto musealizado em primeiro plano já que ele comportava em si diversos usos. Na performance museal do Trocadéro não se viam as formas de apresentação próprias dos museus de belas artes, todavia o discurso da arte já estava presente como um artifício reconhecido para dar um sentido de “dignidade” aos objetos de povos depreciados. Com efeito, entre os objetos mais “típicos” ou os mais “característicos” (Gorgus, 2003: 60) se encontravam igualmente peças únicas, consideradas como objetos de destaque por sua estética particular. Isso se dava porque nessa seleção dos objetos dos Outros estava sendo posta em prática a própria visão francesa sobre o patrimônio, e o critério estético, apesar de subterrâneo, estava entre os mais eloquentes dos critérios dos museus da época, fazendo parte de um habitus museal francês11, do qual a maior parte dos museus ou museografias não podiam escapar. Nos anos seguintes, com a criação do Musée de l’Homme12, idealizado por Rivet, seria colocada a necessidade de se traçar a distinção entre o lugar da arte e o do documento no novo museu que desde que fora criado, em 1938, desempenhou o papel de operar simbolicamente reconfigurando a interpretação dos povos colonizados como parte da humanidade.Vale lembrar que, nesse momento, para os seus fundadores, a etnologia ainda estava em vias de se firmar como disciplina no campo universitário e o patrimônio etnográfico não passava de uma categoria em negociação. A criação do Musée de l’Homme está inserida no campo mais vasto da constituição de museus nacionais, da valorização do patrimônio nacional, e do papel desempenhado pelo Estado nessa época. Por essa razão, na defesa de uma nova ciência, o museu tinha a questão do público, desde o início, como fundamental. A ascensão do fascismo na Europa, a aplicação da eugenia na Alemanha, bem como a reincidência da xenofobia na França marcavam uma época caracterizada pelo colonialismo. Os idealizadores do Musée de l’Homme, então, ao deixarem intocadas as questões morais do colonialismo e suas implicações, se voltavam sistematicamente para uma plateia colonialista a qual deviam agradar. Os seus fundadores tiveram como objetivo central provar, através da coleta, conservação e exposição dos testemunhos materiais de sociedades que então eram consideradas como primitivas e selvagens, que suas produções eram dignas de figurar em um museu, da mesma forma que as antiguidades egípcias ou greco-romanas, constituindo, portanto, parte do patrimônio da humanidade. Tratava-se de um projeto de reabilitação simbólica, com propósitos não muito distintos daqueles colocados em prática recentemente pelo Musée du quai 10 “O olhar do observador devia se dirigir primeiramente ao objeto autêntico, depois à foto ou ao mapa. É por essa razão que, na museografia das exposições do Trocadéro, prevalecia como princípio diretivo a visibilidade perfeita de todos os objetos expostos” (tradução nossa). 11 Ver a noção de habitus em Bourdieu (1980). 12 Herdeiro direto do Muséum national d’histoire naturelle, e, particularmente, do Musée d’Ethnographie du Trocadéro, o Musée de l’Homme foi idealizado no final da década de 1920, quando Rivet e Rivière começaram a pensar um projeto de museu etnográfico inovador. Ele nasce como um museu etnográfico sob a tutela do ministério de Educação nacional, parcialmente financiado pelas colônias francesas.
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Branly, mas recorrendo a outros meios (os da ciência), e por isso a apresentação das coleções devia parecer neutra. A grande invenção do século XX parecia ser a “descoberta”, pelos antropólogos, das “culturas puras”, intocadas pela história e especialmente pelo colonialismo. Tendo encontrado esses povos (raros), esses cientistas, então, se dedicavam ao registro e à preservação de suas tradições “autênticas”, antes que elas desaparecessem. O sentido do salvamento dessas “culturas” estava plenamente atrelado ao trabalho etnográfico e museológico, de modo que era preciso haver o contato colonial para que as culturas desses povos não se perdessem, e pudessem ser “salvas” pelo Ocidente, guardadas nos museus europeus. Um patrimônio etnográfico europeu era produzido nesse processo de tradução da cultura em “cultura” pelos etnólogos, e depois pelos próprios indígenas ao reinterpretarem a sua cultura a partir do olhar do explorador. O patrimônio transmitido nas instituições dedicadas à prática etnográfica no século XX era, portanto, duplamente marcado pela busca do conhecimento sobre as culturas dos “outros” e a construção de uma identidade nacional com base no processo político de dominação colonial. Ainda que se tratasse de um patrimônio apreciado e organizado segundo critérios de alteridade que levavam à construção de referências do exótico, os objetos coletados de acordo com os princípios da etnologia da época estavam inseridos em um “regime de comunidade” segundo proposto por Heinich (2009b), isto é, que privilegia o padrão, os valores partilhados, que são comuns, obedecem a determinadas regras e, logo, testemunham o que há de autêntico em “uma cultura”. Segundo uma perspectiva documental (opondo-se a uma visão “monumental” das coisas no museu), um objeto só poderia ser percebido como “etnográfico” nesse regime de valores se remetesse a categorias que fossem inerentes a uma “cultura” construída e pensada como “outra”. Na tentativa de tornar familiar o que era estrangeiro, o museu, então, se apropriava de noções como a de “arte”, noção esta cunhada no Ocidente, aplicando-a à produção material de populações que não compartilhavam desse mesmo conceito. 2.2 A passagem à arte: a invenção de uma nova intimidade Desde o momento da constituição do patrimônio nacional francês após a Revolução Francesa, os critérios evocados para a preservação do patrimônio público foram, em primeiro lugar, os estéticos, através, progressivamente, das reclamações de artistas, marchands de arte e colecionadores contra o vandalismo revolucionário e pela salvaguarda das chefs-d’œuvre13, constituindo as primeiras vozes ressonantes do patrimônio francês nesse contexto (Fiori, 2011). Com a constituição dos museus, em sua maioria originários de coleções privadas, o patrimônio preservado era aquele que se justificava como obra de arte e que apresentava um dado valor estético na visão dos especialistas. O Musée de l’Homme inaugura, em 1937, aquela que seria uma das primeiras de suas exposições temporárias, apresentada antes mesmo que o prédio do museu houvesse aberto as suas portas, e ocupando o espaço da Gazette des Beaux-Arts, cedido temporariamente ao museu de etnografia cujo prédio 13 Obras-primas, em português.
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permanente ainda se encontrava em obras. A exposição Indiens du Matto-Grosso (Mission Claude et Dina Lévi-Strauss)14, uma “prévia” do que seriam as exposições do museu a partir de então, reunia as coleções etnográficas coletadas pela missão de Lévi-Strauss e sua esposa, no Mato Grosso, entre 1935 e 1936. Aparentemente, o discurso da exposição e a apresentação dos objetos originários em sua maioria das etnias Caduveo e Bororo eram predominantemente etnográficos em razão de seu conteúdo (Rivet, 1937: 277), e ainda que a exposição não apresentasse um perfil acentuadamente estetizante, o fato de ter sido apresentada em uma galeria de arte pode indicar uma possível ambiguidade em sua recepção. A relação do Musée de l’Homme com a perspectiva artística é, então, desvelada quando este abre as suas portas, em 1938, e apresenta, para além das exposições de antropologia física e das galerias etnográficas (essas interligadas), a exposição temporária intitulada Le voyage de « La Korrigane » en Océanie15. Nessa exposição o museu dá ênfase à noção de “artes oceânicas”, colocando em primeiro plano as esculturas, máscaras e joias dos povos oceânicos. Claramente a noção ocidental de “arte” é aqui aplicada a produções culturais ditas “não ocidentais”, o que não constituiu, de fato, uma novidade em si, uma vez que o Musée d’Ethnographie du Trocadéro já havia dedicado exposições à “arte” da África e da Oceania no início dos anos 1930. Essa tendência artística nos museus etnográficos ditos “tradicionais” representava uma tentativa de Rivet de colocar em um mesmo plano todas as produções humanas e todos os povos do mundo. Mal sabia ele que essa noção universalista da cultura seria evocada, várias décadas depois, para justificar o desmantelamento da instituição que criara. O modelo de museu etnográfico, criado nos anos 1930, para o Musée de l’Homme foi mantido, de certo modo, até os anos 1990. Todavia, a partir de 1996 ele se vê diante de uma redefinição imprevista. Tratou-se de decisão política, tomada em 1995, por Jacques Chirac, no início de seu primeiro mandato presidencial. Com o fim de valorizar, de maneira inédita na França, as culturas dos povos “injustamente ignorados” e por vezes “vítimas” (Chirac, 1996 apud Grognet, 2009) do seu encontro com o Ocidente, o governo anunciou, no dia 7 de outubro de 1996, a reunião das coleções do Musée National des Arts d’Afrique et d’Océanie - MNAAO16 às do Laboratório de etnologia do Musée de l’Homme, a fim de que este desse lugar a um “Musée de l’Homme et des Arts premiers”17, posteriormente intitulado de Musée du quai Branly. A criação do Musée du quai Branly representou, entre outras coisas, um desafio para a compreensão dos processos de musealização no contexto pós-colonial e globalizado. Ao realizar o casamento simbólico entre a etnografia e a arte – com a predominância desta sobre aquela –, esse museu, idealizado por Jacques Kerchache, um galerista e colecionador das “artes primeiras”, mostrou que, segundo a nova tendência, os museus de etnografia se tornariam cada vez mais orientados no sentido da arte. O que propõe o Musée du quai Branly é a “democratização” dos olhares sobre os objetos expostos; “democratização” que só é possível, no ponto de vista dos seus idealizadores, através da exaltação 14“Índios do Mato Grosso (Missão Claude e Dina Lévi-Strauss)”. 15 “A viagem da ‘Korrigane’ na Oceania”. 16 Museu Nacional de Artes da África e da Oceania. 17 Museu do Homem e das Artes primeiras.
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do critério do “belo” e do valor estético como o laço mais evidente que une as diferentes peças em exibição. O regime de valorização aplicado à arte remete a um “regime de singularidade”, que privilegia a originalidade, a unicidade, a invenção de vias inéditas (Heinich, 2009b: 64-65), opondo-se, desse modo, a um “regime de comunidade” como o que foi aplicado historicamente aos objetos etnográficos. Desde as primeiras aquisições do Musée du quai Branly, uma “caça” às peças únicas das artes primeiras foi colocada em prática. Assim, no domínio do patrimônio etnográfico o novo museu tentou evitar os entraves de considerar as coleções apenas como uma “adição de espécimes que se inscrevem em séries tipológicas” (Viatte, 2006: 9) como nos museus científicos, e buscou responder a critérios estéticos únicos para arbitrar sobre os objetos dos diferentes povos. Como afirmou Germain Viatte, responsável por pensar o projeto museológico do museu: Il nous fallait affirmer à travers des pièces uniques l’extraordinaire diversité de l’invention plastique, leur dimension émotionnelle et culturelle, la qualité, parfois stupéfiante, des savoir-faire. (Viatte, 2006: 9) 18
O objeto único estaria ligado à emoção pela experimentação da diferença, o que já era indiretamente provocado nos museus de etnografia do passado quando se ignorava a informação etnográfica na experiência museal. Mesmo no Musée d’Ethnographie, a perspectiva surrealista já propunha que, através da arte, o espectador deixasse o “self” “solto de suas amarras” (Clifford, 2008: 123). Como demonstrou James Clifford, a reflexão surrealista revelou para os etnólogos a importância de se ver a cultura e suas normas – de beleza, verdade e realidade – como arranjos artificiais, uma vez que submetê-los a uma análise distanciada e compará-los com outros arranjos possíveis é algo crucial para a atitude etnográfica (Clifford, 2008: 123). No caso do quai Branly, tal “liberdade” artística produtora de uma intimidade própria do contexto francês com o patrimônio etnográfico foi levada às últimas consequências, engendrando uma ampla reflexão sobre o sentido da arte nos objetos etnográficos e o papel da etnografia em museus de arte. Nesse fervoroso contexto de disputas por uma definição de museu e das “artes primeiras”, o apoio de Claude Lévi-Strauss ao projeto do quai Branly, a partir de 1996, é, para L’Estoile (2007: 15), um sintoma. Após admitir que, por detrás dos objetos coletados no campo, entre 1935 e 1938, o interesse em jogo era documentário, mas também estético, em uma declaração em 1996, Lévi-Strauss condena o papel dos museus etnográficos por ser este paradoxal. O que se passa no quai Branly, ao expor objetos longamente percebidos como etnográficos, é a sua introdução “em uma outra magia”, nas palavras de Germain Viatte. Segundo ele, a seleção para o espaço expositivo a partir das coleções é, em si, “um tipo de magia”, sendo o ato mágico completo “com a transmissão ao público” (Viatte, 2006b). Essa “magia”, neste sentido, parte do objeto autêntico, que lá se encontra em “sua densidade, seu peso, sua pele”, e é 18 “A nós era necessário afirmar através de peças únicas a diversidade extraordinária da invenção plástica, sua dimensão emocional e cultural, a qualidade, por vezes estupefante, o saber-fazer” (tradução nossa).
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graças a ele que ela exerce o seu efeito sobre as pessoas.
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Recriando um patrimônio europeu como arte, o Musée du quai Branly se propõe a estabelecer novas relações entre os objetos, assim como novas classificações. Ao chamar a atenção para o “belo”, colocando-o no centro dos valores determinantes da musealização, os agentes desse novo museu relativizam a própria autoridade do etnógrafo, e colocam questões desconcertantes tanto para o campo dos museus quanto para a história da antropologia. Esses objetos, duplamente inseridos na lógica da arte e na da etnografia, só podem ser apropriados deste modo em razão de uma vida social ambígua que lhes atravessa. Como processos que se dão a partir de trocas, enfrentamentos e negociações, os patrimônios etnográficos, em sua história complexa, são compostos e recompostos nos próprios arranjos das identidades coletivas. Para Sayad (1999), pensar em composição permite enfocar as múltiplas formas através das quais se definem e operam diversas identificações. As composições permitem compreender que tais reafirmações ou reapropriações identitárias, que se encontram nos fundamentos de todos os museus, jamais são totalmente neutras: constituem um jogo de lutas para impor uma definição dupla – a definição de si mesmo e a definição do outro como correlativo. A luta, como explica Sayad, baseada em interesses dos mais diversos, materiais e simbólicos, e, de fato, mais simbólicos do que materiais, é pelo próprio poder legítimo de definir e de se autodefinir (Sayad, 1999: 1); trata-se de um trabalho de agregação de uns e de outros, a partir de critérios positivos ou negativos. Entendendo museus e patrimônios como composições sociais, ou rearranjos de significados que são constituídos socialmente, somos levados a perceber a espessura social dos processos de patrimonialização. Mais do que aquilo a que não se pode tocar, a patrimonialização diz respeito ao que toca – os indivíduos, os grupos, as identidades. Ela é a força mesma que as coisas exercem sobre as pessoas, materializada pela ação dos museus e do patrimônio. 3. O patrimônio íntimo: produzindo a experiência do autêntico Em 1973, Georges Henri Rivière definia o museu de arte como aquele onde o visitante pode se sentir incluído em um diálogo, que “o aproxima, de uma maneira ou de outra, do artista do qual está separado por uma grande distância de espaço ou de tempo” (Rivière, 1973: 28). A arte como meio que estabelece diálogos, no entanto, é uma noção ingênua para se analisar as maneiras pelas quais se dão as relações entre as pessoas e as obras. Isso porque a arte só aproxima pessoas que já compartilham de um determinado código cultural, e que, ao se depararem com o “belo” nas obras expostas, reconhecem no sentido da “beleza” a sua própria cultura refletida. Por essa razão, Heinich (2008: 82) sugere que a sociologia da percepção antecede a sociologia do gosto, pois a primeira questiona “não as preferências estéticas, mas as condições que permitem ver emergir um julgamento em termos de ‘beleza’ (ou de feiura), de ‘arte’ (ou de não-arte)”. Logo, contrariamente à abordagem estética, as respostas não se encontram exclusivamente nas obras, mas, opondo-se a uma concepção ideológica da sociologia, elas tampouco se encontram exclusivamente no olhar dos observadores, isto é, nas característi-
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cas sociais dos públicos. Como a autora chama a atenção, tanto as propriedades objetivas das obras como os quadros mentais dos receptores, e os contextos pragmáticos de recepção (locais, ocasiões, interações etc.) são requisitados na probabilidade de se ver qualificado um objeto em termos estéticos (Heinich, 2008: 82). Sendo assim, a apreciação do belo pressupõe uma comunhão entre o observador e a obra observada. Com efeito, o que está em disputa no processo de consolidação do domínio das artes primeiras não é um olhar predominante sobre os objetos, mas um sistema de valores que justifique a sua patrimonialização. A perspectiva que privilegia as mediações nas relações com as obras, como defendida por Heinich (2008), busca mudar o paradigma sociológico e, se afastando da denúncia das relações de dominação, observar as relações de interdependência, para compreender quanto o reconhecimento recíproco é um requisito fundamental da vida em sociedade. A problemática do reconhecimento, assim, permite repensar a questão das hierarquias estéticas, pois o que importa aqui ao sociólogo não é decidir se a hierarquia em arte é objetivamente fundada, ou se é apenas um efeito de subjetividade, uma pura construção. Para Heinich (2000 apud Heinich, 2008), o seu papel é o de descrever “o conjunto dos procedimentos de objetivação que permitem a um objeto, dotado das propriedades requeridas, adquirir e conservar as marcas de valorização que farão dele uma ‘obra’ aos olhos de diferentes categorias de atores”. Esta foi a perspectiva adotada na investigação dos processos de musealização, buscando-se evidenciar o que faz dos objetos das artes primeiras autênticas obras de arte. A questão da autenticidade, como já demonstrado, ultrapassa a produção da distinção cultural pelos museus e o patrimônio. Certamente, patrimônios não se manteriam no tempo sem que fossem estabelecidos laços de pertencimento que são comuns, remetendo aos processos de identificação que constituem coletividades. Sem correr o risco de desenvolver uma análise normativa dos valores, que não seja percebida nem como uma defesa à autenticidade (perspectiva essencialista), nem como uma crítica à ilusão da autenticidade (perspectiva construtivista), a perspectiva “axiológica” permite compreender o valor da autenticidade como um valor presente na cultura ocidental que qualifica ou desqualifica os objetos patrimonializados. 3.1 O falso Os recorrentes debates acerca da autenticidade do patrimônio que povoam com insistência o campo da Museologia e o da Antropologia dizem respeito ao constante aparecimento dos falsos nas retóricas patrimoniais, que questionam enfaticamente o próprio valor da autenticidade. A dicotomia entre o falso e o original só é relevante na medida em que estabelece uma crítica contundente ao papel dos museus e do patrimônio num tempo em que o valor da “verdade” é cada vez mais relativizado. Mas, sendo assim, o que há, para o olhar do público, de tão fascinante nas falsificações? Alargando o campo de análise para além do domínio da arte e da etnografia, é possível observar a atribuição de autenticidade e de inautenticidade a
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diversos outros objetos constituintes de nossa realidade social. Jones (1990) explica que a área de maior crescimento de falsificações nos dias de hoje não é a de criação de relíquias religiosas, épicos nacionais ou obras de arte, mas sim a produção massiva de artigos “de marcas”. Segundo o autor, onde quer que haja um mercado para o perfume Chanel ou Dior, os relógios Rolex ou Cartier, as roupas Giorgio Armani, as bolsas Louis Vuitton ou os calçados Adidas, os falsificadores estarão trabalhando. O interessante é que a maior parte dos compradores de seus produtos falsos sabe que, pelo preço que está pagando, não pode comprar o item original. Está comprando uma ilusão – a ilusão de status, de pertencimento, de sucesso –, conferida pela fraudulenta reprodução de um nome famoso. A crítica do autor a respeito das falsificações não está direcionada à trapaça ou ao engano, mas sim ao fato de elas nos fazerem perder o contato com a realidade. O sentimento de fantasia proporcionado pela ilusão do que é falso leva possivelmente a uma desconexão da realidade social, que pode ser entendida, em outras palavras, como uma elevação de uma realidade que nos leva a alcançar uma outra realidade. E não seria este o trabalho realizado por patrimônios e museus? A museologia da apresentação, das técnicas expositivas, vem, de uma certa forma, relativizando o valor do original e chamando a atenção para seus substitutos – virtuais, materiais, falsificações das mais diversas naturezas. Trata-se de um efeito sensório-motor que, segundo Bernard Deloche (2002: 48), envolve o visitante numa experiência sensível. Os olhos do observador são conduzidos, por uma dinâmica interna, a percorrer o objeto explorando “a tensão entre verticalidade e horizontalidade, o jogo dos oblíquos, etc.” A partir dessa perspectiva, fica evidente que a apresentação incondicional do original perde grande parte de seu interesse em detrimento de objetos – falsos ou originais – que exercem maior impacto sobre o visitante. Quanto à inescapável retórica do falso há apenas uma ressalva: tal ilusão deve obedecer a uma ética própria, e, no momento certo, o museu conduz o visitante de volta à realidade. No caso analisado das artes primeiras, a produção de objetos falsos responde invariavelmente ao gosto disseminado pelo mercado e pelos museus – sendo estes as principais vítimas das falsificações. Um dos exemplos mais emblemáticos, narrados pelo conservador do Musée du quai Branly, Yves Le Fur, é o de um crânio em cristal de rocha, considerado há alguns anos como uma das chefs-d’œuvre pré-colombianas do Musée de l’Homme. Por sua forma de crânio, pelo material fecundo para a imaginação, o cristal, e por sua suposta origem em uma grande civilização pré-colombiana, provavelmente Asteca ou Maia, este objeto estranho combina diversos elementos que o tornam “primordial” ou “primeiro” (Le Fur, 2009: 44). O objeto foi doado pelo célebre colecionador francês Alphonse Pinart ao Musée d’Ethnographie du Trocadéro, depois de ser exibido na Exposição Universal de 1878. Ele foi comprado em 1875 do antiquário Eugène Boban, em uma coleção de quase 2.000 objetos que constituiriam o acervo do futuro museu. Entre os poucos crânios em cristal existentes no mundo hoje, três deles se encontram em museus – um no British Museum, comprado em 1898 e originário da mesma coleção de Boban, um na Smithsonian Institution, doado anonimamente em 1992, e o já citado, que atualmente se encontra no quai Branly. Estudos recentes sobre os crânios das três instituições levantaram suspeitas sobre a sua autenticidade e a preciosidade dos materiais (Walsh, 1997).
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Em 1993, o British Museum apresentou uma exposição intitulada Fake? The art of Deception19, em que o crânio em questão figurava na seção “Os limites da expertise” (Le Fur, 2009). De fato, análises realizadas nos anos 1960 mostraram que o cristal de rocha seria de origem brasileira, esculpido por instrumentos de joalheiros em vez de ferramentas pré-hispânicas. Segundo os especialistas dos museus, muitas razões levam a considerar que esses três crânios não são obras autênticas produzidas no seio de uma tradição não ocidental pensada como “pura”. No entanto, esses objetos acabaram se tornando objetos de culto popular uma vez que foram investidos da crença em uma origem particular e em seus poderes extraordinários. O mistério em torno deles e a sua estética própria engendraram a crença no poder dos crânios de cristal em transmitir mensagens para certos iniciados, em curar doenças e até mesmo na capacidade de fornecerem informações importantes sobre a origem da humanidade. Um dia, os crânios de cristal serão reunidos e a humanidade terá acesso a uma “nova sabedoria” (Le Fur, 2009). Os guardas do Musée de l’Homme relatam que eram frequentemente encontradas pessoas em meditação diante do crânio de cristal, além de oferendas e pedidos aos responsáveis do museu para se ter contato físico com o objeto. Assim, como constata Le Fur (2009, p. 47), a apropriação religiosa ou supersticiosa autentifica o objeto falso, na medida em que retira certos objetos de um sistema, substituindo o seu modo de legitimação e, com a força da crença, não permite que ele seja julgado. Sem dúvida, as artes primeiras deflagram a construção social do valor do autêntico e as circunstâncias da sua aplicação às obras. Nesse caso, a emoção diante do objeto – qualificada como estética – é aquela suscitada através de sua percepção sensível, mobilizada, sobretudo, pela visão, pelo toque e pelo odor (Derlon; Jeudy-Ballini, 2008: 54), isto é, a simples consciência de sua presença. Tal emoção é primeira porque, antes de qualquer racionalização, ela opera sensivelmente no sujeito confrontado com o objeto, dando a alguns o sentimento de estarem sendo reenviados à experiência de uma relação primordial com o mundo (Derlon; Jeudy-Ballini, 2008: 56). Os objetos, assim, são portadores de mundos imaginados, e a sua “verdade” depende tanto da sua capacidade de evocar esses mundos como da capacidade do observador de imaginá-los. Diversas são as formas que o objeto “falso” pode tomar, e estamos todo o tempo rodeados deles no mundo contemporâneo. Em suas múltiplas variações – cópias, réplicas, falsificações etc. – o falso geralmente funciona como um suvenir, atuando como um dispositivo mnemônico, depositório pessoal de uma memória especial e que só realiza plenamente o seu propósito porque se desloca, assume um papel em um outro contexto daquele em que foi produzido e representa – ou reapresenta – aquilo que está ausente. Nesse sentido, não seriam os objetos do patrimônio objetos-suvenires, adquirindo novas vidas sociais à medida que remetem a uma outra, real ou inventada? E, através de seus substitutos ou mesmo com objetos originais, os museus não estariam sempre recriando realidades “falsas” ao encenarem as suas narrativas? 19 “Falso? A arte da enganação”.
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3.2 O original
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Envolver de autenticidade o objeto é parte do trabalho da patrimonialização. O objeto no museu traz consigo o valor de “testemunho musealizado” (Desvallées, 1985: 88) que permite produzir – através da ação do museu, ou, da musealização – aquilo que se pode chamar de “aura do objeto”. A “aura”, explica Deloche (2002: 47), é a força misteriosa da presença, que subjuga o visitante no momento em que entra em contato com a obra original. A “aura” existe em razão da grande complexidade que esses objetos carregam, resultante das diferentes camadas que o constituem – sua história, seus percursos no tempo e no espaço, o seu possível “valor de culto” etc. Mas podemos também entender a aura como uma performance, criada a partir dos objetos, inserindo-os em um tipo de metalinguagem por meio da qual a cultura se torna “cultura” e o patrimônio passa a ser “patrimônio”. Os museus e os pensadores da Museologia não podem ignorar o papel central da reflexividade que aqui evidenciamos naquilo que, respectivamente, apresentam e estudam. Como aponta André Desvallées (1985: 87), virtualmente “tudo é musealizável”, todas as coisas do mundo podem ser levadas ao museu e/ou se tornarem patrimônio ao serem investidas de autenticidade. E não é que a autenticidade tenha que ser aqui completamente relativizada. A produção de autenticidade depende de variados fatores, muitos dos quais o museu é capaz de manipular em sua ação. O valor do original, nos museus, depende, em grande parte, do contexto em que o objeto se vê inserido e da justeza da sua classificação. Para os museus das artes primeiras, a linguagem da arte foi necessária para se produzir uma forma considerada “justa” de apresentar os objetos. Logo, o desenvolvimento das operações de qualificação e de generalização, que, como apontam Boltanski e Thévenot (1991), repousa sobre o emparelhamento das exigências de justiça entre os homens e as obrigações do ajuste entre as coisas20, dá os meios de tratar objetos aparentemente muito diferentes com as mesmas ferramentas conceituais. Trata-se, na prática, de uma reificação estética dos objetos que tem como consequência um enquadramento das emoções suscitadas pela continuidade com suas vidas sociais. O valor do antigo, ligado à continuidade que o objeto contém em si mesmo com o seu passado, representa um critério particular adotado por colecionadores privados, e, consequentemente, considerado pelo museu.A atenção dos colecionadores pela ancianidade dos objetos de “arte primitiva” não está ligada meramente a uma autenticidade pelos contatos precedentes da obra, ou por uma busca da “pureza” original da peça (Derlon; Jeudy-Ballini, 2008: 87). O gosto pelo antigo, neste caso, recobre exigências mais complexas; ele está ligado a uma capacidade do objeto de estimular os imaginários. “O fato de saber que ele é antigo me permite sonhar,” diz um colecionador entrevistado pelas pesquisadoras Brigitte Derlon e Monique Jeudy-Ballini (2008: 87). Nesse contexto, o antigo pouco tem a ver com uma comprovação científica da antiguidade do objeto, mas se refere às marcas, inscrições, e idiossincrasias do objeto de arte que permitem que se desenvolva uma imaginação sobre 20 Boltanski e Thévenot (1991) utilizam a diferença entre os conceitos de justiça (legal) e justeza (exatidão) que implicam eficácia.
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o passado da peça e os seus usos. Segundo uma fórmula proferida no meio dos colecionadores das artes primeiras e marchands, “é preciso que a máscara seja dançada” (Derlon; Jeudy-Ballini, 2008: 47). Um objeto não se torna colecionável e dotado de valor reconhecido, enquanto ele não tiver servido a uma função profana ou ritual antes da entrada para a cadeia museológica – isto é, seu valor de musealia (objeto de museu) está ligado à sua vida antes de se tornar objeto em uma coleção. Um colecionador e especialista em arte africana, entrevistado por Derlon e Jeudy-Ballini (2008: 49), definiu o objeto autêntico como um “objeto feito pelos africanos, para os africanos, e utilizado pelos africanos”. Outros colecionadores atestam que “a pátina [desses objetos] é a transpiração do homem”, sendo o corpo humano o principal vetor dos traços materiais que irão conferir autenticidade a uma peça, são eles as fontes de imaginação essenciais que a peça precisa ter para entrar em uma coleção ou em um museu. O objeto “vivido” é o objeto que terá uma segunda vida na coleção, e, possivelmente, nos museus. Mas, como lembram Derlon e Jeudy-Ballini (2008: 53), se, por um lado, é necessário pensar que o objeto foi de fato utilizado por indígenas, por outro, o conhecimento das condições precisas desse uso está longe de ser considerado essencial para os colecionadores, e, em alguns casos, também para museus e galerias de arte. Dito de outro modo, é a vontade de conhecer o que está por detrás do objeto (que não equivale a uma busca real por esse conhecimento) que nutre um laço místico que o observador pode estabelecer com ele. É preciso um certo desconhecimento para se poder imaginar e sonhar. O original é objeto de veneração. Ele traz consigo a sensação da continuidade, de sua ancianidade e continuação histórica. O objeto musealizado deve, em primeiro lugar, ser ressignificado, ou, em outras palavras, reapresentado no museu. A cada transformação, a cada ruptura, uma coleção adquire novos sentidos e precisa ser, novamente, interpretada – este envelope de significações que lhe dará sentidos no tempo é o que passamos a chamar de “museu”, ou o que se entende pelo rótulo de “patrimônio”. 4. Considerações: a intimidade transmitida pelo patrimônio Uma das minhas lembranças da infância me remete a um conjunto de objetos indígenas do Brasil central, guardados por minha avó entre os seus suvenires de viagens. Eles me eram mostrados juntamente com fotos antigas dos meus avós ao lado dos índios. No entanto, o que minha lembrança guarda desse momento em que me deparei com aquelas “coisas de índio”, mostradas sobre as viagens de família que eu não vivera, era o fato de ficar me perguntando como os índios usavam aqueles objetos tão pequenos. Hoje eu me dou conta de que eram miniaturas feitas para serem comercializadas por turistas. Arcos e flechas que não eram instrumentos de caça ou pesca, cocares que não cabiam na cabeça de indígena algum, objetos “rituais” que nunca haviam participado de uma cerimônia. Aqueles objetos para mim eram a definição do inautêntico, mas traziam consigo algumas memórias. Os museus precisam do objeto falso ou das “miniaturas” para ressaltar o valor do autêntico. Como apontou Jean Bazin, cada visitante tem uma foto da Monalisa em seu guia turístico antes de entrar no Louvre (o que permite
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reconhecê-la) e é levado a comprar uma outra na saída (para guardar como lembrança). Desde sua inauguração, o Musée du quai Branly tentou traçar a mesma estratégia de marketing (ou de magia) dos grandes museus parisienses, reproduzindo sobre diversas mídias os objetos-imagens que se empenha em criar – como cartões-postais, imãs de geladeira, chaveiros e marcadores de livros. Essa tentativa de gerar nas pessoas a crença no “efeito da obra”, que leva o visitante a se emocionar diante do objeto “original” por motivos que independem do seu julgamento estético, parte de um tipo de fetichismo, segundo o qual os objetos de museu remetem a si mesmos. É a identificação do autêntico no original – como aquele que deu origem às suas bem conhecidas cópias – que produz no visitante uma suposta crença na eficácia do museu. A Monalisa do Louvre, como aponta Bazin (2008: 529), admirada não por ser bela ou feia, mas por ser autêntica, não teria a chance de sê-lo se existisse apenas um único exemplar que não fosse reproduzido. O mesmo acontece com a “cultura” indígena que circula nos museus. Por muito tempo, a Amazônia foi um local de exploração e de pesquisa privilegiada entre os franceses. Por essa razão, a coleção do quai Branly conta com cerca de 14.000 objetos da região, tendo vindo as primeiras peças das Guianas para integrar os gabinetes de curiosidade do século XVI. Este número elevado de objetos da região influencia, em parte, as novas aquisições do museu. Entre 2008 e 2010, um conjunto de 312 adornos de plumas da Amazônia foi adquirido pelos conservadores do quai Branly, sendo este acervo proveniente de variados grupos indígenas do Brasil, ilustrando a diversidade e a inventividade da arte plumária da região21. Uma seleção dessas obras já ocupa um espaço significativo da exposição de longa duração. A sequência de adornos de plumas apresentada hoje pelo museu tem a função de gerar um “choque estético e emocional” no público abrindo a área amazônica, sobre a qual ainda plana a figura tutelar de Lévi-Strauss (Geoffroy-Schneiter, 2006: 40). Esse patrimônio etnográfico, autentificado como arte, prevê no visitante um conhecimento parcial dos seus percursos (do contato, por exemplo, com os responsáveis por introduzi-lo no contexto europeu) e uma imaginação aguçada sobre o seu contexto de origem não europeu. O trabalho de investigação sobre a autenticidade das artes primeiras no quai Branly me levou a buscar uma iniciação – ainda que parcial – a essas artes que me eram estranhas, para que eu pudesse entender o que constitui, de fato, o gosto pelo “exótico”, alimentado pelo museu. O primeiro passo foi me familiarizar com a estética das coleções, e desenvolver, progressivamente, um “gosto” particular por alguns dos tipos de objetos expostos. Ao me permitir “adorar” o belo nos objetos, descobri que a estética que me agradava era, sobretudo, aquela de algumas peças tradicionais da Oceania, seus desenhos, cores e padrões, e, por motivos um pouco diferentes, a das coleções de adereços de plumas da Amazônia. Estas últimas me tocaram particularmente a partir de uma longa conversa com o curador que as havia comprado. Ele ressaltou os seus atributos, a sua raridade na coleção e no mercado, e a delicadeza dos materiais. Subitamente, eu me converti às artes primeiras e, ao me perguntar por que as plumas me en21 Entre os 30 grupos étnicos da Amazônia brasileira, equatoriana e venezuelana representados estão aqueles referentes às famílias linguísticas Aruaques, Caribe, Jê, Jivaro, Nambiquara, Tupi e Ianomâmi (Delpuech, 2011).
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cantavam os olhos, comecei a pensar – e imaginar – sobre os seus contextos de origem (que eu desconhecia, de fato, e talvez por isso me convertia), os modos de produção, as técnicas investidas. E, então, descobri que, por um momento, as julgava belas porque haviam saído de um ambiente considerado “selvagem” onde a produção artística poderia ser inimaginável se não estivéssemos ali diante delas no museu. Essa digressão por um “primitivismo desconhecido”, ao mesmo tempo em que me chocou, despertou-me para o sentido cultivado das artes primeiras naquele contexto.Tal aproximação viria a ser substituída por uma outra, conforme a minha experiência no campo se modificava. Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, à medida que aprofundava o meu conhecimento etnográfico sobre alguns dos objetos expostos ou imagens usadas nas exposições do quai Branly, o meu impacto diante desses objetos e interesse por eles diminuíam. Como se buscou demonstrar, a intimidade só é possível por meio da constante revisão dos valores em jogo. Enquanto desempenhava o papel de objetos etnográficos, a autenticidade do patrimônio dos “outros” era mediada pelo valor do objeto que testemunhava um certo contexto bem conhecido pelos etnógrafos, o que se tornou por si só insustentável uma vez problematizado o conceito antropológico de cultura. Ao serem reapresentados como artes primeiras, esses objetos são um patrimônio revalorado, buscando responder diretamente ao gosto europeu pela raridade e o exotismo. O patrimônio íntimo, ou a transmissão da intimidade patrimonial, é, logo, a capacidade de uma cultura receber e valorizar um conjunto de referências forjado em uma outra cultura por meio dos seus próprios regimes de valorização. Em geral, nos processos de musealização, tem-se um processo incontornável de “ressacralização”, que é um reencantamento das coisas do real em uma nova instância do real. Nos museus os objetos são revalorados no sentido de se colocarem a criar novos mundos de significações. Aqui vale remeter ao mundo social descrito por Mauss (1925) a partir da análise da dádiva, o mundo em que as coisas circulam ininterruptamente através de dádivas que se encadeiam, um mundo encantado constituído de coisas preciosas que gravitam em torno de coisas mais preciosas ainda, de coisas sagradas que, por sua vez, permanecem imóveis, no interior dos clãs, nos quais, segundo Godelier (2007),“os deuses as deixaram”. As coisas nos museus compartilham dessa preciosidade, e ainda que não se acredite, de fato, que foram deixadas pelos deuses, elas são guardadas para atrair outras coisas e pessoas sobre as quais atuam com sua força. Pode-se dizer que o gosto pelas imagens dos Outros, seu mistério, seu misticismo e sua beleza, que se disseminou na sociedade francesa como um sintoma do colonialismo, significou, de fato, um tipo de adoração, ou de culto dessas imagens enigmáticas do desconhecido. Essa adoração como metáfora para explicar o “amor pela arte” envolve um tipo de sacralidade fundada no desejo exaltado de se aproximar espiritualmente de um universo materialmente distante. Referências BAZIN, Jean. Des clous dans la Joconde. p.521-545. In: _____. Des clous dans la Joconde. L’anthropologie autrement. Toulouse: Anacharsis, 2008. BOLTANSKI, Luc ; THÉVENOT, Laurent. De la justification. Les économies de la
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Artigo recebido em maio de 2015. Aprovado em agosto de 2015
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A MUSEALIZAÇÃO DA COLEÇÃO ETNOGRÁFICA DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI
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RESUMO: Trata-se de uma pesquisa de caráter qualitativo para investigar o processo de musealização (aquisição, pesquisa, conservação, documentação e comunicação) a que é submetida a Coleção Etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), patrimônio cultural brasileiro. Foram realizadas pesquisas documental e bibliográfica como técnicas de coleta de dados. Foram examinados os conceitos de “artefato”, “objeto etnográfico” e “mentefato”, além de se fazer um breve histórico sobre a ampliação do conceito de documento. Os resultados mostraram que as fases do processo de musealização da coleção etnográfica são interdependentes, complementares e definem o status do objeto como patrimônio. PALAVRAS CHAVE: Musealização, coleção etnográfica, patrimônio cultural, Museu Paraense Emílio Goeldi.
The musealization of the ethnographic collection of the Goeldi Museum ABSTRACT: This is a qualitative research to investigate the musealization process (acquisition, research, conservation, documentation and communication) that the Ethnographic Collection of the Emílio Goeldi Museum, Brazilian cultural heritage, is subjected.There were documentary and bibliographic research, such as data collection techniques, carried out. In addition to the examination of the concepts of “artifact”, “ethnographic object” and “mentifact”, a brief history of the expansion of the concept paper was made. The results showed that the phases of the ethnographic collection musealization process are interdependent, complementary and define the status of the object as heritage. KEYWORDS: Musealization, Ethnographic Collection, Cultural Heritage, Emilio Goeldi Museum.
1 Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). e-mail: alegria.benchimol@gmail.com.
Alegria Benchimol
Introdução A navegação marítima foi o mais importante meio de difusão comercial e cultural durante certo período da história da humanidade. Foi pelo mar que povos europeus, sobretudo os portugueses, descobriram novos mundos e chegaram ao Brasil em 1500. Vindos da Europa ou do próprio continente americano, por vias marítimas, chegaram à Amazônia, apenas em 1616. Nos séculos XVIII e XIX, foram muitos os cientistas que estudaram e se fascinaram com a grandiosidade e com a diversidade da flora e da fauna amazônicas. Por vias fluviais, vários desses homens de ciência chegaram e embrenharam-se na floresta amazônica a fim de coletar e pesquisar a vida dos ribeirinhos e, com destemor e assombro, a riqueza da fauna e flora, bem como o modo de vida dos povos da floresta. Deixaram rico legado pessoal e científico sobre os três reinos da natureza, um acervo de valor inestimável ao país, uma vez que, além de vasta literatura científica, abasteceram os museus nacionais e estrangeiros com inestimáveis objetos etnográficos, plantas, animais e minerais. A atividade desses viajantes naturalistas gerou coleções de objetos, trazidos de lugares distantes pelos impérios europeus, e que tomaram impulso com o surgimento de museus, no Velho e Novo mundo. Nesse sentido, colecionar é uma atividade que remete a tempos bem remotos, pois “os tesouros dos templos antigos e das igrejas medievais antecedem o colecionismo moderno” (Schaer, 1993:14), mas tal prática se desenvolveu, de fato, dos séculos XV ao XVIII, na Europa. Para Gonçalves (2007:109), o “colecionamento” é uma categoria de pensamento que traduz, de certo modo, o processo de formação de “patrimônios”. Estes [os patrimônios], em seu sentido moderno, podem ser interpretados como coleções de objetos móveis e imóveis apropriados e expostos por determinados grupos sociais [...] O resultado dessa atividade é precisamente a constituição de um patrimônio (Pomian, 1997; Clifford, 1985 apud Gonçalves, 2007).
O Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), situado em Belém do Pará, é um Instituto de Pesquisa vinculado ao Ministério de Ciência,Tecnologia e Inovação (MCTI). Fundado em 1866, é a mais antiga instituição científica em atividade na Amazônia. Em seu acervo, há coleções de Botânica, Zoologia, Ciências da Terra e Ciências Humanas que juntas totalizam mais de dois milhões de itens. A sua coleção etnográfica foi tombada em maio de 1940, com o processo de número 135, iniciado em 1938, quando o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) registra no seu Livro de Tombo a obra Coleção arqueológica e etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi. A partir desse fato, a coleção do MPEG passou a pertencer a uma categoria do IPHAN conhecida como “Patrimônio arqueológico, etnográfico e paisagístico”. Como tal, é considerada, pela Constituição brasileira de 1988, patrimônio cultural, que abarca o patrimônio de Ciência e Tecnologia (C&T), devendo por isso ser preservada, comunicada, e as informações agregadas a esses objetos precisam ser transmitidas e difundidas (Granato, 2009). O objetivo deste artigo é examinar o processo de musealização dos objetos etnográficos no MPEG como instrumento de institucionalização e patrimo-
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A musealização da coleção etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi
nialização da sua coleção etnográfica. Como suporte teórico, foram investigados os conceitos de “artefato”, “objeto etnográfico” e “mentefato”, além de se fazer um breve histórico sobre a ampliação do conceito de documento.
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Bases Teóricas Neste artigo se discute o percurso seguido pela informação do “artefato” indígena, desde que ele é produzido num contexto primário até o momento em que é musealizado e se torna documento passando a ser chamado de “objeto etnográfico”. O debate se inicia com o conceito etimológico do termo objeto, que vem do latim objectum significando atirar contra; objeto é também uma coisa existente fora de nós mesmos, colocada com um caráter material. Na Filosofia, o objeto é pensado em contraposição ao sujeito (homem), que é o ser pensante, e vai ao encontro da ideia de coisa externa ao homem (Larousse apud Moles, 1981). Os conceitos de “artefato”, “objeto etnográfico” e “mentefato” serão examinados no artigo ora proposto. De acordo com os dicionários de Houaiss (2001) e de Ferreira (2004), respectivamente, o “artefato” “é uma forma de cultura material ou produto deliberado da mão de obra humana” e considerado como “qualquer objeto manufaturado”, ou seja, produzido à mão. Em debate mais especializado sobre o tema, o “artefato” é caracterizado como um instrumento não acabado (Leroi-Gourhan, 1985 apud Chiarotti, 2005) e que é inscrito dentro dos usos e utilizações, tendo sentido, apenas, se for usado em alguma atividade. É definido por uma ação ou uso, que lhe é destinado (Chiarotti, 2005). Para Mensch (1992) “artefatos” e “naturália”, que nem sempre têm uma distinção clara, referem-se a coisas concretas e perceptíveis. Por outro lado, o mesmo autor, baseado em Stránsky, afirma que “mentefato” se relaciona aos dados abstratos dos objetos, sem considerar o suporte físico, como textos, gráficos, bancos de dados eletrônicos, músicas, etc. Na esteira do pensamento de Mensch, é possível dizer que , enquanto o “artefato” se refere ao palpável e ao objeto em si , o “mentefato” diz respeito ao que é construído por uma ciência sobre este objeto, ao olhar que o cientista lança sobre o mesmo; às construções teóricas e interpretações que podem ser extraídas desse objeto por quem o pesquisa. No que se refere ao objeto etnográfico,Velthem afirma [...] é preciso destacar que ele [artefato] é criado em um contexto particular, referente a uma sociedade humana específica, na qual está inserido em vários planos: técnico, produtivo, estético, simbólico [...] Entretanto, não é o fato de um objeto ser utilizado numa aldeia indígena do Sul do Pará, vendido em um mercado popular no sertão de Pernambuco ou estar na casa de um agricultor de origem ucraniana em Santa Catarina que o transforma em objeto etnográfico. O que o caracteriza como tal é o fato de refletir sempre um processo de definição, de segmentação, de transposição a uma instituição pública ou privada (Velthem, 2012: 53).
O objeto etnográfico, categoria de objeto museológico, se consolidou como tal e assumiu a importância que tem hoje quando saiu de seu contexto primário e passou a ser preservado num museu. Segundo os autores da Museologia, Desvallées e Mairesse (2013: 57), o conceito clássico de objeto museo-
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lógico remete ao processo de musealização, entendido como “extração, física e conceitual, de uma coisa do seu meio natural ou cultural de origem” que opera “uma mudança do estatuto do objeto”. E “uma vez dentro do museu, assume o papel de evidência material ou imaterial do homem e do seu meio, e uma fonte de estudo [...]”. Por processo de musealização, de acordo com os mesmos autores (2013: 58) entende-se “o conjunto de atividades do museu: um trabalho de preservação (seleção, aquisição, gestão, conservação), de pesquisa (e, portanto, de catalogação) e de comunicação (por meio de exposição, das publicações, etc.)”. E, desse modo, o “objeto portador de informações, ou objeto documento musealizado, inscreve-se no coração da atividade científica do museu”. Para melhor compreender o processo de musealização pelo qual um objeto etnográfico é submetido no MPEG desde que ele é produzido até o momento em que é inserido na Instituição, é fundamental dissertar sobre a ampliação do conceito de documento ao longo do tempo. A ampliação do conceito de documento Os dois dicionários mais conhecidos da língua portuguesa apontam o termo documento, em acepções convergentes, para qualquer anotação que se possa consultar, a fim de esclarecer, provar ou comprovar algum fato ou acontecimento. Segundo Houaiss (2001), documento é “qualquer escrito usado para esclarecer determinada coisa; atestado escrito que sirva de prova ou testemunho; qualquer registro escrito”. Enquanto Ferreira (2004) afirma que o vocábulo significa “qualquer base de conhecimento, fixada materialmente e disposta de maneira que se possa utilizar para consulta, estudo ou prova”. Os autores supracitados preservam, em suas definições, a gênese etimológica do termo documento, mas, principalmente, destacam, como características, “o registro escrito” e “fixada materialmente”. Num dicionário especializado, a etimologia do vocábulo documento significa “título ou diploma que serve de prova; declaração escrita para servir de prova” (Cunha: 2007). O termo é oriundo do latim documentium, de docere, que remete a ensinar, mostrar, informar. Segundo Le Goff (1992), o significado do termo evoluiu de ‘ensinar’ para ‘provar’ e é usado frequentemente no vocabulário judiciário, todavia, apenas no século XIX, o sentido de ‘testemunho’ é utilizado. No final daquele século e início do século XX, o termo documento afirma-se essencialmente como ”testemunho escrito” e será o fundamento do fato histórico, numa visão positivista da História. Fustel de Coulanges demonstra visão mais ampla do que se aceita como documento até então, quando afirma que a História precisa buscar fundamentos não apenas no que está registrado, mas também em fábulas, sonhos e em qualquer marca da vida e da inteligência humana (Fustel de Coulanges, 1862 apud Le Goff, 1992). “Não há história sem documentos”, afirma Saraman, entretanto, “há que se tomar a palavra documento no sentido mais amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem, ou de qualquer outra maneira” (Saraman, 1961 apud Le Goff, 1992:540), ideia que vai ao encontro do pensamento de Ferreira (2004).
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Com o advento da História Nova, cujas bases se encontram no lançamento da revista Annales d’ histoire économique et sociale, em 1929, houve uma subversão de alguns princípios norteadores não só no domínio da História, como também no âmbito das outras Ciências Humanas ou Sociais. Essa visão mais ampla sobre documento, consoante com a de Fustel de Coulanges, é compartilhada por Paul Otlet, estudioso belga que definiu documento em bases mais abrangentes e adotou o termo livro para englobar todas as espécies de documento. Diz Otlet: [...] [Documento] compreende não somente o livro, manuscrito ou impresso, mas revistas, jornais e reproduções gráficas de todas as espécies, desenhos, gravuras, cartas, esquemas, diagramas, fotografias, etc. (Otlet, 1934: 9).
Para o autor, paralelamente aos documentos impressos ou escritos “há uma montanha de documentos de toda espécie que não foram publicados ou não são destinados a sê-lo”. A partir da afirmação anterior, fica claro que – para “o homem que queria classificar o mundo” – os objetos de uma maneira geral são considerados documentos. O autor admite, de acordo com esse estudo, a possibilidade de que haja documentos de outra ordem, que não sejam apenas os escritos e também fixados sobre outro suporte que não o papel. Seguindo essa mesma linha, Briet (1951:7), estudiosa francesa, afirma que documento é “todo indício (sinal) concreto ou simbólico, conservado ou registrado com a finalidade de representar, de reconstituir ou provar um fenômeno físico ou intelectual”. Embora a autora conserve o sentido primeiro de prova ou ensino do vocábulo documento, cabe ressaltar que ela imputou ao termo uma abrangência maior, na qual se incluem também os objetos de museu. Na realidade, Fustel de Coulanges, Otlet e Briet ultrapassaram a ideia que sempre vinculou o vocábulo documento a algo escrito, afirmando, implícita ou explicitamente, que os objetos de museu podem ser entendidos como documentos. Nesse caminho, Rendón Rojas (1999:34) considera o documento como a objetivação do pensamento e sustenta que ele pode se apresentar impresso, digitalizado ou em qualquer outro suporte. Segundo esse autor, “o documento é o suporte que contém a informação”, e partindo do pressuposto que tudo pode se tornar documento, como estrelas, plantas, átomos, cestos, entre outros, distingue três níveis nos objetos: o primeiro diz respeito ao objeto por si mesmo; o segundo refere-se aos especialistas responsáveis por informações específicas de suas áreas de atuação; e o terceiro destina-se ao profissional que se ocupa das informações. Se tomarmos como exemplo uma indumentária de penas oriunda do Alto Rio Negro, pertencente à coleção etnográfica do Museu Goeldi, no primeiro estágio, diríamos que é um objeto usado para enfeitar a cabeça; no segundo nível, seria objeto de estudo para especialistas de uma área específica. Seguindo o exemplo, o índio que produz e utiliza esse objeto assim se manifesta: “os adornos indígenas [...] foram criados pelo Deus Trovão [...] e representam riqueza, vida, alegria [...]” (Aguiar, 2008); um antropólogo, estudioso do tema, informa que “esse ornamento é confeccionado e utilizado pelos homens casados e por jovens solteiros em cerimônias e danças rituais” (Velthem, 2008) ou descreve uma cena em que os objetos são usados: “[...] na cabeça amarrou-se uma larga
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faixa de penas amarelas e vermelhas de araracanga, embainhadas de penugens brancas do urubutinga [...]” (Koch-Grünberg, 1905 apud Velthem , 2008). São informações adquiridas pelas práticas sociais, no caso do índio, e por meio de pesquisas e observações, no caso dos especialistas no assunto. O terceiro nível se dá quando, depois de o objeto ter sido estudado e suas informações fornecidas pelo profissional da área específica – no nosso exemplo, dois etnólogos e um índio –, essas são transmitidas a um especialista da informação documental, para que, apenas a partir de então, o documento seja por ele trabalhado. Um documento só é considerado documento no campo informacional (da Ciência da Informação) quando é manuseado, analisado e inserido em certas estruturas pelo profissional dessa área (Rendón Rojas, 1999). A evolução, na linha do tempo, do conceito de documento para um sentido mais amplo permite compreender, de maneira clara, que o objeto etnográfico seja examinado como documento, constituindo-se em “objeto documento” ou “objeto testemunho”, quando musealizado, mas, para que ele testemunhe, é necessário fazê-lo “falar”, e isso ocorre por intermédio do pesquisador (Velthem, 2012). Para a autora (2012: 6), os objetos etnográficos salvaguardados em museus [...] constituem uma importante e, por vezes, rara fonte de informações sobre certo povo indígena. Revelam características de um determinado período da trajetória de uma sociedade, pois constituem os testemunhos materiais por ela concebidos e que lograram subsistir.
Assim, considera-se o objeto etnográfico como “um produto da cultura material” (Soares, 1998:1) – neste artigo, mais particularmente da cultura material indígena – e “que foi separado de sua realidade e transferido para outra, em que passa a exercer a função de documento de sua realidade original” (Mensch, 1992). Dessa forma, a relação de continuidade com as culturas produtoras do objeto se dá por meio da documentação, pelos registros das práticas socioculturais dos representantes das comunidades indígenas e pela construção do conhecimento a partir das diferentes áreas científicas como a Etnografia, a Antropologia, a História, a Botânica e a Museologia, entre outras. Considerando, portanto, o objeto etnográfico como documento, entendemos que as informações a ele agregadas precisam ser organizadas para que, de alguma forma, possam contribuir para a necessidade maior do homem de dar à vida e ao universo um sentido. A coleção etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi e seu processo de musealização Na Amazônia, o cenário que se testemunhava, em Belém do Pará, no século XIX, era aquele em que os naturalistas estrangeiros, depois de longas expedições pelo interior paraense ou regiões vizinhas, retornavam à capital da Província, repletos de espécies dos três reinos da natureza e as despachavam aos seus países de origem e também a instituições brasileiras (Benchimol, 2009). A tentativa de implantação de um museu de caráter científico na Amazônia se concretiza quando Domingos Soares Ferreira Penna convida um grupo
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de intelectuais e políticos paraenses para discutir “as bases de uma associação para a fundação de um museu indígena e de história natural nesta capital [...]” (Jornal do Amazonas, 1866: 2 apud Crispino; Bastos; Toledo, 2006: 326).
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Fundou-se então a Associação Filomática – que ama as ciências (Ferreira: 2004) – , cujo principal objetivo seria a criação de um museu de história natural nos moldes europeus vigentes (Cunha: 1986). O MPEG nasceu e vingou como fruto do trabalho de políticos, intelectuais e cientistas que acreditaram na pesquisa de recursos naturais da Amazônia, no estudo sobre o homem que nela habitava e, sobretudo, na organização de coleções científicas e exposições públicas dos conhecimentos oriundos dessas pesquisas. O que se objetivava era a constituição de um museu como “primeiro núcleo de um estabelecimento superior; o centro a que se hão de acolher no Pará os estudos das ciências da natureza” (Graça, 1871 apud Lopes, 1977:205). Em síntese, como não havia escolas superiores e nem academias científicas, o Museu deveria exercer a função de suprir, naquele momento, a carência, na região, desse tipo de estabelecimento. Nessa perspectiva, o idealizado foi um museu “no qual pouco a pouco se reunissem os numerosos productos antigos e modernos da indústria dos índios [...]. Era, por outras palavras, um Museu archeológico e ethnográfico que se tratava de fundar [...]” (Penna, 1894: 28, grifos do autor). A concepção do museu se deu em 1866, com a criação da referida Associação, mas apenas em 1871 o Museu Paraense, como inicialmente foi denominado, incorporou-se ao Governo Provincial e teve suas portas abertas ao público. A formação da coleção etnográfica do MPEG está diretamente ligada à gênese da instituição (Velthem et al., 2004) . Os primeiros objetos desta coleção chegaram ao Museu vindos do interior, atendendo à solicitação de uma Circular emitida, em 1867, pela Associação Filomática, solicitando doações de espécies/ objetos dos três reinos da natureza. Outras formas de recolhimento de objetos para o futuro Museu se deram através de cartas endereçadas pela diretoria da Sociedade Philomática aos intendentes de cidades e vilas do interior do Pará. Em 1871, quando o Museu de fato abriu suas portas, foram doados vários objetos etnográficos acompanhados de notas explicativas, dentre os quais se podem destacar uma zarabatana com flecha, uma cabeça de índio Arara embalsamada e uma urna funerária contendo ossos (Jornal do Pará, 1871 apud Crispino; Bastos; Toledo, 2006). A imprensa da época1 dava conta de que havia uma grande variedade de artigos, entre os quais alguns muito curiosos, como: capacetes e outros ornatos de pena, um ídolo, um busto de argila, um aparelho de tomar paricá, machadinhas de pedra, todos pertencentes a tribos indígenas. Emílio Goeldi, em 1894, reestrutura o Museu, entre as seções incrementadas está a de Ethnologia, Archeologia e Anthropologia. Na qualidade de chefe desta Seção e Diretor do Museu, o suíço ampliou a coleção etnográfica, principalmente “por meio das excursões a campo, das doações de particulares, inclusive políticos influentes, além de eventuais aquisições”, como uma coleção de artefatos Cayapós, posteriormente tombada e identificada como Coleção Frei Gil de Villanova (Velthem et al., 2004:126). Da administração Goeldi (1894-1907) até 1921, não houve profissional 1 Diário do Gram-Pará, 1871apud Crispino; Bastos; Toledo, 2006: 7.
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especializado para assumir a coleção etnográfica. Curt Nimuendajú, seu primeiro chefe, registra 2.632 objetos no Catálogo das coleções ethnográficas do Museu Goeldi, em 1921. Na década de 1950, Eduardo Galvão, no livro Registro do material etnográfico da Divisão de Antropologia, computa nove mil objetos entre peças etnográficas e arqueológicas (Galvão, 1957 apud Velthem et al.:2004). Atualmente (2015), a coleção etnográfica do MPEG é composta por 14.176 objetos registrados no Livro de Tombo2, sendo a maior parte de origem indígena.Vários estudos podem ser feitos a partir das coleções etnográficas. Os campos mais específicos desses estudos estão associados a [...] pesquisas relativas a respeito da cultura material, tecnologias tradicionais, arte, história da arte, exploração do meio ambiente, processos migratórios, empréstimos e apropriações culturais, resultantes das situações de contato e redes de troca (Velthem, 2012:56).
A referida coleção também pode ser estudada por pesquisadores das Ciências Humanas e Biológicas como Antropologia, História, Museologia e a Etnobiologia. É uma fonte potencial de pesquisa ainda pouco explorada por pesquisadores nacionais e de fora do país. Nesta perspectiva, foram explicitados os cincos passos do processo de musealização (Cury, 2005) para os objetos etnográficos do MPEG, a saber: aquisição, pesquisa, conservação, documentação e comunicação. Essas etapas inserem-se num processo mais amplo chamado de preservação, inerente a todos os tipos de patrimônio, como é a coleção etnográfica do MPEG. Três momentos da documentação da coleção etnográfica do Museu Paraense Emílio Goeldi Neste tópico, foi realizado um recorte temporal (dividido em três momentos distintos) da documentação da coleção etnográfica do MPEG, considerando a importância de três curadores que alteraram os critérios de organizar os objetos na reserva técnica e também as formas de documentá-los. Curt Nimuendajú e a primeira organização da coleção etnográfica Filho de Julius e Maria Unkel, nascido numa cidade da Thuringia, chamada Jena, na Alemanha, em 1883, Curt Unkel chegou ao Brasil em 1903. Até o ano de 1905, não se tem conhecimento de registros das atividades dele no país (Nunes Pereira, 1946). De 1905 a 1908, o alemão entrou em contato pela primeira vez, na qualidade de ajudante de cozinheiro, contratado pela comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, com os índios Guarani e os Kaingang no oeste de São Paulo. Sobre o convívio com os primeiros, relata Curt: “conheci os Guarani em 1905, no Oeste de São Paulo e vivi em suas tabas, com poucas interrupções até 1907, na cidade de Batalha, como um deles” (Nimuendajú, 1914 apud Nunes Pereira, 1946:17). Posteriormente, conviveu com os Apapokuva-Guarani, tribo que o adotou espiritualmente e o batizou, em 1906, na cerimônia do Nimongaraí3 com o nome de Nimuendajú4 (Grupioni, 1998:173-174). 2 Informação extraída do Livro de Tombo da coleção etnográfica do MPEG, consultado em maio/2015. 3 Cerimônia de batismo entre os Apapokuva-Guarani. 4 Nimuendajú significa “aquele que estabeleceu morada”.
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O legado de Nimuendajú para a Etnologia brasileira é precioso, não apenas pelo que escreveu, mas também pelas inúmeras coleções que formou, abastecendo museus nacionais e instituições de fora do país. Constam na Reserva Técnica Curt Nimuendajú do MPEG aproximadamente 1.985 objetos coletados por ele na primeira metade do século XX, referentes às etnias Aparaí, Canelas Orientais, Maxacali, Xerente e Tukuna, entre outras. Na ausência da Diretora Emilia Snethlage, Nimuendajú assumia a direção científica do Museu Goeldi, responsabilizando-se pela biblioteca e pela correspondência do Museu (Grupioni:1998:178). Suas relações com o MPEG não se limitaram às atividades administrativas ou à formação de coleções etnográficas. Ministrou três cursos de Etnologia, entre 1941 e 1944, nos quais abordava aspectos materiais, econômicos e sociais de alguns povos indígenas, cotejava as culturas estudadas, além de dedicar-se a ensinar a família linguística Tupi-Guarani. Só a partir de 1920, quando Nimuendajú assumiu a chefia da Seção de Etnologia, Arqueologia e Antropologia – nomenclatura daquela época para a atual Coordenação de Ciências Humanas – a convite de Emília Snethlage, então Diretora do Museu, a coleção etnográfica do MPEG teve sua primeira sistematização. Antes, não havia existido para aquela seção um chefe especializado, pois essa função era de responsabilidade dos diretores do Museu, como Emílio Goeldi, por exemplo, que, adquirindo novos objetos etnográficos, promoveu o aumento das coleções. Nimuendajú era profundo conhecedor das culturas indígenas, pois conviveu entre os mais diferentes povos desde que chegou ao Brasil no início do século XX. Ao assumir a seção, tinha essencialmente três tarefas a cumprir: realizar uma completa revisão da coleção; organizar um inventário e confeccionar um catálogo que permitisse verificar rapidamente a ausência de um objeto; e, por último, reorganizar etiquetas da exposição (Grupioni, 1998). No exercício de suas funções, esse autodidata fez uma revisão da coleção etnográfica e, em 1921, elaborou o primeiro catálogo de objetos para a coleção. Esse catálogo, com 24 páginas, contém a relação das peças do acervo, numeradas de 1 a 2.619, datilografadas, e de 2.620 a 2.632, manuscritas. O catálogo é datado de 3 de abril de 1921, na primeira página, há o seguinte título: Catálogo das colleções etnográficas do Museu Goeldi. A assinatura de Nimuendajú consta na primeira página do documento, após as observações sobre o modo como se organizava a coleção. É importante ressaltar que, na organização da coleção etnográfica de 1920/1921, já entram como indicadores de identificação dos objetos os seguintes campos informacionais: número de registro, etnia, nome do coletor, localização geográfica, data e uma breve descrição dos objetos. Eduardo Galvão e a classificação por áreas culturais indígenas Alguns dados biográficos sobre Eduardo Galvão que interferiram na organização da coleção etnográfica do MPEG foram abordados neste tópico, bem como a introdução da base teórica da organização por ele dada à coleção, intitulada Áreas culturais indígenas. Eduardo Enéas Gustavo Galvão nasceu no Rio de Janeiro, em 1921, curiosamente, ano em que Nimuendajú elabora para o MPEG
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o primeiro catálogo da coleção etnográfica. Galvão: “[...] foi um dos maiores antropólogos culturais brasileiros. Ao lado de Herbert Baldus, Darcy Ribeiro, Egon Schaden e Roberto Cardoso de Oliveira, foi um dos pais fundadores da antropologia científica no Brasil” (Silva, 2008). Segundo Silva (2008), um dos períodos fundamentais na vida de Galvão engloba a década de 1950 e os primeiros anos da década de 1960, época que coincide com as atividades desempenhadas pelo antropólogo no MPEG e que interessa de perto aos objetivos desta pesquisa. Na década anterior, de 1941 a 1947, Galvão exerceu a função de naturalista no Museu Nacional. Em 1950, foi admitido como pesquisador nessa instituição, e, no mesmo ano, foi contratado para trabalhar como chefe no Serviço de Proteção ao Índio (SPI), na Seção de Orientação e Assistência, função na qual permaneceu, ao lado de antropólogos de renome como Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira, até 1955. Em 1955, o pesquisador muda-se para Belém e assume a chefia da antiga Seção de Ethnologia, Archeologia e Anthropologia, à época denominada Divisão de Antropologia, na qual permaneceu por duas décadas (Silva, 2008). De 1961 a 1962, Eduardo Galvão assume a Diretoria do MPEG e seu legado é uma [...] notável contribuição para a Antropologia Social, em particular, aos estudos de mudança cultural, religiosidade, áreas culturais indígenas e populações caboclas. Galvão foi o responsável pela formação de vários pesquisadores no Museu Goeldi bem como pela renovação dos estudos antropológicos na Amazônia (Museu, 2008). O Museu Goeldi foi um campo privilegiado de atuação científica para Eduardo Galvão. A vinculação do Museu com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), naquele momento, e posteriormente sua subordinação ao CNPq, como órgão autônomo, deram a Galvão todo o suporte institucional necessário à implementação de pesquisas fundamentais ao seu ideal de antropólogo. Nessa fase, Galvão publicou 34 trabalhos, sendo 24 de autoria exclusiva e 10 em coautoria, além de dois livros e artigos divulgados em boletins, periódicos e outras publicações científicas. É um período caracterizado pela individualização de sua produção científica e também quando assume cargos de alta responsabilidade profissional como a Chefia da Divisão de Antropologia e, posteriormente, a Direção do MPEG (Silva, 2008). Sob a orientação de Galvão, a Divisão de Antropologia foi reorganizada e as coleções foram conferidas, classificadas e descritas. Auxiliado pelos arqueólogos Mário Simões e Peter Hilbert, Galvão organizou e separou a coleção etnográfica da arqueológica, que se encontravam misturadas, procedendo a um novo tombamento das peças. Para a Antropologia, foi elaborado o livro Registro do material etnográfico da Divisão de Antropologia, contendo oito volumes e indicando, naquele momento, nove mil objetos etnográficos (Galvão, 1957 apud Velthem et al., 2004). As proposições de Eduardo Galvão não se circunscreveram aos limites do Museu Goeldi e da coleção etnográfica. Seus estudos abrangeram uma classificação ampla sobre as tribos indígenas brasileiras. Segundo o antropólogo, durante muito tempo os grupos indígenas do Brasil eram classificados à luz da Etnologia
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em grupos linguísticos, enfatizando também o lado cultural desses grupos. É comum contrapor, por exemplo, a cultura Tupi à cultura Caribe (Galvão, 1960). Essa discussão não é aprofundada na presente pesquisa porque foge aos seus objetivos, entretanto é importante que seja minimamente entendida, na medida em que esses amplos estudos etnológicos de Galvão refletiram diretamente nos critérios de acondicionamento utilizados para a coleção etnográfica do MPEG, desde 1955 até 2003. Nessa direção, Galvão, embora reconhecendo a procedência da classificação, aponta algumas críticas e conclui que, como instrumental na taxonomia etnológica brasileira, não funcionava (Galvão, 1960): [...] seu uso, entretanto, persistiu porque os etnólogos brasileiros, mais preocupados com o estudo individualizado de tribos indígenas e um tanto avêssos a generalizações, não buscavam encontrar uma base comparativa (Galvão, 1960: 2).
O sistema de classificação proposto por Galvão sobre os grupos indígenas brasileiros foi apresentado para a comunidade acadêmica em 1959, na IV Reunião Brasileira de Antropologia, em Curitiba, numa comunicação intitulada Áreas culturais indígenas do Brasil: 1900-1959, e é considerado “sua principal contribuição à Etnologia brasileira” (Ribeiro: 1979: 15). Trata-se de um sistema de classificação baseado no conceito de área cultural, desenvolvido principalmente por antropólogos norte-americanos e que apresentava certas dificuldades de aplicação, no Brasil, no que diz respeito à [...] falta de informação factual sobre um grande número de tribos e acrescia o fato de que os remanescentes indígenas, por força da expansão luso-brasileira, tiveram seus territórios reduzidos, concentrando-se, em uma mesma área, grupos de origem mais diversa (Galvão, 1960: 2).
Galvão procedeu a sua tentativa de classificação de áreas culturais indígenas, no Brasil, como ele próprio admite, por etapas. Em primeiro lugar, de acordo com o autor, foi necessário um levantamento das tribos remanescentes numa base temporal definida; em segundo lugar, foi preciso definir a situação de contato das tribos selecionadas como representativas da área. A partir desses critérios, o pesquisador dividiu as áreas culturais, entre 1900 e 1959, na realidade, não seria uma nova classificação e “sim uma adaptação das divisões elaboradas por Steward e Murdock” (Galvão, 1960: 14). Há, segundo Galvão (1960), diferenças de métodos e conceituação nos esquemas adotados pelos norte-americanos. Cooper e Steward, por exemplo, mencionavam explicitamente as áreas (áreas culturais, área cultural tipo) e, paralelamente a esse conceito, sobrepunham uma noção diacrônica de desenvolvimento cultural, além de acentuarem as relações ecológicas e o nível de integração sociocultural dos grupos indígenas (Galvão, 1960). Por outro lado, Murdock insiste na “distribuição de determinados elementos materiais (cerâmica, trançado, tecelagem, técnicas de subsistência, etc.), e outros como a filiação linguística, classes sociais e parentesco” (Galvão, 1960: 4), como critérios para sua classificação. Nesse sentido, baseado nos autores norte-americanos e levando em con-
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sideração a “distribuição espacial contígua de elementos culturais, tanto os de natureza ergológica, como os de caráter sociocultural” (Galvão, 1960: 15), e sem esquecer os já citados aspectos referentes às relações inter e extratribais, o pesquisador brasileiro classificou os grupos indígenas, destacando 11 áreas culturais: Norte-Amazônica, Juruá-Purus, Guaporé, Tapajós-Madeira, Alto-Xingu, Tocantins-Xingu, Pindaré-Gurupi, Paraguai, Paraná, Tietê-Uruguai e Nordeste. Galvão caracteriza cada uma das áreas culturais detalhadamente, informando sobre a localização geográfica, principais riquezas e modo de subsistência, e indica ainda quais tribos indígenas estão nelas situadas. Quando assumiu a chefia da Divisão de Antropologia, Galvão utilizou o mapeamento desenvolvido por áreas culturais indígenas para acondicionar os objetos. Dessa forma, nas dependências da Reserva Técnica, os armários e prateleiras foram desenhados pelo próprio antropólogo, para guardar os objetos de acordo com a área cultural de proveniência. Eduardo Galvão encontrou as coleções encaixotadas, separadas por etnias indígenas, conforme havia deixado Curt Nimuendajú, no porão da Rocinha. Sob a chefia de Galvão, as coleções foram desencaixotadas, retiradas desse porão úmido e transferidas para um espaço mais adequado. Foram classificadas segundo áreas culturais e acondicionadas em armários, gaveteiros e prateleiras de madeira. Em 1962/1963, com a chegada de Mário Simões ao Museu Goeldi, os objetos etnográficos foram separados dos arqueológicos. Entre os avanços trazidos por Galvão está a confecção do primeiro Livro de Tombo que a coleção teve, intitulado Registro do material etnográfico da Divisão de Antropologia. A organização dada por Eduardo Galvão à coleção etnográfica do MPEG permaneceu em vigor até 2003, enquanto ficou abrigada na Reserva Técnica do Parque Zoobotânico. Dessa forma, os objetos ficavam acondicionados em armários ou prateleiras, classificados por área cultural indígena, entretanto, os registros dos objetos, no Livro de Tombo, seguem em sua maioria os campos informacionais da organização de Nimuendajú, acrescidos de novos campos. Em setembro de 2003, a transferência da coleção para a nova Reserva Técnica do Campus de Pesquisa foi iniciada, sob a coordenação da etnóloga Lucia Hussak van Velthem, sobre a qual se falará no tópico a seguir. Lucia Hussak van Velthem5 e a nova Reserva Técnica “Curt Nimuendajú” Em conformidade com os dois tópicos anteriores, indica-se alguns dados biográficos de Lucia Hussak van Velthem importantes para suas atividades de curadora da coleção etnográfica do MPEG de 1985 a 2007. Trazida pelas mãos de Eduardo Galvão ao MPEG (Velthem, 2003), em 1975, Lucia Hussak van Velthem assume a curadoria da coleção etnográfica dez anos depois, em 1985. Sua principal área de atuação é a de etnologia indígena, tendo como temas privilegiados o estudo de coleções etnográficas, cultura ma5 Graduada em Museologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), mestre e doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) em 1983 e 1995. Concluiu o Pós-doutorado em Paris / França, em 2006, pela Equipe de Recherche en Ethnologie Améridienne/Centre National de la Recherche Scientifique EREA/CNRS.
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terial, etno-estética, cosmologia e os índios Wayana, entre outros temas afins (Velthem, 2009). Ao longo da década de 1970 até 2003, algumas ações importantes ocorreram e transformaram radicalmente a infraestrutura da reserva técnica e a maneira de organização da coleção.
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Quando Velthem assumiu a coleção, os objetos encontravam-se compactados, na reserva do parque, uns em gavetas, outros em prateleiras, nos armários desenhados, ainda na década de 1960, como se constata na Figura 1.
Figura 1: Acondicionamento de objetos na Reserva Técnica até 2003; fotos da autora
Além do pouco espaço, a reserva apresentava ainda problemas no sistema de refrigeração, na época. Aparelhos de ar-condicionado ligados durante o dia e desligados durante a noite causavam aos objetos pequenos danos físicos e ressecamentos. A formação também em Museologia contribuiu para que Velthem percebesse que a coleção tinha como principais problemas: um espaço inadequado, um sistema de refrigeração incompatível com a conservação dos objetos, a falta de segurança, entre outras dificuldades menores. Nesse sentido, Velthem preocupou-se em solucionar, inicialmente, os contratempos referentes à infraestrutura espacial, problemas que persistiram até a coleção ser transferida para o novo espaço, no Campus de pesquisa, em 2003. De 1988 a 1992, Velthem afasta-se do MPEG para fazer doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). Na volta, assume por quatro anos a Direção do Museu de Arte de Belém, retornando ao Goeldi em 2000. Ao reassumir a curadoria, Velthem submeteu à apreciação da Fundação VITAE, em 2001, o projeto Controle ambiental na área da reserva técnica e acondicionamento do acervo etnográfico, cujos objetivos foram o de implantar um siste-
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ma de controle ambiental no novo espaço físico destinado a abrigar a reserva técnica da coleção etnográfica. A coleção etnográfica passou, então, a partir de setembro de 2003, com a conclusão das obras no espaço, a ser abrigada no Campus de Pesquisa, no qual já estavam as outras coleções científicas do Museu, cada uma em edifício próprio. O avanço maior obtido na nova reserva técnica foi a implantação de um sistema de controle ambiental adequado ao armazenamento e à salvaguarda da coleção etnográfica. O projeto Controle ambiental na área da reserva técnica e acondicionamento do acervo etnográfico, responsável pelas ações nesse sentido, é oriundo da adaptação de um projeto do Dr. Shin Maekawa, do Getty Conservation, consultor do projeto no Goeldi. A proposta apresentada consistiu em criar, na reserva técnica, monitoramento ambiental contínuo e preventivo, com a instalação permanente de sensores e de um sistema de coleta de dados climáticos. O sistema garantiu condições climáticas internas mais estáveis e seguras pelo uso de ventilação mecânica, a qual é controlada por sensores de umidade relativa instalados dentro e fora do edifício, de modo a manter a umidade relativa interna estável e, assim, prevenir as atividades microbiológicas, fungos e bactérias na superfície dos objetos (Velthem et al., 2004: 132).
O novo espaço foi dotado de mobiliário adequado (Figura 2), e esses fatores reunidos garantiram a integridade física e conservação dos objetos para seu uso prolongado, tanto para fins de pesquisa como de difusão cultural.
Figura 2: Nova reserva técnica da coleção etnográfica do MPEG Fotos: Luciana Kamel
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Os resultados alcançados foram, principalmente, a manutenção das condições climáticas estáveis e adequadas ao controle e biodeterioração das peças que formam a coleção etnográfica; a transferência das peças etnográficas para a nova reserva técnica; e o estabelecimento, no espaço, de uma nova organização em seu acondicionamento. O novo espaço foi dotado de mobiliário adequado, e esses fatores reunidos garantem a integridade física e conservação dos objetos para seu uso prolongado, tanto para fins de pesquisa como de difusão cultural. Outras ações curatoriais referiram-se à documentação da coleção. O projeto Conservação preventiva e documentação da coleção etnográfica do MPEG (18801940), também aprovado pela Fundação VITAE, entre seus objetivos, priorizou a documentação e a automação de parcela do acervo para, futuramente, estender tal ação para a sua totalidade. A organização da coleção etnográfica utilizada por Velthem seguiu a numeração adotada por Galvão no Livro de Tombo, mas deixou de lado o acondicionamento por áreas culturais indígenas porque, segundo a etnóloga, os objetivos de Galvão foram mais antropológicos que museológicos e os critérios por ele adotados [...] foram de certa forma prejudiciais para o acondicionamento das peças, pois se desconsiderou, na época, a natureza de seus materiais constitutivos e a capacidade de armazenamento dos armários. (Velthem et al.: 2004: 129)
A base classificatória de organização para a coleção etnográfica dada por Velthem sustenta-se na classificação dos objetos por categorias artesanais de Berta Ribeiro, desenvolvida no Dicionário do artesanato indígena, de 1988. Ribeiro propõe-se a [...] criar uma linguagem documental controlada capaz de indexar documentos museológicos e facilitar o acesso a informações, assim estruturadas, mediante catalogação com uso de computador (Ribeiro, 1988: 11).
Obedecendo a esses pressupostos, os critérios principais adotados para o acondicionamento dos objetos, visando à melhor conservação na nova reserva, foram matéria-prima constitutiva, seguida de etnia. Nove são as categorias artesanais desenvolvidas por Ribeiro, a saber: 1) cerâmica; 2) trançados; 3) cordões e tecidos; 4) adornos plumários; 5) adornos de materiais ecléticos, indumentária e toucador; 6) instrumentos musicais e de sinalização; 7) armas; 8) utensílios e implementos de madeira e outros materiais; e 9) objetos rituais, mágicos e lúdicos (Ribeiro, 1988). O acervo continuou a ser tombado no livro Registro do material etnográfico da Divisão de Antropologia, elaborado por Galvão, entretanto, a nova curadora providenciou uma cópia desse livro, para que o original ficasse preservado e a cópia pudesse ser manuseada por funcionários e pesquisadores. Em 1955, eram oito volumes e indicavam nove mil peças (Galvão, 1957 apud Velthem et al., 2004). Atualmente, como já referido, o acervo etnográfico do Museu é composto por 14.176 objetos tombados. A partir de 2006, os testes para um sistema de informação da Coleção Etnográfica (SINCE) para a coleção etnográfica começaram a ser realizados. A contribuição de Velthem à reserva técnica e à coleção etnográfica do MPEG ultrapassa o fato de ela ter pesquisado, coletado e depo-
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sitado no Museu objetos dos índios Wayana. A implantação de um sistema de controle ambiental, já citado, e a documentação cuidadosa da coleção, de cunho investigativo, buscando sempre as origens e a história, dando voz aos produtores dos objetos, demonstram sua preocupação com a preservação não apenas dos objetos, mas também das informações a eles agregadas. Um panorama dos três momentos do processo de organização da coleção etnográfica, englobando os critérios ou as bases classificatórias para o acondicionamento dos objetos, nos mostra que Nimuendajú os armazenava em caixas numeradas identificando-as por etnia. Galvão utilizava seus estudos classificatórios para os grupos indígenas do Brasil e acondicionava os objetos por áreas culturais indígenas, na reserva técnica situada no Parque Zoobotânico. Desde 2003, a coleção está acondicionada na Reserva Técnica do Campus de Pesquisa do MPEG, em armários deslizantes idealizados por Velthem, a partir de categorias artesanais preconizadas no Dicionário do artesanato indígena, de Berta Ribeiro, datado de 1988, tendo como critérios primeiros de organização a matéria-prima constitutiva do objeto e a etnia, respectivamente. Segundo Meneses (1994, 31-32), a documentação (processo que transforma o objeto num documento) é o eixo da musealização, sendo esta uma etapa que perpassa transversalmente os demais passos, na medida em que a aquisição, a pesquisa, a conservação e a comunicação necessitam ser documentadas a fim de que sejam acompanhados todos os procedimentos aos quais os objetos foram submetidos no âmbito de um museu. A aquisição refere-se ao deslocamento do objeto de seu contexto original (sociedades indígenas) ou das mãos de um proprietário particular para o contexto museológico. O acervo inicial do Goeldi foi adquirido como resposta ao envio de cartas que solicitavam ajuda para formar o acervo do Museu. A forma de aquisição mais usual no MPEG é a coleta, seja pelos viajantes naturalistas no século XIX, seja por pesquisadores do próprio Museu no século XX até os dias de hoje. Outras formas de aquisição são a doação e a compra, todavia, de qualquer maneira se faz necessária a formalização da entrada dos objetos na instituição, que se concretizará com o registro do objeto e o preenchimento da ficha documental, cujos dados são retirados diretamente do objeto em questão, mas também de relatórios de viagem dos coletores, cadernos de campo dos pesquisadores, relato dos produtores, dados fornecidos oralmente ou escritos por antigos proprietários. No Museu Goeldi, nos três períodos já mencionados, as informações sobre os objetos etnográficos foram registradas, num primeiro momento, no catálogo elaborado por Nimuendajú, posteriormente, na ficha elaborada por Galvão e no Livro de Tombo, atualmente, no pré-tombo, no Livro de Tombo e no sistema automatizado por Velthem. No processo de aquisição de objetos etnográficos indígenas para a Reserva Técnica Curt Nimuendajú estão envolvidos o curador da coleção e os pesquisadores que vão a campo e recolhem objetos das sociedades produtoras. No que se refere à conservação, a dificuldade no tratamento desses objetos e a complexidade de seus materiais constitutivos requerem profissionais capacitados nas áreas de Museologia e Conservação para atuar na rotina da reserva. Houve cursos eventuais sobre conservação preventiva, sobre acon-
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dicionamento de acervo e outros de procedimentos mais específicos, como congelamento de objetos, entretanto, não se conta com esses profissionais permanentemente na reserva.
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A Comunicação consiste em disseminar informações sobre o objeto etnográfico através de exposição permanente, a partir da qual são gerados catálogos com fotos desse objeto, ou em exposições de caráter didático, em eventos como a Semana de Ciência e Tecnologia, visando a divulgar o objeto etnográfico e as informações a ele agregadas ao público não especializado, de ensino médio e, finalmente, à sociedade em geral. Uma outra forma de disseminação de informações é por meio do empréstimo desses objetos a fim de que participem de exposições ou eventos realizados por outros museus. Alguns objetos pertencentes à coleção etnográfica do Museu Goeldi já participaram de exposições internacionais na Espanha, em Portugal, na China e na França, como também participaram de exposições itinerantes pelo Brasil. Entre estas, a Mostra do redescobrimento - Brasil + 500, em 2000 (Rio de Janeiro e São Paulo); Antes: histórias da pré-história, em 2004 (Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília); Amazônia: native traditions, em 2004 (China); e Les arts des améridiens du Brésil, em 2005 (França) e outras. Em algumas dessas exposições, os autores (produtores dos objetos) participaram também como visitantes, como consultores de montagem (pesquisa e disseminação), indicando que as fases do processo de musealização são interdependentes e complementares. Vinculados a um centro de pesquisa e museu ao mesmo tempo, os objetos etnográficos são foco privilegiado para a pesquisa por estudantes, pesquisadores, artistas, curadores e também pela própria sociedade produtora. É um fértil campo para produção de monografias, dissertações, teses, artigos para profissionais dos mais diversos campos de conhecimento. Há trabalhos desenvolvidos a partir do acervo, nas áreas de História, Antropologia, Arqueologia e também na área de Ciência da Informação. A publicação do material produzido também é uma forma de disseminação das informações do objeto etnográfico do MPEG, seja em forma de artigo, livro ou em trabalhos acadêmicos como monografias, dissertações e teses. Por meio de cursos, palestras, encontros, mesas-redondas e afins, as informações são transferidas e disseminadas. O MPEG, ao longo de sua história, priorizou a informação, sua comunicação e disseminação por meio dos mais diversos canais. Em 1866, ano da fundação do Museu, por meio de lições e preleções disseminou as informações sobre etnografia, e outras disciplinas eram proferidas pelos estudiosos da época. Em 1871, no regimento provisório, constava que cada membro do conselho, inclusive seu Diretor, daria aula sobre uma das áreas de conhecimento representadas no Museu. No início do século XX, conferências públicas foram instituídas e a divulgação da história natural e da etnologia da Amazônia se dava por meio da organização e da classificação de suas coleções. Em síntese, não tivemos a intenção de esgotar o assunto em pauta e nem responder conclusivamente às questões levantadas, mas contribuir para a reflexão sobre o processo de musealização de objetos salvaguardados em museus, que são tombados, constituem o patrimônio cultural do Brasil e, de acordo com a Constituição Brasileira, devem ser preservados e consequentemente pesquisados, documentados, comunicados e conservados.
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Considerações Ao pesquisar sobre a história da Coleção etnográfica do MPEG, percebe-se não somente a sua trajetória, na qualidade de patrimônio cultural brasileiro, mas também a gênese da Instituição que a salvaguarda. A ampliação do conceito de documento para um sentido mais abrangente, por outro lado, permitiu compreender, de maneira clara, que o objeto etnográfico seja examinado como tal, constituindo-se, assim, em “objeto documento”, fonte de pesquisa em várias ciências tais como a Antropologia, Museologia, Ciência da Informação e Biologia, entre outras. Sob esta ótica, os caminhos percorridos pela informação do objeto etnográfico no MPEG, estendidos a qualquer outro museu etnográfico, são variados e apontam para pesquisa de caráter interdisciplinar. Entretanto, é preciso definir os limites da relação da área estudada com as outras áreas de conhecimento (Rendón Rojas, 2008) para que não se perca o eixo condutor teórico e a pesquisa se torne incoerente. Esses objetos, fonte potencial para a pesquisa em diversas áreas do conhecimento, ainda são pouco explorados pela maioria dos brasileiros. No referente à documentação, procedimento considerado transversal ao processo de musealização, observa-se que, dos campos informacionais que constam, atualmente, na ficha de documentação da coleção etnográfica do MPEG, Nimuendajú introduziu 11 deles, em 1921, e Galvão, por sua vez, utilizou os campos anteriores e acrescentou mais quatro na sua gestão. É preciso ressaltar, contudo, que alguns campos existentes atualmente são oriundos de discussões e de abordagens teóricas e práticas que não se faziam presentes quando Nimuendajú e Galvão estiveram à frente da coleção etnográfica, refletindo a natural evolução das áreas de conhecimento envolvidas e também a introdução de uma visão interdisciplinar que se fez presente mais recentemente. A institucionalização das Ciências Sociais nas universidades introduziu novos paradigmas na pesquisa antropológica, e o foco de algumas questões foi alterado, incidindo diretamente, por exemplo, na relação entre museus que guardam acervos indígenas, as pesquisas antropológicas e os produtores desses objetos. Nas primeiras pesquisas antropológicas notava-se a ausência da “voz do outro” (sociedades indígenas), que era considerada um objeto de pesquisa. A importância maior era destinada ao cientista que coletava, classificava, descrevia e exibia suas coleções como resultados de suas pesquisas. “Os povos estudados, as sociedades produtoras dos objetos coletados não tinham voz, eram considerados ‘outros passivos’ de um discurso científico” (Abreu, 2007: 142). Atualmente, dar voz a esses “outros passivos” é assunto recorrente nas discussões e pesquisas dessa disciplina. Velthem, grande defensora da ideia da presença do outro nos museus em que há acervos que representem a sociedade desse outro, demonstra suas convicções em sua prática profissional, com reflexos na documentação da coleção etnográfica do MPEG. Finalmente, ao analisar o processo de musealização a que são submetidos os objetos etnográficos do MPEG, percebe-se que as fases deste processo apontam para uma abordagem interdisciplinar na organização do acervo, além da interdependência e complementaridade entre as fases do referido processo.
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Artigo recebido em abril de 2015. Aprovado em agosto de 2015
O LIVRO RARO E ANTIGO COMO PATRIMÔNIO BIBLIOGRÁFICO: APORTES HISTÓRICOS E INTERDISCIPLINARES Valeria Gauz Museu da República
RESUMO: A pluralidade do termo patrimônio enseja múltiplas leituras em diversos campos do conhecimento. A presente pesquisa aborda o nascimento da concepção de patrimônio no final da era moderna (implantado e solidificado na idade contemporânea) e seus desdobramentos para o patrimônio bibliográfico. Observou-se que muitos conceitos utilizados nos séculos XIX e XX, entre outras áreas na Antropologia e na Museologia, podem ser aplicados no sentido de aprofundar discussões na Biblioteconomia de Livros Raros, no que diz respeito ao entendimento e às fronteiras do patrimônio escrito no Brasil. PALAVRAS CHAVE: Patrimônio bibliográfico; Patrimônio escrito; Patrimônio histórico; Livro raro e antigo-Brasil; Ciência da Informação.
Rare and Old Book as Bibliographic Heritage: historical and interdisciplinary contributions ABSTRACT: The term cultural heritage has multiple meanings, as found in various fields of knowledge. This research discusses the birth of the idea of heritage in the modern era (implemented and solidified in the contemporary age), and its development as applied specifically to bibliographic heritage. It was observed that many concepts used in the nineteenth and twentieth centuries in such areas as anthropology and museology, among others, can be applied to deepen discussions in rare book librarianship in what concerns the understanding and boundaries of our written heritage in Brazil KEYWORDS: Bibliographic heritage; Written heritage;; Cultural heritage; Rare and old book-Brazil; Information Science.
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O Livro Raro e Antigo como Patrimônio Bibliográfico: aportes históricos e interdisciplinares
1.Introdução
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“O presente seleciona a herança de um passado imaginado para uso corrente e decide o que deve ser passado adiante a um futuro imaginado” (TUNBRIDGE; ASHWORTH, 1996: 6)
Historicamente, a base dos estudos sobre patrimônio na era contemporânea envolve um olhar para transformações culturais e acontecimentos que ameaçaram, de certa forma, algum tipo de memória da sociedade, como é o caso da Revolução Francesa, cujos inventários de bens considerados monumentos do país (e da humanidade), fossem prédios ou coleções de bibliotecas, passaram a ser objeto de preservação patrimonial. A pesquisa pretende tecer um diálogo com áreas do conhecimento que lidam com diversos conceitos de patrimônio, ressaltando abordagens que se aproximam daquelas utilizadas pela Biblioteconomia de Livros Raros no que tange critérios de raridade e patrimônios em bibliotecas (embora estas não tenham sido, ainda, muito exploradas na literatura científica da área) no Brasil. Igualmente, aborda as primeiras ações realizadas na Europa para a constituição de patrimônio cultural (também o bibliográfico) e se detém nos significados do termo monumento e nas noções de valor de antiguidade e de valor histórico de Alois Riegl pertinentes ao assunto principal abordado, qual seja, o patrimônio escrito. Da mesma forma, o texto se aproxima de análises já existentes sobre a relação das bibliotecas com a memória social, uma vez que essas instituições são guardiãs das diversas memórias culturais existentes, de naturezas as mais distintas, embora nem sempre representativas de suas comunidades. Mesmo assim, o patrimônio bibliográfico possui aspectos próprios que o distingue dos demais na questão de sua autêntica contextualização pois, ao contrário de outros tipos de patrimônios, como o etnográfico, por exemplo, não é ressignificado ao mudar de ambiente: permanece livro, com sua função primordial de leitura, as mais variadas, de modo geral. Foi observada uma quase invisibilidade do tema patrimônio bibliográfico nas pesquisas sobre patrimônio no Brasil utilizadas para o desenvolvimento das ideias aqui presentes. Essa lacuna pode ser preenchida, preferencialmente, pelos profissionais que lidam com esse acervo em bibliotecas. Praticamente não existem grupos de pesquisa no país, integrantes do CNPq, que se dediquem especificamente ao livro raro e ao patrimônio bibliográfico na atualidade. 2. A Pluralidade do Patrimônio O título do item bem especifica os diversos usos que o termo patrimônio vem recebendo ao longo dos tempos, pertencente que é a muitas áreas do conhecimento (como a Arquitetura, a Museologia e a História, mas não apenas), registrados por vários autores, como Gonçalves (2002; 2007), Lima (2010; 2012); Lima; Costa (2006); Barbier (2004), Abreu (2005) e outros muitos. Mais
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recentemente, em especial na Museologia, a Patrimoniologia, “como interpretação para a Museologia”, já estava em discussão desde 1982 (LIMA, 2010: 2). Na mesma pesquisa, esta autora chama atenção para a relação da Museologia com o Patrimônio, formalizada pela primeira Carta de Atenas, em 1931. Segundo Abreu (2005), a tese de Antonio Augusto Arantes, publicada em 1984, é uma referência nas pesquisas em Antropologia sobre patrimônio, assim como a de José Reginaldo Santos Gonçalves, publicada em 1996. São também registradas pela autora outras teses e dissertações sobre o tema defendidas nas décadas de 1980 e 1990, e como o crescimento no campo por meio de pesquisas científicas produzidas culminaram com a abertura dos cursos de pós-graduação sobre Patrimônio e temas correlatos, como Memória, Patrimônio Sustentável, e Conservação e Restauração do Patrimônio. Lima (2010; 2012) assinala os termos correlatos herança, bem e monumento, todos pertinentes e frequentes nas pesquisas sobre o assunto, lembrando que o termo patrimônio remonta ao Direito Romano com o sentido de herança, servindo de base conceitual dos demais. Barbier (2004) registra o uso do termo na Idade Média, com o mesmo sentido de posse de bens materiais, tanto em latim quanto em língua vulgar, acrescentando que na edição in-4º da Encyclopedie1, de 1778, o verbete patrimoine aparece como domínio da jurisprudência. Esse autor ainda discorre sobre as diferentes acepções dos termos patrimônio e herança em língua alemã. Na esfera social e cultural, o termo também é usado por várias disciplinas. Há patrimônios econômicos e financeiros, imobiliários (de empresa, país, família ou indivíduo); podem ser arquitetônicos, culturais, históricos, artísticos, etnográficos, ecológicos, genéticos e, mais recentemente, imateriais. Presentes mesmo em sociedades tribais, é no final do século XVIII, com a formação dos Estados nacionais, que o conceito se firma como oposição à ideia de tradição vigente (PEIXOTO, 2000; GONÇALVES, 2002; 2007). Desde 2001, a Unesco contempla também o patrimônio subaquático, a fim de proteger vestígios da existência humana submersos2. Na era moderna, a Revolução Francesa foi palco de muitas transformações na história desse e de outros países no que tange à política, à economia e, também, à cultura. A secularização e a nacionalização de bens do Antigo Regime, ou seja, dos testemunhos da história (até então história apenas dos letrados, agora igualmente dos cidadãos), chamados de monumentos históricos no pós 1790, culminaram por firmar o conceito de patrimônio associado à manutenção desses bens, da nobreza e do clero. Patrimônios, como bens intransferíveis, abarcaram obras de arte pela primeira vez, por seu valor de tradição e graças ao novo sentimento de nacionalização estabelecido (BABELON; CHASTEL, 1994; CHOAY, 2006; LIMA, 2012). É nesse momento, no final dos setecentos e início dos oitocentos, que o patrimônio móvel é transferido para os museus, definidos como “lugar, edifício onde se encontram reunidos os diversos objetos de arte de que se fazem 1 Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers…, nouv. éd., t. XXIV, Genève: Pellet, 1778. 2 Unesco. Patrimônio Cultural Subaquático: http://www.unesco.org/new/pt/culture/themes/underwater-cultural-heritage.
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O Livro Raro e Antigo como Patrimônio Bibliográfico: aportes históricos e interdisciplinares
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coleções” (QUATREMÈRE DE QUINCY, 1798-1825 apud CHOAY, 2006: 101). Como relata esta autora, o sentido de “museu” estava, então, em processo de construção na França. Com relação aos bens imóveis (igrejas, conventos, castelos, residências particulares), havia o problema de como esses espaços podiam ser melhor utilizados pelo governo de transição e pela população. Apesar da sugestão de Louis-George Bréquigny, historiador e paleógrafo francês e presidente da Comissão para a criação de depósitos, de transformar esses espaços em museus, o precário estado de conservação das igrejas, principalmente, fez com que passassem a servir como depósitos de munição, salitre, sal, ou mesmo como mercado, enquanto conventos e abadias eram convertidos em prisões. Antecipando o projeto europeu de Napoleão, Bréquigny pretendia nacionalizar monumentos caracterizados como bens culturais para uso da sociedade. Etimologicamente, o termo monumento vem do latim monumentum3 e a raiz indo-europeia é men/mon (pensar), com sufixo -mentum, que nos remete a recordar, ter memória de qualquer coisa. Algo relacionado à memória e à história, que pretende reviver o passado. Observa-se que o termo “monumento”, conforme em uso no final do século XVIII, não significa apenas os prédios e outras construções simbólicas ou comemorativas, como no sentido atual, mas igualmente inclui os bens móveis, como estátuas, medalhas e acervos de bibliotecas, que foram sendo paulatinamente tombados, inventariados e protegidos. Os bens móveis escritos, retratados como monumentos na França, receberiam a denominação de monumentos de escrita na Áustria pelo historiador da arte Alois Riegl, teórico do início do século XX, ao reorganizar a legislação pertinente à conservação dos monumentos austríacos. Riegl publicou ensaio em 1903, cuja tradução, em inglês, recebeu o título The Modern Culture of Monuments: Its Character and Its Origin4. Sua especulação a respeito da popularização do patrimônio na cultura ocidental fez com que identificasse princípios e práticas para tomadas de decisão e estabelecimento de políticas necessárias para aquele momento e contexto, atribuindo vários tipos de valor aos monumentos. Riegl (1996; ARRHENIUS, 2003; CUNHA, 2006) faz distinção entre dois tipos de monumento: o intencional e o não intencional. No primeiro caso, o monumento é criação do homem com a finalidade de preservar o presente para as gerações futuras, estando relacionado à memória coletiva de determinada sociedade ou grupo. Os monumentos não intencionais, por outro lado, mais numerosos, que são os mais utilizados pela sociedade dos últimos tempos, de fato se referem a monumentos artísticos e históricos que, em sua gênese, não tinham esse significado. Essa é uma atribuição moderna da sociedade (que também inclui os monumentos de escrita). Quando se refere ao culto moderno dos monumentos ou à preservação histórica, raramente temos monumentos “intencionais” (RIEGL, 1996). Nesse texto, o autor também discute, entre outras, a questão do valor de antiguidade e do valor histórico. O valor de antiguidade5 de um monumento se torna aparente por certas características físicas que possui, como possíveis imperfeições, alteração de cor 3 Dizionario Etimologico Online http://www.etimo.it/?term=monumento. 4 O original em alemão: Der moderne Denkmalkultus. SeinWesen und seine Entstehung (Viena). A tradução foi publicada em Oppositions, v. 25 (Fall 1982), p. 21-56, periódico de Arquitetura nova-iorquino. 5 Utilizamos a expressão valor de antiguidade no sentido de valor de idade cronológica, chronological age.
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e forma. Assim, o monumento pode ser apreciado por suas qualidades físicas e por suas marcas no tempo. Para o autor, o valor de antiguidade “está acima de todas as diferenças religiosas e de todas as diferenças entre pessoas que receberam educação e outras que não receberam, entre os especialistas [de arte] e os leigos” (REIGL, 1996: 74). Dessa forma, esse é o valor mais democrático, que ao mesmo tempo atua sobre quem o aprecia pura e simplesmente a partir da percepção visual – o que significa certa vantagem sobre o valor histórico, que requer compreensão intelectual e reflexão: O valor histórico de um monumento é baseado no contexto específico e individual que representa no desenvolvimento da criação humana em um campo determinado. A partir dessa perspectiva, o que nos interessa no monumento não são os traços das forças destruidoras da natureza [...], mas a forma original do monumento como produto da humanidade. O valor histórico de um monumento aumenta quanto mais fiel à sua integridade permanecer e revelar seu estado original de criação: distorções e deteriorações parciais desagradam; não são ingredientes bem- vindos ao valor histórico. [...] Não preserva traços da idade ou outras mudanças causadas pelo impacto da natureza desde o tempo em que o monumento foi criado [...] (RIEGL, 1996: 75)
Segundo o autor, o valor histórico é mais abrangente; é aquilo que foi e hoje não é mais; e isso que não é mais, forma um elo insubstituível com a cadeia do desenvolvimento: o que surgiu posteriormente não teria existido daquela forma se o precedente tivesse sido outro. Como os eventos históricos não mais existem, as atenções se voltam para as evidências resultantes que representam as etapas do desenvolvimento de um determinado ramo da atividade humana, que pode ser, por exemplo, um monumento de escrita ou de arte, ou seja, pode ser um livro, um manuscrito ou um objeto de museu. Não muito mais tarde, essas evidências remanescentes de uma memória preservada receberiam a denominação de lugares de memória por Pierre Nora6. Logo a seguir, no mesmo parágrafo, o autor continua a expor suas ideias, sobre valor histórico dos (agora denominados) documentos no seu estado mais original possível. Pela possibilidade de erro no processo de restauração, o documento original deve permanecer conforme criado, sempre que possível, como um objeto intacto e disponível. De acordo com Cunha (2006), é o pensamento riegliano que traz as práticas de restauração ao debate dos assuntos culturais, antecipando-se ao “restauro crítico” do pós-guerra, que viria meio século mais tarde. Se, na França do final do século XVIII, a questão do nacionalismo foi a tônica das transformações ocorridas, no ensaio de Riegl do início do século XX essa não foi a questão principal, conforme apontado por Choay (2006: 116): apesar de Alois Riegl ter sido o “primeiro historiador a interpretar a conservação dos monumentos antigos a partir de uma teoria dos valores, silenciou sobre o valor nacional ... não enfocando o patrimônio, justamente o que legitimou os demais valores na França revolucionária”. Naquele momento, a Áustria se encontrava, ainda, sob o último período da monarquia dos Habsburgo, marcada por crises políticas entre as diversas nacionalidades.Tempo e contexto são diferentes, mas a construção do patrimônio na Áustria se constitui em pesquisa não considerada no momento. 6 Nora, Pierre (Org.). Les Lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1997. 3 v.
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3. Desdobramentos para o Patrimônio Bibliográfico
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Conforme veremos a seguir, em vários países europeus são observadas histórias similares com relação ao surgimento da noção de patrimônio na era moderna, muitas vezes ligadas à necessidade de construção de uma nacionalidade que, por sua vez, ensejou debates sociais, cujos resultados ainda se fazem presentes, mesmo havendo eventuais distâncias entre o que pode ser compreendido como patrimônio, estabelecido pelo Estado, e aquilo que a sociedade entende como tal. O patrimônio bibliográfico na Inglaterra foi constituído a partir de acervos reais, de ricas coleções privadas e da extinção das bibliotecas monásticas, com destaques para as coleções de viajantes dos séculos XIX e XX (CARR, 1996). Na Espanha se passaria situação análoga. Os confiscos eclesiásticos ocorreram entre 1820 e 1823, e de 1836 a 1851. Em especial nesta última fase (período também conhecido por Confiscación de Mendizábal), houve grande perda do patrimônio religioso, com a apreensão de bens pelo Estado e a extinção das ordens religiosas. Não apenas altares, mas livros, igualmente, se perderam de maneira irrecuperável. Posteriormente, a fim de reunir esses acervos antigos, foram criadas bibliotecas públicas em escolas de ensino secundário e/ou em universidades, dependendo da existência ou não dessas instituições em cada província, ou seja, parte das coleções patrimoniais, nesse país, originou daquelas dos conventos, cujos acervos foram acrescidos por doações pessoais ou de outras instituições e localizados, como dito, em bibliotecas de instituições de ensino, no geral (REYES CAMPS, 2004;VALLEJO POUSADA, 2011). Na França, os fundos antigos, raros e preciosos - ou seja, o patrimônio escrito7 -, foram constituídos, assim como os objetos de museu, não a partir das bibliotecas ou do público, mas de confiscos de coleções que existiam por herança, geração a geração, de reis, nobres, religiosos e de colecionadores, portanto não eram reconhecidos pela sociedade como um bem comum. Essa questão se estenderia até os séculos XIX e XX - buraco negro patrimonial, segundo Balley (2008) -, o que tornou difícil a construção de bibliotecas homogêneas, com uma identidade. Naturalmente, essas coleções já existiam na época de Carlos V, no século XIV, muito antes da Revolução, mas durante este evento, após um movimento inicial de destruição desses bens, pouco a pouco foi sendo construída uma mentalidade de preservação dos objetos considerados de valor (MOUREN, 2007; BALLEY, 2008). No século XIX, surgem as bibliotecas municipais constituídas a partir dessas [de confiscos] coleções (algumas já há muito abertas ao público bem antes da Revolução, como as de Troyes ou Orléans) [...] mas os fundos são progressivamente separados, se não fisicamente, ao menos intelectualmente: os livros antigos de um lado, os de estudo e de pesquisa de outro. Nos séculos XIX e XX são constituídas outras bibliotecas patrimoniais seguidas de muitas e frequentes doações extremamente importantes (MOUREN, 2007: 15)
As coleções reais francesas, de acordo com Chartier (2006), foram enri7 Dominique Poulot, em Uma história do patrimônio no ocidente (São Paulo: Estação Liberdade, 2009), também utiliza a expressão patrimônio escrito.
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quecidas de muitas e diferentes formas: pelas reuniões de bibliotecas de diferentes membros da família real; por meio de confiscos externos (após expedições militares); do depósito “legal” de livreiros e tipógrafos (instituído na França no século XVI); por troca, doação e/ou compra de acervo de viajantes, diplomatas e outras personalidades. Como dissemos, houve um momento inicial, na Revolução Francesa, de eliminação de objetos concernentes ao Antigo Regime, relacionado à destruição do que pertencia ou era associado ao passado que se queria dissipar, não apenas o alusivo à situação política anterior, mas também à cultural, conforme visto com prédios e objetos de arte. No caso dos livros, mutilações, igualmente, ocorreram. No processo de confisco dos bens de reis, nobres e do clero, a comissão de monumentos inicialmente buscou uma maneira de suprimir o selo real dos livros da Bibliothèque royale. Graças à rápida ação do colecionador Renouard em texto denominado Observações de um patriota sobre a necessidade de conservar os monumentos da literatura e das artes, contando com a ajuda do matemático Charles-Guilbert Romme (autor do calendário francês), foi assinado decreto, em outubro de 1793, proibindo a mutilação de livros, gravuras, mapas, medalhas, em suma, de todos os objetos culturais, sob o pretexto de apagar os sinais do feudalismo ou da realeza. Devido a lutas entre as facções Jacobinos e Girondistas, Romme seria condenado à guilhotina dois anos mais tarde, escapando por ter, antes, se suicidado pela república (BABELON; CHASTEL, 1994). A noção de patrimônio em oposição à de vandalismo é também mencionada por Abreu (2007) e por Lima (2012). Conforme visto até o momento, houve certa dissociação, no passado, entre a construção do patrimônio bibliográfico (e outros) em alguns países europeus e sua representatividade social. Autores contemporâneos destacam a questão da relação dos acervos patrimoniais com suas comunidades, uma vez que, hoje, o assunto está sendo aprofundado, por um lado (ou principalmente) pela entrada em cena da digitalização de acervo raro desde a década de 1990; afinal, selecionar acervo para digitalização é, de certa forma, selecionar patrimônio que merece ser preservado e disseminado. Por outro, em função da formação desejada (e nem sempre realizada) para quem trabalha com a memória escrita em bibliotecas – esta última, em especial, na Europa. Melot (2004: [1]), ao analisar o que é um objeto patrimonial e caracterizar o patrimônio como objeto coletivo, define a relação desse com a sua comunidade. Afinal, um existe em função do outro. A comunidade precisa, primeiro, existir, para que o objeto patrimonial exista. Se coletividade pode ser definida como um grupo de indivíduos que compartilham interesses, pode-se dizer que o patrimônio transforma essa coletividade em comunidade8; transmuta “as populações em Povos e os territórios em Nações”. Pedraza Gracia (2014) assinala ser função de uma biblioteca patrimonial dar a conhecer seu acervo à sociedade, uma vez que esta tem o direito de conhecê-lo e o dever de protegê-lo – o que nos aponta uma ordem diferente de acontecimentos, na qual o patrimônio não é formado pela sociedade. De qualquer forma, “a conexão com a sociedade é necessária para validar o objeto como patrimônio” (EDSON, 2007: 342). Parece-nos haver diferença entre o patrimônio que representa a história 8 Para a relação entre patrimônio, povo e lugar, ver também Tamaso (2012).
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de certa comunidade e o patrimônio que é reconhecido como importante para a história de uma comunidade. Parte do que é qualificado como patrimônio não existe necessariamente por estar relacionado à história daquela comunidade, por traçar uma história ou evidenciar fatos ou técnicas, uma vez que objetos e monumentos podem existir em certo local em função de fatores como espólio de guerra, por exemplo. Esses objetos não necessariamente descrevem a coletividade local. Todavia, não deixam de ser patrimônio, pela importância que possuem num âmbito cultural mais amplo. Pedraza Gracia (2014) também se refere aos indivíduos e/ou sociedades que depreciaram a cultura alheia ao conquistarem posições predominantes - o que resultou em grande perda de bens culturais. Não apenas na Europa a formação de acervos hoje raros e antigos contou com as ricas coleções eclesiásticas. Além do uso do calendário cristão em quase todo o mundo, nossa memória escrita também muito deve ao Cristianismo pela composição, reprodução, aquisição e preservação de livros que hoje se encontram em muitas bibliotecas, se não nos seis (considerando o modelo de seis continentes), mas em vários continentes. O Brasil, apesar de sua história tipográfica tardia, mantém similaridades com a história de outros países com relação à formação de coleção, cuja origem religiosa e de acervos particulares é clara (a entrada do acervo real português no país ocorreu após 1808). O bibliófilo e bibliógrafo Rubens Borba de Moraes e o padre Serafim Leite (autor da História da Companhia de Jesus no Brasil, graças à qual se sabe mais dessa Ordem do que de qualquer outra) bem resumem a situação literária brasileira: até o século XVIII, o único ensino no país era o religioso (com ótimas bibliotecas). Depois disso, os alunos seguiam para a Universidade de Coimbra a fim de completar seus estudos. Como na Europa, os confiscos também ocorreram no Brasil, com a expulsão dos jesuítas por ordem do Marquês de Pombal, em meados do século XVIII. Muito foi roubado, vendido ou destruído por insetos. Restou muito pouco, somado ao reduzido número de bibliotecas particulares. Moraes faz um estudo das ordens religiosas e suas coleções nesse período, assim como das particulares, analisando aspectos relativos ao mercado de livros, à censura e, por fim, às tipografias do século XIX. A proibição do noviciado em 1835 - registra o autor -, já no Império, representou outra derrocada para os conventos que, somente depois de proclamada a República (1889), com a separação da Igreja do Estado, começaram a se reerguer. Registra, igualmente, a importância de Frei José Mariano da Conceição Veloso com relação aos livros impressos pela Typographia Chalcographica, Typoplastica e Litteraria do Arco do Cego, em Lisboa, criada no limiar do século XIX e de curtíssima duração (menos de dois anos), cujo objetivo principal era o melhoramento da economia rural e das fábricas brasileiras. Infelizmente, muitos dos livros enviados para o Brasil foram de utilidade difícil de avaliar, pois o atraso do país era expressivo. Poucas capitanias, como as de Pernambuco e Bahia, fizeram da iniciativa bom uso (MORAES, 2006). A vinda da família e da biblioteca real portuguesa para o Brasil, no início dos oitocentos, assim como a criação da Impressão Régia no Rio de Janeiro, marcaram a entrada da maior coleção rara e antiga que se tem no país, assim
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como os primeiros passos na direção de uma produção editorial – paulatinamente expandida em nível nacional. Porém, a ausência de ensino sistemático cobrou seu preço no desenvolvimento do país – até hoje sentido, tanto no ensino fundamental quanto no universitário, no que tange à importância dos livros e de suas instituições de guarda no país. Proteger e preservar patrimônios nacionais é assunto que permanece na pauta das preocupações ao longo de todo o século XIX no ocidente. No Brasil, o surgimento de museus nacionais, institutos históricos voltados ao estudo de nacionalidades, a criação da Biblioteca Nacional e Pública da Corte, da biblioteca do Museu Nacional e a formação do acervo de obras raras do Museu D. João VI representaram o início da constituição de estabelecimentos e acervos relevantes para o funcionamento de um país não mais na condição de colônia em busca de uma nacionalidade. O século XIX foi a época da construção do pensamento brasileiro, de um nacionalismo até então inexistente em larga escala, pelo menos. A criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, é um exemplo do gosto pela pesquisa em História com uma roupagem mais pragmática, reunindo, pela primeira vez, as pessoas que pensavam a História do Brasil (IGLÉSIAS, 2000). A preocupação com o patrimônio na qualidade de bem nacional a ser preservado teve início, politicamente falando, na década de 1920. Apesar da existência das instituições citadas, os bens imóveis, principalmente, careciam de meios que os protegessem para as futuras gerações (e para que a responsabilidade de uma possível deterioração não recaísse sobre o Estado e as elites, no futuro). “O tema passou a ser objeto de debates nas instituições culturais, no Congresso Nacional, nos governos estaduais e na imprensa” (FONSECA, 2005: 81). Esse conceito de patrimônio foi adotado pelo Estado através do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), e foi nas décadas de 1930 e 1940 que se solidificaram as discussões sobre o processo de construção da nação (CHUVA, 2009), quando talvez, pela primeira vez, o patrimônio bibliográfico tenha sido citado como parte de um conjunto de diretrizes (como política de Estado) que visavam à identificação e consequente preservação de bens nacionais, com a criação, em 1937, SPHAN, hoje Instituto do mesmo nome: Art. 1º. - Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (SPHAN, 1980: 111)
Bem mais tarde, em 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil iria “proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos” e no artigo 216 considerar como patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, como obras, objetos, documentos etc. (BRASIL. Constituição, 1988). O livro raro e antigo continuaria a ser contemplado nos documentos oficiais, embora ainda de forma acanhada, implicitamente e sem muitas especificidades, como documento, acervo histórico e/ou bem cultural.
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Encontra-se em curso pesquisa que estuda a questão do patrimônio bibliográfico brasileiro. No entanto, já foi observada, no que diz respeito aos livros, uma distinção entre patrimônio bibliográfico e patrimônio histórico aplicado ao nosso país (GAUZ, 2014). Alguns livros impressos no e sobre o Brasil seriam aqueles cujas características intrínsecas e extrínsecas tivessem valor nacional; os que influenciaram e são representativos para sociedade. Esses livros raros sobre o Brasil, impressos em outros países, juntamente com os relevantes aqui publicados formariam a Brasiliana, dessa forma compondo o acervo caracterizado como patrimônio histórico brasileiro. Moraes (1998: 182) denomina Brasiliense a coleção de livros impressos no Brasil mas, como o bibliógrafo mesmo diz, “o nome pouco importa”, desde que não se misture com Brasiliana. Para o autor, Brasiliana são os livros sobre o Brasil impressos entre 1504 (ano do primeiro impresso em que figura o país) e 1900, assim como aqueles escritos no período colonial por brasileiros (ou seja, até 1808). Brasiliense é a coleção de livros impressos no Brasil de 1808 até os nossos dias. Posteriormente, aprofundaremos o assunto, conforme dito, pois a questão no momento se prende apenas ao fato de quase todos esses livros serem patrimônio histórico brasileiro9. E, além de livros, nos setores de livros raros e coleções especiais há, ainda, publicações periódicas, mapas, partituras, manuscritos, documentos arquivísticos (como fotografias) e outros, para não falar no patrimônio digital. O Brasil passou a ter imprensa oficial somente três séculos após a chegada de Pedro Álvares Cabral à costa brasileira, em seu caminho rumo às especiarias da Índia e graças às correntes marítimas que mudaram o curso da viagem e da história. Todavia, o país é proprietário de várias coleções de livros raros, antigos, gravuras, manuscritos etc., em especial aquelas chegadas após a vinda da família real. São verdadeiros tesouros bibliográficos, em diferentes línguas. Apesar disso, muitos não têm nenhuma relação com o Brasil. Em princípio, o que torna esse tipo de acervo especial, de alguma forma, é o fato de ser representativo da imprensa artesanal na confecção do papel ou da encadernação; é ter pertencido a reis, nobres ou a instituições de renome no passado (na maioria das vezes da Europa); é, independentemente de seu conteúdo, ser considerado uma página da história da produção editorial de muitas cidades. Para um país sem tipografias, praticamente, durante o período colonial, possuir semelhante acervo o coloca em patamar distinto com relação a outros, de história similar ou não. Esses livros devem ser considerados patrimônio bibliográfico, embora não sejam necessariamente de valor histórico para o Brasil (GAUZ, 2014). 4. Comentários e considerações Alguns aspectos abordados no decorrer desta pesquisa sobre o patrimônio podem ser transpostos para o âmbito de bibliotecas que possuem coleções patrimoniais no Brasil. A ideia de patrimônio como concepção social é dos anos 1900, como legado comum a uma sociedade, de construções e objetos que remetem a uma identidade nacional e que, para ser valorizada, precisa, antes, ser compreendida. Os estudos citados, de áreas diversas, trazem contribuições que podem enriquecer o debate sobre o patrimônio bibliográfico, dada a interdisci9 O Plano Nacional de Recuperação de Obras Raras (Planor) utiliza a expressão patrimônio histórico nacional.
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plinaridade que o patrimônio porta, “à ausência de fronteiras entre saberes de diferentes naturezas” (PINHEIRO, 1997: 234). Os conceitos de monumentos intencionais e não intencionais de Riegl, quando aplicados aos monumentos de escrita, podem se referir aos livros que nascem raros e aos que se tornam raros – conceitos já existentes no campo. Alguns livros do século XX, por exemplo, as edições de luxo limitadas, publicadas pela Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, já nasceram raros. A noção de valor de antiguidade de um monumento de escrita já existe como critério de raridade, embora talvez precise de aprofundamento e limites mais claros nas nossas bibliotecas brasileiras. É inegável como o aspecto físico dos livros antigos, por si só, atrai a atenção e democratiza o conhecimento, impregnados que são de marcas do tempo e características peculiares que não exigem entendimento intelectual para serem apreciados. O valor histórico dos livros raros e antigos no nosso país está associado às questões do passado descritas, à importância da preservação de sua forma física original e, em especial, ao contexto no qual se situa (além de seu conteúdo). Por esse motivo, requer atenção maior. A determinação desse universo é ação interdisciplinar e de grande complexidade no país de dimensões continentais como o Brasil, em cujos Estados as tipografias - para citar algumas - surgiram entre 1808 (Rio de Janeiro) e 1902 (Acre). Quais desses livros são patrimônio regional ou nacional e como essas fronteiras são estabelecidas? Qual a relação de nossas coleções patrimoniais com suas respectivas comunidades? Quais livros estariam relacionados à nossa memória coletiva; e quais livros, nas palavras de Melot (2004), transformam nossa população em povo e nosso território em nação? Ou quais seriam elos insubstituíveis da cadeia da história do país representados por livros e por quê; ou, ainda, no que esse ou aquele livro alterou o curso da história? Assim como os monumentos (no sentido atual) e os objetos históricos são evidências de etapas do desenvolvimento de algum ramo da atividade humana, também os livros o são, e não apenas para o estudo da evolução das técnicas relacionadas à história do livro. A França nos parece ter sido exemplo para outros países na questão da formação de uma nacionalidade associada à patrimonialização de seus acervos, fossem esses bibliográficos, artísticos ou museológicos, eternizando sua própria história nos lugares de memória. Ao falar de patrimônio nesta pesquisa, o termo biblioteca, naturalmente, apareceu muitas vezes, como a responsável pela reunião dos escritos desde tempos imemoriais; como instituição que surgiu para preservar, permitir acesso (organizado ou não, restrito ou não) e para incrementar a coleção. Da mesma forma, outro termo, memória, inevitavelmente esteve presente neste texto, como que para nos lembrar de sua importância para a sociedade e daquilo que deve ser mantido para as futuras gerações. Apesar de não ser nossa intenção detalhar a questão da memória e do patrimônio conforme as análises de pesquisas contemporâneas no Brasil, neste trabalho não podemos nos furtar a ressaltar a relação das bibliotecas com a memória social, “de acumulação e interação de memórias coletivas”, conforme Namer (1987: 160) narra sobre as bibliotecas, reafirmando-as como instituições responsáveis pela memória cultural (e não apenas pela erudita, conforme ocorria no passado). Das tábuas com escritas cuneiformes das bibliotecas da Assíria, no terceiro milênio antes de
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Cristo (onde eram armazenadas as memórias de saberes, econômicos, políticos, técnicos, científicos e também as esotéricas, formadas e acessadas pela elite, e preservadas para os seus descendentes); passando pelas bibliotecas públicas da Grécia do quarto século da nossa era (cujos acervos mantiveram e privilegiaram a memória dos filósofos e o conhecimento estético); lembrando a importância do latim, que assegura a unidade de textos na Idade Média de várias memórias coletivas, até chegar à Renascença, à uma memória de colecionadores que se torna, eventualmente, memória do patrimônio nacional (pois até o século XIX as bibliotecas de reis, mecenas e príncipes, assim como os catálogos de colecionadores, escrevem a história da posse de livros raros), são os guardiões desses templos de saber (os bibliotecários) que atuam como formadores de memórias e mediadores da informação para o leitor. Hoje, a relação do patrimônio nacional com o Estado não é mais mediada por imperadores e nobres, tampouco pelos acervos de colecionadores, cujas memórias individuais estão representadas em várias das nossas bibliotecas. Ainda assim, ficam as dúvidas sobre qual patrimônio classificamos como nacional, em nossas narrativas (organizadas ou não, com relação ao patrimônio histórico brasileiro, em especial) e o que será considerado material de pesquisa histórica para o futuro. Afinal, o futuro está em processo de construção no presente, o qual tem como referência o passado, conforme a epígrafe registrada na introdução. É possível que a grande diferença entre o patrimônio bibliográfico e os demais tipos de patrimônio resida, além do formato, na questão de sua autêntica e natural contextualização – o que reforça, no caso, a sua identidade, ao contrário de uma representação em ambiente diverso. No geral, os objetos patrimoniais etnográficos, assim como os museológicos (com exceção daqueles em casas museus, se podemos generalizar), são retirados de seu contexto original e ganham ressignificação nos museus, como os artefatos indígenas, cujas funções originais perdem o seu significado, como as esculturas gregas hoje no Museu Britânico e no Louvre, ou mesmo uma arma que pertenceu a certa personalidade, totalmente ressignificada como objeto museológico. Os livros raros e antigos na condição de patrimônio, ao contrário, permanecem no próprio ambiente (biblioteca), institucional na sua origem ou mesmo no caso de transferência de biblioteca particular, de colecionador, para uma biblioteca institucional. O contexto ambiental não se altera e não há ressignificação do objeto bibliográfico – tão comum nos demais objetos. O livro raro-objeto pode ser considerado um quase objeto de museu no que tange a sua fisicalidade, mas jamais perde a sua função basilar de objeto de biblioteca. Conforme Goldman (2007), na realidade, os livros são considerados mais complexos do que os objetos de museus, já que estes podem ser apreciados em sua integralidade quando em exposição, como um quadro na parede, um busto, ou mesmo uma coroa numa redoma de vidro. Do livro exibido só se admira a encadernação ou duas páginas quaisquer abertas. Apesar de tudo, não se pode escapar da discussão em torno do que seja ou não colecionável e preservado para o futuro, do que deve ou não se perpetuar como marca de identidade de uma sociedade e de como a História, com suas múltiplas leituras acerca de fatos e representações, alternando, eventualmente, a importância do que merece ser considerado de valor. Novos patrimônios escritos (manuscritos, impressos e digitais) surgem todos os dias. Apesar de presentemente tratarmos de aspectos históricos, o
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patrimônio atual que será preservado para o futuro deve ser estabelecido hoje. Lidar com patrimônio é ação contínua, uma vez que a cultura, os fatos, a história, os seres e suas instituições se modificam constantemente. Se pensarmos que as pessoas se encontram inseridas em determinadas culturas, que influenciam e sofrem influência de suas instituições profissionais no trato com o patrimônio, fica clara a ideia de uma inexorável transformação de todas as coisas na linha do tempo. Discutir patrimônio bibliográfico e sua preservação no Brasil importa não apenas pela deterioração causada pela umidade característica, mas principalmente pelo amplo entendimento de nossa própria cultura bibliográfica. Ao mesmo tempo, faz-se necessário observar e procurar retificar lacunas nas coleções patrimoniais – mais uma ação a ser executada em bibliotecas no campo da interdisciplinaridade. Há, ainda, a discussão suscitada por Gauz (2014) a respeito de patrimônio bibliográfico e patrimônio histórico brasileiro, na qual os termos aparecem ainda sem detalhamento – discussão essa presente no Brasil e nos Estados Unidos atualmente. Ampliar os debates pode não apenas contribuir para a área, mas fazer com que deixe de ser apenas função do “pater-Estado” selecionar e manter bens patrimoniais. O Brasil (corretamente) nacionalizou os tesouros portugueses como parte de sua história, mas talvez, assim como a França, tenhamos lacuna patrimonial a preencher com relação aos séculos XIX, XX e, agora, XXI. Ao longo de diversas leituras, observamos uma quase invisibilidade do patrimônio bibliográfico em grande parte dos textos consultados sobre os diversos tipos de patrimônio. Essa lacuna precisa ser preenchida, em especial pelos que lidam com esse acervo em bibliotecas e/ou atuam em disciplinas relacionadas à história do livro. Além das abordagens das áreas citadas, há que se incluir mais pesquisadores da Biblioteconomia de Livros Raros - subárea da Biblioteconomia em nova expansão no Brasil - se debruçando sobre o tema já presente nas pesquisas dos historiadores do livro, dada a natureza interdisciplinar dessa subárea. O olhar teórico interno, institucional, científico é contribuição necessária, em especial no momento de transição que se atravessa em decorrência da digitalização de acervos raros desde o início da década de 1990, até mesmo devido à indispensável discussão sobre projetos colaborativos (GAUZ, 2009) e, no caso do Brasil, ainda mais relevante pelos debates em voga a respeito do tema Brasiliana. Não queremos dizer que não haja literatura sobre o patrimônio bibliográfico no país, com este ou outro nome, mas é, ainda, insuficiente e esparsa, não constitui um corpo de conhecimento científico, devido à sua grande abrangência e falta de aprofundamento teórico. A presente pesquisa, de abril de 2015, a partir de busca com o termo Biblioteconomia, constatou a existência de 15 grupos no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil do web site do CNPq10. Desses grupos, quatro possuem o termo Biblioteca e/ou termos correlatos no nome do grupo; um possui Ciência da Informação; outro, Cibermuseus; e seis possuem o termo Informação. Nas linhas de pesquisa, o termo Biblioteca e termos correlatos aparecem em 11 grupos. Um grupo aparece repetido. Há dois grupos que tratam de patrimônio cultural, um no âmbito da Museologia e outro pertencente à Fundação Bibliote10 Consulta por Grupo, aplicando a busca nos campos Nome do grupo, Nome da linha de pesquisa e Palavra-chave da linha de pesquisa; Certificado e Não-atualizado.
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O Livro Raro e Antigo como Patrimônio Bibliográfico: aportes históricos e interdisciplinares
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ca Nacional (FBN). Não foi encontrado grupo ou linha de pesquisa atuando na Biblioteconomia de Livros Raros, especificamente, embora o grupo da FBN seja o que mais se aproxima do assunto. O papel da Biblioteca Nacional na construção do patrimônio bibliográfico brasileiro é inegável, como guardiã da memória nacional, além de ser o lugar de memória por excelência a que Pierre Nora se referiu, onde o erudito e o popular se irmanam. Análise recente aponta baixa produção científica do campo do patrimônio cultural (material e imaterial) dentro da Ciência da Informação (CI), mas assinala que, apesar disso, o principal evento da área, o Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação (ENANCIB), contempla o tema desde o seu primeiro encontro em 1994 (SOUZA; CRIPPA, 2010). No universo da Ciência da Informação, os autores da pesquisa destacam a Museologia como o campo que mais vem discutindo o assunto por, entre outras abordagens, estudar o colecionismo e como os objetos são vistos como documento, portadores de informação, conforme análises de Paul Otlet e Suzanne Briet. A pesquisa assinala, ainda, que a Museologia, todavia, não consta como subárea da Ciência da Informação na CAPES, se constituindo como campo autônomo. Ao nos referirmos ao livro raro e antigo como patrimônio bibliográfico, consideramos que se incluem, no mesmo âmbito, as coleções especiais, impressas, manuscritas ou digitais, além de gravuras, partituras e material sonoro, pois todos ocupam o mesmo universo em uma biblioteca. Por esse motivo, talvez devamos nos referir ao assunto aqui tratado como patrimônio escrito e iconográfico (podendo ser, eventualmente, sonoro ou cinematográfico). O tempo presente é de reflexão e troca. O campo tem muito a crescer. O trajeto a percorrer é longo, mas já nos encontramos no caminho. Referências ABREU, Regina. Patrimônio cultural: tensões e disputas no contexto de uma nova ordem discursiva. In: LIMA FILHO, Manuel Ferreira; BELTRÃO, Jane Felipe; ECKERT, Cornelia (Orgs). Antropologia e patrimônio cultural: diálogos e desafios contemporâneos. Blumenau: Nova Letra, 2007. ABREU, Regina. Quando o campo é o patrimônio: notas sobre a participação de antropólogos nas questões do patrimônio. Sociedade e Cultura, v. 8, n. 2, p. 37-52, jul./dez. 2005. ARRHENIUS, Thordis. The Fragile Monument: On Alois Riegl´s Modern Cult of Monuments. Nordisk Arkitekturforskning, v. 4, p. 51-55, 2003. BABELON, Jean-Pierre; CHASTEL, André. La notion de patrimoine. Paris: Éditions Liana Levi, 1994. BALLEY, Noëlle. Le puzzle, la Coquille et le Lego: Constructions patrimoniales. Bulletin des bibliothèques de France, n. 6, p. 6-13, 2008. Disponível em: <http://bbf. enssib.fr/consulter/bbf-2008-06-0006-001>. Acesso em 29 mar. 2015. BARBIER, Frédéric. Patrimoine, production, reproduction. Bulletin des bibliothèques de France, n. 5, p. [1-15], 2004. ����������������������������������������� Disponível em: <http://bbf.enssib.fr/consulter/bbf-2004-05-0011-002>. Acesso em 14 abr. 2015.
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Artigo recebido em junho de 2015. Aprovado em agosto de 2015
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PROGRAMA NACIONAL DE PATRIMÔNIO IMATERIAL E MUSEU: APONTAMENTOS SOBRE ESTRATÉGIAS DE ARTICULAÇÕES ENTRE PROCESSOS DE PATRIMONIALIZAÇÃO E DE MUSEALIZAÇÃO Elizabete de Castro Mendonça1 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
RESUMO: No âmbito do Programa Nacional de Patrimônio Imaterial, observam-se a utilização de procedimentos de Musealização como instrumento de Patrimonialização. Nos Planos de Salvaguarda executados ou vigentes, entre 2002 e 2013, dentre os processos de Patrimonialização de 29 bens dez resultaram em ações de cunho museológico – dentre elas a proposta de criação do Museu do Samba (em andamento). O objetivo é analisar as estratégias de articulação entre os processos de Patrimonialização e de Musealização na proposta inicial de criação desse Museu, visando refletir sobre o papel dos museus no âmbito das políticas destinadas a bens imateriais. Tal reflexão torna-se relevante porque, em última instância, aborda os museus como equipamento cultural no cenário das políticas públicas federais para bens imateriais. PALAVRAS CHAVE: Patrimonialização; Musealização; Museu; Programa Nacional de Patrimônio Imaterial; Políticas Públicas para a área da cultura.
National Intangible Heritage Program and Museum: notes about articulation strategies betwee patrimonialization and musealization processes ABSTRACT: Under the National Intangible Heritage Program, note the use of Musealization procedures as Patrimonialization instrument. The Safeguard Plans executed or current, between 2002 and 2013, among the patrimonialization processes of 29 Heritage ten resulted in museological nature of actions - among them the preparation of the proposed creation of Samba Museum (in progress). In the face of such data, the goal is to analyze the articulation of strategies between the Patrimonialization and Musealization processes in the initial proposal for the creation of this museum, aiming to reflect on the role of museums in the context of policies for intangible assets. Such reflection becomes relevant because, ultimately, addresses the museums as cultural equipment at the scene of the federal public politics for Intangible Heritage. KEYWORDS: Patrimonialization; Musealization; Museum; National Programme of Intangible Heritage; Public Politics for the area of culture.
1 Bacharel em Museologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Doutora em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora do Departamento de Estudos e Processos Museológicos (UNIRIO), do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (UNIRIO e Museu de Astronomia e Ciências Afins) e do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia (Universidade Federal de Sergipe). E-mail: elizabete.mendonca@unirio.br
Elizabete de Castro Mendonça
Introdução Este artigo apresenta resultados parciais do projeto de pesquisa intitulado “Museu e Programa Nacional de Patrimônio Imaterial: estudo sobre as estratégias de articulação entre os processos de Patrimonialização e de Musealização na criação do Museu do Samba – RJ”1. Seu objetivo é analisar as estratégias de articulação entre os processos de Patrimonialização e de Musealização na proposta inicial de criação do Museu do Samba, visando assim refletir sobre o papel dos museus no âmbito das políticas destinadas a bens imateriais. O projeto de pesquisa citado iniciou-se como uma inquietação, a saber: qual o papel da Museologia e dos museus no âmbito da Política Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI)? Este questionamento ampliou-se durante a realização do I Ciclo de Debates - Museus e referências culturais: processos de Musealização e de Patrimonialização2, no qual a então Coordenadora de Projetos do Centro Cultural Cartola (atual Diretora Executiva do Museu do Samba), Nilcemar Nogueira, apresentou o processo de Patrimonialização das “Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo” e expôs a proposta de criação do Museu do Samba Carioca (NOGUEIRA, 2014). Neste momento foi fomentada a questão-problema que regeu a proposta de pesquisa: qual o papel da Museologia e dos museus no âmbito da Política Nacional de Patrimônio Imaterial refletido nas estratégias de articulação entre os processos de Patrimonialização e de Musealização das Matrizes do Samba elaboradas na proposta de criação do Museu do Samba Carioca? Por se tratar de uma pesquisa ainda em andamento, o foco deste artigo restringe-se ao papel do Museu, como descrito no primeiro parágrafo desta introdução. Nesta perspectiva, a proposta aqui apresentada é observar como os agentes sociais que participam da proposta de criação do Museu do Samba, vinculada ao PNPI, faz a apropriação dos termos Museu3 e Musealização4 no processo de salvaguarda das Matrizes do Samba Carioca5. 1 O projeto é vinculado ao Departamento de Estudos e Processos Museológicos e ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Museologia, Conhecimentos Tradicionais e Ação Social (GEMCTAS-UNIRIO/CNPq) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Entre agosto de 2014 e julho de 2015, o projeto contou com uma equipe formada pela pesquisadora Elizabete de Castro Mendonça (coordenadora), a Técnica em Assuntos Educacionais Flavia Varriol de Freitas Lobo Esteves e dois bolsistas de Iniciação Científica, a saber: Luiz Felipe da Silva Sanches e Paula Carolina Leite e Silva (estudantes do curso de graduação em Museologia). A partir de agosto de 2015, o pesquisador Daniel Roberto Reis Silva e a bolsista de Iniciação Científica Alice Barboza Sampaio (estudante do curso de graduação em Museologia) passaram a integrar a equipe. 2 O Ciclo de Debates caracterizou-se como uma ação conjunta da Escola de Museologia e o Departamento de Estudos e Processos Museológicos na Semana de Integração Acadêmica /Semana Nacional de Ciências e Tecnologia realizada, pela UNIRIO, em outubro de 2013. 3 Nesta pesquisa Museu foi conceituado, conforme a definição do Conselho Internacional de Mu-
seus,“uma instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o património material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite” (ICOM, 2007). 4 Desvallées e Mairesse (2010, p. 51) informam que a musealização começa pela separação ou deslocamento do objeto de seu contexto original para ser estudado como documento representativo de realidade construída, abarcando um conjunto de procedimentos vinculados à seleção, aquisição, pesquisa, conservação, documentação e comunicação. 5 Cabe reiterar que tendo como proposta descrever as narrativas, o intuito específico deste artigo não é valorizar correntes de pensamento / linhas conceituais indicadas nas falas dos agentes sociais aqui citados ou estabelecer críticas a estas correntes defendendo correntes de pensamentos que substanciam a pesquisa aqui apresentada, nem mesmo avaliar se os procedimentos de Musealização são efetivamente cumpridos
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Programa Nacional de Patrimônio Imaterial e Museu: apontamentos sobre estratégias de articulações entre processos de patrimonialização e de musealização
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Para esta reflexão, à luz de autores como Price (2001, 2004),Turner (1984) e Geertz (1989), considera-se a narrativa como uma habilidade que indica a relação do indivíduo, do grupo (ou da instituição que este representa) com a cultura. Tal habilidade contribui para o desenvolvimento ou a manutenção de atividades, valores e significados em contextos específicos. No caso particular deste trabalho as narrativas são expostas pelos atores sociais6, aqui compreendidos como os representantes do Centro Cultural Cartola. Estas narrativas são consideradas possibilidades para a compreensão das experiências institucional, pautando-se no significado, na visão de mundo, nas maneiras de interpretar os acontecimentos, no processo de produção de histórias e nos processos de apropriação de conhecimento. Aprecia-se assim que identificar as narrativas sobre as ações museológicas e, especificamente, analisar a proposta inicial de criação de um museu realizada, pelo CCC, no âmbito do PNPI – entre os anos de 2013 e 2015 - é um dos caminhos possíveis para tentar responder indagações que surgiram ao longo do desenvolvimento desta esta pesquisa e delinearam o escopo deste artigo - as principais delas são: por que musealizar este patrimônio, a partir de estratégias de articulações entre processos de Patrimonialização e de Musealização? Quais as justificativas adotadas pelo Centro Cultural Cartola para realizar a mudança de perfil institucional (inclusive no nome)? Como é entendida a relevância de ser denominado Museu por esta instituição? Existem embasamentos conceituais no campo da Museologia que direcionaram a criação do Museu do Samba dentro da proposta de preservação das “Matrizes do Samba no Rio de Janeiro” como Patrimônio Imaterial? Tais perguntas são relevantes porque estimulam uma reflexão sobre o papel político e social do Museu no cenário das políticas públicas federais para bens culturais imateriais brasileiros. Este estudo de caso foi estruturado com base em pesquisa bibliográfica, documental e de campo. Para compreensão da dinâmica aqui estudada, fez-se necessário contextualizar a relação entre PNPI e Museu no âmbito das políticas públicas para a área da cultura, questionar o porquê de musealizar um patrimônio instituído e historiar percurso institucional, descrevendo narrativas sobre ações de Musealização e a proposta inicial de criação do Museu. Relação Programa Nacional de Patrimônio Imaterial e Museu: breve contextualização no âmbito das políticas públicas para a área da cultura Refletindo sobre o panorama histórico das políticas públicas implementadas, atualmente, pelo Estado Brasileiro, pode-se dizer que estas compreendem um leque de programas voltados para setores específicos da sociedade. Neste contexto, existem programas destinados aos indivíduos ou grupos detentores de conhecimentos tradicionais7 que priorizam o reconhecimento, fortalecimenou se o Museu atende sua missão ou, ainda, como o Centro Cultural Cartola (instituição idealizadora do Museu do Samba) define os conceitos do campo da Museologia e do Patrimônio. 6 Estes atores também se configuram como agentes do “sistema arte-cultura”, segundos os pressupostos de Clifford (1994). 7 Para este estudo os indivíduos e grupos detentores de conhecimentos tradicionais são atores sociais fundamentais porque são os segmentos citados, nos discursos do Centro Cultural Cartola e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, como beneficiados diretamente nos processos de patrimonialização e de musealização das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro.
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to e garantia de direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, bem como o estímulo para protagonismo e autogestão. No caso específico da área cultural (especificamente, dos direitos culturais), pode-se dizer que a elaboração de políticas públicas8 é caracterizada pelas frequentes discussões sobre o papel da cultura, sua relevância socioeconômica e as formas de intervenção promovidas pelo Estado (Calabre, 2007; Ferreira, 2009). Lia Calabre (2007) aponta que a área da cultura passou a ter relativa significância e institucionalização efetiva dentro de órgãos do estado somente no decorrer do século XX. A exemplo da Constituição Federal do Brasil de 1988 que aborda o direito a cultura como um direito fundamental, colocando-o, assim, no mesmo patamar dos chamados direitos sociais, como a saúde, educação, alimentação entre outros. No entanto, ainda de acordo com Calabre (2007: 87) “a elaboração de políticas para o setor, ou seja, a preocupação na preparação e realização de ações de maior alcance, com um caráter perene, datam do século XXI”. É neste contexto que as políticas públicas para a área da cultura, em especial, para as áreas de Patrimônio Imaterial9 e de Museu10, nos últimos anos ganharam destaque e apresentam trajetória estritamente relacionada a outras políticas públicas. No âmbito desta discussão foram criados programas voltados para preservação11 de bens culturais. Estes programas priorizam projetos de identificação, documentação, repasse de saberes e disseminação de informação. Como um dos elementos dessa política cultural, no ano 2.000, foi promulgado o Decreto 3.551, que criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) 12 8 Autores como Simis (2007) e Lia Calabre (2007) especificam a Política Cultural como parte
integrante da Política Pública, e esta, por sua vez, “possui diversas conotações, mas aqui genericamente significa que se trata da escolha de diretrizes gerais, que tem uma ação, e estão direcionadas para o futuro, cuja responsabilidade é predominantemente de órgãos governamentais, os quais agem almejando o alcance do interesse público pelos melhores meios possíveis, que no nosso campo é a difusão e o acesso à cultura pelo cidadão” (SIMIS, 2007: 133). 9 Segundo a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (Unesco, 2003), ratificada pelo Brasil em 1° de março de 2006, Patrimônio Imaterial são "as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural". 10 Nas últimas décadas ocorreu uma consolidação da Política Nacional de Museus como política de Estado, incluindo a criação do Instituto Brasileiro de Museus. Destaca-se que neste artigo o foco não será uma análise das políticas de museus. 11 Segundo Cassares (2000), Preservação é um conjunto de medidas e estratégias de ordem administrativa, política e operacional que contribui direta ou indiretamente para a manutenção da integridade material da referência cultural. Cabe destacar que este conjunto de medida e estratégias também contribui direta ou indiretamente para a potencialidade informacional sobre a referência cultural. Reuni teoria e prática, consciência política individual e/ou coletiva, particular e/ou institucional. Visa proteger e salvaguardar, focando hoje nas perguntas porquê e para quem preservar. 12 Cabe destacar que o processo de patrimonialização relativo ao patrimônio imaterial não é exclusivo do âmbito das políticas federais. A partir do decreto presidencial, institui-se também leis e decretos em níveis estaduais e municipais. Como exemplo, podemos citar: Espírito Santo - Lei 6.237/00 (Cria o registro dos Bens Culturais de Natureza Imaterial e institui o Programa Estadual Identificação e Referenciamento desses bens); Minas Gerais - Decreto 2.505/02 (Institui o Registro dos Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural do Estado de Minas Gerais); Pernambuco - Lei 12.196/02 (Institui o Registro do Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco); Bahia - Lei 8.899/03 (Institui o Registro dos Mestres dos Saberes e Fazeres do Estado da Bahia); Ceará - Lei 13.351/03 (Institui o Registro dos Mestres da Cultura Tradicional e Popular do Estado do Ceará); Distrito Federal - Decreto 24.290/03 (Institui o Registro dos Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural do DF).
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e instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, visando promover a valorização de referências culturais13 de natureza imaterial representativas da diversidade cultural nacional e a determinação do compromisso do Estado no sentido de documentar, produzir conhecimentos e apoiar sua continuidade.
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No entanto, apesar do PNPI se constituir como um instrumento de política pública federal recente de apenas 15 anos, é inegável a existência de ações anteriores. Como exemplo, podemos citar: o anteprojeto de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, no ano de 1936), a criação da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (1958) ou do Centro Nacional de Referências Cultuais (1975), assim como os artigos 215 e 216 da Constituição de 1988, a Carta de Fortaleza de 1997, entre outros, que serviram de base para a elaboração da atual política e, em certa medida e com algumas diferenças, já propunham o reconhecimento e a salvaguarda14 das referências culturais vinculadas aos conhecimentos tradicionais, especialmente os populares, como patrimônio nacional15. No âmbito destas ações anteriores, a participação dos museus já se mostrava relevante16 – tanto que a Comissão Brasileira de Folclore estimulava, 13 O termo referência designa a realidade em relação à qual se identifica, baliza ou esclarece
algo. “Referência é um termo que sugere remissão [...] No processo cultural, referências são as práticas e os objetos por meio dos quais os grupos representam, realimentam e modificam a sua identidade e localizam a sua territorialidade. São referências os marcos e monumentos edificados ou naturais, assim como as artes, os ofícios, as festas e os lugares a que a vida social atribui reiteradamente sentido diferenciado e especial: são aqueles considerados os mais belos, os mais lembrados, etc., sendo, portanto, sentidos atribuídos a suportes tangíveis ou não, podendo estar em objetos ou práticas, espaços físicos ou lugares socialmente construídos. São com referências que se constroem tanto na proximidade quanto na distância social, a continuidade da tradição assim como a ruptura com uma condição passada ou a diferença em relação a outrem” (Arantes, 2001: 130-131). As referências culturais são sentidos de identidade em localidades específicas para uma dada coletividade. Para caracterizarem-se como referências não é necessário passarem por processos de patrimonialização e/ou musealização. No entanto, ao patrimonializar institui-se o patrimônio cultural e amplia-se o acesso deste patrimônio e de seus detentores às políticas sociais de proteção e salvaguarda. Esta é uma das perspectivas para a conceitualização de patrimônio cultural. Existem outras correntes teóricas, por exemplo a defendida por Gonçalves (2003) que considera o patrimônio cultural uma categoria de pensamento que não necessita de institucionalização pelo estado. No entanto, para este artigo considera-se fundamental tal distinção entre referência cultural e patrimônio cultural. 14 O termo Salvaguarda, no âmbito das políticas de Patrimônio Cultural Imaterial, é entendido conforme preconiza a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial: “medidas que visam assegurar a viabilidade do património cultural imaterial, incluindo a identificação, documentação, investigação, preservação, protecção, promoção, valorização, transmissão - essencialmente pela educação formal e não formal – e revitalização dos diversos aspectos deste património” (UNESCO, 2003). Cabe destacar que existe diferenciação entre o termo Salvaguarda utilizado no âmbito das políticas de Patrimônio Cultural Imaterial e no contexto específico dos processos de Musealização. Frente aos processos de musealização, Salvaguarda é um procedimento de Preservação que inclui ações de conservação e documentação (Bruno, 1995). 15 Este debate, no entanto, não desconsidera a historicidade, as múltiplas dimensões e a complexidade da categoria Patrimônio que aponta para diversas dimensões sociais e simbólicas, com conotações econômicas, jurídicas e culturais. Sabe-se que é uma noção presente desde o mundo clássico e na Idade Média e que o olhar ocidental apenas lhe atribuiu novos significados, estando associada, no Século XVIII, aos processos de formação dos Estados-nacionais. (Fonseca, 1997; Choay, 2001, 2011; Gonçalves, 2003, 2007a, 2007b; Funari e Pellegrini, 2009). Porém, é na segunda metade do século XX que a noção de Patrimônio Cultural é construída com base na moderna concepção antropológica de cultura, cujo foco privilegia as relações sociais e simbólicas. 16 Ver Reis (2014), Mendonça (2012), Silva (2012).
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nos Estados, a criação de museus que abordassem esta temática revestida pela compreensão do que poderia ser conceituado à época como folclore e/ou cultura popular. No contexto pós-elaboração da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (em 2003), a busca pela reafirmação dos museus como espaços de excelência na abordagem do patrimônio imaterial também foi objeto de estudo de alguns autores, a exemplo de Carvalho (2011). Em geral tais autores abordam o museu como espaços historicamente potenciais para uma abordagem integrada de ações voltadas a valorização, salvaguarda e difusão de referências culturais imateriais que contribuem para compreensão da sociedade sobre si mesma. No âmbito do PNPI, como ação de política pública, observam-se a utilização de procedimentos de Musealização como instrumento de Patrimonialização e de Preservação. Estabelecendo um quadro inicial relacionado aos Planos de Salvaguarda executados ou vigentes, pode-se dizer que dentre os processos de Patrimonialização de 29 bens registrados17 até 2013, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) dez resultaram em ações de cunho museológicos18, a saber: exposições museológicas (a exemplo dos seguintes bens: Ofício das Paneleiras de Goiabeiras, Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi, Modo de Fazer Viola-de-Cocho, Ofício das Baianas de Acarajé, Jongo no Sudeste, Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranhão, Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo); espaços expositivos ou museus já existentes beneficiados com novos projetos museográficos (exemplo: Ofício das Baianas de Acarajé e Círio de Nossa Senhora de Nazaré); criação do Museu do Samba no caso do bem “Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo”19 e até mesmo ações de repatriação de objetos museológicos referen17 Os bens registrados até 2013 pelo Iphan foram: Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi; Cachoeira de Iauaretê – Lugar sagrado dos povos indígenas dos rios Uaupés e Papuri; Círio de Nossa Senhora de Nazaré; Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranhão; Fandango Caiçara; Feira de Caruaru; Festa de Sant' Ana de Caicó/ Rio Grande do Norte; Festa do Divino Espírito Santo de Paraty; Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis - Goiás; Festa do Senhor Bom Jesus do Bonfim; Festividades do Glorioso São Sebastião na Região do Marajó; Frevo; Jongo no Sudeste; Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo; Modo artesanal de fazer Queijo de Minas, nas regiões do Serro e das serras da Canastra e do Salitre/Alto Paranaíba; Modo de fazer Renda Irlandesa, tendo como referência este ofício em Divina Pastora/Sergipe ; Modo de Fazer Viola-de-Cocho; Ofício das Baianas de Acarajé; Ofício das Paneleiras de Goiabeiras; Ofício de Sineiro; Ofício dos Mestres de Capoeira; Ritual Yaokwa do Povo Indígena Enawene Nawe; Roda de Capoeira; Rtixòkò: expressão artística e cosmológica do Povo Karajá; Saberes e Práticas Associados aos Modos de Fazer Bonecas Karajá; Samba de Roda do Recôncavo Baiano; Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro;Tambor de Crioula do Maranhão;Toque dos Sinos em Minas Gerais Toque dos Sinos em Minas Gerais tendo como referência São João del Rey e as cidades de Ouro Preto, Mariana, Catas Altas, Congonhas do Campo, Diamantina, Sabará, Serro e Tiradentes. Cabe destacar que entre 2014 e 2015 mais 14 bens foram inscritos nos livros de registros de Patrimônio Cultural Brasileiro, porém estes não foram analisados porque estão fora do escopo temporal de análise deste artigo. Para ter acesso a lista completa dos bens culturais registrado acesse http://portal.iphan.gov. br/portal/montarPaginaSecao.do?id=17743&sigla=Institucional&retorno=paginaInstitucional. 18 As ações citadas foram realizadas ao longo das etapas de inventário ou registro ou Plano de Salvaguarda. 19 A proposta de criação do Museu do Samba não está descrita no Plano de Salvaguarda “Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo” executado, entre 2008 e 2012, como Pontão de Cultura. No entanto, nesta pesquisa, foi considerada como um desdobramento desse Plano de Salvaguarda. Entende-se frente a PNPI que todo bem registrado não deve ser abdicado de planos permanentes de salvaguarda – tanto que a Superintendência do Iphan no Rio de Janeiro é um braço articular do Centro Cultural Cartola nesta ação.
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tes às cerimônias sagradas dos povos indígenas dos rios Uaupés e Papuri que estavam sob a guarda do Museu do Índio de Manaus.
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A definição das ações de patrimonialização, bem como a inclusão de ações de musealização nos Planos de Salvaguarda não são aleatórias, sendo determinadas pelos agentes do que Clifford (1994) chama de “sistema arte-cultura”. James Clifford, ao explicar o sistema arte-cultura, evidencia os processos institucionais e ideológicos envolvidos nos processos de apropriação material e simbólica dos bens culturais e artísticos, assim como acumulação e classificação dos mesmos. Entretanto, o autor ressalta que os parâmetros de tais processos não são universais e que as mudanças de classificação fazem parte do processo de transformação dos pressupostos teóricos e da rede institucional por exemplo de exposições e de publicações – nos quais se incluem, por exemplo, os Museus e seus procedimentos de Musealização. Por que musealizar bens culturais já patrimonializados? Na trajetória das políticas públicas direcionadas a área de cultural, tanto o PNPI quanto a Política Nacional de Museus (PNM) tem se consolidado concomitantemente, e, a partir do objetivo comum de construir ações de salvaguarda podem se unir. Neste sentido, esta vinculação produz reflexos mútuos que estimula tanto os Planos de Salvaguarda de bens registrados como patrimônio imaterial a lançar mão de ações de preservação ligadas às políticas de museus quanto a PNM pautar ações direcionadas a salvaguarda de bens culturais imateriais (a exemplo de exposições). O Museu passa a ser visto como espaço potencial para uma abordagem integrada de ações voltadas a valorização, salvaguarda e difusão de referências culturais imateriais, entendendo que há evidente relação existente entre processos de Patrimonialização no âmbito do PNPI e processos de Musealização vinculados às propostas de Planos de Salvaguarda vinculados a esta política. Autores como Desvallées e Mairesse (2010), Lima (2012), Mendonça (2012, 2014) estabelecem paralelos entre Patrimonialização e Musealização. Segundo estes autores, os procedimentos e as finalidades que caracterizam os dois processos de institucionalização de bens culturais são comuns, porém ressaltam que a Patrimonialização não se dá exclusivamente no âmbito da perspectiva museológica. No entanto, destacam que tais práticas sociais não são aleatórias. Os processos de patrimonialização e de musealização compreendem a valorização seletiva do objeto e caracterizam-se como práticas excludentes e de poder por escolherem – e atribuírem valor a – uma referência cultural em detrimento de outra. Ambos processos são caracterizados por procedimentos e finalidades comuns. Dessa maneira, busca-se identificar o entrelace entre os procedimentos de Patrimonialização e Musealização. O processo de Musealizar baseia-se no objetivo de preservar, que segundo Lima (2012) compreende os seguintes procedimentos: [...] a seleção dos bens; a documentação realizando de imediato o registro, ou seja, a inscrição formal no regime de tutela/custódia administrativa (simbólica, a exemplo da Lista do Patrimônio Mundial) e iniciando o
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primeiro passo da catalogação, que descreve pormenorizadamente cada item patrimonializado/ musealizado; o ato de assegurar a permanência (manutenção física) pela intervenção da conservação preventiva e pela restauração, quando necessário. E, ainda, complementado o elenco destas ações de gestão patrimonial e museológica, realizaram outras práticas inerentes tanto a características específicas das categorias e tipologias dos bens quanto às normas que orientam as decisões da institucionalização, cujo pano de fundo é o propósito do benefício social, que, no assunto em pauta, tem como destinatário os grupos de cidadãos, os usufrutuários dos bens do Patrimônio (musealizável) ou do Patrimônio musealizado. (LIMA, 2012, p. 45-46)
Nesta corrente, Musealização é entendida como processo “que abarca um conjunto de procedimentos vinculados à seleção, aquisição, pesquisa, conservação, documentação e comunicação e tem o objetivo de atribuir ao objeto função de documento” (Desvallées; Mairesse, 2010, p 51). Para este estudo o termo Patrimonialização é compreendido como o processo que define a institucionalização de uma referência cultural em patrimônio cultural/bem cultural, ou seja, como “ato que incorpora à dimensão social o discurso da necessidade do estatuto da Preservação” (Lima, 2012: 34). Especificamente no caso das políticas de patrimônio cultural, patrimonializar, como apontam Vianna e Teixeira (2008: 122), é o ato jurídico através do qual “o Estado declara um fato cultural como patrimônio nacional e passa a tratá-lo como bem cultural de interesse público. Patrimonializar pode ser compreendido como ato jurídico tanto como político”. Os autores observam ainda que sua ocorrência demanda escolhas e alianças feitas em campos marcados por disputas de interesses muito variados. Nesta perspectiva, os processos de Patrimonialização e de Musealização são caracterizados por procedimentos e finalidades comuns. Ambos são compostos por procedimentos como seleção, pesquisa, documentação, conservação e comunicação, bem como qualificam uma referência cultural como bem cultural, ou seja, como individualidade que integra o patrimônio cultural. No entanto, destaca-se, que toda referência cultural musealizada está patrimonializada. O inverso, entretanto, não ocorre. Ao patrimonializar uma referência cultural, ela se torna bem cultural, porém não está, automaticamente, musealizada. Mas, se Patrimonialização e Musealização são caracterizadas por procedimentos e finalidades comuns, por que musealizar bens culturais já patrimonializados? Porque o ato de musealizar o patrimônio historicamente tornou-se uma ferramenta auxiliadora e fomentadora do processo de Patrimonialização. Até o terceiro quartel do século XX os museus eram espaços de geração do conhecimento, organização e exibição dos artefatos. Essas perspectivas continuaram, mas foram inseridas em debates acadêmicos e políticos no último quartel. Devido a mudanças paradigmáticas na área de Museologia, os trabalhos relativos à valorização do patrimônio nos museus passaram a visar ao desenvolvimento cultural e socioeconômico, à participação das comunidades, à promoção da cidadania e à valorização da diversidade cultural. Tais mudanças de paradigmas não ocorreram apenas na perspectiva de atuação museológica, são princípios que regem atualmente a pauta do debate
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sobre as políticas setoriais de cultura e que priorizam ações integradas em diferentes instâncias públicas e de articulação civil. Desta forma torna-se compreensível os dados apresentados no penúltimo parágrafo do tópico anterior deste artigo, no qual se percebe que mais de 1/3 dos planos de salvaguarda de patrimônio imaterial priorizam ações compreendidas como procedimentos de Musealização. Neste contexto reflexivo, observar a existência de ações de integram o processo de Musealização no escopo dos Planos de Salvaguarda de bens inventariados e/ou registrados como patrimônio imaterial, como descrito acima, impõe-nos o desafio de refletir sobre o papel de um importante equipamento cultural (o museu) no cenário das políticas públicas federais para bens culturais de natureza imaterial brasileiro. Com esta perspectiva, como indicado na introdução, este artigo detém-se em um estudo de caso – a proposta de criação do Museu do Samba. De Centro Cultural Cartola a Museu do Samba: breves apontamentos sobre o percurso institucional, as narrativas sobre ações de Musealização e a proposta inicial de criação do museu. Em agosto de 2015, o Iphan disponibilizou em seu site pequenos depoimentos de representantes dos bens culturais registrados, o arquivo denominado “Com a palavra, os detentores”, apresenta a seguinte colocação de Nilcemar Nogueira (uma das fundadoras do CCC e importante referência no processo de Patrimonialização das Matrizes do Samba Carioca). A importância do Registro trouxe para os detentores a consciência do valor dos bens registrados, é ainda um instrumento político importante. Para o samba resultou na criação do Museu do Samba - um lugar de memória e vivência das Matrizes do Samba do Rio de Janeiro, reconhecidas como Patrimônio Cultural do Brasil, uma iniciativa com total protagonismo social. (Nogueira apud Iphan, 2015: 2-3).
Tal fala reafirma a idealização e criação do Museu do Samba como ação vinculada ao PNPI. A proposta de criação deste museu, começou a ser idealizada em 2013 e ainda se encontra em fase de estruturação, configura-se a partir das ações do Centro Cultural Cartola (CCC) após o processo de Patrimonialização das “Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo”. Neste caminho de dois anos de idealização perspectivas foram construídas e reconstruídas20 até o lançamento do Museu do Samba em 13 de agosto de 2015. No entanto, o percurso institucional do CCC perpassa 14 anos de atuação. Seu início remonta a 2001, como uma organização sem fins lucrativos. Sua finalidade era estimular jovens moradores do Morro da Mangueira e adjacências na identificação de referências culturais nas comunidades em que residem, tendo como base dessa iniciativa o (re) conhecimento das obras e do histórico de vida de Angenor de Oliveira (Cartola) – compositor e um dos fundadores da Estação Primeira de Mangueira – e de sua esposa Euzébia Silva de Oliveira (Dona 20 Perspectivas estas que serão relatadas neste tópico do artigo, relativas ao perfil do museu, seu enquadramento dentro do CCC e o nome.
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Zica) – baluarte da mesma escola de samba. A missão institucional do Centro aumentou ao passo em que desenvolvia diferentes projetos socioculturais21. Hoje seus objetivos principais são preservar a memória do samba, recuperar o protagonismo social da comunidade sambista e se opor a descaracterização imposta pela indústria cultural e globalização (Nogueira, 2014: 34; Cavulla: 2015). Antes mesmo do registro das “Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: partido-alto, samba de terreiro e samba-enredo” como Patrimônio Imaterial, sua importância sempre consistiu no fato de promover diversas atividades com intuito de preservar a identidade sociocultural do samba carioca. No entanto, os propósitos institucionais se ampliaram em 2004, quando comunidade sambista do Rio de Janeiro, capitaneada pelo Centro Cultural Cartola (CCC), foi responsável pelo lançamento de diversas ações que vislumbravam a titulação do Samba Carioca como Patrimônio Imaterial. O primeiro passo é dado, neste ano, foi o projeto “Samba Patrimônio da Humanidade” que teve por objetivo o encaminhamento à UNESCO de uma proposta de transformar o samba em Obra-prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade (Nogueira: 2015). Apesar de não obter êxito, este projeto iniciou o levantamento de fontes documentais sobre o tema e, concomitantemente, a fomentação de uma ação de cunho Museológico, a partir da elaboração de exposição sobre a história do samba do Rio de Janeiro. Em 2005, foi celebrado convênio entre o IPHAN e o CCC, com interferência da Fundação Cultural Palmares e da Secretaria Especial para Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), com objetivo de realizar pesquisa para instrução de processo de registro do Samba Carioca como Patrimônio Imaterial, consecutivamente, em 2005, tornou-se, frente ao Iphan, responsável pelo inventário22 e pela instrução do processo de registro a Patrimônio Cultural Imaterial. No mesmo ano, a instituição também passou a ser reconhecida como Ponto de Cultura23 pelo Ministério da Cultura. Seu escopo de atuação passa de ações que tem como beneficiários diretos moradores do Morro da Mangueira e adjacência para as comunidades sambistas no Rio de Janeiro. As parcerias então firmadas possibilitaram a formação de um banco de dados e a montagem da exposição de longa duração intitulada “Samba Patrimônio Cultural do Brasil”, em 2006. Com esta nova configuração e com a inscrição das “Matrizes do Samba no Rio de Janeiro” no Livro de Registro de Formas de Expressão e o registro 21 O CCC desenvolveu projetos com foco em orquestra de violino, griôs, exposições itinerantes, coletas de depoimentos, capoeira, etc. 22 O processo de institucionalização do patrimônio cultural imaterial, em nível federal, pressupõe o uso do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC). Este inventário é uma metodologia de pesquisa de identificação de bens culturais desenvolvida para o Iphan que se caracteriza como instrumento de gestão das ações voltadas ao patrimônio cultural imaterial brasileiro e contempla as categorias patrimoniais estabelecidas no Decreto n.º 3.551/2000, tendo como objetivo “auxiliar na produção de conhecimento e diagnósticos sobre os domínios da vida social aos quais são atribuídos sentidos e valores que constituem referências de identidade para os grupos sociais” (Iphan, 2009). A aplicação dessa metodologia tem como categoria-chave o termo referências culturais. 23 Ponto de Cultura, um eixo estruturante do Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura, é criado para “estimular os pontos vitais de expressão da cultura brasileira, por meio de recursos que potencializassem suas ações e dinamizassem sua comunicação”. Este Programa está inserido dentro de uma proposta de reformulação do papel do Estado nas políticas públicas vinculadas à área de cultura que estabeleceu novos parâmetros de gestão e democracia na relação entre Estado e sociedade orientados pela articulação dos conceitos de empoderamento, autonomia e protagonismo social (SARTOR, 2011, 102-103).
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como Patrimônio Imaterial brasileiro, no ano de 2007, o CCC passou, em 2009, a Pontão de Cultura Memória do Samba Carioca24. Assim no âmbito das ações do Pontão,
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foi implantado um Centro de Referência de Pesquisa e Documentação do Samba do Rio de Janeiro, o que ampliou a ação do Centro, trabalhando a preservação da memória do samba carioca, com o resgate de suas referências culturais, em suas mais diversas formas de manifestação presentes nas rodas de samba, nas quadras das escolas de samba e em outras agremiações carnavalescas, nos terreiros, e na atuação dos seus atores sociais, constituindo-se assim parte integrante na execução do plano de salvaguarda das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro. (Nogueira, 2014: 34).
Nesta perspectiva, as ações de estímulo a criação, produção e disseminação das matrizes do samba foram conjugadas as ações de pesquisa e capacitação de recursos humanos dentro das comunidades de sambistas. Sendo pontuado no Dossiê de pedido de registro (Iphan, 2014: 192), o foco em: 1. Ampla pesquisa e documentação, tanto dos três tipos de samba enquanto formas de expressão artística, como de sua história e da biografia de seus principais representantes. Considerando de especial urgência o levantamento da produção musical, com a recuperação (e gravação) de letras e melodias de partidos-altos, sambas de terreiro e sambas-enredo, visto que parte significativa da produção das comunidades de sambistas, principalmente a mais afeita às formas tradicionais, de caráter não comercial, não foi registrada. 2. Formação de pesquisadores dentro das diversas comunidades de sambistas de modo a que possam se tornar os agentes da salvaguarda de seu patrimônio cultural. 3. Promoção e documentação de encontros entre sambistas mais velhos e as novas gerações, visando à transmissão de conhecimentos, pois na prática é a primeira escola do samba 4. Criação de centros de memória e referência do samba dentro das comunidades ou na Cidade do Samba, de modo a facilitar aos sambistas o acesso aos estudos, investigações acadêmicas e acervos de imagem e de som sobre o samba do Rio.
Segundo Nogueira (2014, 2015) e Cavulla (2015), durante o período de 2005 a 2013, o CCC consolida-se como um multiplicador e um agente político 24 O Centro Cultural Cartola passou de Ponto à Pontão de Cultura Memória do Samba Carioca no âmbito do Plano de Salvaguarda das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro, tendo este sido este um dos bens indicados pelo IPHAN para tal fim. “O Pontão de Cultura é considerado o instrumento de promoção do intercâmbio e difusão cultural, baseados na articulação de Pontos de Cultura em rede e no apoio a iniciativas que integrem as diferentes linguagens e expressões artísticas. Os Pontões de Cultura são, entre outras ações, responsáveis por: a) a capacitação e formação dos agentes de cultura vinculados aos Pontos de Cultura; b) a criação e apresentação de obras artísticas realizadas em conjunto por dois ou mais Pontos de Cultura; c) a criação de mecanismos de distribuição, comercialização e difusão dos produtos culturais produzidos pelos Pontos de Cultura; d) a organização de festivais, encontros, fóruns e atividades correlatas que promovam o encontro, a troca de experiências e articulação entre Pontos de Cultura” (SARTOR, 2011, 115). No caso específico do CCC, o Pontão articula ações para as comunidades sambistas do Rio de Janeiro.
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importante no cenário do samba carioca. Neste período também realizou ações isoladas do que pode ser compreendido como procedimentos de Musealização. A primeira delas é a exposição permanente “Samba: patrimônio nacional” inaugurada em 2005 e que até hoje é um dos pontos-chave da instituição. Para Nogueira (2014) esta e outras ações – entre elas, o Centro de Pesquisa e Documentação – mesmo realizada isoladamente fomentaram o surgimento de um espaço Museu e de memória social para revelar a história do samba como a "expressão cultural”. Segundo a concepção da mesma autora (2014: 35), como instrumento para a manutenção da tradição está a Musealização, utilizada como estratégia de Preservação, objetivando não apenas garantir integridade física de coleções, mas também promover ações de pesquisa e documentação voltadas à produção, registro e disseminação de informações relacionadas ao samba, com vistas a fazer conhecê-lo nas suas características fundamentais e garantir a transmissão de sua essência a gerações futuras, propiciando assim a musealização a partir dos próprios atores sociais intimamente ligados ao bem cultural. É neste processo de atribuições de valores que as ações consideradas pela instituição como de Musealização, em especial, as exposições e as ações educativas realizadas pelo CCC durante anos auxiliaram a instituição a funcionar como uma “zona de contato” (Clifford: 1997), ou seja, como um espaço social marcado por diálogos provisórios onde pessoas de diferentes grupos sociais têm a oportunidade de trocar experiências com os objetos/coleções, com a equipe de profissionais, e também com os demais visitantes25. Com base nestas experiências, em 2013, a instituição inicia um processo de estudo para sua reconfiguração, pautando inclusive uma mudança de nome. Durante cerca de dois anos (meados de 2013 a agosto de 2015) encontrava-se na entrada do CCC uma placa, na qual lia-se “Centro Cultural Cartola / Museu do Samba Carioca / Lugar de Memória Social”. Nesta perspectiva, Nogueira (2015: 207) afirma Além do lugar de guarda, o CCC promove ações que respondem bem à função social de um museu. [...] Vale considerar que existem lugares de memória que se enquadram numa visão mais tradicional de museu e que, por esse motivo, não buscam uma aproximação com o imaterial. Já os museus de memória social, apoiados na trilogia território/patrimônio/ comunidade, ficam mais perto de alcançar esse objetivo. O Centro Cultural Cartola, no entanto, não nasceu com essa perspectiva; ao contrário, foi pensado nos moldes tradicionais, um lugar de estudo, para abrigar o acervo do compositor Cartola e de Dona Zica, com a preocupação de reunir documentos e coleções sobre a história do samba. Contudo, aos poucos, transformou-se em lugar que resgata o passado para fazer entender o presente. Com isso, promove valores fundamentais de uma tradição. Uma iniciativa que não se fixa somente em estudos e em documentos, mas que põe em prática ações que visam à salvaguarda do patrimônio imaterial e ao desenvolvimento social das comunidades do samba, principalmente pela garantia de respeito e direitos dentro e fora do contexto do samba, contribuindo na redução da pobreza e violência. 25 James Cllifford (1997) ressalta que no caso dos museus “sua estrutura organizacional como coleção transforma-se numa relação viva, seja ela histórica, política ou moral: instaura-se então um outro jogo de trocas, repleto de poderes”.
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Para a autora (2015: 203) é “a partir de 2013, com o apoio da Secretaria Estadual de Cultura, por meio da Superintendência de Museus, o Centro Cultural Cartola assumiu-se como um Museu de Memória Social”26, representando o começo da reconfiguração institucional. Para a autora é neste ano que ocorre a “Implantação do Plano de Atividades do Museu do Samba Carioca”. Neste período, percebe-se no ato de colocação da placa e nos discursos institucionais sobreposições de ações entre o CCC e o Museu do Samba, inclusive no que diz respeito a gestão. Foi possível visualizar que a sobreposição de ações entre CCC e Museu gerou certa crise de “identidade institucional”, fato expresso em diversos momentos até mesmo na fala da equipe gestora. Neste período, a gestão não sabia definir ainda se gostaria que o Museu incorporasse as ações do CCC ou se o Museu seria uma unidade do CCC. Qual seria o papel a ser ocupado pelo Museu no CCC? Em dados espaços, como por exemplo no site do Museu, lia-se que o Museu era definido como “Parte integrante do Centro Cultural Cartola”27. Em outros, por sua vez, segundo a então Diretora de Projetos Especiais (hoje Diretora Executiva do Museu do Samba), Nilcemar Nogueira, o CCC seria o “lado vivo do Museu, pois desenvolve ações sociais e culturais” (Nogueira, 2014). Observou-se que muitas vezes o Museu se dilui dentro do CCC, não apresentando, inclusive, estatuto jurídico atestando institucionalmente sua existência, não possui, por exemplo, um plano museológico e Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ). A maior mudança de perspectiva, no entanto, iniciou em dezembro de 2014, quando o CCC recebeu um financiamento da Ford Foundation, voltado a linha de “Liberdade de Expressão” e iniciativas relacionadas à “Direitos de comunicação e acesso”. No bojo desta frente de ação é prevista a elaboração de um Plano Diretor e como afirma Cavulla (2015) “iniciaram um trabalho visando o redirecionamento estratégico com efeito no desenvolvimento organizacional e sustentabilidade do centro cultural”. Nas palavras de Nogueira (2015) neste momento a instituição museu volta-se “para uma nova abordagem estratégica, que inclui toda a parte de desenvolvimento organizacional (gestão, governança), com efeitos sobre marketing, projetos e mobilização de recursos. Outro grande desafio é a sustentabilidade da instituição, uma vez que a principal fonte de recursos advém de convênios com órgãos públicos”. Em 2015 foi estabelecida uma parceria (cooperação técnica) com a Fundação Roberto Marinho para que “a estrutura física do prédio ganhe a envergadura dos grandes museus do Rio de Janeiro” (Nogueria, 2015). É inclusive, no bojo dessas parcerias, que a instituição inicialmente (entre 2013 e 2014) pensada para denominar-se “Museu do Samba Carioca”, como descrito na placa fixada anteriormente na fachada da instituição, deu lugar a denominação “Museu do Samba” – com intuito de representar outras formas de expressões do samba no Brasil – numa proposta mais audaciosa já que extrapola o perfil do bem cultural que salvaguarda. Em vídeo disponibilizado pelo IPHAN com o título “Reunião sobre Futuras Ações para o Centro Cultural Cartola - Salvaguarda do Samba Carioca”, 26 O termo “Museu de Memória Social” é usado recorrentemente para abordar a experiência institucional. Porém, cabe ressaltar que todo museu é um lugar de Memória Social. 27 http://www.museudosamba.org.br/, acesso em 10 de fevereiro de 2015.
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podemos ter acesso a recente reunião ocorrida em fevereiro de 2015 com objetivo de discutir e pensar futuras ações para a instituição. Estavam presentes pesquisadores, representantes dos setores público e privado, cenógrafos, compositores, museólogos e escritores ligados ao carnaval carioca. Foram debatidos temas como mudança de nome e do modelo de gestão, passando por frentes de atuação, projetos de curto, médio e longo prazo objetivando a redefinição do CCC como Museu do Samba Carioca, pensando sua criação formal de um museu destinado as matrizes do samba. Segundo a fala da então Diretora de Projetos Especiais, Nilcemar Nogueira, percebe-se a Musealização das Matrizes do Samba Carioca como importante meio de Patrimonialização e Preservação, possibilitando a realização de projetos de identificação, documentação, repasse de saberes e disseminação de informação. Apesar do CCC continuar sendo a instância jurídica institucional e o museu o desejo de se transformar institucionalmente, conforme relatado por Nilcemar Nogueira em 13 de agosto de 2015, durante o lançamento oficial do Museu do Samba, nesta nova configuração o museu é a “reconfiguração do desenvolvimento institucional para ampliação, consolidação e sustentabilidade” que busca pautar suas ações em instrumento de valorização, salvaguarda e difusão das “Matrizes do Samba no Rio de Janeiro”. Nogueira (2015), em vários trechos de sua tese de doutorado “O Centro Cultural Cartola e o processo de patrimonialização do samba carioca”, indica como a instituição entende relevância de ser denominado Museu e os embasamentos conceituais no campo da Museologia que direcionaram a criação do Museu do Samba dentro da proposta de preservação das “Matrizes do Samba no Rio de Janeiro” como Patrimônio Imaterial. A autora afirma sua concepção de que o CCC pauta sua mudança para denominação Museu “no sentido de empoderamento”, “responsabilidade de guarda de um patrimônio”, assumindo “o papel de um museu interativo”. Cita a relevância da discursão sobre “o papel social dos museus nas transformações e no desenvolvimento humano”, na Mesa Redonda de Santiago do Chile realizada em 1972; bem como reafirma que o museu está alinhado a perspectiva da “nova museologia” que “preconiza que os museus devem envolver as comunidades a que servem”. A autora afirma A ampliação da função do Centro Cultural Cartola como museu processouse para garantir direitos básicos, para além da preservação de memória. Pensar preservação de memória é, o tempo todo, um processo de seleção – atitude que promove esquecimento pelo que abandona no processo de escolha.Vale considerar que o conceito de memória social é ético e pode ser político. Nesse aspecto, o Centro Cultural Cartola apresenta-se numa condição de vanguarda, alinhado com a nova museologia. (Nogueira, 2015: 205)
Ao vincular o Museu do Samba a “nova museologia” e “à nova concepção da museologia”, a autora informa que o conceito do Museu é ser o “maior Centro de Referência e valorização do samba no Brasil”, pautando suas ações em “Salvaguarda (o samba como legado)”, “Experiência (o samba como linguagem)”, “Vinculo (o samba como identidade)” e “Território (o lugar do samba)” (Nogueira, 2015:205). Neste e em pelo menos dois pontos da tese, a saber: Outro papel importante do Museu do Samba é o de catalisador, como um espaço que sensibiliza para a reflexão da importância do patrimônio
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imaterial como um modo de viver de seus detentores, para a ameaça a que estão expostas essas expressões culturais, pela descaracterização ou pela perda de sua essência; daí, a necessidade de atividades envolvendo documentação, estudos, exposições, educação patrimonial, seminários. (Nogueira, 2015: 208)
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É no CCC, portanto, que o sambista, tanto o de primeira hora (da virada dos séculos XIX e XX) quanto os seus sucessores (imediatos ou de gerações mais recentes) têm espaço cativo para manifestar, fazer soar e ecoar sua arte, seu discurso e sua voz. Sem intermediários, sem traduções pretenciosas e preconceituosas. Livre do jugo de atores estranhos ao mundo do samba – personagens tantas vezes a ele impostos como indispensáveis para a valoração positiva dessa manifestação artística e cultural em si mesma tão rica e original. (Nogueira, 2015: 208)
pode-se dizer que Nogueira (2015), ao apresentar tais apontamentos sobre a relação das ações do CCC como Museus, busca suporte no trabalho de Carvalho (2011). Esta autora, ao abordar o papel hoje dos museus relacionados as possibilidades de abordagem do patrimônio imaterial, identifica pelo menos três tipos de atuação que “se cruzam e complementam: os museus como catalisadores, os museus intermediários e espaço em si mesmo” Carvalho (2011: 90). Carvalho (2011, 90-91) afirma que os catalisadores “podem estimular a reflexão e sensibilização” sobre a relevância dos bens culturais imateriais e os problemas que levam ao seu desaparecimento, estabelecendo por meio dos procedimentos que integram o processo de Musealização um “fórum aberto à discussão e ao diálogo”. Os museus intermediários (ou mediadores) são os que assumem papel de “facilitadores dos processos de patrimonialização”, orientando “as comunidades a preservar o seu património [e...] apoiando as comunidades na criação e dinamização de redes e projectos de valorização do PCI [Patrimônio Cultural Imaterial], fazendo uso das suas competências técnicas e científicas”. Por fim, para a autora, os museus podem “ainda ser visto como um espaço com valências próprias e recursos que podem estar ao serviço das comunidades (Varine 2000: 53 apud Carvalho, 2011: 91)”, ou seja, o museu pode também ser “um lugar de encontro onde as comunidades podem exprimir, dando palco à diversidade cultural e à transmissão das tradições e conhecimentos, estimulando, por sua vez, a criação de novas identidades e dinâmicas culturais”28. Considerações finais Ainda é recente este processo de reconfiguração do CCC em Museu... várias questões serão postas com o tempo e os novos caminhos dados pela instituição. O Museu do Samba é uma instituição ainda em processo de estruturação, fato que impõe muitos desafios a serem traçados pela presente pesquisa. O presente artigo configura-se como o registro dos passos efetivados até então, pois com o estabelecimento do Museu ainda em curso é preciso maior tempo e investigação para avançarmos em nossa análise. No entanto, até o momento 28 Ressalta-se que frente a proposta do artigo de descrever as narrativas da instituição, o intuito aqui não é defender correntes de pensamentos, estabelecendo ou valorando correntes como Nova Museologia/ Sociomuseologia ou sobre os tipos de atuação descritos por Carvalho. O intuito é demonstrar bases conceituais (implícitas e explícitas) nos quais os atores sociais e a instituição estudada se fundamentam como agente dos processos de Patrimonialização e Musealização.
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atual da pesquisa, o relevante foi buscar entender o que esta instituição considera ser Museu e o papel político e social deste equipamento cultural dentro do PNPI. O uso do termo Museu, bem como dos procedimentos de Musealização aparecem no campo narrativo da instituição, remetendo a diferentes formas de valoração e qualificações, sempre vinculada a um processo de empoderamento dos detentores das Matrizes do Samba Carioca ou a uma esperança de sustentabilidade econômica para a instituição. Em todos os momentos, os argumentos utilizados são a legitimação dos grupos de sambistas, investindo-a de uma aura criativa, poética e informativa, assinalando a presença de algo diferencial. É, portanto, musealizar o samba (patrimônio instituído) para fomentar o processo de preservação do bem cultural titulado como patrimônio imaterial brasileiro, visando assim o desenvolvimento cultural e socioeconômico, à participação das comunidades, à promoção da cidadania e à valorização da diversidade cultural, em última instância a democracia Cultural. De acordo com as narrativas institucionais e pelo apontamento de ações, tais como: criação de um Centro de Referência, realização de exposições e ações educativas, sem contar o lançamento do Museu do Samba, pode-se dizer que ocorreram no bojo do Plano de Salvaguarda procedimentos isolados e/ ou, no mínimo, baseados no processo de Musealização. No entanto, a partir da opção da reconfiguração do CCC como instituição Museu, um dos atuais desafios para a instituição é pensar a curto e médio prazo seu Plano Museológico para que os procedimentos de Musealização ganhem “forma” trazendo para o eixo central das ações do Museu o debate interno sobre sua importância ao executar o trabalho de Preservação, balizado nos procedimentos de Musealização (a exemplo de seleção, aquisição, documentação, conservação, exposição, publicações, etc). Estes desdobramentos, entretanto, não significam uma evolução linear de concepções e práticas de classificação, coleções e exposições sobre o samba – já que apesar de todo o mérito da instituição e de seus profissionais que são extremamente dedicados e comprometidos, o caminho ainda é longo, em especial, porque agora colocar-se como “Museu do Samba” e não como “Museu do Samba Carioca” (como anteriormente proposto) é ter que (re)adequar inclusive a missão institucional do antigo CCC, incluindo outros bens registrados como samba e não se restringindo ao Rio de Janeiro. É frente este desafio de desdobramento que o Museu se encontra. Referências ARANTES, Antônio Augusto. Patrimônio imaterial e referências cultuais. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n.147. p. 129-140, out/dez. 2001. BRASIL. Decreto lei n° 3.551, de 4 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3551.htm>. Acesso em: 09/08/2014.
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Artigo recebido em junho de 2015. Aprovado em agosto de 2015
PATRIMÔNIO MEIO AMBIENTE E MUSEOLOGIA DE RELAÇÕES: REFLEXÕES SOBRE UM PATRIMÔNIO NO DEVIR Luisa Maria Rocha Museu do Meio Ambiente Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
RESUMO: Reflexão sobre o “Projeto Patrimônio Meio Ambiente” e a “Museologia das Relações”, propostas teórico-metodológicas para trabalhar as múltiplas relações deste patrimônio, tanto sob os aspectos dos estados, processos e representações da natureza quanto na imersão destes no âmbito sociocultural. Analisa desafios do tema nos museus, tendo como cenário as preocupações com os processos de degradação do meio ambiente, estes objetos de decisão da sociedade diante das incertezas, riscos e ameaças ambientais. A metodologia foi a análise crítica da passagem da representação estética da natureza para a patrimonial, em particular nas questões de valoração nas cartas e declarações patrimoniais oficiais. PALAVRAS CHAVE: Museu, Museologia das relações, Patrimônio, Meio Ambiente, Ética.
Environmental Heritage and Museology of Relations: reflections on a heritage in becoming ABSTRACT: Reflection on the “Environmental heritage project” and “Museology of Relations”, theoretical and methodological proposals to work the multiple relationships of this heritage, both under the aspects of states, processes and representations of nature as the immersion of these in the sociocultural context. Analyzes theme challenges in museums, against the backdrop of concerns over environmental degradation processes, which they decided in the face of uncertainties, risks and environmental threats.The methodology was the critical analysis the passage of aesthetic representation of nature to the heritage, in particular the valuation issues raised in the official letters and asset declarations.. KEYWORDS: Museum, Museology of relations, Heritage, Environment, Ethics.
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Patrimônio Meio Ambiente e Museologia de Relações: reflexões sobre um patrimônio no devir
Introdução
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Em 1992, Jean Davallon, Gerald Grandmont e Bernard Schielle lançaram novos desafios para a Museologia no Simpósio promovido pelo International Council of Museums (ICOM). Estes eram provenientes da necessidade de fundamentos para lidar com um meio ambiente marcado pela dimensão social e por um patrimônio que se ancora no futuro para definir o presente. Se antes os museus trabalhavam com a conservação de um passado cujo valor social (estético, histórico, científico) era reconhecido pelas gerações posteriores e, por isso mesmo, permitiam um olhar mais detalhado sobre aquilo que devemos ou não salvaguardar da destruição, em função de um valor simbólico adquirido, na atualidade, o valor de conservação se volta para o meio ambiente, um objeto no devir que se define mais pela noção de virtual do que potencial1, na medida em que sua constituição depende de uma correlação de forças e tendências que influenciam sua consecução. Assim, se eram as gerações posteriores que definiam o patrimônio da geração anterior, agora, a geração presente tem que assumir a posição de definir o legado ambiental para as gerações futuras. Por isso, os museus encontram-se na difícil tarefa de “tomar posição” ou pelo menos discutir o enfrentamento da conservação de um meio ambiente que se efetiva no devir. Para tal, são necessárias mudanças tanto na sua missão de forma a se integrar nas questões sociopolíticas e ambientais decorrentes do momento em que vivemos quanto nas suas práticas museológicas, de maneira a realmente atuar junto à sociedade promovendo uma reflexão crítica acerca dos diferentes modos de conceber e vivenciar a relação sociocultural do homem com seu meio ambiente. Assim, o papel do museu volta-se também para a formação de uma opinião pública capaz de ser protagonista na tomada de posição no debate social sobre as questões ambientais com vistas ao que foi definido como “Nosso Futuro Comum”2. No século XXI, o patrimônio ambiental ainda nos desafia. Um patrimônio integral, ou mesmo mais recentemente o inclusivo, que se ancora na materialidade representacional de um objeto, não fornece caminhos para tratar as múltiplas dimensões e relações do meio ambiente, que se espraia entre o material e imaterial, entre o tangível e o intangível, entre o meio ambiente e a capacidade do ser humano de atribuir valor e simbolizar cada elemento da natureza de maneira a estabelecer determinadas formas de se relacionar e viver o seu meio, agora eminentemente sociocultural. Nesse sentido, a abordagem museológica de conservação do patrimônio “meio ambiente” não pode prescindir das formas contingenciais da relação homem-natureza, manifestas nos valores éticos subjacentes à experiência social, que na atualidade é marcada pela diversidade de valores e normas de conduta gerando uma crise de referências para ação no mundo. Assim, a reflexão sobre esta pluralidade de formas de vida se faz importante, uma vez que se pode comprometer as futuras gerações com um modo de vida que ameaça a sustentabi1 Os conceitos de potencial e virtual são definidos por Lévy (1996:16) como, respectivamente, aquilo que já está completamente constituído, predeterminado e definido, mas permanece sem existência ou materialidade, e como um complexo problemático, “composto por um nó de tendências, forças e coerções acompanhando situações, acontecimentos, objetos e entidades”. 2 Relatório Brundtland é o documento intitulado “Nosso Futuro Comum” de 1987, que define desenvolvimento sustentável.
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lidade do planeta, também se pode eleger um meio como um fim, ou seja, considerando a sustentabilidade como valor supremo de um regime moral e ético. Dessa maneira, se a conservação é um dos pilares dos museus voltados para a questão ambiental, o patrimônio “Meio Ambiente” encontra na dimensão ética um campo fértil para o trabalho museológico, no qual saberes, práticas e valores se amalgamam e circulam na esfera pública, subsidiando as ações concretas nos contextos de diferentes formas de vida. Ações estas que espelham os diferentes grupos culturais e as formas de conceber e vivenciar a relação com o meio ambiente de determinadas identidades coletivas. E, por que não dizer, espelham as formas de valorar e configurar esta relação ou aquilo que podemos nomear um “patrimônio ético”. A gestão museológica desse patrimônio também não pode deixar de lidar com a dupla dimensão material e imaterial, nos seus diferentes planos e fluxos, como no âmbito do objeto, em que prática e representações se mesclam, ou ainda da informação, compreendida tanto como conteúdo objetivado e mensurável quanto como apropriada e ressignificada nos jogos de linguagens das práticas sociais. Não podemos compreender o meio ambiente desarticulado das relações socioculturais, sob o risco de esvaziarmos o patrimônio de seu conteúdo existencial, este oriundo, em particular, do cotidiano e do trabalho. Assim, as reflexões se direcionam para os caminhos da musealidade do patrimônio “meio ambiente” na sociedade atual, em particular para a constituição de um patrimônio que se define temporal e espacialmente nas diferentes formas de conceber e viver a relação sociedade / meio ambiente. A Museologia de Relações “[...] estabelecer relações entre os universos aparentemente sem pontes.” Roland Arpin (1992: 91)
No livro L’environnement entre au Musée, Jean Davallon, Gerald Grandmont e Bernard Schielle, no ano de 1992, tinham como proposta a configuração de uma “Museologia de relações” instituída entre quatro vertentes: o conhecimento, construído pela ciência e tecnologia; as representações sociais, formadas no hibridismo dos discursos dos diferentes atores sociais na esfera pública; a política, protagonista nas tomadas de decisão; e as mídias, pelo tratamento jornalístico nas controvérsias ambientais (1992:131-132). Seu foco era a formação de uma opinião pública capaz de ser protagonista na tomada de posição no debate social sobre as questões ambientais, estas reconstituídas nas suas múltiplas dimensões tendo como eixo a patrimonialização do meio ambiente. Assim, a Museologia se inscreveria como uma contribuição à recomposição do cimento social ao engajar o museu em três direções: ajudar o público a formar uma visão do patrimônio “verde”, propiciar a instauração de uma cidadania e atuar na fronteira dos grupos de pressão. Entretanto, trabalhar esse patrimônio “verde” impõe desafios aos museus na medida em que este é, ao mesmo tempo, próximo e distante do visitante, em particular, pela invisibilidade de sua natureza profunda proveniente da dinâ-
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mica sistêmica ecológica. Apesar de invisível, esse patrimônio deve ser objeto de decisão da sociedade diante das incertezas, riscos e ameaças ao meio ambiente. Reunindo os processos, os estados e as representações da natureza, a “Museologia de relações” instaura a transição de uma representação estética da natureza para uma patrimonial, ampliando os conceitos de “preservação” e “patrimônio” e redefinindo o papel do museu na “guarda” e “gestão” de um projeto de patrimônio que se ancora nas gerações futuras. A temática do meio ambiente também requalifica a abordagem tradicional de comunicação dos museus alinhando-se com a mídia, em particular com as técnicas de jornalismo, quando os fatos são reportados de diversas fontes, às vezes contraditórias, na busca por uma “unidade de significação” formada pela trama resultante da relação entre “fatos e heurística” / “informação e contexto” (Davallon et al., 1992:134). Ao propiciar uma vivência da complexidade das questões ambientais, o museu trabalha as expectativas estruturais da informação pública, compreendendo-as como “um meio de pensar as escolhas”. Cabe ressaltar que o núcleo da Museologia reside na garantia da preservação do patrimônio e, portanto, no projeto patrimônio “meio ambiente” materializado em temas de exposições, de sensibilização, de debates, de mobilização e de legitimação. Nesta direção, os museus devem [...] repensar a concepção tradicional de sua missão para perpetuar o papel simbólico de guardião do patrimônio que a sociedade o devolveu e que sem isso não existe razão de ser e agir como intérprete de um mundo no devir da preservação antecipando a edificação de um novo relacionamento (Davallon et al., 1992: 134, tradução nossa).
Essa reconfiguração traz outro desafio para a Museologia: trabalhar os cidadãos e o seu meio ambiente buscando o devir de um agente social. Configura-se, então, uma gestão de mobilização social que, a partir desse patrimônio, recoloca o museu como um espaço público capaz de relacionar as dimensões políticas, econômicas e éticas às novas questões ambientais. Estas relações possibilitam, sob o aspecto social, a conexão entre a vida cotidiana das pessoas e a degradação do meio ambiente. Um plano museológico de responsabilidade social, em se tratando de meio ambiente, deve evitar que a responsabilização se restrinja às múltiplas reformulações de uma ideologia individualista dependente da regra da vida de cada indivíduo. Na visão, “a Museologia, como ato de discurso, induz tanto às relações construídas com a natureza quanto às relações construídas com a sociedade (mais precisamente as formações sociais), que normalizam e legitimam as primeiras” (Davallon et al., 1992:137, tradução nossa). Nesse caminho, o museu encontra, no tecido social formado pela relação sociedade/meio ambiente, um campo fértil de análise e construção museográfica. O valor atribuído pela sociedade às práticas e recursos ambientais encontra nos museus a base de construção museográfica que, apesar de apoiar-se no conhecimento científico, tem sua composição atravessada por outros valores e práticas culturais. Na visão de Lima (2012:45), os processos da “Patrimonialização e da Musealização” de bens simbólicos envolvem os modelos de apropriação teórica e prática através do tratamento dos “planos do tangível (material) e do intangível (imaterial), passíveis de serem interpretados na qualidade de
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referências culturais no tempo-espaço histórico e geográfico”. Assim, a relação sociedade/meio ambiente, expressa nos valores e práticas que conformam determinadas formas de vida, pode ser objeto de musealização, por ser referência cultural de diferentes grupos no tempo e no espaço. O engajamento do museu direcionado para a formação de uma opinião pública permite estabelecer múltiplas relações com base na realidade social, associando os diferentes pontos de visitas e mobilizando recursos para representar e defender o interesse da preservação do patrimônio: Como ator social de um debate em que ele se coloca, o museu encerra seu status de neutralidade; ele deve ser protagonista. Ele não encarna mais a objetividade do científico, aquelas representações do passado a que havia se acostumado, e evolui sobre o campo destinado a pertencer àqueles que decidem. Por suas escolhas de programação e de discurso, ele toma a palavra como um corpo constituído da vida civil (Davallon et al., 1992: 137-138, tradução nossa).
Ao afirmar que as escolhas sociais devem conservar “o espírito da questão do conhecimento”, o museu define o lócus do trabalho museológico com seu público, mesclando o seu status cultural e patrimonial: Os museus descobrem hoje um patrimônio pensado ao futuro. Um patrimônio que, além disso, quebra esse isolamento da instituição museológica – sua reserva – que se tornou tradição, e convida a se associar à força do debate. O museu toma posição (Davallon et al., 1992: 137-138, tradução nossa).
Assim, o tema meio ambiente transcende o espaço expositivo tornando-se um conceito integrador, o qual subsidia uma reflexão acerca dos valores sobre os quais repousa a sociedade ao tempo em que demanda do museu reconsiderar a sua dinâmica institucional. Repensar os processos museológicos e seus resultados, com foco na relação sociedade e meio ambiente, significa, sobretudo, redistribuir as relações de força no campo de forma a contemplar sua dimensão pública (Davallon et al., 1992:48). O museu como espaço de sociabilidade se direciona para a prática de uma “Museologia de relações” voltada para dialogar com um cidadão. Esta visão, herdada dos museus de sociedade como o ecomuseu, potencializa-se ao lidar com a temática “meio ambiente”, uma vez que esta reenvia e reforça uma relação: a integralidade relacional homem-natureza (Davallon et al. 1992: 203) ou, ainda ampliada, sociedade-meio ambiente. Somam-se a essa proposta outras apresentadas no Colóquio Museologia e Meio Ambiente, realizado pelo ICOM, em 1990. Destaca-se, pelo seu poder visionário dos rumos tomados pela Museologia, o trabalho de Roland Arpin (1992: 91) que define como “sintonizadores” os museus originários da sociedade de comunicação e que têm como princípio “estabelecer relações entre os universos aparentemente sem pontes”, trazendo muitas vezes para evidência novas realidades. Como afirma o autor: “Estes museus adotam muito naturalmente uma abordagem temática através de um caminho diacrônico, intercultural e multicomunicacional”. Na sua visão, o museu passou, pouco a pouco, da singularidade para a pluralidade e se inscreveu num presente em movimento tanto no tratamento dos assuntos quanto na forma de abordá-los.
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Indo além, acredita-se que os museus “sintonizadores” podem instaurar novos processos de musealização oriundos das múltiplas relações com um real que não apenas dialoga com o passado, o presente e o futuro, mas que, na inevitabilidade de penetrarmos pelas portas da temporalidade, busca nos adensamentos dos fluxos sociais refletir sobre um patrimônio em constante devir.
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Ao mencionar a questão ambiental, Roland Arpin (1992) destaca que, apesar da sensibilização para o tema, a sociedade de consumo não mostra evidências de modificações nos hábitos e na cultura. Isto implica dizer que esta questão tem que ser tratada a partir da complementaridade das dimensões política, científica, técnica, econômica e ética. Como afirma o autor: Como instituição pública o museu se inscreve numa dinâmica – do meio ambiente – onde se encontram conhecimento e ação, o privado e o público, o individual e o coletivo, o singular e o plural. E tudo será à maneira do museu: em respeitar a liberdade do visitante, em privilegiar o conhecimento, em fornecer a justa informação, em utilizar a sua linguagem e seus meios específicos de comunicação, e em colocar a fantasia, que é o inverso a pregar (Arpin, 1992: 139, tradução nossa).
A partir da proposta de Jean Davallon, Gerald Grandmont e Bernard Schielle (1992) e de Roland Arpin (1992), pretendemos caminhar caracterizando algumas das especificidades de um museu que trata do patrimônio “meio ambiente”, como objeto da musealização. Museu e o Patrimônio Meio Ambiente “O patrimônio meio ambiente se define no interior da topologia do imaginário que caracteriza a emergência, não mais de uma luta, mas de uma sobrevivência conjunta do homem e da natureza.” Davallon et al. (1992: 80, tradução nossa)
No século XXI, as questões ambientais ainda desafiam as abordagens tradicionais de patrimônio dos museus, nas quais lidar com um patrimônio reconhecido com um valor social proveniente do caráter estético, científico ou histórico não apresenta subsídios para tratar o meio ambiente como patrimônio. Davallon et al. (1992) traçaram um mapa das múltiplas conexões entre patrimônio, natureza e sociedade, de forma a possibilitar a reconfiguração das relações homem-meio ambiente como substrato de sua patrimonialização. A abordagem museológica do patrimônio “meio ambiente” tem um caráter relacional em que se entrecruzam diferentes agentes, configurando de forma contingente a relação sociedade-meio ambiente que, em última instância, tem sua reflexividade manifesta não somente nas suas transformações visíveis, mas, sobretudo no campo social. Neste, como afirma Soares (2008:109), “o meio ambiente é um ‘ser social’ fundamentalmente híbrido fundado nas amplas representações sociais, um ser de linguagem adquirindo sentido no campo do imaginário”. Esse hibridismo envolve cientistas, especialistas e técnicos que falam sobre as “coisas da natureza”, os processos ecológicos, os estados dos recursos naturais, as decisões políticas e normativas, a mídia e as abordagens ambientais, e
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as representações formadas na interação destes diversos agentes. A imbricação destas representações no âmbito da linguagem influencia a forma a partir da qual se pensa o meio ambiente e, por conseguinte, a maneira como o tratamos. Sua especificidade a ser trabalhada pelo museu ancora-se na constatação de um sentimento de urgência frente a um “destino coletivo incerto” (Davallon et al.,1992:137-175). Assim, o papel social dos museus diante da conservação do meio ambiente redireciona as abordagens das coleções científicas biológicas para o âmbito da comunicação, na qual as “coisas da natureza” foram mobilizadas para apresentar as mudanças no meio ambiente de forma a ampliar a compreensão da interdependência da vida e de sua diversidade no planeta. As coleções e o conhecimento científico a elas associado constituem os lugares do patrimônio da natureza. A estas instituições se acrescentam os jardins botânicos, museus de acervo vivo, com um patrimônio científico composto pela coleção de plantas vivas, de herbários e correlatas, além dos jardins zoológicos e das unidades e centros de conservação da flora e da fauna. Todas estas coleções apresentadas em suas instituições sob a égide das “leis gerais da natureza”, ao integrar o patrimônio meio ambiente, inserem-se numa outra lógica, eminentemente relacional, que articula campos de saberes distintos e os apresenta ancorados na sociedade (Davallon et al.,1992:41). Aqui, mais uma vez, o meio ambiente amplia e consolida uma visão museológica, na qual o patrimônio natural e cultural, material e imaterial, tangível e intangível constitui uma só realidade, indissociável pelas suas mútuas influências, e, por estar ancorado na sociedade, adquire um amálgama social, capaz de constituir uma totalidade, ainda que precária e contingente, que guarda em si as suas singularidades3. Da mesma forma, a emergência do meio ambiente como “mundo invisível” vem atrelada à transformação dos processos inicialmente de degradação do “mundo vivido” (passagem de rodovias, implantação de usinas etc.) para aqueles do “mundo conhecido” (poluição, destruição camada de ozônio, efeito estufa etc.). A complexidade dos processos relacionados ao meio ambiente, tanto aqueles de caracteres biológico e ecológico ainda desconhecidos da ciência quanto aqueles decorrentes dos efeitos da exploração desmedida da natureza, implica um esforço de mediação do museu na sua representação para a sociedade (Davallon et al., 1992:75). O conhecimento acerca do estado das questões ambientais envolve a mobilização de cientistas, especialistas e técnicos para obtenção de uma avalia3 As discussões sobre museu integral e meio ambiente tiveram como fórum inicial os encontros
do ICOFOM LAM. Na Mesa-Redonda de Santiago do Chile, realizada pelo ICOM em 1972, foram definidos, especialmente pelos países latino-americanos, os princípios do museu integral, que contempla a sua integração à vida da sociedade, mas também o seu papel decisivo no conhecimento de seu patrimônio natural e cultural. Segundo Scheiner, (2012, p.19), no texto da Carta de Santiago de 1972 o termo “museu integral” está vinculado ao conceito de “patrimônio integral”, construído sobre uma percepção holista do meio ambiente. A autora afirma que, apesar do conceito de Museu Integral estar voltado para a ação comunitária, tal proposta social encontra-se no âmago de todos os museus, qual seja de “aproximar o indivíduo dos processos e produtos da natureza e da cultura”. Na Carta de Cuenca publicada no VI Encontro Regional do ICOFOM LAM de 1997 foi definido que “Se considera, por lo tanto, que sólo la fusión de lo tangible y lo intangible constituye lo patrimonio integral”. (2006, p. 40).
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ção técnico-científica que delineia questões como água, florestas, clima, poluição, entre outras. Obter informações sobre estes estados constitui uma operação de gestão patrimonial. A gestão tanto de um projeto de meio ambiente inscrito no devir quanto do conhecimento a este associado subsidia a tomada de decisão. Portanto, gestão, conhecimento e tomada de decisão constituem o quadro a partir do qual o meio ambiente é pensado como patrimônio (Davallon et al., 1992:73). Em seu papel social e comunicacional, o museu agora trabalha a tomada de decisão a partir dos constrangimentos e particularidades políticas, da existência de grupos e estruturas diversas que movem o pensar, o social e os interesses, direcionando esforços para um plano simbólico que promova o diálogo entre o sistema de representação do museu e o imaginário social (Davallon et al., 1992:75). No campo do imaginário, trata-se de identificar as representações sociais de uma temática, suas associações e oposições, de forma a ancorar o patrimônio no âmbito social. As representações de recursos naturais finitos se contrapõem aos modelos econômicos predatórios ou ainda aparecem associados ao conceito de sustentabilidade reforçando a busca de uma relação mais “equilibrada” com o meio ambiente. Sem dúvida, a lógica relacional advinda da Ecologia propicia uma abordagem que privilegia as complementaridades entre os diferentes domínios, mostrando a interdependência entre homem (cultura e sociedade) e seu meio ambiente (meio natural, construído e simbólico), possibilitando reconfigurar a abordagem do museu na direção de uma Museologia das relações sociedade-meio ambiente. É importante ressaltar que o patrimônio meio ambiente difere daquele dos parques naturais (patrimônio natural) e do ecomuseu (patrimônio social e simbólico), mas ambos possibilitaram a passagem de uma representação estética da natureza para uma representação patrimonial do meio ambiente. Esta passagem também ocorreu nas cartas e declarações patrimoniais oficiais reconhecidas internacionalmente pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e pela União Internacional para Conservação da Natureza e Recursos Naturais (IUCN). Se na Conferência Geral da Unesco (Recomendação de Paris), realizada em 1962, a preservação da natureza tinha como fundamento atender às necessidades humanas em seus aspectos estéticos, numa clara associação com o monumento cultural, na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1972, o foco passou à proteção e melhoria do meio ambiente com vistas ao bem-estar dos povos. Na visão de Bezerra (2009:6), a última atribuiu maior relevância à natureza como forma de garantir as condições para o desenvolvimento humano, sem prejuízos dos sistemas naturais, para as gerações presente e futura. Complementarmente, a Conferência do Meio Ambiente (CNUMA), realizada em Estocolmo em 1972, teve a preocupação de garantir a sobrevivência dos ecossistemas em prol da sobrevivência física e social da humanidade (Bezerra: 2009). Nesse mesmo ano foi criado o United Nations Environment Programme (UNEP) e seu Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) para atuar como catalisador de ações em benefício do meio ambiente, além de promover a interação de cientistas, políticos, líderes sociais e formadores de opinião em geral.
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A Conferência Geral da UNESCO, realizada em Paris no ano de 1972, reforçou a Carta de Estocolmo, além de propor a proteção, conservação e valorização do patrimônio mundial cultural e natural. Esta concepção integrada do patrimônio nos desperta para uma gama de valores atribuídos ao elemento patrimonial como o histórico, artístico, estético, científico, natural e cultural. A estes valores outros mais são associados, como no Relatório Brundtland (Nosso Futuro Comum), em 1987, quando o conceito de desenvolvimento sustentável4 passa a estar associado à sustentabilidade, como um valor a ser considerado frente à interdependência do binômio meio ambiente/desenvolvimento. Como afirma Bezerra (2009:8), o teor das cartas e documentos das Nações Unidas “demonstrou a crescente tensão entre o modelo de desenvolvimento econômico hegemônico e a proteção da natureza”, em particular, ao manifestar a preocupação com o bem-estar das gerações futuras diante do agravamento dos problemas socioambientais. Assim, a natureza, na qualidade de um bem patrimonial, contempla em si “valores intrinsecamente naturais e os socialmente a ela atribuídos”. O valor atribuído à natureza pelo homem tem em si o fundamento das suas ações e comportamentos em relação ao meio em que vive. O valor, além de ser o elemento de mediação e de definição do tipo de relação do homem com a natureza, também significa um fundamento para a questão ética manifesta na conexão entre razão e ação. Assim, o valor fundamenta os processos de musealização e sua origem advém do próprio campo cultural, uma vez que este se refere “à totalidade da vida social” quando diferencialmente qualificada (Menezes, 2009:29). Pode-se tomar tal afirmativa para um objeto ou artefato que pela atribuição de valor se destaca de outros na totalidade da vida social. Assim, trabalhar com objetos ou práticas envolve descobrir as propriedades derivadas da sua natureza material mobilizadas pelas sociedades, grupos sociais e comunidades de forma a colocar em ação suas ideias, expectativas e significados que configuram em suma seus valores. Como propõe Menezes (2009:32) “a matriz de sentidos, significações e valores não está nas coisas em si, mas nas práticas sociais”. Por isso, atuar no campo cultural é se defrontar com a problemática do valor. Ou como afirma Menezes (2009:29), cultura como forma de qualificar diferencialmente (pelo sentido, pela significação, pelo valor) qualquer instância, tempo, objeto ou prática. É possível ainda compreender patrimônio como um conjunto de valores que cada sociedade, em seu tempo e lugar, produz para si mesma, e qualifica um tipo de relação com o meio ambiente manifesto numa ética que subsidia a razão e a ação. Conforme esclarecem Borges e Campos (2012:114,116,118), “o patrimônio, por ser valor e categoria de pensamento, é, por excelência, intangível ou simbólico-cultural” uma vez que constitui um atributo social-histórico, e que pode ser relacionado a determinadas formas de viver e conceber as nossas relações com o mundo que nos cerca. E, nesse sentido, o valor também pode fundamentar processos de musealização que tenham como objeto as diferentes formas de conceber e viver o meio ambiente e as suas representações. 4 Definição: “O desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer as habilidades das futuras gerações de satisfazerem suas necessidades”.
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A conservação do patrimônio ambiental está submetida ao conjunto de diretrizes e procedimentos de gestão adotados pelo sistema global de conservação patrimonial da Unesco e pelos órgãos gestores do patrimônio natural e cultural – IUCN e International Council on Monuments and Sites (Icomos). A sua consolidação adveio da Convenção do Patrimônio Cultural e Natural (1972), quando a Unesco montou um sistema mundial de gestão patrimonial, no qual foi cunhada a Declaração de Significância para avaliação dos candidatos a Patrimônio Mundial. Esta tem como referência o conceito de significância cultural: “valor estético, histórico, científico, social ou espiritual para as gerações passada, atual ou futura”. Com relação ao patrimônio natural, a Carta de Burra (1999:4) define “significado natural” como “a importância dos ecossistemas, da biodiversidade e da geodiversidade, pelo valor de sua existência, ou em termos do seu valor científico, social, estético e de suporte de vida para as gerações atual e futura”. Na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, em Estocolmo, o estabelecimento de princípios comuns através da Declaração sobre o Ambiente Humano apontou, por diversas vezes, a responsabilidade humana na preservação dos recursos naturais da Terra, tais como “preservar e administrar ponderadamente o patrimônio representado pela flora e pela fauna silvestres, bem como pelo seu habitat” (Princípio 4) e, ainda, a responsabilidade “com a proteção e melhoria do meio, em toda a sua dimensão humana” (Princípio 19). Esses princípios evidenciam o valor intrínseco dos bens naturais, conforme reafirma Bezerra (2010:166), o meio ambiente, além do “valor de uso”, tem um “valor de existência”, que significa que “o mundo não humano tem interesses e relevância moral independente de sua utilidade social”. Na compreensão de Jeremy Roxbee Cox (1997:103-118 apud Bezerra: 2009), o valor de existência está relacionado tanto ao seu valor intrínseco quanto ao valor extrínseco entendido como uma postura moral. Nesse sentido, difere do âmbito econômico, em que o entendimento do valor é aplicado numa visão monetária do meio ambiente, na qual se refere à soma dos benefícios proporcionados para quem o avalia sob a ótica de suprir necessidades de satisfação e usufruto. O valor de existência por razões de ordem moral pode ser relacionado à proteção do meio ambiente para as futuras gerações. Assim, a relevância reside em que as coisas do meio ambiente têm um valor intrínseco inserido na classe de valor moral. Essa compreensão constitui um primeiro passo para consolidar o entendimento da proteção do patrimônio cultural e natural integrados, na medida em que contempla outros valores para além dos já consagrados – o estético, o histórico, o científico, o social ou o espiritual –, como os processos ecológicos e os da paisagem5. Este último é capaz de exprimir a relação de sentido que uma sociedade estabelece com o espaço e a natureza (Berque, 2004:84-85). Um segundo passo foi o relatório da Comissão Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD), também conhecida como Comissão de Brundtland 5 Augustin Berque afirma: “A paisagem é uma marca, pois expressa uma civilização, mas é também uma matriz porque participa dos esquemas de percepção, de concepção e de ação – ou seja, da cultura – que canalizam, em certo sentido, a relação de uma sociedade com o espaço e com a natureza e, portanto, a paisagem do seu ecúmeno” (Berque apud Corrêa, Roberto Lobato; Rosendahl, Zeny, 2004:84-85).
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(1987), quando foi exposta a definição:“O desenvolvimento sustentável é aquele que atende as necessidades do presente sem comprometer as possibilidades de as gerações futuras atenderem suas próprias necessidades”. Assim, “Pensar integral” envolve pensar com equidade as relações passado e futuro a partir das questões colocadas no presente, e assumir a responsabilidade pelos nossos atos, ao menos em relação à proteção ambiental e equidade social, ou tal qual foi afirmado no relatório Nosso Futuro Comum: “A pobreza já pode ser considerada como um problema ambiental e como um tópico fundamental para a busca da sustentabilidade”. Na Rio 92, a Convenção sobre a Diversidade Biológica objetivou a conservação da biodiversidade, o uso sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios provenientes dos recursos genéticos. Apontando para a importância do patrimônio genético, a Convenção possibilita a ampliação do que é patrimônio e seu imbricamento natural e cultural. Compreende-se que tanto as cartas patrimoniais quanto as convenções e relatórios do meio ambiente entrelaçam princípios como equidade entre gerações, valor de existência, incerteza e precaução na relação com o patrimônio natural. Estes princípios transcendem a tipologia específica do patrimônio para se referirem à sua integralidade, a qual pressupõe: A equidade entre gerações significa assegurar que as condições de saúde, diversidade e produtividade sejam mantidas pelas presentes gerações em benefício das futuras; o princípio do valor de existência significa que os organismos vivos, os processos terrestres e os ecossistemas possuem um valor que estão além do caráter social, econômico ou cultural dos seres humanos. O princípio de incerteza quer dizer que o nosso conhecimento acerca do patrimônio natural e dos processos que afetam são incompletos e que a significância potencial ou valor do patrimônio natural permanece desconhecido por conta desse estado de incerteza do conhecimento; e o princípio de precaução significa que, onde há ameaça ou potencial ameaça de sério ou irreversível dano ambiental, a falta de certeza científica não poderá ser usada como uma razão para adiar as medidas de prevenção contra a degradação ambiental. (Bezerra, 2010: 168-169)
Essa passagem de um patrimônio natural para um patrimônio pensado na sua integralidade pode ser visualizada nos quadros abaixo apresentados. O quadro 1 refere-se às Cartas e declarações patrimoniais sob o ponto de vista da passagem de uma preservação da natureza pautada pelo caráter estético para uma que se apoia em princípios éticos e pragmáticos. No quadro 2, as Declarações e convenções sobre meio ambiente ampliam o conceito de natureza na medida em que inserem as suas relações ecossistêmicas e para além destas entrelaçam a dimensão econômica, social e cultural como forma de conceber e vivenciar a relação sociedade-meio ambiente. Percebe-se, assim, que a partir da Carta de Burra, o patrimônio natural ganhou novas cores e tonalidades geradas por uma paleta social. Do valor da existência aos valores sociais, este patrimônio perde as suas fronteiras entre natural e cultural, e ganha novos contornos.
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Patrimônio Meio Ambiente e Museologia de Relações: reflexões sobre um patrimônio no devir
Quadro 1: Cartas e declarações patrimoniais
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Fonte: elaborado pela autora (2012)
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Quadro 2: Declarações e convenções sobre meio ambiente
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Fonte: elaborado pela autora (2012)
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Na visão de Lucie Sauvé (2003:4), trabalhar esse patrimônio nos museus envolveria mapear uma rede de relações a partir de um conjunto de realidades complementares: a natureza (apreciada, respeitada e preservada), os recursos naturais (administrados e compartilhados), os problemas (resolvidos), o sistema de relações (para a tomada de decisão) com vistas à criação de um projeto ético-comunitário com o qual possamos nos comprometer. Esse patrimônio, então, passa a ser visto como uma construção social, um processo de legitimação histórica baseado numa síntese simbólica de valores oriundos do campo social que contribuem para um sentido de pertença e de identificação de um coletivo social. O patrimônio ambiental é compreendido por Davallon et al. (1992:69-70) como um projeto universalista do patrimônio “meio ambiente” constituído a partir de dois movimentos complementares: o deslocamento do olhar do objeto-patrimônio para o projeto-patrimônio e do status do conhecimento sobre o patrimônio para o conhecimento como patrimônio. No primeiro, o patrimônio se define como “patrimônio em projeto”, quando o processual ganha juridicamente o status de patrimônio na medida em que são potências na marcha do devir. No segundo, o conhecimento de um coletivo adquire a importância e a categoria de patrimônio por se constituir em parte integrante do “projeto” ou por ser em si caracterizado como tal. Nesse caminho, a dimensão jurídica e a dimensão cognitiva asseguram a universalização do patrimônio pelo uso normativo do termo que o define como um conjunto de regras a serem respeitadas. A especificidade do patrimônio “meio ambiente” é dada pela salvaguarda de uma vida que ainda está por vir, ou melhor, “O caso do meio ambiente é singular em sendo virtual: ele pertence aos vivos atuais, mas tem seu sentido de patrimônio ao olhar aqueles que virão após eles” (Davallon et al.:1992:71-72, tradução nossa). Na atualidade, Eric Dorfmann e Janet Carding (2012:172-173) afirmam que a atribuição de valor para as várias formas de patrimônio é o cerne do princípio norteador da conservação das convenções da Unesco. Ao analisar o patrimônio natural intangível, os autores evidenciam a importância tanto de um mundo natural a ser conservado quanto de um conhecimento associado que o qualifica e através do qual o patrimônio pode ser valorado como projeto de futuro. Mais uma vez, projeto de futuro e conhecimento se associam para pensar o patrimônio meio ambiente. Na visão dos autores, durante muito tempo, a conservação em torno do mundo natural esteve baseada em valores intrínsecos, em vez de ter como base as suas relações com os seres humanos. Entretanto, o princípio do patrimônio tem como base a valoração atribuída pelos seres humanos, motivo pelo qual se requer trabalhar as conexões do mundo natural com os fenômenos intangíveis das inter-relações humanas. Por isso, ao propor uma definição para o patrimônio natural intangível, os autores se reportam às “forças ambientais” como as que proporcionam as bases de criação das interações entre entidades biológicas e os seres e comunidades humanas. Estas interações, compreendidas sob o ponto de vista dos marcos legais e do desenvolvimento sustentável, asseguram um mundo natural para as futuras gerações, no qual a dimensão humana estaria incluída como elemento integral do patrimônio natural intangível, “sem a qual
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seria difícil avaliar se um fenômeno é ou não digno de preservação” (Dorfmann; Carding, 2012:172-173). É esta noção de valor que nos permite desenvolver um critério de conservação, uma vez que para diferentes autores o valor da natureza é em si um fenômeno cultural. Dorfmann e Carding (2012:173) apontam ainda a necessidade de explorar as conexões éticas entre o patrimônio natural intangível e o conceito de bem-estar, remetendo claramente para as questões relacionadas a meio ambiente e qualidade de vida. Por um patrimônio ético “O passado bate à porta, o futuro à janela e o presente descobre que não dispõe de solo para ficar de pé.” François Hartog (1996)
Quais os caminhos para uma “Museologia de relações” com foco na relação sociedade-patrimônio ambiental? Quais os caminhos para objetivação desse patrimônio no museu? Quais os caminhos para se refletir sobre a musealização do patrimônio ético? Essas questões, longe de serem respondidas neste texto, constituem apenas um ponto de chegada e de partida para direcionar nossos esforços e trabalho na busca por uma museologia que tem como desafio um futuro ambiental alarmante que caminha em nossa direção e demanda repensar as relações da sociedade com o meio ambiente, que somos e sem o qual não sobreviveremos. Nesse sentido, buscamos uma reflexão e um debate sobre os caminhos para constituição de um patrimônio ético que se define temporal e espacialmente na relação homem-meio ambiente e tem como horizonte aberto a musealização das “formas de vida” que legitimam, em última instância, a razão ética de como se deve viver. O patrimônio como indício de crise Na atualidade, a forma do entrelaçamento entre tempo e espaço está centrada no presente e se desenvolve em função de seu crescimento e da sua evidência onipresente. Este horizonte de um presente ampliado, hipertrofiado, teve como alimento as exigências de uma sociedade de consumo, na qual o conhecimento científico, as inovações tecnológicas e a voracidade das mídias tornaram as “coisas e os homens cada vez mais obsoletos” (Hartog, 1996:135; 2006:261). Nesse contexto, François Hartog (2006:261-265) redefine “memória” e “patrimônio” como indícios de nossa relação com o tempo, ou ainda, formas diversas de traduzir, refratar, seguir, contrariar a ordem do tempo. Se vivemos entre esquecimento e memória, numa aceleração do tempo, no qual o que se produz hoje já é pensado como histórico, o vivido no presente “tem a pretensão de ser seu próprio horizonte: sem passado sem futuro, ou a gerar seu próprio passado e seu próprio futuro” (Hartog, 1996:137; 2012).
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Nesse desejo de texturização, o patrimônio se liga ao território e à memória, os quais “operam um e outro como vetores da identidade”. Esses vetores apontam para uma identidade em busca dela mesma, que tende a se apagar e por isso mesmo precisa ser inventada. Essa invenção se manifesta na produção da memória “por meio do patrimônio, do arquivo, do museu, do testemunho, da filmografia” e encontra-se na busca de raízes e identidades, na conservação de “regimes de vida” através de objetos, monumentos, espécies, paisagens e, a partir dos anos 1980, dos ecossistemas. “Nesta acepção, o patrimônio define menos o que se possui, o que se tem e se circunscreve mais ao que somos, sem sabê-lo, ou mesmo sem ter podido saber” (Hartog, 2006:266). Na qualidade de testemunha das incertezas ou de uma “crise” da ordem presente do tempo, o patrimônio aponta para um sinal de ruptura, de “brecha” no tempo, que nele reconhece “uma maneira de viver as cesuras” pela produção de semióforos. O patrimônio se inscreve no âmbito da comemoração, o qual marca a distância temporal entre presente e passado, enquanto trabalha sobre a memória no plano de uma coletividade (“co-memorar”): o “presentismo” possibilita a propagação de lugares destinados a estabelecer “a ligação entre o plano visível e o invisível” (Nicolazzi, 2010:243-244). Na visão de Hartog (2006:268), o patrimônio contemporâneo expandiu enormemente seu campo de abrangência. Dos espaços urbanos ao meio ambiente, do patrimônio nacional ao patrimônio universal da humanidade, dos objetos culturais aos elementos genéticos – “tudo seria patrimônio ou suscetível de tornar-se”. Na perspectiva de Choay (2001:240), essa “inflação patrimonial” levou a um grande aumento de bens considerados oficialmente como patrimônio, uma vez que para a sociedade os objetos e monumentos do passado refletiam a nossa identidade humana, ou como afirma a autora: “o patrimônio histórico parece fazer hoje o papel de um vasto espelho no qual nós, membros das sociedades humanas do fim do século XX, contemplaríamos a nossa própria imagem”. Tal expansão também é um reflexo da aceleração do tempo, um instantâneo em que o tempo se torna palpável, mesmo que seja no trânsito que segue do presente para o presente. Segundo Hartog (1997:15), esse “presentismo”, a partir dos anos 80, descobre-se em busca... [...] preocupado com a conservação (de monumentos, de objetos, de modos de vida, de paisagens, de espécies animais) e ansioso pela defesa do meio ambiente [...]. Como se desejasse preservar, de fato reconstituir, um passado já desaparecido ou a ponto de apagar-se, sem volta.
O futuro como uma perspectiva surge com a recente preocupação com a conservação e instaura um novo fluxo que transita agora do futuro para o presente, adquirindo um significado próprio que contrasta com a comemoração. Ao instituir uma nova forma de lidar com o tempo, em que as solicitações do presente devem ser submetidas ao valor da conservação, estabelece-se um “seguro” contra os próprios prognósticos deste futuro (Hartog, 2006:269). Ao estabelecer o valor “conservação” como o parâmetro para as solicitações do presente, estamos criando um novo valor na categoria do pensamento
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patrimonial6 que atribui à conservação a função de coesão social e articulação da identidade da sociedade do presente. Sem dúvida, o conceito antropológico de cultura, ao qual se refere Gonçalves (2009:30), possibilita ancorar nas relações sociais e simbólicas o olhar patrimonial, não somente sob o ponto de vista dos bens materiais e tangíveis, mas, sobretudo daqueles de caráter imaterial e intangível, que se encontram no campo dos significados sociais, ainda que nosso objeto seja as relações sociedade-meio ambiente. Essas categorias “desmaterializadas” têm sua substância definida e assegurada na Constituição Federal de 1988, no Artigo 216, como “as formas de expressão” e “os modos de criar, fazer e viver”, entre outros. Percebe-se, assim, a importância dos significados e sentidos elaborados nas relações sociais até mesmo na atribuição de valores que guiam as dimensões temporais e espaciais do patrimônio. No bojo do valor conservação, o mesmo crescimento ocorreu no patrimônio ambiental, agora incluindo desde as dimensões materiais dos recursos naturais, com a criação de áreas protegidas como as unidades de conservação, até aquelas de caráter imaterial como o conhecimento tradicional associado às plantas. Na qualidade de um bem intangível e transitório, o conhecimento acerca do meio ambiente adquire maior valorização quando associado a um patrimônio material, como um recurso natural. Se for certo que o conhecimento intangível constitui um aspecto integral do significado de patrimônio, é igualmente certo que o bem intangível, representado pelo meio ambiente, é dinâmico e forma “parte de uma conexão cultural viva existente entre passado e futuro que os modifica ao longo do tempo” (Decarolis, 2000:5). Esse valor conservação também requalifica o referencial de responsabilidade da sociedade do presente. Esta assume a responsabilidade de refletir sobre a dimensão do patrimônio ambiental que se encontra à nossa disposição, menos em função de nós mesmos e do sentimento de perda, que em função das gerações futuras e do sentimento de continuidade do que ainda resta a ser conservado. Mais uma vez, perda e continuidade constituem dialeticamente o sentido da categoria patrimônio. Compreendemos, tal como Hartog (2006:268), que na atualidade a noção de patrimônio busca a permeabilidade e o diálogo com as práticas sociais, numa tentativa de mantê-lo vivo, quer seja material ou imaterialmente: “Deseja-se museificar, mas mantendo vivo, ou melhor, revitalizar reabilitando. Ter um museu, mas sem o fechamento do museu: aqui ainda, um museu ‘fora dos muros’? Um museu propriamente de sociedade, senão um museu social”. Voltando-se para “lugares” capazes de construir uma identidade em torno da circulação, o que chamaremos um adensamento transitório de fluxos de sentido, o patrimônio se multiplica para dar conta dos processos e relações de sentido do homem com seu meio ambiente. Na visão de Hartog (2006:268), as frentes abertas por um patrimônio material e imaterial se ampliam: 6 Na visão de Gonçalves (2009), o patrimônio é uma categoria do pensamento das sociedades. A valoração de um bem advém dos processos socioafetivos de uma comunidade frente à sua função social de articulação da identidade.
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[...] o ‘patrimônio cultural protegido’, o ‘patrimônio cultural de proximidade’ (este ‘tecido conjuntivo’ do território nacional), o ‘patrimônio natural’ (que compreende a ‘noção de paisagens’), o ‘patrimônio vivo’ (as raças animais e espécies vegetais), o ‘patrimônio imaterial’ (com os savoir-faire tradicionais, as tradições populares, o folclore). O patrimônio genético já frequente na
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mídia e o patrimônio ético a começar a entrar.
Nessas frentes abertas, percebe-se que as crenças, valores, hábitos e práticas propiciaram as bases para uma experiência social que legitima, em última instância, as formas de prática e reflexão moral e ética capazes de evidenciar os valores e normas de conduta de uma sociedade. Essa mudança vem ao lado daquelas empreendidas pela Museologia, que desloca o foco de atuação dos museus da coleção para as relações do homem com seu patrimônio, agora cada vez mais direcionado para as práticas sociais, não somente pela sua importância comunicacional, mas, sobretudo, por serem estas o lugar de constituição relacional das representações e das práticas. No âmbito do patrimônio, na sessão de abertura da XII Conferência Geral do ICOM (1980), o ministro do México, Pedro Ramirez-Vasquez, definiu esse novo foco dos museus ao atribuir valor moral ao “conjunto de princípios e valores espirituais que sustentam a vida da comunidade dentro de um povo e dá sentido à sua vida cotidiana” e valor de existência para o patrimônio do futuro com “a conservação do equilíbrio e dos recursos de nosso universo” que possibilita “à próxima geração uma vida melhor, em harmonia com a criação [...]”. Neste discurso, o ministro reafirma o valor de existência ao declarar: “O patrimônio pode ser entendido como um processo de criação e renovação, assegurando a continuidade entre a matéria, a vida, o espaço e o tempo”, portanto, ele é “inseparável do conceito de devir” (Icofom, 2000:54-55). Contudo, no limite da ruptura, esse presente se revela incapaz de preencher o espaço aberto entre o campo da experiência e o horizonte de expectativas. Isto se revela na própria imagem da citação em epígrafe – “O passado bate à porta, o futuro na janela e o presente descobre que o solo desmorona sob seus pés” (Hartog, 1996:139). Dessa forma, se o presente onipresente tem dificuldades em tomar a si mesmo como sua própria avaliação, o passado surge como um campo de potencialidades para a proposição de novas questões e resposta à luz de um presente que toma em consideração a dimensão do futuro, mas que não constitui em si a dimensão última capaz de fundamentar os nossos caminhos. Portanto, as escolhas do presente precisam buscar esse solo nos diferentes pontos de vista, na contraposição de argumentos, para comparativamente buscar respostas possíveis para um futuro incerto: “É necessário encontrar uma forma de relação entre o passado e o presente, de tal modo que o passado não pretenda ditar a conduta ao presente e tampouco permaneça completamente inerte” (Hartog, 1996:133). Nesse caso, compreendemos este “inerte” como um fardo “morto” a ser carregado, que não se vivifica no presente. Isso nos leva a pensar em fazer escolhas à luz das condições para se falar algo sobre um passado que obedece às demandas que lhe são posteriores – “uma visada retrospectiva, mesmo que com expectativas de futuro implícita ou
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explicitamente definidas” (Nicolazzi, 2010:235). Nesse sentido, abre-se a possibilidade de um olhar historiográfico sobre o uso desse passado pelo presente de forma mais equânime, como um quadro mais abrangente de forças e relações, valorizando a dimensão pública e política da história (Nicolazzi, 2010:235236). Como esclarece González de Gómez (1995:85): [...] preferimos o retorno a uma dialética renovada, capaz de ler, nos espaços relacionais, pontos de ruptura e trajetos irreversíveis, assim como aceitar os jogos dinâmicos do negar e do afirmar, do contínuo e o descontínuo, permitindo substituir a linha única e mestre da história pelas pluralidades simultâneas, as heterologias discursivas, as transversalidades que cruzam os planos homogêneos das lógicas sociais e culturais.
Por esse caminho, o museu se define como um “lugar” por ser “uma encruzilhada onde se encontram diferentes caminhos da memória” (Hartog, 1996:137), construídos por sua capacidade de remodelar, retomar e revisitar tempos e lugares sob a ótica das questões formuladas do presente. Um museu capaz de vivificar as questões não apenas pela elaboração de pesquisadores e especialistas, mas pela própria dinâmica de participação da sociedade. Museus como lugares de fomento da ação, mais do que seguidores dos modelos de gerações anteriores, que se voltam para o âmbito social da comunicação e concretizam seu sentido no mundo de vida (Kinard, 1971:102). Um museu que expõe os problemas atuais em paralelo com seus equivalentes históricos de forma a promover uma reflexão crítica capaz de subsidiar as ações no mundo. Como propõe Jorge Enrique Hardoy (1994: 213-222), museus com a missão de “criar as bases da compreensão dos problemas, para formar indivíduos responsáveis por um processo de mudanças sociais e políticas”. Considerações Finais Nos caminhos da musealidade do patrimônio “meio ambiente” já se pode identificar a constituição de um patrimônio que se define temporal e espacialmente nas diferentes formas de conceber e viver a relação sociedade-meio ambiente. Congregando processos, estados e representações da natureza, a “Museologia de relações” instaura processos de valorização do universo relacional do objeto ao tempo em que reafirma o seu papel de gestor de um projeto de patrimônio que se ancora nas gerações futuras. Assim, conforme proposto por Davallon et al. (1992), o museu assume seu status de protagonista e evolui sobre o campo destinado a pertencer por suas escolhas de discurso: um corpo da vida civil. Um espaço público no qual se articula o entrelaçamento dos tempos e lugares na forma de adensamentos de sentidos, contingências em torno de uma temática. Nesse caso, o tema meio ambiente torna-se um conceito integrador, o qual subsidia uma reflexão acerca dos valores sobre os quais repousa a sociedade possibilitando reconfigurar a dinâmica institucional do museu, uma vez que a relação sociedade e meio ambiente significa redistribuir as relações de força no campo museológico de forma a contemplar sua dimensão pública. O museu passa de uma instância de consolidação de políticas públicas alicerçadas na visão de uma racionalidade de processos que fornece as informa-
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ções a um coletivo para uma importante arena política, que enfrenta as questões de interesse coletivo, propiciando mecanismos de expressão capazes de promover uma experiência da pluralidade de perspectivas que evidenciam o sentido profundo da esfera pública. Reside aí a sua importância para o patrimônio meio ambiente, um espaço público que possibilita refletir no plano metacomunicacional sobre um patrimônio em projeto englobando tudo que deve ser conservado, material ou imaterial, em função das gerações futuras. Referênciais ARPIN, Roland. Quelle est la vraie nature du musée. In: DAVALLON, Jean; GRANDMONT, Gerald; SCHIELLE, Bernard. L’environnement entre au Musée. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1992. (Collection Muséologies) ______. L’Environnement releve de La politique et de La science. In: DAVALLON, Jean; GRANDMONT, Gerald; SCHIELLE, Bernard. L’environnement entre au Musée. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1992. (Collection Muséologies) AUSTRALIAN COMMITTEE FOR IUCN. Australia Natural Heritage Charter for the conservation of places of natural heritage significance: standards and principles. Australia Heritage Commission in association with Australian Committee for IUCN. Sydney NSW, 2002. BEZERRA, Onilda Gomes. Os valores da natureza no contexto da conservação integrada do patrimônio natural e cultural. Disponível em: <http://www.mostreseuvalor.org.br/publicacoes/index.php?pagina=6>. Acesso em: 01 ago. 2012. BERQUE, Augustin. Paisagem-Marca, Paisagem-Matriz: elementos da Problemática para uma Geografia Cultural. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (Orgs.). Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: Ed Uerj, 2004. BORGES, Luiz C. ; CAMPOS, M. D'Olne . Patrimônio como valor, entre ressonância e aderência. In: SCHEINER, Teresa C.M.; GRANATO, Marcus; REIS, Maria Amélia G. de Souza; BARRIOS AMBROCY, Gladis. (Orgs.). Termos e conceitos da museologia: museu inclusivo, interculturalidade e patrimônio integral. 1. ed. Rio de Janeiro: MAST/UNIRIO, 2012, v. 1, p. 112-123. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998. BRASIL, MMA. A Convenção sobre Diversidade Biológica - CDB, Decreto Legislativo nº 2, de 5 de junho de 1992. MMA. Brasília, 2002. CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio.Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade: Editora da Unesp, 2001. COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso futuro comum. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 1991. DAVALLON, J. ; GRANDMONT, Gerald ; SCHIELLE, Bernard. L’environnement entre au Musée. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1992. (Collection Muséologies)
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LYGIA MARTINS COSTA: NARRATIVA SOBRE SUAS CONTRIBUIÇÕES À MUSEOLOGIA E AO PATRIMÔNIO Ivan Coelho de Sá1 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
RESUMO: A proposta deste texto é fazer uma narrativa da atuação profissional da museóloga Lygia Martins Costa, atualmente com quase 101 anos de idade, concentrando-se em suas contribuições à Museologia e ao Patrimônio e recuperando um pouco da memória de sua história de vida. A estrutura da narrativa tem como base as entrevistas concedidas por D. Lygia, entre julho e novembro de 2014, para elaboração de um vídeo apresentado no dia 18 de dezembro, Dia do Museólogo, quando seu centenário foi celebrado conjuntamente com os 30 anos de regulamentação da profissão museólogo. PALAVRAS CHAVE: Museologia; Patrimônio; Museu Nacional de Belas Artes; Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN; Lygia Martins Costa
Lygia Martins Costa: narrative about his contributions to Museology and Heritage ABSTRACT: The objective of this text is to create a narrative of the working life of the museologist Lygia Martins Costa, who at the time of writing she is almost 101 years old. The text seeks to concentrate on her contributions to Museology and national heritage, preserving something of the story of her life along the way. The structure of the narrative is defined by a series of interviews given by dona Lygia between June and November 2014 for the purposes of a short film subsequently presented on the 18th of December, Museology day, when her 100th birthday was celebrated along with the 30th anniversary of the formal regulation of her profession. KEYWORDS: Museology; Heritage; Museum of Fine Arts; IPHAN; Lygia Martins Costa
1 Graduação em Museologia (EM/UNIRIO); graduação em Pintura (EBA/UFRJ); mestrado em História da Arte e doutorado em Artes Visuais (PPGAV/EBA/UFRJ). Professor do Departamento de Estudos e Processos Museológicos e do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (PPG-PMUS-UNIRIO/ MAST).
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Introdução
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No ano passado, 2014, os profissionais de Museologia e de Patrimônio tiveram um motivo de grande comemoração: o centenário de D. Lygia Martins Costa. Cem anos bem vividos dos quais mais de cinquenta de intensa atividade profissional e intelectual a serviço dos museus, da Museologia e do Patrimônio. No âmbito da Escola de Museologia1 foi aprovado o Projeto de Extensão e Cultura Centenário de Lygia Martins Costa: uma reflexão sobre histórias de vidas pioneiras2, articulado com o projeto de pesquisa Recuperação e Preservação da Memória da Museologia no Brasil, que tem como principal suporte de pesquisa o acervo do Núcleo de Memória da Museologia no Brasil - NUMMUS. Uma das linhas de atuação deste projeto de pesquisa refere-se à recuperação de histórias de vidas associadas ao antigo Curso de Museus, atual Escola de Museologia da UNIRIO, bem como aos museus e ao campo da Museologia. A comemoração de efemérides ligadas a estes assuntos têm ensejado a elaboração de entrevistas e vídeos como este dedicado ao centenário de D. Lygia cuja proposta foi sintetizar sua atuação profissional e suas contribuições, em especial como museóloga do Museu Nacional de Belas Artes - MNBA (1940-1951) e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN (1952-1996). Nascimento e Família Apesar de viver há mais de 90 anos na cidade do Rio de Janeiro, o que a torna naturalmente uma carioca, Lygia Guedes Martins Costa – este é o seu nome completo – nasceu no dia 13 de dezembro de 1914, em Pinheiros, atual Pinheiral, cidade fluminense do Vale do Paraíba. O pai – Dr. Mário Andrade Martins Costa – natural de Petrópolis, era engenheiro da Estrada de Ferro Central do Brasil. Residira inicialmente em Juparanã, também no estado do Rio de Janeiro, onde fora trabalhar nos idos de 1910, sendo transferido depois para uma antiga estação em Pinheiros criada à época do Império3. Sua mãe, D. Hermínia Guedes da Costa, após o casamento, assumira o nome integral do marido, Hermínia Andrade Martins Costa, num gesto simbólico de dedicação bastante comum à época. A família de Lygia, tanto paterna quanto materna tinha origens em antigas oligarquias rurais. Seus avós representam um momento, na segunda metade do século XIX, em que alguns membros destas oligarquias migram para os grandes centros onde vão estudar e atuar como profissionais liberais. Domingos de Almeida Martins Costa, seu avô paterno, fora um conhecido médico cardiologista do Rio de Janeiro. Professor da Faculdade de Medicina, tivera, entre seus pacientes, ilustres personagens como o próprio D. Pedro II. Nascera no Maranhão, onde a família era proprietária de terras na região de Brejo de Anapurus. No Rio de Janeiro, casara-se com a catarinense, Maria Cândida de Araújo Pinto, a única avó que Lygia conheceu e que costumava visitar num sobrado da Rua Bambina, em Laranjeiras, onde residia e faleceu com mais de 90 anos. 1 Do Centro de Ciências Humanas e Sociais - CCH, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. 2 Aprovado no Departamento de Estudos e Processos Museológicos-DEPM-CCH-UNIRIO. 3 Importante rota de escoamento do café desde o século XIX, a Central do Brasil, antiga Estação de Ferro Pedro II, fazia a ligação do estado do Rio de Janeiro com São Paulo e Minas Gerais constituindo, naquela época, a maior rede de estradas ferroviárias do país.
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Carlos Guedes da Costa, avô materno, também era engenheiro da Central do Brasil, fato que favoreceu a aproximação de sua filha Hermínia ao Dr. Mário Martins Costa, quando este, recém-formado, ingressara na Central do Brasil. A avó materna falecera muito jovem. Também chamada Hermínia, pertencia à família Teixeira de Mello, de cafeicultores do interior fluminense. Era filha de José Alexandrino Teixeira de Mello, médico, jornalista, poeta e um meticuloso pesquisador de documentos tendo desempenhado a função de Diretor da Seção de Manuscritos, da Biblioteca Nacional. Dele Lygia deve ter herdado o espírito de curiosidade e a paixão pela pesquisa. Da infância em Pinheiros, Lygia lembra-se da casa avarandada e do quintal com parreiras, no alto de uma colina, próxima à Estação Ferroviária, na Rua José Alexandrino Teixeira de Mello, coincidentemente, uma homenagem ao seu bisavô materno. Mário e Herminia Martins Costa tiveram 10 filhos, fato comum às famílias de então. A mais velha, Eunice, estudou Arquitetura e o segundo, Tito, tornou-se engenheiro agrônomo tendo trabalhado também na Central do Brasil. Lygia foi a terceira e depois dela nasceram: Tancredo, futuro dentista; Sylvia, depois bibliotecária do Museu Nacional; Carlos, médico clínico-geral; Henrique, médico-cirurgião; Luiz, advogado; Antero, falecido com cerca de 15 anos; e o caçula, José, que se formou também em Arquitetura. (...) os dois mais velhos nasceram em Juparanã, que fica perto, também por lá. (...) Depois papai foi transferido para Pinheiros e eu nasci e mais dois irmãos nasceram lá. Depois viemos para o Rio e todo o resto nasceu no Rio. Somos dez. (SÁ;VILLAGRÁN, 2014)
O despertar para os estudos e o contato precoce com os museus Por volta de 1920, Dr. Mário Martins Costa é transferido de Pinheiros para o Rio de Janeiro, onde assume a chefia do Escritório Técnico da Central do Brasil4. Dois anos antes, em 1918, com o falecimento do avô materno de Lygia, Dr. Carlos Guedes da Costa, ficara vaga a casa oficial destinada aos engenheiros da Central do Brasil, situada na Tijuca, no largo da Estação de São Cristovão, em frente à Quinta da Boa Vista, próximo à Rua General Canabarro. Toda a família vai residir nesta casa, com quintal nos fundos prolongando-se até o Rio Maracanã. Apesar das transformações urbanísticas do início do século XX, Lygia vivenciou o clima ainda bucólico da capital federal de fins da República Velha. Engraçado, antigamente, na Avenida Maracanã não havia o Maracanã [estádio]. A nossa casa ia até o rio e eram estacas de ferro que separavam (...) o rio. Depois eles fizeram o Maracanã, a Avenida Maracanã. Tiraram, recuaram e ai passaram a Avenida Maracanã. (SÁ;VILLAGRÁN, 2014)
Em 1921, Lygia é matriculada no Curso Primário da Escola Municipal Benedito Ottoni, na Rua Senador Alencar, nas proximidades de sua casa. Com apenas sete anos ela já demonstra grande interesse em estudar e quando era ameaçada de algum castigo infantil, este era o de privá-la do que mais gostava: ir à Escola. No ano seguinte, 1922, em meio às manifestações ufanistas pelo Centenário da 4 Nesta função realizou importantes obras como o Viaduto de São Cristovão e a duplicação da Estrada de Ferro da Serra do Mar, nos quais utilizou o concreto armado, uma técnica construtiva ainda pouco conhecida no Brasil.
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Independência, Lygia ingressa no Segundo Ano. Nesta ocasião seu pai é enviado pela Central do Brasil aos Estados Unidos com o objetivo de especializar-se nas modernas técnicas de engenharia aplicadas às redes ferroviárias. Isto repercute na vida de Lygia, pois os estudos têm que ser interrompidos. Entretanto, esta reviravolta leva-a, ainda criança, a conhecer a realidade dos Estados Unidos, então um país praticamente desconhecido para a maioria dos brasileiros. A família embarca em junho de 1922, residindo nos primeiros seis meses em Nova Iorque, onde Lygia é apresentada a importantes museus por iniciativa do pai que leva os filhos para visitarem o Museu de História Natural e o Metropolitan cujas coleções de arte europeia impressionam a menina de apenas 8 anos. Este primeiro contato com o mundo dos museus, fato insólito para uma criança brasileira da época, deve ter exercido uma influência decisiva sobre o espírito desta futura museóloga e historiadora da arte. Depois de Nova Iorque a família residiu em Leetsdale, cidade às margens do Ohio, na Pensilvânia, numa típica casa americana com lareira e pomar de macieiras centenárias. As dificuldades com a língua inglesa foram superadas com aulas particulares para D. Hermínia e todos os filhos. Em dezembro de 1923, retornam ao Brasil, após permanecerem um ano e meio nos Estados Unidos. Uma canção popular sobre o fundador da Pensilvânia, Willliam Penn, personagem histórica popularizada nas caixas de aveia Quaker, ficou registrada na memória de Lygia: “William Penn took a motor to go to Tennessee, on the way he met his love.Will you marry me? Turn to the east, turn to the west.Turn to the one that you love best.” (SÁ;VILLAGRÁN, 2014). No Rio de Janeiro, Lygia retorna à Escola Benedito Ottoni concluindo o curso primário por volta de 1927. Nesta época, presta exames de admissão no Instituto Lafayette, situado à Rua Conde de Bonfim. Alguns meses depois transfere-se para uma instituição mais perto de sua casa, o Colégio Maria de Nazaré, Departamento Feminino do Instituto Rabello localizado à Rua Ibituruna, nas proximidades do Colégio Militar. O Instituto Rabello, fundado pelo Prof. Eurico da Cunha Rabello, seguidor da doutrina Espírita, pautava-se por métodos pedagógicos considerados modernos para os anos 20, inclusive em relação à tolerância religiosa. Incentivado pelo pai, o gosto de Lygia pelos estudos se intensifica levando-a a interessar-se por Matemática e História. Dr. Mário tinha o hábito de levar os filhos para visitar o Museu Histórico Nacional, o Museu Nacional e as galerias da então Escola Nacional de Belas Artes, depois Museu Nacional de Belas Artes, onde, no futuro, Lygia iria realizar seu primeiro trabalho como museóloga. A menina ficava admirada com as telas de grandes dimensões de Vitor Meireles e Pedro Américo. As pinturas alimentavam sua fértil imaginação, estimulada, também, pela leitura de contos franceses da Biblioteca das Moças, colecionados pela mãe, D. Hermínia. Eram romances de M. Delly5 e Henri Ardel6, literatura romântica destinada ao público feminino dos anos 20, 30 e 40. 5 Pseudônimo dos irmãos Frédéric (1870-1949) e Jeanne (1875-1947) Petijean de la Rosiére, escritores franceses que publicaram dezenas de livros de leitura leve e agradável, voltadas para a educação feminina. Apesar de não serem datadas, as histórias destacavam os valores da aristocracia europeia da transição dos séculos XIX e XX. 6 Pseudônimo masculino de Berthe Abraham (1863-1938), escritora francesa de romances sentimentais, considerados adequados para as moças.
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Museu de Belas Artes7 e Museu Histórico eram os dois museus que tinha. Museu Nacional também, mas ai não era de arte. Mas nós íamos também ao Museu Nacional. Víamos [na ENBA] aquelas salas enormes cheias de quadros. (...) Tinham uns quadros de batalhas, justamente do Pedro Américo... e Vítor Meireles... aqueles quadros imensos (...). Então, ninguém conhecia, nem na família (...) ninguém conhecia museu. Nós conhecíamos museu desde pequenos. (SÁ;VILLAGRÁN, 2014)
Concluindo o ensino secundário, por volta de 1933, Lygia pensa em ser engenheira, como o pai e o avô materno, uma escolha avançada para uma adolescente de sua época. Entretanto, apesar de estimular a paixão de Lygia pelos estudos seu pai não concorda, pois não considerava a Engenharia uma profissão adequada a uma moça. Lygia fica em casa por cinco anos, lendo e estudando avidamente, mas sem saber que carreira seguir. Encontro com a Museologia No início do ano de 1938, uma tia paterna, Zaira Martins Costa, viu num jornal o anúncio sobre a abertura de matrículas para o Curso de Museus do Museu Histórico Nacional. As matrículas ficariam abertas até março. Lygia interessa-se pelas disciplinas do Curso, mas precisava da autorização do pai. Dr. Mário não concorda prontamente e pede ao filho Henrique para ir ao Museu e verificar como era o “ambiente”. Ele voltou com uma informação favorável. Não havia o que temer: “Pode deixar, papai. Só tem mulher!” (SÁ;VILLAGRÁN, 2014). Realmente, em 1938, de um total de 29 alunos matriculados, 22 eram mulheres e somente 7 homens (SÁ; SIQUEIRA, 2007: 50-54). Em abril de 1938, aos 23 anos, Lygia começa as aulas do Curso de Museus, tendo cursado a Matriz Curricular original, implantada seis anos antes. Técnica de Museus e História do Brasil, ministradas por Gustavo Barroso. História da Arte Brasileira oferecida por Joaquim Menezes de Oliva. Arqueologia do Brasil cujo professor era João Angyone Costa e Numismática ministrada por Edgar de Araújo Romero. A maioria tinha fomação na área de Direito e todos eram autodidatas nas disciplinas que ministravam. A despeito das limitações de um curso recém-criado, com apenas dois anos de duração e várias lacunas em sua grade curricular8, ao estudar estas disciplinas, sobretudo a de História da Arte, Lygia percebe que estava no caminho certo e que iria seguir a carreira de conservador de museus. Dentre as colegas de turma, as futuras companheiras do Museu Nacional de Belas Artes, Jenny Dreyfus e Maria Barreto, alguns anos mais velhas que Lygia. Se eram exigentes? Eram não... Não eram não... O professor mais exigente era o Barroso. Era o nosso professor e sempre foi muito exigente. Então, o Barroso era, mas os outros não. E ficaram, assim, logo muito [meus] amigos, sabe?! Porque eu também tinha interesse muito grande mesmo. Então, eles também tomavam interesse no estudo. Me lembro que ele [Barroso] falava justamente da vivência dele, não é? Dentro do Museu Histórico (...) Porque de História da Arte ele não sabia... Não dava História da Arte. Ele dava... Técnica de Museus e nós tínhamos um professor de História da 7 D. Lygia refere-se às galerias de pintura da ENBA. 8 Em 1944, uma reforma curricular criou novas disciplinas e aumentou a duração do curso para três anos.
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Arte no Brasil. Era o Menezes de Oliva. Mas depois que a gente “tava” estudando mesmo, víamos que ele não era grande coisa não. Ele era o que sabia, assim, um pouquinho de arte. Então... eram interessantes sim [as aulas], porque eu gostava muito e gostei toda vida. Arqueologia era com o... Como é o nome dele? Angyone Costa! Era [bom]... Animava, não é? Interessava a pessoa pela coisa, portanto, gostava do professor. Era um professor que estimava muito. História era Barroso. Tudo era Barroso. Ele era mais interessante em História. [...] É, mas era muito pão-pão, queijoqueijo, a Numismática. Então... era uma coisa assim um pouco chata... (SÁ, VILLAGRÁN, 2014).
Lygia concluiu o Curso de Museus em dezembro de 1939. A formatura ocorreu em janeiro de 1940. Foram 18 formandos, um número considerável para a época: 15 mulheres e 3 homens (SÁ; SIQUEIRA, 2007: 264-265). Somente na primeira turma formada pelo Curso de Museus (1933) houve maioria de homens. A partir de 1934, o número de mulheres graduadas torna-se majoritário (SÁ; SIQUEIRA, 2007: 50-54), situação que se mantém ao longo de mais de oito décadas, persistindo na atualidade. (...) Foi o caminho... o curso tinha a finalidade de formar profissionais para trabalhar em museus, e as cadeiras que ministrava não se encontravam em outras faculdades brasileiras. Havia apenas o ensino básico para suprir as primeiras necessidades, mas incutia nos alunos o desejo de buscar, em livros diversos, o que ele faltava. Portanto, desde o início tivemos consciência de que era um curso a ser ampliado e a responder por necessidade que se tornaram, no exercício das funções, cada vez mais nítidas. (CHAGAS; ALVARES; ALMEIDA, 2010:21)
Formatura da turma de 1939 do Curso de Museus, janeiro 1940 (Foto: Núcleo de Memória da Museologia no Brasil - NUMMUS)
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O concurso para conservador de museus Em 1939, quando Lygia estava cursando o último ano do Curso de Museus, o Departamento Administrativo do Serviço Público - DASP lançou edital de concurso público para Conservador de Museus. O objetivo era suprir os quadros técnicos do Museu Histórico Nacional e do Museu Nacional de Belas Artes, este, criado dois anos antes. Lygia está determinada a fazer o concurso, mas tem que enfrentar a oposição do pai que não via com bons olhos uma filha trabalhando. O impasse foi resolvido com a intervenção de um engenheiro russo, antigo amigo de seu pai da Central do Brasil, Dr. Israel Max Roussine, que o alertou sobre a importância deste concurso para a carreira de sua filha. Com a anuência do pai, Lygia apressa-se a providenciar a documentação e inscreve-se no concurso. No entanto, ela estava em posição desigual em relação aos demais concorrentes que já vinham se preparando para o concurso ao longo do ano. O concurso previa a apresentação de um trabalho, uma tese como se chamava, a ser defendida perante uma comissão examinadora9. Lygia teria somente quinze dias para elaborar a parte escrita e por isso escolheu o tema que considerou mais prático para revolver num tempo tão curto A circulação da prata no Brasil. A bibliografia sobre este assunto era acessível e ela contou com o apoio de Solano de Barros10, técnico da Seção de Numismática do Museu Histórico Nacional, que lhe ofereceu seus apontamentos, e da amiga Jenny Dreyfus que a ajudou a pesquisar nas bibliotecas. Apesar do pouco tempo Lygia estudou de maneira intensiva, obteve boas notas e foi classificada. O Solano foi muito camarada. O Solano conhecia até mais que o Romero11. Ele era um estudioso. Então eu pedi ajuda ao Solano. Foi muito simpático. Muito bom. Concurso feito que eu levei... na esportiva e me saí bem. Teve prova escrita. (...) Foi de História. E eu ali... escrevi... e eles me deixaram escrevendo. Eu escrevi quatro horas e tinha assunto. (...) e fui escrevendo até que falaram: – Acabou, não tem mais não! Eu falei: – Mas não acabei. Mas a prova acabou! Mais de quatro horas de prova! (...) E tinha prova de línguas também. (...) tinha uma prova prática. De Classificação. Então ali tiraram umas peças de porcelana. E outras peças que eles escolheram no Museu e me deram. E foi mais ou menos, porque não tinham explicado nada. (...) Não deram a ficha. A gente teve que compor a ficha. A gente fez como achou que devia fazer. (SÁ,VILLAGRÁN, 2014)
Este choque de opiniões entre o Dr. Martins Costa e Lygia caracteriza bem um processo de transição de dois mundos antagônicos que conviviam nas décadas de 20, 30 e 40. O conservadorismo remanescente do século XIX, ainda muito restritivo em relação à posição das mulheres na sociedade em confronto com as mudanças alavancadas por duas guerras mundiais. Estas mudanças repercutiram não somente na política, marcando períodos distintos da Era Vargas – tanto de autoritarismo nacionalista quanto de democratização –, mas também em termos econômicos e sociais. Um dos aspectos mais marcantes refere-se 9 A comissão examinadora deste concurso de 1939-40 foi constituída por Pedro Calmon, Egon Prates, Orlando Guerreiro de Castro e Fernando Nereu de Sampaio, secretariada por Ana de Alencar (DASP). 10 Alfredo Solano de Barros (1890-1971), conservador da Seção de Numismática do MHN, da qual foi chefe de 1954 a 1960. 11 Edgar de Araújo Romero (1884-1968), professor de Numismática do Curso de Museus (1932-54).
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exatamente à emancipação feminina que atinge várias conquistas como a inserção, ainda que tímida, no mercado de trabalho. A área dos museus passa a representar um espaço considerado relativamente adequado para a atuação feminina, mesmo porque os salários não eram altos, o que tornava a área menos competitiva, pelo menos em relação à procura masculina.
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Comissão examinadora e candidatos do primeiro concurso para conservador de museus, fevereiro 1940 (Foto: Núcleo de Memória da Museologia no Brasil - NUMMUS)
Atuação no Museu Nacional de Belas Artes Em março de 1940, Lygia começa sua carreira como conservadora do Museu Nacional de Belas Artes. O MNBA fora criado três anos antes12 e era necessário todo um trabalho de tratamento técnico das coleções da antiga Academia Imperial, depois Escola Nacional de Belas Artes-ENBA. Juntamente com Regina Monteiro Real, Elza Ramos Peixoto, Regina Liberalli Laemmert e Maria Barreto, todas egressas do Curso de Museus e que também haviam participado do concurso do DASP, Lygia integra-se à equipe também constituída de Manoel Constantino Gomes Ribeiro, restaurador, o único não oriundo do Curso de Museus. Estas museólogas, ou melhor, conservadoras de museu, como a profissão era identificada na época, desempenharam um papel fundamental tanto na implantação efetiva do Museu em termos de administração, documentação, pesquisa, conservação e exposição, sob a direção do jovem artista plástico Oswaldo Teixeira13, egresso da Escola Nacional de Belas Artes e cuja gestão pioneira se estenderá por mais de duas décadas. Os anos 40 foram marcados por intensa atividade museológica e muitos 12 Lei nº378, de 13 de janeiro de 1937. 13 Oswaldo Teixeira do Amaral (1905-1974), pintor, restaurador, crítico e historiador de arte. Fundador e primeiro Diretor do MNBA de 1937-1961.
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estudos. A ânsia de aprimoramento profissional de Lygia é marcada por um período de grandes dificuldades técnicas, típicas de um museu recém-criado, mas também de todo um processo de reforma e modernização das instalações da nova instituição. O prédio, em estilo eclético, vinha sendo utilizado pela ENBA desde 1909 e necessitava ser adaptado para museu. Em 1944, conforme projeto de Regina Real, com a colaboração do então arquiteto do IPHAN, Renato Soeiro, é feita a instalação da reserva técnica com trainéis para o acondicionamento adequado das pinturas não expostas (BOLETIM DE BELAS ARTES, 1945: 51-52). A partir de 1945 as galerias passam por uma série de obras. O prédio recebe um novo pavimento e o sistema elétrico é reformulado para a instalação de ar refrigerado. O segundo andar passa a contar com nove salas e o terceiro com uma grande galeria dividida em seis salas reversíveis (COSTA E OUTROS, 1993: 4). A complexidade do acervo artístico do MNBA, desperta em Lygia a busca por novos conhecimentos em outras áreas.A paixão voraz pelos estudos acentua-se e transforma-se numa verdadeira obsessão. Uma das primeiras exposições em que trabalhou – Exposição de Arte Francesa –, entre junho e agosto de 1940, foi bastante movimentada, com mais de uma centena de obras do Museu do Louvre e de vários outros museus franceses. Houve conferências, uma das quais ministradas pelo conhecido crítico e historiador de arte francês, Henri Focillon14, e várias visitas guiadas, as promenades, como se chamava então, com acompanhamento da Profª Marcelle Proux, também francesa (ANUÁRIO MNBA, 1940, 32-40), com a qual Lygia fará depois vários cursos de História da Arte. Ao assessorar o diretor Oswaldo Teixeira na distribuição das obras chegadas da França ela percebe a necessidade imperiosa do estudo da História da Arte: [O diretor] era o pintor Oswaldo Teixeira. Ele nunca deu bola para o ensino. Ele era pintor. E sabia profundamente a coisa tanto que, numa exposição que veio da França... Ia saindo os quadros todos... Eram do século XVIII, século XIX até o século XX. E cada quadro que ia tirando ele ia dizendo quem era o autor. Uma exposição que estava chegando da Europa. Portanto, ele conhecia muito a arte. Arte do século XIX e XX. Ele conhecia muito bem. (SÁ;VILLAGRÁN, 2014)
O primeiro desafio consistiu na classificação da coleção de gravuras, a primeira tarefa encarregada a Lygia. Ela resolve frequentar, por um ano, a disciplina Iconografia, oferecida pelo Prof. Floriano Bicudo Teixeira, no Curso de Biblioteconomia, da Biblioteca Nacional. O programa compreendia basicamente história da gravura, identificação das técnicas, iconografia e iconologia. Com a segurança obtida neste estudo, Lygia cataloga a coleção de gravuras e organiza as exposições Dürer e a gravura alemã, entre julho e agosto de 1941. No Belas Artes eu “paguei” muitos anos: dez, onze anos... Não sei se foram doze... Olha aqui... Cheguei lá, eles me entregaram para... fazer primeiro a classificação.Ah! Tinha uma coleção de gravuras e não havia quem soubesse gravura lá “pra” classificação das peças. Então eu me matriculei [no curso de Iconografia]. Conversei com o diretor... Não! Com o professor, que já conhecia, da Biblioteca Nacional. E ele me convidou então “pra” fazer o curso lá. (...) E fui então... E classifiquei todas as gravuras de lá. Comecei 14 Henri Focillon (1881-1943), professor de História da Arte na Sorbonne, no Colégio de França e na Universidade de Yale, nos Estados Unidos.
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[no MNBA] e... me deram logo uma coleção e fiquei trabalhando. Então, o pessoal do Museu não sabia... Porque eles não fizeram o curso (...) E eu fiz então a classificação delas todas. Fiz as fichas... Eram todos gravadores europeus. Eram todos europeus, a maioria deles franceses. Portanto, entrei assim já com uma incumbência. (SÁ;VILLAGRÁN, 2014)
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O estudo da Iconografia desperta-a para a importância do conhecimento em História da Arte e esta a leva ao estudo da Filosofia e da Literatura. Na Escola Nacional de Belas Artes, que funcionava no mesmo prédio do Museu, Lygia cursou dois anos de História da Arte com o crítico e historiador de arte Flexa Ribeiro (pai). Foi uma experiência importante, pois antes da reforma de 1944, não havia História da Arte Geral no Curso de Museus, somente Arte Brasileira. Na Faculdade Nacional de Filosofia, da então Universidade do Brasil, Lygia estuda Filosofia com o Prof. Álvaro Vieira Pinto, conhecido educador cujas ideias viriam a influenciar a obra de Paulo Freire. Na Faculdade de Filosofia, da Universidade do Distrito Federal, futura UERJ, Lygia estuda Literatura Portuguesa com Thiers Martins Moreira e sua assistente, Cleonice Berardinelli, egressa da USP e que se tornou especialista em Fernando Pessoa.Ainda na Universidade do Brasil, Lygia estuda Literatura Espanhola com o Prof. José Carlos Lisboa, hispanista e filólogo, também um importante nome do ensino superior dos anos 40. A atuação de Lygia como curadora intensifica-se. Em 1943, ela organiza a Exposição do Centenário de Pedro Américo (abril-maio) e a Exposição de Pintura Britânica Contemporânea (outubro-novembro). O texto que elaborou para esta última revela segurança e maturidade tanto de História da Arte quanto de crítica artística, como pode ser observado na análise que fez das pinturas de Whistler: Se bem que norte-americano, Whistler está intimamente ligado à escola inglesa. Ligado pelo ambiente em que viveu, ligado pela influência que deixou. (...) Sua paleta possui poucas cores. É mesmo considerado dos que menos variedades emprega, conseguindo, contudo, tirar os maiores efeitos com tão limitada escala cromática. Seus tons são cosidos e a pintura pastosa. A tendência decorativa, tipicamente japonesa, que tão grande influência exercera em seus trabalhos das décadas de 60 e 70, evolui, e dá logar a uma pintura mais sólida, produto de uma técnica mais segura e de uma observação mais sutil da natureza. (ANUÁRIO MNBA, 1946: 67)
Em 1944, Lygia faz a curadoria das exposições A Paisagem na Pintura Brasileira e A criança na arte (outubro). Em 1946, a Exposição Canadense de Artes Gráficas, organizada com o apoio da Embaixada do Canadá e montada no prédio do MEC15, cuja construção fora concluída no ano anterior. Em 1949, Retrospectiva de Eliseu Visconti cuja pesquisa e análise dos aspectos estéticos, técnicos, e formais deste artista deram-lhe embasamento para definir seis períodos de sua produção artística. O catálogo desta retrospectiva constitui um dos textos pioneiros sobre Visconti, sendo consultado por historiadores e críticos de arte ainda na atualidade. Em 1951, Lygia organiza a Exposição Retrospectiva de Raphael Frederico (agosto-setembro) e no ano seguinte, juntamente com Regina Real, elabora o projeto da exposição Um Século de Pintura (1850-1950). Esta última correspondeu à primeira experiência de Lygia com uma mostra itinerante, empreitada bastante arrojada para a época, montada em Recife (agosto), João Pessoa (setembro) e Salvador (outubro). 15 Conhecido atualmente como Edifício Gustavo Capanema ou Palácio Capanema.
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O estudo de identificação e a classificação de acervos artísticos, como os que D. Lygia realizou no MNBA e depois no IPHAN transformaram-se em sólidas referências sobre os artistas estudados, bem como sobre a História da Arte brasileira. A qualidade e a seriedade destes seus trabalhos residem exatamente na sua preocupação em ampliar o conhecimento sobre as obras estudadas. Longe de fazer um trabalho puramente tecnicista, ela preocupou-se em fundamentá-lo teoricamente, buscando respaldo na História e na Crítica da Arte, na Iconografia, na Filosofia e na Literatura ampliando as perspectivas de análise das obras de arte musealizadas. A participação em organismos de classe Em novembro de 1946 foi criado, em Paris, o Conselho Internacional de Museus - ICOM, ligado à UNESCO e resultado da política pacifista, científica e cultural do pós-guerra. Regina Real, que além de conservadora desempenhava também a função de secretária do MNBA, recebeu correspondência do recém-criado ICOM incentivando os museus a se associarem e os países a implantarem representações nacionais. Entusiasmada com as possibilidades de intercâmbio com museus, pesquisas e profissionais do exterior, Lygia interessa-se vivamente em criar uma representação do ICOM no Brasil. Graças a seu entusiasmo o Museu Nacional de Belas Artes foi o primeiro a responder ao chamado do ICOM. Juntamente com Regina Real, D. Lygia preenche os formulários e encaminha a documentação. Com isto, ficou criada, no Brasil, a ONICOM16, Organização Nacional do ICOM. Como primeiro presidente, o diretor do MNBA, Oswaldo Teixeira, medida estratégica imaginada por Lygia e Regina para dar mais visibilidade à organização, ao passo que as duas se mantiveram como secretárias. A ONICOM representou um importante passo na medida em que diminuiu o distanciamento dos museus e dos conservadores brasileiros em relação às transformações que ocorriam no campo internacional. O empenho de Lygia na sua concretização reflete não somente seu espírito de curiosidade e seu desejo de crescimento profissional, mas também na visão da necessidade de sair do isolamento do museu e de buscar o intercâmbio, sobretudo em termos de ideias e de novas correntes do pensamento museológico. A partir de então, Lygia se mantém atualizada em termos do que acontecia no cenário internacional. Este seu ativismo culminará com sua participação na Mesa Redonda de Santiago, em 1972, importante marco das transformações no campo museológico. Pouco mais de vinte e cinco anos após a implantação da ONICOM, liderado por Regina Real, emerge com força um movimento de integração dos profissionais de museus visando a criação de uma entidade nacional que centralizasse o debate pela regulamentação da profissão do museólogo. Em 5 de novembro de 1963, Lygia Martins Costa está entre os sócio-fundadores da Associação Brasileira de Museologistas17 - ABM, entidade que, após mais de duas décadas de ativismo, logrou obter a regulamentação da profissão. 16 Atual ICOM-BR, Comitê Brasileiro do ICOM. 17 Em 1979, transformada em Associação Brasileira de Museologia.
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Criação da ABM, Auditório do MNBA, 1963 (Foto: Núcleo de Memória da Museologia no Brasil - NUMMUS)
A bolsa nos Estados Unidos Apesar de receber a correspondência do ICOM e ficar a par dos eventos e publicações, Lygia ainda queria mais em termos de crescimento profissional. Queria viajar, conhecer novos museus, ver as obras diretamente, vivenciar a prática das técnicas museográficas e aprofundar-se na História da Arte. Em 1948, por meio do Itamaraty, Lygia obtém uma bolsa de estudos para os Estados Unidos, entretanto, mais uma vez tem que vencer a resistência do pai. Ela mostra-se decidida e no último momento o pai acaba cedendo. Em setembro de 1948, ela embarca para os Estados Unidos onde ficou um ano, até 1949, fazendo o Curso Superior de História da Arte e Crítica, no Institute of Fine Arts, da New York University. O Institute of Fine Arts primava pelos estudos avançados em História da Arte. Na década de 30, com a migração, para os Estados Unidos, de historiadores alemães de origem judaica, tornara-se um centro de excelência reunindo os mais importantes nomes da história e teoria da arte como Friedlaender, Panofsky e Karl Lehman. Este último, especialista em arte e arqueologia greco-romana, ainda permanece na memória de D. Lygia como um de seus mais brilhantes professores. Da janela do Institute of Fine Arts ela via o prédio do Metropolitan, também situado na Quinta Avenida. A primeira visita ao Museu foi uma grande emoção. Ela não pode deixar de comparar a visita que fizera com o pai, ainda menina, e a que fazia agora, vinte seis anos depois, já com todo um conhecimento em História da Arte. Ingresso e atuação no IPHAN Em 1952, Lygia Martins Costa é convidada por Rodrigo Mello Franco de Andrade para trabalhar no IPHAN, tornando-se a primeira mulher museóloga do Pa-
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trimônio18. Além de Mello Franco, ela trabalha com importantes nomes, como Lúcio Costa, Paulo Thedim Barreto e Alcides Rocha Miranda. Inicialmente, ela assume a função de secretária da Comissão de Belas Artes, datando deste período, a curadoria da Exposição de fotografias da obra do Aleijadinho, montada em Assunção, no Paraguai, em 1953. Esta exposição exigiu de Lygia uma minuciosa pesquisa e, com uma percepção visual muito apurada, ela mergulha na arte do Aleijadinho, estabelecendo, pela primeira vez, um sentido cronológico de transformação estilística da obra deste artista. Dando prosseguimento à avidez de conhecimento, Lygia mergulha no estudo de línguas estrangeiras conjugadas com o estudo da Literatura. Frequenta os cursos da Aliança Francesa, da Cultura Inglesa e do Centro Cultural Brasil-Itália. Neste último, estudou por três anos e, em 1954, obteve bolsa de estudos em História da Arte para Roma, onde permaneceu por três meses. Em 1955, ao retornar da Itália, D. Lygia foi trabalhar na Parte Técnica do IPHAN, na Seção de Arte, ligada à Divisão de Estudos e Tombamentos, cujo diretor era Lúcio Costa. Ela passa a atuar como consultora dos museus do patrimônio e procura imprimir-lhes uma lógica mais reflexiva na apresentação dos objetos, preocupando-se também em despertar os museus para as questões locais incentivando-os também a priorizarem as ações educativas. Em 1966, assume a chefia da Seção de Arte e neste mesmo ano obtém sua última bolsa de estudos, desta vez concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian. Em Lisboa, ela estuda Arte Portuguesa e, com as colegas Maria Augusta Machado e Regina Liberalli, também bolsistas, visita cidades e monumentos portugueses. Os conhecimentos de Arte Portuguesa transformaram-se em importantes subsídios para fundamentar seus estudos sobre a Arte Brasileira do período colonial, tanto em relação à pintura, quanto à talha e à imaginária.
Bolsa de estudos em Portugal, visita ao sítio arqueológico de Conímbriga com o estudioso português, Dr. Santos Simões e a colega Maria Augusta Machado, 1966. (Foto: Núcleo de Memória da Museologia no Brasil - NUMMUS) 18 Alfredo Theodoro Rusins, graduado pelo Curso de Museus em 1938, foi o primeiro museólogo do SPHAN, onde ingressou em 1943 e permaneceu até seu falecimento em 1978.
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Em 1972, com a aposentadoria de Lúcio Costa, já com 20 anos de IPHAN, D. Lygia torna-se diretora da Divisão de Estudos e Tombamentos, o ponto alto de sua carreira. Por esta época, começa a trabalhar com novas gerações de técnicos do IPHAN, como Myriam Ribeiro Andrade de Oliveira, uma de suas discípulas mais respeitadas; e ainda, Ciro Lira, Dora Alcântara, Nonato Duque Estrada, Maria Emilia Matos, Jussara Mendes, dentre vários outros. Ainda em 1972, ela coordena um importante projeto de exposição, a Memória da Independência, inaugurada no MNBA. Uma mega exposição para os padrões da década de 70 para comemorar o sesquicentenário da Independência mobilizando profissionais e acervos de vários museus brasileiros. A escolha de D. Lygia para coordenar um evento deste porte revela o reconhecimento pela solidez de sua experiência profissional.
Com o Ministro da Educação, Jarbas Passarinho, na inauguração da exposição Memória da Independência, MNBA, 1972. (Foto: Núcleo de Memória da Museologia no Brasil - NUMMUS)
Nos anos 70, as pesquisas artísticas continuam sempre voltadas para a identificação e a classificação de acervos do Patrimônio concentrando o foco de suas análises nas obras do Aleijadinho. Estas pesquisas, orientadas por um senso crítico aguçado e muita sensibilidade, levam-na, em 1977, a um importante feito para a História da Arte ao estabelecer as características pessoais e inventivas na talha dos retábulos do importante mestre mineiro. Suas ideias são expostas no texto Inovação de Antônio Francisco Lisboa na estrutura arquitetônica dos retábulos, publicado na Revista do IPHAN, em 1979. Nas décadas de 80 e 90, D. Lygia encontra-se no ápice de sua carreira. Em 1983 ela idealiza e organiza o Museu da Abolição, em Recife. Ao contrário
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dos outros museus do Patrimônio onde atuara como consultora, neste museu ela pode realizar sua concepção como museóloga, começando pela contextualização histórica da escravidão e do processo de abolição, destacando as potencialidades e as contribuições da Cultura Negra na arte, na religiosidade, no imaginário, na literatura, na música... O Museu da Abolição. É trabalho de um museólogo.Tudo ali está encadeado, tudo ali tem sequência, tudo ali tem sua razão de ser. As peças entram em um momento exato, para revelar uma significação, não só delas como do papel que representaram naquele momento. Portanto, aquele foi um museu feito por museólogo; os outros, não. Assim, por exemplo, quando trabalhei nos museus do Patrimônio, foi sempre no sentido de dar-lhes um certo nexo; não foi para interferir e mudar o museu. Os nossos museus regionais não representam a região, a não ser pelo fato de terem peças daquela região. Mas não há mensagem; falta a especulação, a reflexão e a mensagem, em geral. (CHAGAS; ALVARES; ALMEIDA, 2010: 49)
Experiência no magistério Nas décadas de 50 e 60, Lygia dedica-se também ao magistério, passo natural em decorrência de todo o conhecimento adquirido. Em 1956, Mário Barata, colega do MNBA e do IPHAN, convida-a para ser professora assistente de História da Arte, na Escola Nacional de Belas Artes. Ela ministra esta disciplina por três anos, destacando-se, dentre seus alunos, importantes nomes da crítica e teoria da arte, como o Prof. Almir Paredes Cunha, no futuro, um dos implantadores do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, na EBA-UFRJ.
IV Congresso Nacional de Museus, MHN, julho 1965. (Foto: Núcleo de Memória da Museologia no Brasil - NUMMUS)
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Em 1961, Darcy Ribeiro, então reitor e um dos idealizadores da recém-criada UnB, Universidade de Brasília, convida D. Lygia para implantar disciplinas de História da Arte, no Curso de Arquitetura. Entre 1962 e 1963, ela inaugura o estudo da História da Arte na UnB. Nesta época, Darcy Ribeiro pensa em criar um museu em Brasília, o Museu da Civilização Brasileira, e convida D. Lygia para participar do projeto. Ela alerta para a necessidade de criar um Curso de Museologia para dar suporte à implantação do museu e elabora um projeto apresentado ao reitor pró-tempore, Zeferino Vaz, que o aprova ad-referendum. Entretanto, com o Golpe Civil-Militar de 1964, as propostas inovadoras que vinham orientando a criação da UnB são esvaziadas com o afastamento de seus idealizadores. No IV Congresso Nacional de Museus, organizado pela ONICOM no Museu Histórico Nacional, entre 23 e 31 de julho de 1965, retoma-se a discussão sobre a formação em Museologia e Lygia apresenta seu projeto, cuja fundamentação foi estruturada numa base de estudos gerais em História, História da Arte, Filosofia e Literatura. Participação em encontros internacionais Em 1956, Lygia Martins Costa participa, como Delegada do Brasil e como Vice-Presidente, na Conferência Internacional de Museus, organizada pelo ICOM na Suíça. Nessa Conferência ela inaugura uma atuação forte, lúcida e presente em encontros internacionais que perdurará por quase três décadas. Em 1958, no Rio de Janeiro, destaca-se como uma das vozes mais respeitadas do Seminário Regional para a Educação em Museus da UNESCO, realizada no MAM. Importante marco da Museologia, este Seminário colocou o Brasil em par de igualdades com as discussões internacionais, uma ideia vislumbrada por Lygia, desde os idos de 1946, quando promovera a criação da ONICOM. Ela entra em contato com vários outros pensadores da Museologia, como o francês Georges-Henri Rivière e o mexicano Mário Vasquez. Em 1965, participa, como Delegada do Brasil, da Conferência Internacional de Museus nos Estados Unidos e, três anos depois, em 1968, na Alemanha. O ponto alto de sua atuação internacional ocorreu em 1972, quando representa o Brasil na paradigmática Mesa Redonda de Santiago, na qual foram estabelecidos princípios basilares sobre o conceito de Museu Integral e sobre a função social dos museus. Em 1981, ela é novamente convidada pelo ICOM para representar o Brasil no Seminário Internacional de Educadores de Museus, na Noruega. Aposentadoria Em 1985, D. Lygia Martins Costa aposenta-se, mas sua inteligência, lucidez e disposição para o trabalho não poderiam ser interrompidos. Ela é convidada para a função de Consultora Técnica da então Fundação Nacional Pró-Memória. No ano seguinte, 1986, ela idealiza o projeto de exposição Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho na Arte Colonial das Minas. Nesta época, passa a defender a ideia precursora de um inventário geral da obra do Aleijadinho. Em 1996, após 56 anos de trabalho, D. Lygia Martins Costa afasta-se de suas atividades no Patrimônio continuando, porém, a produzir textos, participar de seminários, prestar consultorias técnicas e dar depoimentos de sua longa e importante contribuição. Nos anos 2000 as homenagens de reconhecimento pelo seu trabalho se sucedem. Em dezembro de 2004, é agraciada pelo COFEM, Conselho Federal de Museologia, com a Medalha do Mérito Museológico. Em
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maio de 2006, é homenageada pela Escola de Museologia da UNIRIO como Personalidade Museológica no Dia Internacional de Museus. Na formatura do Curso de Museologia deste mesmo ano, é convidada para ser patrona da turma “Jovem Museologia”. Em novembro de 2006, é homenageada pelo Museu da República como Personalidade Republicana. Nesta mesma ocasião, é agraciada pelo Ministério da Cultura com o grau de Comendador da Ordem do Mérito Cultural, recebendo a comenda das mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no Palácio do Planalto. Em março de 2012, é agraciada pela UNIRIO com a Medalha de Honra ao Mérito 80 Anos da Escola de Museologia. Em agosto de 2012, por ocasião da 23ª Conferência Geral do Conselho Internacional de Museus ICOM, no Rio de Janeiro, é homenageada pelo ICOFOM por sua participação na Mesa Redonda de Santiago. Em novembro deste mesmo ano, por ocasião do Fórum Nacional de Museus, em Petrópolis, é igualmente homenageada pelo IBRAM na comemoração dos 40 Anos da Mesa de Santiago. Conclusão Hoje, do alto dos seus 100 anos, D. Lygia Martins Costa, Comendadora da Ordem do Mérito Cultural, vive cercada de suas memórias, mas também atenta ao presente acompanhando, com interesse, as mudanças e os acontecimentos, sobretudo no campo da Museologia e na área do Patrimônio. Acarinhada pela família e homenageada pelos amigos ela é um verdadeiro patrimônio vivo. Um símbolo de luta e obstinação num momento desbravador, não somente para a Museologia e o Patrimônio, mas também para a mulher que estava deflagrando uma luta corajosa por seu espaço, por suas ideias, por sua profissão, pelo seu direito ao trabalho. Neste contexto, podemos dizer que D. Lygia cresceu profissionalmente junto com o desenvolvimento da Museologia e do Patrimônio. Suas contribuições à Museologia, aos Museus, à História da Arte e ao Patrimônio são valiosíssimas. Sua atuação pioneira abrindo caminhos ao trabalho dos museólogos, sobretudo na área do Patrimônio, influenciou o fortalecimento da profissionalização, seja nas áreas da comunicação e da educação nos museus, seja da pesquisa e catalogação de acervos artísticos, bem como na pesquisa e no ensino de História da Arte. Todas estas contribuições requerem uma avaliação crítica que poderá abrir inúmeras possibilidades de pesquisa que certamente trarão novas perspectivas aos estudos de Museologia e de Patrimônio.
Comemoração dos 100 anos de Lygia Martins Costa, UNIRIO, dezembro 2014. (Foto: Núcleo de Memória da Museologia no Brasil - NUMMUS)
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Referências Anuário do Museu Nacional de Belas Artes. nº.1. 1938-1939. nº2. 1940. Rio de Janeiro: MNBA, 1940. 64p.
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Anuário do Museu Nacional de Belas Artes. nº.3. 1941. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943. 90p. Anuário do Museu Nacional de Belas Artes. nº.5. 1943. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946. 94p. Anuário do Museu Nacional de Belas Artes. nº.6. 1944. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. 162p. Anuário do Museu Nacional de Belas Artes. nº.8. 1946. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1951. 113p. CHAGAS, Mario; ALVARES, Lillian; ALMEIDA, Cícero Antônio Fonseca de. Museologia em ação: Homenagem à Lygia Martins Costa. Brasília: UnB, 2010. COSTA, Lygia Martins e outros. Arte Estrangeira no Museu Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: MNBA/MEC. 1953. O Museu e seus arcanos: um relicário ignorado pelo público. In: Boletim de Belas Artes. nº.7. Rio de Janeiro: jul. 1945. p.51-52. SÁ, Ivan Coelho de; SIQUEIRA, Graciele Karine. Curso de Museus – MHN 1932-1978: alunos, graduandos e atuação profissional. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Escola de Museologia, 2007. SÁ, Ivan Coelho de; VILAGRAN, Raquel. Entrevistas com D. Lygia Martins Costa (Projeto de Extensão e Cultura Centenário de Lygia Martins Costa: uma reflexão sobre histórias de vidas pioneiras) [não publicado]. Rio de Janeiro: Jun.-nov. 2014. Entrevista concedida ao Núcleo de Memória da Museologia no Brasil.
Artigo recebido em abril de 2015. Aprovado em junho de 2015
DIREITO À MEMÓRIA E MUSEUS
Andréa Fernandes Considera1 Universidade de Brasília
RESUMO: Este artigo pretende discutir as relações entre o direito à memória e as práticas museais que vem sendo desenvolvidas em museus voltados para preservação destas memórias. Neste debate surgem questões que tentam identificar as possibilidades e limitações da instituição museu enquanto “depositário” de memórias e reprodutor de relações de poder. PALAVRAS CHAVE: Museu; Direito à Memória; Poder
The Right to Memory and Museum ABSTRACT: This article aims to discuss the relationship between the right to the memory and museum practices that have been developed in museums aimed at preserving these memories. Questions arise in this debate that attempt to identify the possibilities and limitations of the museum institution as “keeper” of memories and reproducer of relations of power. KEYWORDS: Museum, The Right to Memory, Power
1 Professora do Curso de Museologia da Faculdade de Ciência da Informação da Universidade de Brasília.
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Direito à Memória e Museus
Sobre Museus
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As instituições que conhecemos hoje – disseminadas por boa parte do mundo – sob a denominação de Museus, surgiram no século XVIII a partir de uma dupla vontade: por um lado, a de preservar objetos e coleções representativos de alguma memória; por outro lado, de comunicar e tornar pública esta memória, o que por sua vez garantiria o discurso desejado, dando, inclusive, notoriedade ao seu autor. Neste movimento, tanto as grandes obras de arte encomendadas à pintores famosos com o intuito de consagrar acontecimentos históricos, quanto novas espécies de animais taxidermizados com seus nomes científicos coletados nos mais distantes e exóticos lugares do planeta, serviam como suporte de uma memória a ser perpetuada para, desta forma, construírem referenciais os mais próximos possíveis de uma desejada verdade. Os museus, no entanto, sempre foram instituições em constantes transformações que para sobreviverem ao tempo, precisam se recriar constantemente sem abrir mão de seus fundamentos: os objetos (e coleções) e a comunicação destes. E é essa capacidade de sobrevivência e criação de narrativas persuasivas e discursos contemporâneos que colocam os museus muitas vezes no centro de grandes disputas de poder; o poder de guardar objetos representativos da memória. Entendendo os Museus como lugares de memória e de poder, torna-se pertinente questionar a forma como os museus têm atuado junto à sociedade e como suas ações têm garantido ou negligenciado o direito à memória. Neste sentido, não tratarei aqui de um museu em especifico, mas sim da instituição museal como lugar de memória, criado por e para as sociedades que deles se utilizam. A questão torna-se mais complexa na medida em que os museus são não só lugares de memória, mas também lugares de poder; de disputa pelo poder através da memória. Não é por acaso que na mitologia grega, as musas são filhas de Mnemosine e Zeus, ou seja, da memória com o poder. Com relação ao direito à memória, os museus atuam em duas direções. Primeiro, a iniciativa de se eleger um tema e reunir um acervo “representativo” de uma memória a ser preservada, garante a um grupo o direito a ela. Mas por outro lado, o próprio processo de escolha resulta em exclusão de outras memórias, contidas nos objetos não selecionados (não “representativos”). A segunda direção está na ponta do processo de musealização, que é a exposição dos objetos (geralmente em número menor do que o todo da coleção de um museu, selecionados dentre todos os objetos considerados representativos, para compor a memória a ser transmitida pelo museu) com suas interpretações, histórias e discursos, que mais uma vez legitimam memórias escolhidas. A estes fatores devemos ainda acrescentar as características da sociedade atual que em geral utiliza a instituição museal como local de visitação estudantil - numa tentativa de diversificar as formas de aprendizado – ou como local turístico. No primeiro caso, temos um nítido exercício de perpetuação da memória às futuras gerações a partir das narrativas construídas pelos mais velhos, pelos
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seus antepassados. Já no último caso, é comum as pessoas conhecerem os museus dos locais turísticos visitados, mas desconhecerem totalmente os museus de sua própria cidade (ou apenas tê-los freqüentado no período escolar como atividade obrigatória). O turista, por sua vez, recebe a narrativa dos museus como informações curiosas, com pouca margem para refletir sobre os contextos e interesses envolvidos na construção das narrativas a eles apresentadas. Mesmo assim, termina por levar consigo uma percepção daquela memória que lhe foi oferecida. Desde a década de 1970, em todo o mundo vêm surgindo e se consolidando experiências sociais de museus, preocupados exatamente com o direito à memória, principalmente dos grupos sociais ditos minoritários. Neste sentido surgiram os ecomuseus1, os museus comunitários, a sociomuseologia e diversas outras formas de concepção do campo museal. Mas a falta de comunicação, de trocas de conhecimento entre estas instituições e a comunidade em geral, ainda é um problema. Muitos museus comunitários chegam a se constituir como bandeira de luta por direitos humanos básicos, mas seu campo de atuação fica limitado a um grupo social especifico, muitas vezes desconhecido pela própria comunidade maior na qual está inserido2; ou mesmo passam a ser rechaçados por esta3. Num movimento paralelo, surgiram na década de 1990 no Brasil, os museus institucionais e entre eles, os empresariais, também representativos de minorias, contando histórias e guardando memórias de sucessos institucionais e empresariais, por vezes associadas a epopeias familiares, mas que igualmente preservavam memórias de contextos históricos e sociais. Há, no entanto uma distância entre criar um museu e vivenciá-lo. O direito à memória se manifesta na constituição do museu, na formação do acervo e sua comunicação ao público através das exposições, mas em raros casos o vemos atuante na participação da comunidade. Em outras palavras, os museus são vistos como depositários da memória, para que um dia, quando a lembrança do passado se fizer necessária, os objetos representantes deste passado possam ajudar a despertar a memória. Assim, o Museu do Índio tem sua visitação aumentada no mês de abril; a sala da alegoria do Grito da Independência no Museu Paulista fica lotada apenas próximo ao dia sete de setembro; o Memorial Juscelino Kubitschek comemora nascimento e morte do ex-presidente. Igualmente, a mídia só recorre a eles nestas efemérides, sempre elogiando suas coleções e, em geral, lastimando o seu estado de abandono e o pouco investimento de recursos na preservação da memória. São estas as escolhas e o retrato de como lidamos com as nossas memórias. 1 Tipologia museal mencionada pela primeira vez na década de 1970 por Georges-Henri Rivière e desenvolvida por Hugues de Varine. 2 Um exemplo é o Museu da Maré, um museu comunitário, bandeira de lutas da Comunidade da Favela da Maré, que apesar de desenvolver um trabalho social de imensa relevância, ainda tem uma visitação predominante de membros da própria comunidade ou de turistas, em pacotes que incluem as visitas às comunidades do Rio de Janeiro. 3 Como no caso do Museu Maguta, organizado por índios Ticuna no município de Benjamin Constant (Estado do Amazonas) com o objetivo de preservar a memória de suas tradições para as gerações seguintes e que teve enorme rejeição por parte da comunidade urbana, que não desejava associar a imagem da cidade à existência indígena na região. (Cf. FREIRE, 2009: 217-222)
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Enfim, a grande questão colocada é entender este hiato entre o direito à memória que os museus oferecem e a apropriação que os indivíduos e coletividades fazem deste poder que o museu, enquanto instituição, tem de proporcionar neste acesso à memória/história, em sua recolha, preservação e extroversão.
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Neste sentido, este trabalho buscará compreender, a partir de alguns teóricos, os problemas e oportunidades existentes nos museus com relação à preservação de memórias de indivíduos e coletividades. Museu, História e Direito à Memória Sima Weingarten (2005), referindo-se ao Museo del Holocausto na Argentina, coloca algumas questões bem próximas das funções que esperamos de um museu comprometido com a preservação da memória: Las prácticas museísticas, comprometidas en transmitir la Shoá son formas privilegiadas de poner en acto la memoria, facilitando su transmisión. [...] Recordemos que esta tarea de rescatar la memoria pone en acto el mayor compromiso moral por los derechos humanos, la libertad, el pluralismo cultural, la igualdad de las minorías y los valores democráticos.[...] Recordar es asegurar la información y obligar a inscribir los hechos acontecidos en el marco histórico de esa época y a la vez, de nuestro tiempo actual. [...] El deber de memoria se nos impone como un mandato ético irrenunciable, dado que no sólo es una obligación que nos liga a las víctimas del pueblo judío, sino que fortalece la conciencia política e ideológica destinada a evitar reiteraciones nefasta. (Weingarten, 2005: 9-10)
Nestes fragmentos, algumas questões importantes são levantadas. A primeira refere-se ao museu como uma instituição privilegiada para a guarda e disseminação da memória; a segunda dá ao museu o compromisso ético e moral de recuperar a memória dos fatos em nome de questões maiores, como os direitos humanos; a terceira questão colocada é a capacidade dos museus de transformar a memória em história (em que pese a autora recusar a distinção entre memória e história4), ou seja, prolongar uma memória que se perderia ao final de uma geração, eternizando sua lembrança para as futuras gerações; por fim, a quarta questão ressalta a capacidade dos museus de influenciar a consciência política e ideológica de uma coletividade, orientando o futuro da mesma. Tais questões, se por um lado demonstram o poder dos museus, também alertam para a enorme responsabilidade de todas as ações museais, cujas consequências refletem diretamente na transmissão das memórias através da história. Neste sentido, os museus são instituições políticas e de poder que constroem narrativas partidárias, muitas vezes camufladas por objetos falsamente legitimadores de memórias. Avançando na discussão, abordaremos as percepções de Maurice Halbwachs (1990) sobre a memória e a história, mais exatamente do que ele define como uma memória autobiográfica (aquela que nos lembramos de nossas vivências, desde a infância) e uma memória histórica (aquilo que aprendemos sobre um contexto mais amplo de nosso passado e assim associamos às nossas vivências). 4 Conforme o texto do próprio autor, não existe distinção entre história e o dever de memória: “Además, creemos que resulta falsa la oposición entre la historia –entendida como la práctica teórica de un saber riguroso– y el deber de memoria, al que se la confina al lugar de una práctica menor.” (Weigarten, 2005: 10)
Andréa Fernandes Considera
Um homem, para evocar seu próprio passado, tem freqüentemente necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros. [...] Diríamos mais exatamente ainda: memória autobiográfica e memória histórica. A primeira se apoiaria na segunda, pois toda história de nossa vida faz parte da história geral. [...]. Um acontecimento não toma lugar na série dos fatos históricos senão algum tempo depois que se produziu. É então mais tarde que podemos relacionar aos acontecimentos nacionais as diversas fases de nossa vida. [...] Não é na história aprendida, é na história vivida que se apóia nossa memória. (Halbwachs, 1990: 54-60)
Haveria então duas esferas distintas de memória: aquela que é individual, produzida a partir das lembranças desde a infância e a memória coletiva ou histórica, que é aquela relacionada aos acontecimentos sociais dentro dos quais, inevitavelmente ocorrem os fatos individuais, mas que nem sempre são a eles nitidamente associados, senão no futuro, na construção histórica dos acontecimentos passados. Neste ponto, cabe trazer à discussão uma das questões mais caras à museologia atual que é a noção de pertencimento. Uma boa exposição museal é aquela que permite ao visitante se identificar com o objeto observado, possibilitando que a partir dele aflorem conhecimentos e memórias. Só assim fará sentido a preservação de um objeto como suporte capaz de evocar lembranças individuais que se associam e se encontram em memórias coletivas. Mas observa Halbwachs: Ora, se fixamos nossa atenção sobre os grupos maiores, por exemplo a nação, ainda que nossa vida e a de nossos pais ou de nossos amigos estejam compreendidas nela, não podemos dizer que a nação como tal se interesse pelos destinos individuais de cada um de seus membros. [...] A nação está longe demais do indivíduo para que este considere a história de seu país de outro modo do que como um quadro muito amplo, com o qual sua história pessoal não tem senão muito poucos pontos de contato. [...] Mas, entre o indivíduo e a nação, há muitos outros grupos, mais restritos do que esse que, também eles, tem sua memória, e cujas transformações atuam muito mais diretamente sobre a vida e o pensamento de seus membros. (Halbwachs, 1990: 78-79)
Neste contexto vemos hoje, principalmente no Brasil, as iniciativas museológicas muito mais voltadas para a criação de museu comunitários (incentivados inclusive pelo próprio IBRAM/Ministério da Cultura através dos Pontos de Memória) do que para a implantação de novos museus nacionais, destinados a sintetizar contextos históricos mais abrangentes. Os museus comunitários por sua vez, estão mais ligados às memórias de pequenos grupos e, portanto, voltados para temáticas muito mais específicas, relacionados a memórias, ainda que não individuais, mas de pequenas coletividades. Estes museus, geralmente organizados a partir de relatos orais, surgem de experiências vivas, de memórias ativas e parecem pouco se importar com a existência de uma história nacional, ou se apropriam de seus fatos na medida e na leitura que lhes interessa para a construção de uma história/memória coerente e útil para a vivência de sua comunidade. Por outro lado, os Museus Nacionais continuam existindo e atualizando sua linguagem. Um exemplo interessante é o recurso museográfico utilizado
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atualmente no Museu Histórico Nacional. Começando pela história do Brasil a partir das lendas indígenas, atravessamos uma seqüência de salas cronologicamente organizadas que nos guiam com textos, imagens e objetos através dos séculos de história, até chegarmos próximo dos dias atuais.
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Como nenhum de nós viu os navios de Cabral aportar aqui, nem assistiu à assinatura da Lei Áurea, tais fatos precisam ser narrados em textos, imagens e objetos, pois não fazem parte da memória individual dos visitantes. Mas há uma última sala do museu, onde não há nenhuma palavra, nenhuma imagem explicativa; apenas inúmeros objetos do cotidiano brasileiro dos últimos 80 anos, incluindo utensílios domésticos, brinquedos (do carrinho de rolimã à boneca Barbie), objetos de higiene pessoal (do pó-de-arroz ao creme dental Kolynos). Os visitantes, que atravessam todo aquele labirinto de salas em total silêncio - em parte porque estão reverenciando um local quase sagrado onde estão eternizados personagens de nossa história, em parte porque não têm informações para acrescentar ou discordar, porque não vivenciaram aqueles fatos – na última sala, passam a narrar aliviados uma infinidade de histórias associadas aos objetos que trazem a memória de seu próprio passado ou de seus antepassados próximos (- na casa do meu avô tinha este objeto!). Independente da idade, o visitante se sente confortado em reconhecer ali a sua história e compreender que esta sua história é o momento presente de todo um passado não vivido, mas aprendido nas salas anteriores do museu. Segundo Halbwachs, Se conclui que a memória coletiva não se confunde com a história. [...] A história, sem dúvida, é a compilação dos fatos que ocuparam o maior espaço na memória dos homens. Mas lidos em livros, ensinados e aprendidos nas escolas, os acontecimentos passados são escolhidos, aproximados e classificados conforme as necessidades ou regras que não se impunham aos círculos de homens que deles guardaram por muito tempo a lembrança viva. Enquanto uma lembrança subsiste, é inútil fixála por escrito, nem mesmo fixá-la, pura e simplesmente. [...] Quando a memória de uma sequência de acontecimentos não tem mais por suporte um grupo (...) então o único meio de salvar tais lembranças, é fixá-las por escrito em uma narrativa seguida uma vez que as palavras e os pensamentos morrem, mas os escritos permanecem. [...] Certamente, um dos objetivos da história pode ser, exatamente, lançar uma ponte entre o passado e o presente, e restabelecer essa continuidade interrompida. (Halbwachs, 1990: 80-81)
Passemos então a falar do objeto em si, exposto no museu. Para isso é importante recuperar a análise que Paul Ricoeur faz do conceito platônico da eikon, ou seja, a representação presente de uma coisa ausente. No museu, o objeto presente não se reduz a sua matéria; ao contrário, ele está ali representando um fato, um conceito histórico, ou mesmo uma emoção. Um objeto de tortura em ferro do período da escravidão se expõe para representar um fato ausente, seja ele o castigo corporal comumente submetido aos escravos, seja o processo arcaico de fundição do ferro no período colonial, ou mesmo a dor produzida por aquele objeto. Mas para que o objeto evoque o fato ausente, é preciso, segundo Ricoeur, a mediação da imaginação ou da memória.
Andréa Fernandes Considera
O problema suscitado pela confusão entre memória e imaginação é tão antigo quanto a filosofia ocidental. Sobre esse tema, a filosofia socrática nos legou dois topois rivais e complementares, um platônico, o outro aristotélico. O primeiro, centrado no tema de eikon, fala de representação presente de uma coisa ausente; ele advoga implicitamente o envolvimento da problemática da memória pela da imaginação. O segundo, centrado no tema da representação de uma coisa anteriormente percebida, adquirida ou aprendida, preconiza a inclusão da problemática da imagem na da lembrança. É com essas versões da aporia da imaginação e da memória que nos confrontamos sem cessar. [...] o recurso à categoria de similitude para resolver o enigma da presença do ausente, enigma comum à imaginação e à memória. (Ricoeur, 2007:27-28)
Retornando ao objeto mencionado, é possível imaginar a dificuldade de sua fabricação, a dor provocada pelo seu uso, mas tudo isso se limita ao campo da imaginação (dotada, sem dúvida, de uma enorme capacidade criativa). Mas para aquelas pessoas que experimentaram no passado o seu uso, há a memória “gravada no bloco de cera” de modo que aquele objeto não representa possibilidades de compreensão de um passado, mas sim o próprio passado, o acontecido. Poderíamos dizer que no campo da imaginação, o objeto no museu representa o coletivo, segue um modelo, um padrão de acontecimentos semelhantes, toma de todos os fatos individuais aquilo que é repetitivo e o ressalta; no campo da memória, o objeto do museu é único para cada indivíduo que dele se apropria de acordo com suas lembranças, carregadas de emoções inacessíveis ao visitante que não experimentou em sua vivência o contato com aquele objeto que está no museu. Entendemos então que o objeto no museu serve como apoio à imaginação e à memória, mas quando tratamos de objetos muito anteriores às nossas experiências pessoais, a forma como o objeto é exposto poderia induzir a imaginação ao erro, criando uma memória distorcida? Sobre esta questão, Ricoeur faz uma colocação inquietante: Há mimética verídica ou mentirosa porque há, entre a eikon e a impressão, uma dialética de acomodação, de harmonização, de ajustamento que pode ser bem sucedida ou fracassar. (Ricoeur, 2007: 32)
Ou seja, imaginação e memória em certa medida se ajustam para a construção de uma nova “possibilidade de verdade” no tempo presente, permitindo que o objeto do museu adquirira significados sociais e desperte memórias individuais ou coletivas distintas das que justificou a preservação destes mesmos objetos. Enquanto passada, a coisa lembrada seria uma pura Phantasie, mas, enquanto dada de novo, ela impõe a lembrança como uma modificação sui generis aplicada à percepção. (Ricoeur, 2007: 65)
Seria então o museu, capaz de sugerir ao presente representações distorcidas de um passado, sem que tal metamorfose fossem percebidas pela lembrança? Segundo Walter Benjamin (1994), Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência tal como ela relampeja
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Direito à Memória e Museus
no momento de um perigo. [...] O perigo ameaça tanta a existência da tradição como os que a recebem. (Benjamim, 1994: 224)
E mais adiante, Benjamin acrescenta:
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Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. (Benjamim, 1994: 225)
O que Ricoeur indica de forma sutil, Benjamin retrata com sua percepção mais fria da crueldade da humanidade. Independente do museu que se evoque, ele será um “monumento de barbárie”, que na tentativa de unir dos mundos - o passado e o presente - recorre a mecanismos (pesquisas, discursos e museografias) que inevitavelmente distorcem a memória e proporcionam ao visitante uma falsa noção de memória do passado, ou em outras palavras, de um passado duvidoso (e este processo pode se dar de modo inconsciente ou proposital). Se estes autores se preocupam com a transmissão legítima da memória e seus processos de manipulação, Jacques Le Goff (2003) nos proporciona uma compreensão mais amena, entendendo que neste processo de transmissão da memória, é inevitável a reconstrução das “verdades”. Citando Pierre Janet, Le Goff observa que a própria história é feita pela linguagem, seja ela oral ou escrita, e, portanto, a memória ao ser transmitida pela linguagem, já incorpora as mudanças e adaptações inerentes a cada tempo histórico. Assim, Pierre Janet ‘considera que o ato mnemônico fundamental é o comportamento narrativo, que se caracteriza antes de mais nada pela sua função social, pois se trata de comunicação a outrem de uma informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo’ (...). Aqui intervém a ‘linguagem, ela própria produto da sociedade’. (Le Goff, 2003: 421)
O autor observa ainda a transmissão da memória em povos sem escrita, muitos dos quais apresentam diversas versões bem distintas para um mesmo fato e conclui: Assim, enquanto a reprodução mnemônica palavra por palavra estaria ligada à escrita, as sociedades sem escrita (...) atribuem à memória mais liberdade e mais possibilidades criativas. (Le Goff, 2003: 426)
Em seguida, o mesmo autor analisa a constituição de diversos museus a partir de 1750 e observa que em diferentes países, alguns elementos da cultura local foram escolhidos como representativos da memória. Segundo ele, em países como a Rússia, a Itália e a Espanha, foram priorizadas as grandes coleções artísticas que se estabeleceram em edifícios grandiosos; já na França, foram as vitórias francesas, o período medieval e a pré-história que melhor representaram a nação; nos países escandinavos foram os museus folclóricos que acolheram a memória popular. Neste sentido, Le Goff traz ao debate outro tema caro à museologia: os museus enquanto instituições pertencentes ao presente e que tem por função conservar e transmitir uma memória que faça sentido e tenha importância para o momento presente, e não para o passado. Desta forma, será sempre o resultado de uma memória escolhida, selecionada entre tantas outras. Um museu não
Andréa Fernandes Considera
guarda os objetos que se perderam com o tempo, mas aqueles que por algum motivo, sobreviveram ao tempo e fazem parte agora, do presente. Tal mecanismo pode se dar de forma natural ou induzida intencionalmente, para o bem ou para o mal. A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. Mas a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja memória social é, sobretudo, oral, (...) aquelas que melhor permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória. (Le Goff, 2003: 469-470)
Deste ponto avançamos então para a questão do museu como lugar de memória e de história. Pierre Nora (1993) estabelece uma distinção entre memória e história que deixa claro o limite de ambas: Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe uma à outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos (...). A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. (Nora, 1993: 9)
Desta forma, seriam os museus portadores de histórias e não de memórias no sentido que conhecemos? Onde estaria então o direito à memória que os museus logram oferecer? Se ninguém sabe do que o passado é feito, uma inquieta incerteza transforma tudo em vestígio, indício possível, suspeita de história com a qual contaminamos a inocência das coisas. Nossa percepção do passado é a apropriação veemente daquilo que sabemos não mais nos pertencer. (Nora, 1993: 20)
Mas uma colocação de Pierre Nora procura responder diversos pontos com os quais a museologia vem se debatendo nas últimas décadas. O que os constitui é um jogo da memória e da história. (...) Inicialmente, é preciso ter vontade de memória. (...) Na falta dessa intenção de memória os lugares de memória serão lugares de história. (...) Porque, se é verdade que a razão fundamental de ser de um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial para (...) prender o máximo de sentido num mínimo de sinais, é claro, e é isso que os torna apaixonantes: que os lugares de memória só vivem de sua aptidão para a metamorfose, no incessante ressaltar de seus significados. (Nora, 1993: 22)
Os museus representativos de pequenas comunidades ou grupos sociais, surgem a partir da “vontade de memória”, e por isso apresentam algumas características peculiares: o espaço do museu passa a ser re-significado e torna-se um espaço múltiplo de participação popular, envolvendo atividades sociais e recreativas, tão caras àquele grupo, quanto a sua própria memória. São instituições dinâmicas, com seus conflitos de poder e de “incessante metamorfose”, garan-
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tindo o direito à memória. Uma memória atualizável, passada entre gerações na medida dos seus interesses. Nos museus comunitários principalmente, o direito à memória é também o direito à liberdade de expressão; de construção de memórias que lhes são convenientes a cada momento.
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Para Pierre Nora, os museus também são lugares de memória, cuja função é parar o tempo e impedir o esquecimento. Mas o tempo e a memória não estão no objeto preservado pelo museu e repleto de significados trazidos pela memória do passado; ao contrário, tempo e memória fazem parte do homem do presente e da leitura que ele faz hoje, dos objetos e narrativas que outrora seus antepassados decidiram perpetuar enquanto memória. Refletir sobre o papel dos museus nos dias de hoje, principalmente quando entramos na seara dos direitos humanos, mas especificamente no direito à memória, não é tarefa das mais simples. Como pode ser visto nos textos dos autores citados (e poderíamos ter escolhido uma infinidade de outros autores que tratam do tema), o direito à memória é também direito ao esquecimento e à lembrança daquilo que se quer transmitir às futuras gerações. Portanto, não há neutralidade em nenhuma iniciativa de preservação de memórias, seja ela no campo dos próprios processos museais, seja no campo da pesquisa histórica. O que temos são “versões sobre um mesmo tema”, tão duvidosos e aparentemente verdadeiros quanto seus pares. Mas a instituição Museu vem desde a antiguidade mais remota demonstrando ser um elemento social do tempo presente e por isso em constante metamorfose. Chegamos a não encontrar paralelos entre o templo das musas, o Louvre e o Museu da Maré (apesar de todos serem considerados museus), mas reconhecemos em cada um deles iniciativas sinceras de homens que, em seu tempo, se preocuparam com a memória; mas do que isso, com o direito à memória e se expressaram através desta instituição tão conceitualmente volátil e abrangente que é o Museu. Enfim, após as reflexões acima apresentadas, podemos concluir que os museus são espaços complexos de poder, privilegiados para ações de preservação de memórias escolhidas dentro de dinâmicas sociais as mais diversas. Neste sentido, se por um lado o museu pode ser usado como instrumento garantidor do direito à memória, por outro lado, faceta da mesma ação, proporciona também o esquecimento, violando o mesmo preceito do direito à memória. Bibliografia BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura história da cultura. 7ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1994. FREIRE, José Ribamar Bessa. A descoberta do museu pelos índios. In: ABREU, Regina (org.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009, p. 217-253. HALBWACHS, Maurice. Memória Coletiva e Memória Histórica. In: HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo:Vértice, 1990, p. 55-89. LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5ª edição. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
Andréa Fernandes Considera
NORA, Pierre, Entre Memória e História: a problemática dos lugares. In: Revista Projeto História. Nº 10. São Paulo: PUC-SP, 1993, p.7-28. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. WEINGARTEN, Sima. El Deber de Memoria. In: Revista Nuestra Memoria, ano XI, nº 26. Buenos Aires: Fundación Memoria del Holocausto, 2005.
Artigo recebido em maio de 2015. Aprovado em julho de 2015
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“MUSEU DO MANGUE PEGA FOGO”: EXPLOSÃO DISCURSIVA E PRODUÇÃO DE SENTIDOS SOBRE O MUSEU DO MANGUE DE ARACAJU/SE Clovis Carvalho Britto1* Universidade Federal de Sergipe Roberto Fernandes dos Santos Júnior2** Universidade Federal de Sergipe RESUMO: As obras do Museu do Mangue foram iniciadas em 2010, através de um convênio firmado entre a Prefeitura Municipal de Aracaju-SE e o Ministério das Cidades. As justificativas de sua criação se pautaram na preservação e promoção do ecossistema e na revitalização do Bairro Coroa do Meio. Em 2011 um incêndio atingiu as instalações que abrigariam o museu, fator que impossibilitou sua inauguração e contribuiu para que a estrutura e entorno fossem destinados ao abandono, à comercialização e uso de psicoativos. Nas tensões entre a virtual musealização e o sentimento de não-pertencimento da população, nosso intuito é visualizar de que modo a presença/ausência do Museu do Mangue constitui uma “explosão discursiva” no campo do patrimônio sergipano.
PALAVRAS CHAVE: Museu do Mangue; Evento crítico; Discursos.
“Museu do Mangue pega fogo”: Mangue Museum discursive explosion and production of meanings about the Mangue Museum of Aracaju / SE ABSTRACT: The works of the Mangue Museum began in 2010 through an agreement between the Municipality of Aracaju-SE and the Ministry of Cities. The reasons for its creation were based on the preservation and promotion of the ecosystem and revitalizing neighborhood Coroa do Meio. In 2011 a fire struck the facilities that would house the museum, a factor that prevented its opening and contributed to the structure and surroundings were intended for the abandonment, marketing and use of psychoactive. The tensions between the virtual musealization and the feeling of not belonging of the population, our intention is to see how the presence / absence of the Mangue Museum promoted a discursive explosion in the Sergipe heritage field. KEYWORDS: Mangue Museum; Critical event; Speeches.
1* Pós-Doutor em Estudos Culturais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Mestrando em Museologia pela Universidade Federal da Bahia. Professor do Departamento de Museologia da Universidade Federal de Sergipe. 2** Graduando em Museologia pela Universidade Federal de Sergipe. Bolsista PIBIC/UFS.
Clovis Carvalho Britto, Roberto Fernandes dos Santos Júnior
Em 24 de junho de 2011 o portal “Sergipe Hoje” disponibilizou na internet1 a notícia de que por volta das 21 horas do dia anterior um incêndio atingiu parte das instalações que abrigariam o Museu do Mangue, localizado na Avenida Desembargador Antônio Góis no bairro Coroa do Meio, em Aracaju/SE. A matéria intitulada “Museu do Mangue pega fogo” consiste, a nosso ver, em um importante indício de que o evento crítico desvelou conflitos no campo patrimonial e, ao mesmo tempo, uma “explosão discursiva” em torno de um museu em devir. As obras do Museu do Mangue foram iniciadas em 2010, através de um convênio firmado entre a Prefeitura Municipal de Aracaju-SE e o Ministério das Cidades. As justificativas para a sua criação se pautaram na preservação e promoção do ecossistema e na revitalização do Bairro Coroa do Meio. Em 2011, um incêndio atingiu as instalações que abrigariam o museu impossibilitando a sua inauguração e contribuindo para que a estrutura e entorno fossem destinados ao abandono, à comercialização e uso de psicoativos. O fato é que até a presente data o museu ainda não foi implantado devido às tensões oriundas pelo modo como o projeto e sua execução foram concebidos sem a efetiva participação da população local, conforme atestaram os moradores da região em conversas informais. Museu, memórias e evento crítico As tensões em torno do Museu do Mangue de Aracaju/SE contribuem para que reconheçamos a existência de um (não) museu que de tanto ser narrado, divulgado, referenciado, se tornou presente no cotidiano da população, mesmo que na prática ele ainda não tenha sido implantado. De acordo com Izabela Tamaso (2005), o conflito é inerente às políticas de preservação dos patrimônios culturais. Ancorada nas formulações de Lowenthal que defendem ser o conflito “endêmico ao patrimônio”, afirma que os valores atribuídos aos bens culturais quando entram em disputa sofrem uma hierarquização: “Um valor será selecionado como mais importante e mais legítimo; os outros permanecerão como seus opostos complementares: valor artístico/valor da fé. O grupo que estiver de posse da gestão daquele bem cultural estabelecerá seus valores como mais legítimos”, concluindo que “na arena de disputa, os outros não poderão ser considerados” (p. 15). Argumento que também perpassa a orientação de Gilberto Velho (2006) quando conclui que as diferenças e divergências no campo do patrimônio devem-se às características da sociedade contemporânea constituída por múltiplos segmentos, categorias e estratos que elaboram uma heterogeneidade de tradições culturais. Trata-se, assim, de visualizar as políticas e os conflitos patrimoniais com mapas emocionais e cognitivos, com questões relacionadas a emoções, valores e interesses heterogêneos e contraditórios que fundamentam, muitas vezes, a organização dos lugares de memória e a construção das identidades (HALBWACHS, 1990). 1 Museu do Mangue pega fogo. Disponível em: http://www.sergipehoje.com.br/sergipe/aracaju/2011/06/ museu-do-mangue-pega-fogo. Acesso em: 10 nov. 2013. A internet é o principal ambiente do ciberespaço, mas não o único. Aqui utilizaremos a categoria ciberespaço nos moldes apresentados por Monique Magaldi (2010) como “um espaço imaginário criado por uma rede universal de computadores, com todo o tipo de informação, onde os dados poderiam ser obtidos através dos diversos sentidos do corpo humano” (p. 105).
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“Museu do Mangue pega fogo”: Explosão discursiva e produção de sentidos sobre o Museu do Mangue de Aracaju/SE
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Se os conflitos são inerentes às práticas patrimoniais, a patrimonialização de eventos críticos se torna um exemplo extremo dessa argumentação devido à própria dor/trauma sustentar o discurso de sua fabricação/monumentalização. Surge, assim, um campo de forças em tornos de múltiplas narrativas e interesses, a partir de processos de atribuição de sentido e um sistema classificatório que é instrumento de poder. Nesse sentido, é fundamental reconhecermos os museus como um dos elementos constitutivos dessas práticas, como espaços de poder que muitas vezes legitimam discursos oficiais e controlam versões concorrentes. As memórias selecionadas no processo de musealização não são neutras. Logo, no caso do Museu do Mangue, poderíamos indagar que lembranças e esquecimentos seriam difundidos sobre o ecossistema, a paisagem e as pessoas que nele vivem; o modo como a população nativa do mangue e do bairro onde será implantado o museu protagonizaria o espaço; as experiências e as relações de pertencimento que definiriam os processos de musealização. Em outras palavras, poderíamos pensar de que modo o projeto inconcluso contribui para visualizarmos os embates em torno da não-patrimonialização, contribuindo para seu apagamento ou para que se torne um lócus de resistência a outras práticas discursivas. Na verdade, em primeira instância são essas retóricas da perda que integram os conflitos (GONÇALVES, 1996). O ecossistema que está sendo devastado; os saberes e fazeres daquela população que vive do/no mangue que estão em risco de desaparecimento. De acordo com Fernanda Cordeiro de Almeida (2010), o manguezal possui diversas funções para o homem, desde o lançamento de matéria orgânica que alimenta a vida no mar, a pesca e a vida das comunidades ribeirinhas e/ou litorâneas, além da diversidade de micro-organismos da fauna e da flora que o habitam. Para a pesquisadora, os manguezais sergipanos têm sofrido diversos impactos ambientais em decorrência da contaminação por petróleo, mercúrios, esgotos domésticos e industriais, pesca e cata predatórias, e aterros por lixo, por terra ou por lama para o assentamento de famílias, novos acessos a cidade e, principalmente, para a especulação imobiliária: O manguezal, popularmente conhecido como ‘mangue’, geralmente é associado ao mau-cheiro e ao lixo. Entretanto, é um ecossistema repleto de diversidade biológica e de funções para as espécies que o habitam. (...) Além das funções ecológicas para as espécies, o manguezal oferece aos seres humanos que vivem em suas cercanias a possibilidade de subsistência alimentar através da cata de crustáceos, da pesca de peixes e moluscos e de moradia através do fornecimento de madeira para a construção de casas. Apesar de tantas funções ofertadas, os manguezais vêm sendo constantemente perturbados e suprimidos. (...) A plantas exclusivas dos manguezais possuem uma forma especial de obter água doce a partir da água salgada que banha suas raízes. Os manguezais são ecossistemas abertos, captando nutrientes através dos rios e alimentando as águas costeiras com muita matéria vegetal em degradação. Estes materiais degradados são metabolizados pela fauna e flora microbianas, que servem de base para a cadeira alimentar responsável pela atividade pesqueira. Por esse motivo, quando o manguezal sofre qualquer tipo de agressão, isso irá se refletir na atividade da pesca e, em conseqüência, na subsistência de muitos (ALMEIDA, 2010, p. 35 e 37).
Clovis Carvalho Britto, Roberto Fernandes dos Santos Júnior
Nesse aspecto podemos afirmar que o mangue propicia o surgimento de um habitus específico para aqueles que vivem do/no seu espaço (Cf. BOURDIEU, 1983). O próprio meio orientaria formas de conduta e percepção culturais que, por sua vez, acionariam modos de fazer, formas de expressão, celebrações e lugares de memória específicos para aqueles grupos que dele sobrevivem ou que convivem com sua presença. O ecossistema, nesse aspecto, se torna cenário onde ocorrem diferentes práticas de produção simbólica responsáveis pela composição das identidades culturais ali negociadas. No caso de Aracaju/SE tal percepção se torna emblemática, visto que parte considerável da cidade foi edificada sobre o mangue aterrado ou convive com a sobrevivência/devastação desse ecossistema. Essas trajetórias impulsionam a tentativa de implantar o Museu do Mangue às margens da Maré do Apicum, na Coroa do Meio, bairro construído sobre o aterro de manguezais e um dos momentos emblemáticos da urbanização aracajuana a partir da incorporação de alagadiços, apicuns e terrenos de marinha. Fernanda Almeida (2010), reconstruindo o processo de formação do bairro, demonstra que desde fins da década de 1970 tais aterramentos expropriaram parte da população ribeirinha e de pescadores, sendo a implantação permeada de conflitos: Os primeiros momentos da construção do bairro Coroa do Meio foram permeados de problemas de ordem social, como a derrubada de casas, espancamento de uma criança e a ameaça de despejo de centenas de pessoas. Para Machado ‘começava ali uma série de medidas que viriam atingir as populações carentes (de habitação, trabalho, serviços públicos etc.) e discriminadas, e que se prolongariam tempo afora, com vestígios ainda nos dias atuais’ (ALMEIDA, 2010, p. 86).
Projetar um museu cujo intuito seria preservar e promover o mangue em um local em que esse ecossistema foi degradado instituiria um possível marco de resistência. Todavia, o projeto equacionou dois resultados não previstos antes mesmo de sua conclusão: a falta de planejamento contribuiu para uma agressão a esse ecossistema e a ausência de uma ação de conscientização acionou/potencializou uma tensão de (não) pertencimento. As discussões sobre as causas do incêndio (acidentais ou intencionais) e a destruição posterior do espaço, tornando metáfora e metonímia do perigo, do abandono e da criminalidade constituem exemplos dessa retórica. Partindo desse entendimento, reconhecemos as tensões em torno da implantação do Museu do Mangue como um “evento crítico”. A categoria “evento crítico” se relaciona a linguagem do sofrimento e a experiência traumática, aos dramas individuais ou coletivos que promovem rupturas na vida cotidiana (DAS, 1995): No processo da vivência desses eventos e das rupturas por eles causadas, a produção da memória é um dos elementos significativos para a apreensão do significado por eles engendrado. No jogo da lembrança e do esquecimento pertinente à produção da memória, diversas narrativas produzidas sobre os eventos críticos articulam, de um lado, o discurso oficial e, de outro, as múltiplas narrativas trazidas pelos sobreviventes. Em muitos casos, as lembranças apontam para a contínua repetição do drama vivido, sinalizando que o rito de passagem, performativo da superação do trauma e do terror, não foi ainda vivenciado, persistindo a condição de vitimização. Em outros,
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“Museu do Mangue pega fogo”: Explosão discursiva e produção de sentidos sobre o Museu do Mangue de Aracaju/SE
os processos narrativos formulam novas identidades fortalecidas pelo empoderamento advindo da perspectiva assumida de agência em face do drama (SILVA; SOUZA; ECKERT, 2011, p. 269).
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Se em um primeiro momento era necessário conscientizar a população sobre a importância do mangue e o combate a sua degradação, posteriormente as ações ampliaram o foco para demonstrar a importância (e preservação) de um museu para aquela localidade. Nessa ordem de idéias, a própria destruição do museu, as tentativas de implantação, os diferentes projetos e ações, se tornaram parte significativa de sua história em processo, visto que integram suas discursividades e os conflitos em torno de quais memórias deverão sobreviver. Não é por acaso que Jeudy (2010) conclui que a conservação inflige nas memórias coletivas e gera conflitos, visto que existe uma tensão entre valorizar certos lugares e esconder as feridas. Questões apresentadas por Telma Camargo da Silva (2010) quando analisou os diversos projetos de implantação do Museu do Césio em Goiânia/GO e as múltiplas tensões que contribuíram para que até hoje ele não tenha sido implementado. Dentre as diversas problematizações sobre a patrimonialização de eventos críticos, a autora discute que a construção de um museu/memorial também denota reflexões sobre o preenchimento de um terreno vazio, a ocupação do espaço (lacuna física e/ou simbólica). Nesse caso específico, um vazio que marca a história da radioatividade, uma ausência que se torna presença e que era necessário apagar. Seria, dessa forma, uma estratégia de manipular a imagem do lugar, torná-lo um equipamento turístico portador de uma evocação positiva, visto que o local seria uma metáfora espacial dessa contaminação. Problematizações que, em outra medida, acompanharam as recentes matérias sobre o vão livre do Museu de Arte Moderna de São Paulo, o “vazio do MASP”, e as dificuldades enfrentadas pela instituição e pelo poder público para evitar que seus arredores fossem ocupados por traficantes, usuários de entorpecentes e moradores de rua, ou seja, sobre as tensões entre patrimônios, museus e usos dos espaços públicos. Questões que podem ser aplicadas, com os devidos cuidados, ao espaço do Museu do Mangue cujo local também se tornou uma metáfora de devastação do ecossistema e, após ações de vandalismo e criminalidade para com as instalações, uma metáfora da devastação patrimonial. O projeto de implantação do Museu do Mangue se torna uma possibilidade de ocupar esse incômodo “vazio” que se torna duplamente sinônimo da degradação nos limites cultura-natureza. O Museu do Mangue na “batalha das memórias” Em meio às tensões entre a virtual musealização e um possível sentimento de não-pertencimento da população, nosso intuito é visualizar de que modo a conflituosa presença/ausência do Museu do Mangue constitui uma “explosão discursiva” no campo do patrimônio sergipano. Aqui é importante destacar como esse conceito tecido por Michel Foucault (1988) foi adaptado ao nosso estudo de caso. Originalmente utilizado em História da sexualidade: o cuidado de si visando examinar um conjunto de práticas/discursos na longa duração, o filósofo afirmou que nos últimos três séculos, ao invés de uma repressão, houve uma “verdadeira explosão discursiva” em torno do sexo. Estímulo que também
Clovis Carvalho Britto, Roberto Fernandes dos Santos Júnior
é atravessado por restrições ao impactarem enunciados (de que forma seria possível dizer) e enunciações (quem diz e possibilidades de dizer). A “explosão discursiva” se torna um mecanismo de seleção das palavras, dos lugares e dos modos de dizer: “controle dos enunciados e das enunciações, [e uma] (...) proliferação de discursos no campo do exercício do poder; uma produção voltada para a condução das condutas e a produção coletiva da subjetividade, visando a mudanças socioculturais” (FERNANDES, 2011, p. 13). Para os fins deste artigo, o conceito foucaultiano é empregado no campo dos museus e do patrimônio cultural visando analisar algumas práticas/discursos que ocorreram/ocorrem na curta duração. Nesse sentido, pautado nas formulações de Michel Foucault (1988; 1996), este trabalho utilizará como recorte diferentes registros veiculados no ciberespaço sobre a trajetória de implantação do Museu do Mangue de Aracaju/SE com o intuito de inventariar algumas produções de sentido que promovem a “batalha das memórias” em torno de sua (in) existência. Apropriando dessas considerações a priori, fazemos coro com as lições de Luciana Heymann (2009) que reconhecem a importância de um esforço para “desnaturalizar” as fontes documentais e seus enquadramentos, metodológicos e institucionais, recuperando as narrativas produzidas em torno e por meio desses artefatos. Esboçando uma perspectiva inspirada nos trabalhos de Michel Foucault e Jacques Derrida, compreende o “arquivo” como metáfora do cruzamento entre memória, saber e poder, construto político que ao mesmo tempo produz e controla a informação, orienta lembranças e esquecimentos, e configura, assim, o poder sobre os arquivos e o poder dos arquivos: de dominação, subversão e construção de identidades. Nesse aspecto, podemos reconhecer as matérias disponibilizadas no ciberespaço e relacionadas ao Museu do Mangue como um “arquivo”, na medida em que produzem enunciados, tornado-se um sistema discursivo. Foucault (2008), em A Arqueologia do Saber, considera o “arquivo” não a totalidade de textos, mas o conjunto de regras que determinam em uma cultura o aparecimento dos enunciados, sua permanência e seu apagamento; sistema discursivo que encerra possibilidades enunciativas agrupadas de modo distinto. Em suas reflexões, o arquivo é tratado de uma forma imaterial que extrapola o conjunto de documentos, transformando-o em monumentos e acontecimentos. Nesse sentido, é instigante sua compreensão de “dossiê” explicitada na análise da documentação do caso Rivière: “se tratava de um ‘dossiê’, isto é, um caso, um acontecimento em torno do qual e a propósito do qual vieram se cruzar discursos de origem, forma, organização e função diferentes”, que apesar de parecerem falar a mesma coisa, em sua heterogeneidade “não formam nem uma obra, nem um texto, mas uma luta singular, um confronto, uma relação de poder, uma batalha de discursos e através de discursos” (FOUCAULT, 1984, p. 12). Perspectiva que dialoga com as lições de Derrida (2001), em Mal de arquivo: uma impressão freudiana, quando critica as idéias de “originalidade”, “verdade” e “autenticidade” dos documentos que integram os arquivos. Dessa forma, todo arquivo seria instituidor e conservador, oferecendo o que ele designa de uma economia arquival que abrigaria os poderes de guardar, por em reserva e fazer leis já que a conservação não ocorre sem a exclusão. O ato de arquivamento,
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“Museu do Mangue pega fogo”: Explosão discursiva e produção de sentidos sobre o Museu do Mangue de Aracaju/SE
assim, é também um ato de amnésia e, por isso, possui uma implicação política, um poder de legitimação. Implicação imbricada desde a origem do termo:
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Arkhê, lembremos, designa ao mesmo tempo o começo e o comando. Este nome coordena aparentemente dois princípios em um: o princípio da natureza ou da história, ali onde as coisas começam – princípio físico, histórico ou ontológico, mas também o princípio da lei ali onde os homens e os deuses comandam, ali onde se exerce a autoridade, a ordem social, nesse lugar a partir do qual a ordem é dada – princípio nomológico. (...) O sentido de ‘arquivo’, seu único sentido, vêm para ele do arkheion grego: inicialmente uma casa, um domicílio, um endereço, a residência dos magistrados superiores, os arcontes, aqueles que comandavam. Aos cidadãos que detinham e assim denotavam o poder político reconhecia-se o direito de fazer ou de representar a lei. Levada em conta sua autoridade publicamente reconhecida, era em seu lar, nesse lugar que era a casa deles que se depositavam então os documentos oficiais. Os arcontes foram os seus primeiros guardiões. Não eram responsáveis apenas pela segurança física do depósito e do suporte. Cabiam-lhes também o direito e a competência hermenêuticos. Tinham o poder de interpretar os arquivos (DERRIDA, 2001, p. 12-13).
O arquivo, assim como as matérias disponibilizadas no ciberespaço (muitas delas apresentadas conjuntamente em revistas e jornais), é atravessado pelo jogo de poder: guarda, seleção, disposição, disponibilização, publicação, interpretação. Constitui um espaço ao mesmo tempo físico e social. Campo com fissuras e intervenções de natureza e temporalidades diversas. O gesto de “dar sentido” a lógica aparentemente subjetiva (ou confusa) do colecionador, definindo usos, arranjos, classificações e indexações, extrapola as diferentes práticas de atribuição de valor. Sinaliza uma forma específica de subsumir distintas temporalidades, muitas das vezes condensadas em um mesmo indicador cronológico e biográfico (CUNHA, 2005). Especialistas, instituições responsáveis ou que disputam a autoridade sobre as narrativas, pesquisadores, jornalistas, nativos, são alguns dos agentes que assumem o papel de arcontes contemporâneos. Investigando os diversos motivos que levam determinados conjuntos de documentos a conformarem coleções, seus trânsitos, traslados e seccionamentos, Olívia Cunha (2005) acena para a configuração de uma dimensão política. Como registros consagrados da “história” os acervos (arquivos ou coleções) seriam, de acordo com suas análises, elementos de políticas de representação contemporâneas viabilizando novas operações e enunciados no imaginário cultural. Nessa direção, como um primeiro e significativo passo, coloca-se a necessidade de reconhecer que os textos disponibilizados sobre o Museu do Mangue são uma espécie de coleção (incompleta e seletiva). Por esse motivo, possuem a intencionalidade de quem escreveu e da instituição que o veicula, ambos por sua vez susceptíveis às pressões do espaço político e cultural em que estão mergulhados. Dessa forma, devemos reconhecer as diferentes estratégias discursivas, interpretações e recursos, ou seja, os processos sociais de construção dos discursos, nesse caso, sobre os “legados” memoriais. De acordo com Reinaldo Marques (2008) o momento de arquivo seria marcado pela operação de arqui-
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vamento, por meio do qual o testemunho ingressa na escrita. No caso específico, os discursos arquivados nos textos e disponibilizados nos sites fabricam determinadas versões sobre e, por que não dizer, inventam o Museu do Mangue em Sergipe. Operação seletiva que rasura, manipula, destaca determinadas passagens mais convenientes para a produção da crença e consolidação da memória que se quer difundir e legitimar. Aqui devemos reconhecer a “vontade de verdade” empreendida pelos discursos, conforme nos ensinou Michel Foucault (1996), visualizando o jornalismo ou o discurso jornalístico midiatizado, como uma prática discursiva destinada a um leitor/navegador. Não é por acaso que Fernando Resende (2007) concebe o discurso jornalístico contemporâneo como portador de processos de velamento e de produção de diferenças e a internet, por sua vez, como uma instância reguladora: Hoje a mídia, com o seu amparo institucional e por meio dos seus objetos que produzem falas, constitui-se como uma instância fundamental, porque certamente reguladora e mantenedora de um status quo que visa à ordenação dos fatos que tecem nossas relações sociais. Trata-se de pensar que é dada ao campo do jornalismo a tarefa de produzir saber acerca dos acontecimentos do mundo, tarefa que lhe é outorgada tanto porque detém a tecnologia — uma força maquínica incomensurável — como também porque outras instituições produtoras de saber — estas, de caráter pedagógico — conferem aos que proferem os discursos da mídia o direito da fala. A partir desses lugares, pelo desejo e pelo poder, revestidos da vontade de verdade, os discursos jornalísticos tornam-se expressões máximas do que é verdadeiro; e é com eles, vale dizer, que construímos os nossos modos de compreender e ver o mundo, visões que tecem nossa percepção do outro e nossa maneira de lidar com o diferente ou o semelhante (RESENDE, 2007, p. 83).
Todavia, torna-se fundamental analisarmos os discursos jornalísticos amplificados pelo ciberespaço como textos que também se integram na “batalha de memórias” em prol de legitimar determinadas verdades. Nesse sentido, além de visualizarmos as vozes dissonantes, é necessário reconhecermos os silenciamentos também promovidos na ordem dos discursos. Para visualizarmos tais procedimentos, promovemos com o auxilio de sites de busca uma seleção de onze textos jornalísticos disponibilizados no ciberespaço relacionados ao Museu do Mangue de Aracaju/SE. A maioria, especialmente os disponibilizados antes do incêndio, aponta os objetivos e detalhes sobre a implantação do museu, além de questões relacionadas à preservação do ecossistema e à valorização da área, a maioria legitimados por dados fornecidos pela Prefeitura Municipal de Aracaju e entrevistas com especialistas envolvidos no projeto. Nesse aspecto, é a autoridade do lugar de fala público (municipalidade) e o saber técnico que legitimariam o discurso (não é incomum depararmos com as falas do engenheiro presidente da Empresa Municipal de Obras e Urbanização). As matérias foram majoritariamente divulgadas no site da Prefeitura de Aracaju ou daí extraídas e compartilhadas em outros sítios a exemplo do Portal de Notícias JusBrasil. Nesses casos, os textos celebram a parceria entre a Prefeitura Municipal e o Ministério das Cidades, destacando os valores dos
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investimentos e os benefícios trazidos após a implementação das obras que se encontravam em “ritmo acelerado”. Acompanhando os textos também são comuns fotografias dos equipamentos que integram o complexo e das “obras em andamento”:
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Além do museu, núcleo de apoio aos pescadores e centro produtivo, o projeto é composto de quiosque, píer, complementação das quadras de esportes, módulo de apoio à saúde, espaços para a realização de oficinas, palestras, exibição de vídeos e exposições, dois atracadouros, além de estacionamentos para carros e ônibus de turismo. Todo o complexo segue as normas nacionais de acessibilidade com rampas e piso táctil. De acordo com o presidente da Emurb, engenheiro Paulo Costa, o complexo é um março na política de preservação do meio ambiente adotada pela Prefeitura de Aracaju. ‘O Museu do Mangue servirá não apenas de ponto turístico, mas, principalmente, como um ponto avançado para pesquisas acadêmicas e científicas, em especial sobre a biodiversidade e os fatores ambientais presentes nesse tipo de ecossistema’, ressalta2.
Especulações sobre o incêndio nas instalações que abrigariam o museu também foram encontradas, especialmente nos sites de jornais locais. Todavia, com menor destaque. Se antes o discurso focalizava na necessidade de preservação do ecossistema e no desenvolvimento sustentável dos ribeirinhos por meio do turismo, após esse evento crítico o site da municipalidade não desconsiderou o incêndio, incorporando-o ao discurso legitimador de suas ações de combate ao vandalismo: O Museu do Mangue localizado na Avenida Desembargador Antônio Góis, no bairro Coroa do Meio, Zona Sul da capital, está passando por reformas. Dias antes da sua inauguração, o local sofreu um incêndio que danificou vários equipamentos da estrutura. Este ano a Prefeitura de Aracaju, por meio da Empresa Municipal de Obras e Urbanização (Emurb), iniciou a recuperação dos quiosques e banheiros do museu. A reforma está sendo feita com o objetivo de dificultar as ações de vandalismo.Antes a cobertura do museu era de palha rústica, agora o novo telhado será de telhas planas de concreto. Os novos banheiros estão recebendo material mais resistente, assim como as paredes dos quiosques. Cerca de 10 profissionais trabalham diariamente, para que em breve a população possa desfrutar do espaço. As obras representam um investimento de cerca de 432 mil.3
Paralelamente às notícias veiculadas pelo site da Prefeitura de Aracaju que auto-celebrava suas ações, outros discursos vinculados a imprensa local, a exemplo do site Infonet Cidade, empreenderam uma mudança no enfoque optando por privilegiar no texto e nas fotos a temática do incêndio. Não sem motivos, publicou entrevistas com os responsáveis pela segurança pública:
Para o presidente do Sindicato dos Guardas Municipais e Agentes de Trânsito de Sergipe (SIGAS), Ney Lucio dos Santos, o local estava abandonado desde o final da obra em maio deste ano. ‘Existem apenas dois guardas para proteger todo aquele local e ao mesmo tempo ficam
2 Museu do Mangue será marco da preservação ambiental de Aracaju. Disponível em: http://pref-aracaju. jusbrasil.com.br/politica/5297599/museu-do-mangue-sera-marco-da-preservacao-ambiental-em-aracaju. Acesso em 10 nov. 2013. 3 Prefeitura Municipal de Aracaju recupera Museu do Mangue na Coroa do Meio. Disponível em: http:// aju.se.gov.br/index.php?act=leitura&codigo=51593 . Acesso em 10 nov. 2013.
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expostos a bandidagem. O ideal era que no local tivesse quatro guardas por turno’, frisou alertando que não tem água, muito mesmo banheiros para os guardiães. De acordo com um guarda municipal, que preferiu não ser identificado, o local só começou a receber a vigilância no dia anterior. ‘Só ontem que escalaram guardas municipais para ficar aqui. Antes apenas os guardas que fazem a ronda na zona sul que vinham e ficavam em torno de duas horas’, confirmou. O assessor da Emurb, Ademar Queirões, também confirmou a informação. ‘No período da obra ficavam vigilantes particulares contratados pela empresa. Mais depois que a obra foi concluída e entregue a prefeitura são os guardas municipais que vigiam’, frisou confirmando que somente nesta quarta-feira, 7, que a guarda ficou constantemente no local.4
Curioso é detectar que nenhum dos articulistas das matérias teve a preocupação em ouvir a população da Coroa do Meio, nem os ribeirinhos e outros nativos do lugar. É como se os saberes especializados do engenheiro, do profissional de segurança pública e dos jornalistas bastassem para a obtenção da legitimidade ou para a promoção da explosão discursiva promovida a partir dos conflitos em torno da seara patrimonial. Do mesmo modo, os discursos dos profissionais de museus e demais profissionais das ciências sociais não foram contemplados nas matérias veiculadas pelos sites oficiais da municipalidade de Aracaju, nem nas matérias do jornalismo local. Vozes polifônicas que serão orquestradas em breve, observando essas tensões nas narrativas da população local, a partir de etnografia que está em desenvolvimento. Voltando o foco aos discursos difundidos no ciberespaço, é nítida nas matérias recentes sobre o Museu do Mangue a tentativa de desvinculá-lo do estigma da violência e da criminalidade. Em 12 de agosto de 2013, o site do Jornal de Sergipe trouxe a matéria “Guarda Municipal garante tranqüilidade no Museu do Mangue”, acompanhada de fotografia de pessoas ladeadas por policiais nos equipamentos de lazer do local, produzindo a crença em uma maior segurança: O local que antes era ocupado por usuários de drogas, agora serve como área de lazer para famílias da comunidade. A GMA disponibiliza um efetivo de 16 guardas municipais (GMs), atuando em escala de plantão de 24h, coibindo diversas práticas delituosas como danos ao patrimônio, o tráfico de drogas, entre outras ocorrências. A senhora Maria Cleide, que frequenta o parque do Museu com as filhas constata essa tranquilidade. ‘Antes esta praça era uma bagunça, havia muitas pessoas utilizando drogas e vendendo também. Por conta disso, tínhamos medo de ficar neste local. Mas agora, com os guardas, a gente não se depara mais com essas pessoas. Nos sentimos mais seguros para frequentar o local’, revela Maria.5
As recentes matérias procuram produzir a crença em um espaço seguro e controlado, embora não seja esse o sentimento da população que mora nos arredores, conforme relatado em conversas informais durante nossa visita ao local. Para comprovar esse discurso, pela primeira vez uma narrativa não-técnica integrou a narrativa através do depoimento de uma usuária do parque. 4 CARDOSO, Danilo. Museu do Mangue permanece destruído. Disponível em: http://infonet.com.br/cidade/ler.asp?id=118189&titulo=cidade. Acesso em 10 nov. 2013. 5 Guarda Municipal garante tranqüilidade no Museu do Mangue. Disponível em: http://www.jornaldesergipe.com/2013/08/guarda-municipal-garante-tranquilidade_8268.html. Acesso em: 10 nov. 2013.
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Ao longo da leitura da coleção de matérias, identificamos que os textos utilizam genericamente a marca Museu do Mangue para se referir ao parque e as instalações ainda inconclusas, mesmo o museu ainda não tendo sido inaugurado. Na verdade, a nomenclatura se tornou uma griffe, nos moldes como definiu Pierre Bourdieu (1983), conferindo sentido e autoridade a um não-museu ou a uma vontade de museu. Conforme sublinhou Izabela Tamaso (2007), os contextos sociais de crise são reveladores e permitem interpretações antropológicas dos usos plurais da categoria “patrimônio” e a lógica da conservação patrimonial. Reconhece, assim, os eventos críticos como fatos que amplificam grupos de interesse e permitem que várias decisões não sejam mais recebidas de modo ingênuo. As conclusões acenadas pela pesquisadora, ao observar as conseqüências da enchente do Rio Vermelho em Goiás-GO, podem ser estendidas ao caso aracajuano. No nosso contato prévio com a população e nas análises dos silêncios e gritos apresentados nos textos difundidos no ciberespaço, percebemos que o incêndio nas instalações do futuro museu também se tornou um excepcional catalizador de categorias patrimoniais, contribuindo para “emergir o sistema de exclusão inerente à lógica da conservação patrimonial” (p. 202). Desse modo, é curioso reconhecermos que a “explosão discursiva” em torno do Museu do Mangue o torna uma presença constante no campo de produção simbólico sergipano, independente de sua existência de fato. Circulação amplificada e atestada pelo ciberespaço que contribui para que as fronteiras entre o real e o virtual sejam diminuídas e, como instigante instrumento de proliferação de linguagens verbais e não-verbais, se torna um aliado estratégico na fabricação/encenação de determinadas crenças e no silenciamento de outras. Ou, nas palavras de Jacques Le Goff (2003), um documento-monumento, uma construção repleta de interesses que projeta uma imposição voluntária ou involuntária de futuro: “resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio” (p. 537-538). Referências ALMEIDA, Fernanda Cordeiro de. Manguezais aracajuanos: convivendo com a devastação. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2010. BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. CARDOSO, Danilo. Museu do Mangue permanece destruído. Infonet Cidade. Disponível em: http://infonet.com.br/cidade/ler.asp?id=118189&titulo=cidade. Acesso em 10 nov. 2013. CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Do ponto de vista de quem? Diálogos, olhares e etnografias dos/nos arquivos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 36, 2005. DAS,Veena. Critical events. An anthropological perspective on contemporary India. Delhi: Oxford University Press, 1995. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
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Artigo recebido em março de 2015. Aprovado em julho de 2015
HÁ SENTIDO NA EDUCAÇÃO NÃO FORMAL NA PERSPECTIVA DA FORMAÇÃO INTEGRAL? Fernanda Rabello de Castro1* Universidade Federal Fluminense
RESUMO: O objetivo deste trabalho é apresentar a Formação Integral como ponto de partida para a construção de processos educativos emancipatórios e transformadores. Além de expor os conceitos de Educação Não Formal e de Formação Integral com base em autores selecionados e ênfase na problematização do primeiro. Defende-se a concepção de que uma Formação Integral engloba diferentes modalidades ou tipologias de educação, integradamente e com objetivos comuns. A ideia de Educação Não Formal, portanto, perde o sentido diante dessa perspectiva. Apresenta-se o exemplo da Educação Museal como parte da trama que tece a Formação Integral, e polêmicas conceituais deste campo específico.
PALAVRAS CHAVE: Educação Não Formal. Formação Integral. Educação Museal.
Is there sense in Non-Formal Education in the perspective of Integral Formation? ABSTRACT: The aim of this paper is to present the Integral Formation as the origin for the construction of emancipatory and transformer educational processes. In addition to exposing the concepts of Non-Formal Education and Integral Formation based on selected authors and emphasizing on problematize the first. The conception of an Integral Formation is stand up for as a model that covers different types of education, in an integrated way and with common goals. The idea of Non-Formal Education thus becomes meaningless with that prospect. It presents the example of Museum Education as a part of the plot that weaves the Integral Formation, indicating conceptual controversies of this particular field. KEYWORDS: Informal Education. Integral Formation. Museum Education.
1* Educadora nos Museus Castro Maya – Chácara do Céu/ Instituto Brasileiro de Museus e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Contato: fernandasantanacastro@gmail.com. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.
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Há sentido na Educação Não Formal na perspectiva da Formação Integral?
1. Educação Não Formal e Formação Integral: definindo os conceitos
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As ações e processos educativos que ocorrem fora da escola são comumente denominados pela expressão de origem anglo-saxônica: Educação Não Formal. Podemos exemplificar esse modelo com ações educativas realizadas por movimentos populares, instituições culturais e sociais, Organizações Não Governamentais (ONGs), associações, sindicatos, entre outros. Segundo Cazelli apud Marandino et al. (2004: 5), seu uso no Brasil nos remete às influências anglo-saxônica e lusofônica: [...] os autores de língua inglesa usam os termos informal science education e informal science learning para todo o tipo de educação em ciências que usualmente acontece em lugares como museus de ciência e tecnologia, science centers, zoológicos, jardins botânicos, no trabalho, em casa etc. Já os de língua portuguesa subdividem a educação em ciências fora da escola em dois subgrupos: educação não-formal e informal, sendo o último relativo aos ambientes cotidianos familiares, de trabalho, do clube etc.
Antes de serem classificadas como “Educação Não Formal”, as atividades ocorridas com o objetivo de reforçar a aprendizagem escolar, realizadas em ambientes como bibliotecas, cinemas, teatros e espaço esportivos, eram chamadas de extraescolares (FÁVERO, 2007: 614). No Brasil, a expressão surgiu na década de 1960, sob influência de estudos e pesquisas realizadas pela United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO), com o objetivo de combater a pobreza por meio da realização de atividades que melhorassem a situação social dos indivíduos a partir da educação (FÁVERO, 2007: 615; MARANDINO, 2008:13). São muitos os autores que se dedicam a definir ou desenvolver o sentido da Educação Não Formal, estabelecendo os marcos de sua autonomia e sua diferenciação com a chamada Educação Formal, isto é, aquela que ocorre em instituições oficiais de educação, atribuidoras de certificação de titularidade, com regulamentação e legislação predefinidas, com atividades associadas a um currículo pré-existente e organização próprias (GADOTTI, 2005: 2; GOHN, 2010: 15-16; MARANDINO, 2008 13). No entanto, segundo o Doutor em Filosofia da Educação, Osmar Fávero, desde a década de 1960, não se obtém sucesso em conceituar adequadamente a Educação Não Formal, ou em categorizar convenientemente suas diversas manifestações nessa mesma expressão (FÁVERO, 2007: 615). Atualmente, essa expressão designa não só as atividades complementares ao currículo escolar, realizadas na escola ou fora dela, mas também aquelas que ocorrem em outros espaços, de forma independente dos conteúdos escolares ou a eles associados, embora com objetivos diversos. Para Marandino (2008: 12), por exemplo, os museus vêm sendo caracterizados como espaços que possuem uma forma própria de desenvolver sua dimensão educativa, e identificados como locais de Educação Não Formal. Diferenciam-se, ainda, de espaços onde se desenvolvem as experiências formais de educação, como as escolas; e de outros como o seio da família, onde são vivenciadas experiências consideradas informais. Apesar de adotar esse entendimento a respeito da expressão em seu trabalho conceitual, a autora reconhece
Fernanda Rabello de Castro
que essa interpretação não é consenso na Educação, tampouco na Museologia. O uso dessa expressão é mais problemático para as ditas instituições e organizações da Educação Não Formal, em virtude de sua busca por legitimidade e delimitação de seus campos, do que para o campo da Educação dita formal, cujas leis inclusive preveem em regulamentação esta nomenclatura. Outros autores, como Gadotti (2005: 2) e Gohn afirmam que a Educação Não Formal geralmente define-se pela oposição ao que é a Educação Formal, ou seja: Um dos grandes desafios da educação não formal tem sido defini-la, caracterizando-a pelo que ela é. Usualmente ela é definida pela negatividade pelo que ela não é. [...] Demarca-se que a educação não formal não tem o caráter formal dos processos escolares, normatizados por instituições superiores oficiais e certificadores de titularidades. Difere da educação formal porque esta última possui uma legislação nacional que normatiza critérios e procedimentos específicos. [...] Destaca-se que a educação não formal lida com outra lógica nas categorias espaço e tempo, dada pelo fato de não ter um currículo definido a priori, quer quanto aos conteúdos, temas ou habilidades a serem trabalhados. (GOHN, 2010: 22)
No contexto brasileiro, a definição da Educação Não Formal pelo que ela não é, porém, vem perdendo cada vez mais sentido. As práticas da chamada Educação Não Formal, em diversos campos, vêm se tornando mais organizadas, sistematizadas e definidas, senão por um currículo, como o escolar, por conteúdos próprios predefinidos. Inclusive, a questão da legislação e regulamentação está tomando novos rumos, como podemos verificar nos processos de construção de políticas públicas como a Política Nacional de Educação Patrimonial1, a Política Nacional de Educação Museal2, que estão em andamento, ou em leis como a que regulamenta a Educação Ambiental3. Além das mudanças no aspecto legal, os campos educacionais ligados à educação não formal, cada vez mais lutam por reconhecimento e autonomia, definem conteúdos e metodologias próprios, trabalhando com planejamento, sistematização, registro e avaliação de suas ações. Seu desenvolvimento acompanha o próprio desenvolvimento da sociedade civil. De acordo com Gadotti, a Educação Formal e a Educação Não Formal diferem pela questão da normatização e centralidade de órgãos na sua fiscalização e estruturação burocrática: 1 Em 2011 ocorreu o II Encontro Nacional de Educação Patrimonial, realizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, vinculado ao Ministério da Cultura, em Ouro Preto-MG, que definiu o texto base para a constituição de uma Política Nacional de Educação Patrimonial, disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=1813>. O IPHAN é o órgão estatal responsável por definir diretrizes e normas para políticas publicas de patrimônio no Brasil. 2 O histórico da construção da Política Nacional de Educação Museal e os documentos que têm sido produzidos para ela podem ser vistos no blog do PNEM: <www.pnem.museus.gov.br>. A PNEM é uma iniciativa do Instituto Brasileiro de Museus, órgão estatal vinculado ao Ministério da Cultura e responsável por definir diretrizes e normas para políticas publicas de museus no Brasil. 3 Para ver a lei que institui a Política Nacional de Educação Ambiental acesse: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9795.htm>.
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Há sentido na Educação Não Formal na perspectiva da Formação Integral?
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A educação formal tem objetivos claros e específicos e é representada principalmente pelas escolas e universidades. Ela depende de uma diretriz educacional centralizada como o currículo, com estruturas hierárquicas e burocráticas, determinadas em nível nacional, com órgãos fiscalizadores dos ministérios da educação. [...] A educação não-formal é também uma atividade educacional organizada e sistemática, mas levada a efeito fora do sistema formal. Daí também alguns a chamarem impropriamente de “educação informal”. (GADOTTI, 2005: 2)
Com base na análise dos documentos elaborados nos processos citados acima, percebemos que a Educação Não Formal também pode ter objetivos claros e específicos e ter diretrizes nacionais administradas por órgãos fiscalizadores e executores de outros ministérios, que não o da educação, como, por exemplo, têm feito o Ministério da Cultura. Gadotti (2005: 2) afirma que a Educação Não Formal é também uma atividade organizada e sistemática, mas aponta as categorias tempo e espaço como elementos de diferenciação entre ela e as atividades formais. Uma vez que na Educação Não Formal, o tempo da aprendizagem é flexível, respeita as diferenças e as capacidades de cada um, e cria e recria múltiplos espaços. A partir da análise feita por Gadotti (2005: 2) cabe-se questionar se esta também não deveria ser a dinâmica da Educação Formal. Se própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação destaca que é preciso considerar a diversidade de sujeitos e características regionais e culturais, além dos diferentes ritmos de aprendizagem de diferentes grupos como, por exemplo, na Educação de Jovens e Adultos, na Educação Profissional, Educação Rural etc. Então, mesmo respeitando um currículo predefinido e metodologias específicas do ambiente escolar, a Educação Formal não deveria também respeitar esse tempo de aprendizagem individual, além de criar e recriar o espaço da escola? A diferenciação entre a Educação Formal e a Educação Não Formal não deveria ser feita a partir de elementos que a escola ou os espaços formais deveriam levar em consideração e respeitar. Mas, sim, por atribuições indispensáveis a cada tipo de Educação, que caracterizariam determinadas atividades de forma que só pudessem ser realizadas em espaços formais ou não formais. Gohn (2010: 33) afirma que sua concepção de Educação Não Formal articula-se ao campo da Educação cidadã e a define então como: Um processo sociopolítico, cultural e pedagógico de formação para a cidadania, entendendo o político como a formação do indivíduo para interagir com o outro em sociedade. Ela designa um conjunto de práticas socioculturais de aprendizagem e produção de saberes, que envolve organizações/instituições, atividades, meios e formas variadas, assim como uma multiplicidade de programas e projetos sociais.
Mais uma vez, o que aparece como definição da Educação Não Formal tem conteúdo e objetivos estreitamente ligados àqueles que são ou deveriam ser os da escola, portanto da Educação Formal. Ao se negar esta afirmação, incorremos no risco de reforçar uma visão de Educação, cada vez mais difundida na sociedade e imposta pelas políticas públicas de Educação Formal: em que, voltada para o mercado de trabalho, portanto de caráter unilateral e operacional, a Educação é vista como responsabilidade quase restrita da escola, maior foco dos investimentos públicos para Educação.
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Do mesmo modo, uma formação humanista voltada para a emancipação dos indivíduos é delegada a movimentos autônomos da sociedade, como não sendo responsabilidade do Estado e não aparecendo como foco privilegiado de investimentos de políticas públicas. É verdade que, no caso do Brasil em particular, as atividades de Educação Não Formal surgiram no seio da recente sociedade civil, muitas vezes como forma de resistência ao poder hegemônico e à dominação de classes. Esta condição foi fundamental para sua autonomia e autodefinição. O objetivo central precisa ser, portanto, reconhecermos que os processos considerados Educação Não Formal devem ser um direito porque são fundamentais para a formação humana em nossa sociedade. Assim, dando a eles o mesmo status da chamada Educação Formal, ou ainda, considerando-lhes parte de um mesmo processo formativo. Gohn (2010: 35-36) ao apresentar o que considera serem as dimensões próprias da Educação Não Formal mais uma vez indica funções que devem estar presentes em todo processo educativo, tais como: a aprendizagem política dos direitos e da cidadania; a formação para o trabalho; a aprendizagem que propicie leitura de mundo, permitindo a compreensão do que acontece ao nosso redor; a organização comunitária; a aprendizagem pela cultura gerada pelo acesso a museus, bibliotecas, shows, palestras; e os processos educativos desenvolvidos na mídia e por ela. Para a autora, “o ideal é que a educação não formal seja complementar – não no sentido de fazer o que a escola deveria fazer e não faz. Complementar no sentido de aprendizagens e saberes que lhes são específicos. Pode e deveria atuar em conjunto com a escola” (GOHN, 2010: 41). O conceito de Educação Não Formal não pressupõe um consenso e não há definição clara e objetiva que o diferencie, de fato, da Educação Formal. Considerando as definições e dimensões apresentadas, se tomarmos os processos educativos – independentemente dos locais, das metodologias ou dos objetivos específicos que possuem –, como parte de uma Formação Integral (e que, portanto, deve ser integrada), a diferenciação entre Educação Formal e Não Formal perde sentido. Segundo Gramsci (2011: 49-50), a Formação Integral deve permitir a todos os indivíduos que sejam capazes de se tornar governantes, propiciando que pensem, estudem, dirijam ou controlem quem dirige a sociedade. Para ele, o espaço para esta formação é a escola unitária, formativa e desinteressada que “equilibre de modo justo o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual” (GRAMSCI, 2011: 33). Aponta ainda que o advento da escola unitária trará novas relações entre trabalho manual e intelectual não apenas na escola, mas em toda a vida social e seu princípio “irá se refletir em todos os organismos de cultura, transformando-os e emprestando-lhes um novo conteúdo” (GRAMSCI, 2011: 40) unificando os vários tipos de organização cultural: academias, institutos de cultura, círculos filológicos, etc., integrando o trabalho acadêmico tradicional – que se expressa sobretudo na
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sistematização do saber passado ou na busca da fixação de uma média do pensamento nacional como guia da atividade intelectual – com atividades ligadas à vida coletiva, ao mundo da produção e do trabalho (GRAMSCI, 2011: 41).
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Entendida como unicidade, a Formação Integral, que inclui tanto os processos realizados em instituições ditas formais quanto aqueles realizados nas “não formais”, e sendo foco de políticas públicas, deveria integrar esses espaços, tratar seus processos com igualdade de prioridade, de investimento e de avaliação. Assim, aquelas dimensões educativas, consideradas por Gohn (2010: 3536), próprias da Educação Não Formal, fundir-se-iam com os objetivos específicos da Educação Formal, dando aos diversos espaços educativos a mesma missão posterior de dar aos indivíduos uma formação humanista: (entendido este termo, "humanismo", em sentido amplo e não apenas em sentido tradicional) ou de cultura geral deveria se propor a tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los levado a um certo grau de maturidade e capacidade, à criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa (GRAMSCI, 2011: 36).
As funções sociais da Educação, geralmente atribuídas ao âmbito não formal, seriam também responsabilidade da escola e vice-versa, tendo como objetivo fundamental o desenvolvimento da capacidade de autogoverno em cada um, portanto promovendo a emancipação humana. Deste modo, chegaríamos a um tipo de formação que seria capaz de contemplar a nova realidade técnico-produtiva da sociedade, ao mesmo tempo em que minimizaria seus problemas sociais. Uma formação que ofereça aos indivíduos “bases de conhecimento científico (unitárias), cuja universalidade lhes permita resolver problemas e situações diversas, como também visa a um trabalhador capaz de consumir [bem como, produzir] bens culturais mais amplos” (FRIGOTTO, 2010: 186). Frigotto (2010: 189) afirma que “independentemente ou não da escola, os seres humanos acumulam conhecimento. A realidade na sua dimensão social, cultural, estética, valorativa etc., historicamente situada, é o espaço onde os sujeitos humanos produzem seu conhecimento”. Isto nos mostra que este espaço múltiplo, que inclui a escola, mas também outros lugares em que ocorrem processos educativos e de aprendizagem, deve ser o local da realização da Educação num sentido mais amplo e menos compartimentado, como apresentado pelos diversos sentidos dados à Educação Não Formal. Com isso, queremos dizer que estaríamos dividindo o que deveria estar sendo unificado e esta divisão não nos serviria nem metodologicamente, nem teoricamente, para garantir os objetivos comuns que existem em todos os processos educativos, independentemente de onde ocorram. Se mantivermos o pensamento de que a Educação Formal é responsabilidade do Estado e a Educação Não Formal, por sua vez, é uma manifestação da sociedade civil, entendendo-a de forma autônoma, como algo fora das atribuições e responsabilidades deste Estado, não daremos a devida importância ao papel que ele deve cumprir no oferecimento de uma Formação Integral. Reforçamos aqui que o uso da expressão “Educação Não Formal”, em detrimento do uso do conceito de Formação Integral, nem sempre nos ajuda
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a analisar os processos educativos, avaliando o alcance de seus objetivos; a formular novas atividades e definir tipologias, de modo a dar foco e estabelecer prioridade para as políticas e investimentos públicos; e de contribuir para a consolidação dos campos específicos das diferentes tipologias de Educação que desenvolvem atividades de fins comuns na sociedade. A partir desta perspectiva, passaremos então a tratar da especificidade da Educação Museal e de como ela pode contribuir para a tentativa de unificação de saberes, experiências e práticas de Educação a fim de contribuir para a Formação Integral dos indivíduos. 2. Educação Museal e Formação Integral A forma de designar os processos educativos que ocorrem em museus é uma polêmica do campo, que remete a questões que vão além da definição de uma prática que acontece em um local específico e por ele definido como mera questão de adjetivação. Podemos dizer que a trajetória da busca consciente por uma nominação dos processos educativos que ocorrem em museus se inicia, no Brasil, com a apropriação da expressão em inglês Heritage Education, trazido para o país por Maria de Lourdes Parreiras Horta e apresentado como Educação Patrimonial. Na apresentação do Guia Básico da Educação Patrimonial, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Maria de Lourdes Parreiras Horta introduz o termo da seguinte forma: A expressão Educação Patrimonial vem se tornando cada vez mais familiar e frequente no trabalho dos museus e dos responsáveis pela preservação, identificação e valorização do Patrimônio Cultural em nosso país. A proposta metodológica para o desenvolvimento das ações educacionais voltadas para o uso e apropriação dos bens culturais foi introduzida, em termos conceituais e práticos, a partir do 1° Seminário realizado em 1983, no Museu Imperial, em Petrópolis, RJ, inspirando-se no trabalho pedagógico desenvolvido na Inglaterra sob a designação de Heritage Education. (HORTA et. al., 1999: 5)
A autora segue definindo a Educação Patrimonial como uma proposta metodológica a ser aplicada em museus, monumentos históricos e com o patrimônio cultural em geral, identificando-a como um instrumento de “alfabetização cultural”. A Educação Patrimonial tratar-se-ia de: um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo. A partir da experiência e do contato direto com as evidências e manifestações da cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e significados, o trabalho de Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua herança cultural, capacitando-os para um melhor usufruto destes bens, e propiciando a geração e a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação cultural. (HORTA et. al., 1999: 6)
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A metodologia explicitada no Guia Básico da Educação Patrimonial apresenta o Objeto Cultural como sua fonte primária de conhecimento. Elenca como seu objetivo específico a descoberta de rede de significados, relações e processos de criação, fabricação, troca, comercialização e usos diferenciados desses objetos culturais, que passam a ter sentido por causa desses elementos e nos informam sobre o modo de vida das pessoas no passado e no presente, em um ciclo de continuidade, transformação e reutilização (HORTA et. al., 1999: 9) As etapas da sua metodologia são a observação, o registro, a exploração e a apropriação do objeto cultural. Elas devem servir para a análise de objetos, de monumentos e do meio ambiente histórico. Atualmente, o portal do Iphan apresenta a seguinte definição para a Educação Patrimonial: Toda vez que as pessoas se reúnem para construir e dividir novos conhecimentos, investigam pra conhecer melhor, entender e transformar a realidade que nos cerca, estamos falando de uma ação educativa. Quando fazemos tudo isso levando em conta alguma coisa que tenha relação ao com nosso patrimônio cultural, então estamos falando de Educação Patrimonial! O IPHAN concebe educação patrimonial como todos os processos educativos que primem pela construção coletiva do conhecimento, pela dialogicidade entre os agentes sociais e pela participação efetiva das comunidades detentoras das referências culturais onde convivem noções de patrimônio cultural diversas (BRASIL, 2014a).
Analisando essas definições, percebemos que representam, na verdade, metodologias para ações educativas e não conceitos que expliquem o caráter específico do que seria a Educação Patrimonial. Ou ainda, mais especificamente, aquela a qual podemos chamar museal, ou mesmo que dê conta de todas às suas dimensões. O uso do objeto e a análise dos contextos histórico e social em que se inserem aparecem como ferramenta para a transformação social, que poderíamos considerar o objetivo mais geral de todo processo educativo, mas não necessariamente objetivo específico da Educação Patrimonial. Problematizando o uso do termo, Chagas (2004: 144) afirma que: Nos últimos vinte anos, a expressão “educação patrimonial” consagrouse no Brasil. E consagrou-se não como metodologia, mas como campo de trabalho, de reflexão e ação. [...] Insisti em dizer: a educação patrimonial foi devorada e agora está sendo regurgitada com novas significações.
Justamente pela expressão ter-se consagrado como campo de trabalho, de reflexão e ação, a definição conceitual acerca das ações educativas realizadas por museus passou a ser problematizada, demonstrando uma evolução dos termos que as designam. Denise Grinspum (2000: 30) em sua tese de doutorado, considerou a Educação Patrimonial uma metodologia que funcionava muito bem para a realização de ações educativas em museus de História. Para o caso de museus de outras tipologias, porém, era insuficiente, em especial no caso dos museus de arte, que desde a década de 1980 receberam importantes contribuições no campo educativo de teorias da Educação artística desenvolvidas no âmbito da escola.
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Para resolver a questão da adequação do termo Educação Patrimonial a outras metodologias e outros objetivos das ações educativas em museus, a autora propõe o termo Educação para o Patrimônio, para designar as ações implementadas em museus: Para contemplar as práticas educacionais de museus de quaisquer natureza, poderíamos pensar no conceito de “Educação para o Patrimônio”, que pode ser entendido como formas de mediação que propiciam aos diversos públicos a possibilidade de interpretar objetos de coleções dos museus, do ambiente natural ou edificado, atribuindo-lhes os mais diversos sentidos, estimulando-os a exercer a cidadania e a responsabilidade social de compartilhar, preservar e valorizar patrimônios com excelência e igualdade (GRINSPUM, 2000: 30).
A autora expressa uma necessidade do campo: a definição da ação educativa em museus por características próprias, que ultrapassam uma metodologia específica e que contemplem a necessidade de integração das ações específicas de museus com os processos educativos mais abrangentes que ocorrem na sociedade, pensando assim suas especificidades, mas sem descolar o museu de sua responsabilidade social. Já o termo Educação Museal começa a ser utilizado, no Brasil, apenas no século XXI, mas ainda não tratado como um conceito. Entendida por alguns como uma adjetivação que indica a qualidade dos processos educativos que ocorrem em museus, em certos casos, a Educação é identificada como a linguagem museal, tratando então a qualidade museal como aquilo relativo ao que ocorre no espaço do museu. Referenciada em Chagas, Magaly Cabral afirma que: Museal e patrimonial são tomados tão somente como adjetivo qualificativo de determinado campo (o museu, o patrimônio) de manifestação da linguagem ou, ainda, como o indicativo de um determinado âmbito em que o processo de comunicação, lançando mão de certos recursos, pode ser vivenciado (Cabral apud Chagas, 2012: 39-40)
Cabral segue defendendo a tese de que o foco da Educação Museal não é o objeto, mas sim os pensamentos, sentimentos, sensações e intuições que ele pode suscitar. Desta forma, a diferenciação entre Educação Museal e Educação Patrimonial seria apenas o local onde ocorrem seus processos educativos: Delimitamos o campo – Museu –, que está contido no Patrimônio. Muda o campo onde a ação educativa se desenvolve, mas não mudam os conceitos e os objetivos. Podem variar as metodologias desenvolvidas. A adjetivação patrimonial ou museal não implica diferenças, apenas indicação de campos de atuação (CABRAL, 2012: 41).
Tal visão parece-nos poder ser confundida com uma limitação dos processos educativos ao âmbito da comunicação, portanto reduzindo a questão do museal ou patrimonial a manifestações da linguagem. Discordamos, todavia, do apresentado, pois entendemos que tanto um processo quanto o outro, pressupõe conceitos e objetivos próprios, delimitados não apenas pelos espaços onde ocorrem, mas pelas metodologias de que lançam mão, do foco das atividades, dos conhecimentos trocados com o público, das experiências que utilizam para experimentar suas atividades.
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Assim como vimos no caso da exposição das atribuições da Educação Não Formal, consideramos que os objetivos associados à Educação Museal comumente são confundidos com os objetivos gerais de todo processo educativo, não servindo para definir seu escopo particular. Cabral (2012: 43), por exemplo, apresenta os seguintes:
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• buscar trazer para a sua ação o que o bem cultural pode oferecer para uma discussão a respeito da relação do indivíduo com a realidade; • buscar a identificação de significados e sentidos, num contexto que é diferente para o indivíduo, já que percepções e identificações de significados e sentidos variam de acordo com as experiências passadas de cada um, vivenciadas dentro de seu contexto histórico-social; • tratar o bem cultural propondo hipóteses sobre o que significa para o indivíduo, buscando um movimento de recriação e reinterpretação das informações, conceitos, significados e sentidos nele contidos.
Tais objetivos são traçados por diversas disciplinas escolares, a Geografia, por exemplo, propõe a análise dos conteúdos relativos ao conhecimento da casa, do bairro, da cidade, do Estado de cada um. Já a história indica a análise de diferentes sociedades em épocas diversas. A arte apresenta a análise de obras produzidas em diferentes contextos, por diferentes estilos, artistas e com diferentes técnicas, e seus significados. Se os objetivos específicos, os conceitos e os métodos da Educação Museal, ou mesmo da Educação Patrimonial são os mesmos de qualquer outro processo educativo, por que então seria necessário adjetivá-las para diferenciá-las? No nosso ponto de vista, essa necessidade existe. Se conjunturalmente, ou não, em função do estado da arte de educar na sociedade contemporânea, não é nosso objetivo discutir, pois esta é uma questão que não pode ser tratada aqui com o devido aprofundamento. Ocorre-nos, porém, que é necessário firmar um conceito e definir claramente o que diferencia a Educação Museal, hoje, de outros processos educativos. Cada vez mais ela vem diferenciando-se de outras tipologias de Educação, pelo seu arcabouço teórico, por suas metodologias, experiências práticas, pelas suas dimensões e objetivos específicos. O International Council of Museums (ICOM), em sua publicação os Conceitos-Chave de Museologia, apresenta o museal como “o campo de exercício do museu, compreendido como uma relação específica do homem com a realidade” (DEVALLÈS e MAIRESSE, 2013: 55). O museu apresentaria, então, uma relação objetiva e particular com o indivíduo, historicamente construída desde sua abertura, após a Revolução Francesa, e sujeita ao seu desenvolvimento particular em cada sociedade, associada ao desenvolvimento geral de cada uma e o “museal”: ocupa a mesma posição que o político e tem o mesmo sentido que o social, o religioso, o escolar, o demográfico, o econômico, o biológico, etc. Trata-se, em cada caso, de um plano ou de um campo original sobre o qual serão colocados problemas a serem respondidos pelos conceitos. (DEVALLÈS e MAIRESSE, 2013: 55)
Esses conceitos próprios do campo museal, caso não existam, precisam ser cunhados, de maneira a permitir seu desenvolvimento como campo profissional, de pesquisa e de produção de conhecimento.
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No caso da Educação, podemos dizer que: em um contexto mais especificamente museológico,está ligada à mobilização de saberes relacionados com o museu, visando ao desenvolvimento e ao florescimento dos indivíduos, principalmente por meio da integração desses saberes, bem como pelo desenvolvimento de novas sensibilidades e pela realização de novas experiências. (DEVALLÈS e MAIRESSE, 2013: 39)
Já é possível começar então a identificar os objetivos e conceitos próprios da Educação Museal. São objetivos ligados às experiências, ao desenvolvimento de sensibilidades, de leituras específicas do mundo e de sua integração com outros saberes. Na tentativa de esboçar um conceito de Educação Museal, o Documento Preliminar do Programa Nacional de Educação Museal (PNEM)4, construído a partir de uma consulta pública promovida pelo Instituto Brasileiro de Museus, apresenta a seguinte definição: “O conceito e terminologia orientadores das ações educativas implementadas em museus a partir deste Programa é o de educação museal, que se define por iniciativas de educação teoricamente referenciadas e desenvolvidas no âmbito de processos museais” (BRASIL, 2013: 13). Esta definição, no entanto, não é um consenso neste campo que ainda se desenvolve sem bases conceituais profundamente estruturadas. Quando da discussão desta definição, no Encontro Nacional do PNEM, realizado em novembro de 2014, na cidade de Belém do Pará, durante o 6° Fórum Nacional de Museus, o consenso possível de se atingir, no Brasil, foi expresso na Carta de Belém, que definiu os Princípios e Parâmetros para a criação e posterior implementação da Política Nacional de Educação Museal: “A educação museal compreende um processo de múltiplas dimensões de ordem teórica, prática e de planejamento, em permanente diálogo com o museu e a sociedade” (BRASIL, 2014b: 2). Acreditamos, porém, que a Educação Museal já tem em nosso país onde o primeiro setor educativo surgiu em 1927, no Museu Nacional – e no mundo, experiências e debates acumulados de forma suficiente para esboçar uma primeira proposta de conceituação para o campo. O primeiro passo seria demarcar as atribuições específicas da Educação Museal, aquilo que diferencia este processo educativo de outros. Em seguida, poder-se-iam apontar suas dimensões de atuação que a articulam com outros processos educativos, identificando conceitos que balizem suas ações. Acreditamos que alguns surgem da própria prática e outros são pensados a partir de suas necessidades, sendo possível já identificá-los na literatura própria do campo: Política Educacional, Atividade Educativa, Ação Educativa Continuada, Público etc. Outros são emprestados da Museologia, da Sociologia, da Antropologia, de um sem fim de ciências afins que integram o conjunto das Ciências da Educação. É preciso compreender inicialmente que a Educação Museal trabalha com um público próprio e diversificado, com ferramentas e profissionais próprios, que devem ter formação específica. Do mesmo modo, tem como foco o 4 O PNEM foi criado, em 2012, com o objetivo de criar as bases para a construção da Política Nacional de Educação Museal do Brasil. Ele teve início com a abertura de uma consulta pública, em plataforma virtual no blog do PNEM, em 26 de novembro de 2012, seguida de 23 encontros regionais presenciais realizados entre 2013 e 2014 e um Encontro Nacional realizado no fim de 2014. Para mais informações, acesse: <pnem.museus.gov.br>.
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objeto musealizado, o espaço ou território do museu, integrando conceitos de cultura, memória, patrimônio e sociedade.
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O trabalho educativo museal envolve processos distintos e associados de planejamento, sistematização, registro, avaliação, pesquisa, criação de suportes e materiais educativos, e devem ter como apoio uma série de outras atividades operacionais. Ele se desenvolve como uma prática profissional, teoricamente referenciada, com metodologias e linguagens próprias, que promove consequências políticas, sociais e culturais na sociedade. Entre suas dimensões e objetivos estão: o desenvolvimento da sensibilidade, da percepção da forma, do reconhecimento e controle dos sentimentos, do senso estético; o reconhecimento de uma cultura universal, historicamente construída, fruto de conflitos e consensos, exemplificada em objetos musealizados; a troca de saberes específicos e a apropriação do conhecimento historicamente produzido e representado nos acervos, além da compreensão das relações de poder deles constituintes; seu potencial de espaço de divulgação científica, artística e histórica, referenciada no objeto musealizado, na análise de seu contexto histórico, social, cultural, político, de produção e a identificação das motivações de sua musealização; a compreensão dos modos de viver a experiência de estar no museu, de ler suas mensagens, sua linguagem e de utilizar suas ferramentas, de entender seu espaço e suas maneiras de expor, associando-a à necessidade de preservação e conservação; o incentivo à apropriação cultural, dos espaços, do conhecimento e da própria ideia de museu e o cultivo do sentimento de pertencimento entre os seus diferentes públicos. Esta visão da Educação Museal não pode estar dissociada dos demais processos educativos que os indivíduos experienciam ao longo da vida. Ao contrário, ela pressupõe essas vivências como base para o alcance de seus objetivos específicos. Por esse motivo, identificamos a Educação Museal com a Formação Integral, como apresentada anteriormente, sendo parte constituinte de uma visão ampliada de formação humana, não complementar, mas integrada aos demais processos educativos realizados na sociedade. 3. Considerações finais Educação Museal, Educação Patrimonial, Educação para o Patrimônio, Educação Cultural, Educação Rural ou do Campo, Educação Popular, Educação Comunitária, Educação Infantil, Educação de Jovens e Adultos, Educação Social, Educação Musical, Educação Artística, Educação Física, Educação Ambiental, Educação Sexual, Educação Profissional, Educação Política. Para cada tipo de educação correspondem metodologias, conteúdos e conceitos próprios. A Formação Integral como integradora dos diversos tipos e formas de educar é um ensinar a aprender coletivamente, mas de forma autônoma e emancipatória. Se cada uma dessas modalidades, ou tipologias de Educação têm seus próprios objetivos, conteúdos, referências teóricas, metodologias e embates inter-
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nos aos seus campos, na perspectiva da Formação Integral, são todas igualmente necessárias e integradoras. Em nossa opinião, a distinção entre Educação Formal e Educação Não Formal não contribui para esta integração, ou para a compreensão dos processos educativos e de aprendizagem em seu conjunto. Ao contrário, excluem-se por definição, propõem espaços estabelecidos em separado para suas práticas, dão uma responsabilidade, autonomia e importância ao espaço formal escolar maior do que ele tem e deve ter na realidade dos processos de aprendizagem e construção autônoma do conhecimento. Gadotti (2012: 7) afirma que “não se estabelecem fronteiras muitas rígidas entre o formal e o não-formal”. Diríamos que esta fronteira, além de não ser rígida, não deveria existir, o que não significa dizer que os processos da chamada Educação Formal e aqueles da chamada Educação Não Formal são a mesma coisa, embora sejam parte de um “todo unitário”. No caso específico da Educação Museal, recusamo-nos a chamá-la não formal, como recusamos a chamar assim outras modalidades aqui citadas, pois entendemos que devem fazer parte – não que façam necessariamente–, de um processo unificador de saberes, portanto integral. Consideramos que qualquer distinção no sentido de identificar tipologias deve ter finalidades metodológicas e não hierárquicas. Entendemos como fundamental a busca de autonomia e desenvolvimento particular de cada área do saber. Em consequência disso, de cada área da Educação. Esse entendimento, porém, pressupõe objetivos comuns para os desenvolvimentos, que levem em consideração suas especificidades, mas que estejam associados em um objetivo geral, comum a todos os processos educativos, isto é, o de promover uma formação humana completa, voltada para o autogoverno, a emancipação e a transformação social. Referências BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O que é Educação Patrimonial?; Como funciona a política do Iphan para a Educação Patrimonial?. Perguntas Frequentes. Brasília, 2014a. Disponível em: http://portal. iphan.gov.br/perguntasFrequentes?pagina=3>. Acesso em: 6 abr. 2015. BRASIL. Ministério da Cultura. Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Carta de Belém-PA. Belém, 2014b. Disponível em: <http://fnm.museus.gov.br/wp-content/ uploads/2014/11/Carta_Belem_PNEM_6FNM.pdf>. Acesso em: 7 abr. 2015. BRASIL. Ministério da Cultura. Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Documento Preliminar do Programa Nacional de Educação Museal. Brasília, 2013. Disponível em: <http://pnem.museus.gov.br/wp-content/uploads/2014/02/DOCUMENTO-PRELIMINAR.pdf>. Acesso em: 7 abr. 2015. CABRAL, Magaly. Educação Patrimonial x Educação Museal? In: TOLENTINO, Átila. (Org.). Educação Patrimonial: reflexões e práticas. João Pessoa: Superintendência do IPHAN na Paraíba, 2012. p. 38-43. (Caderno Temático, 2). Disponível em: <http://issuu.com/daniellalira/docs/caderno_tem_tico_02_-_baixa_resolu__o/47?e=0>. Acesso em: 7 abr. 2015.
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CHAGAS, Mário. Diabruras do Saci: museu, memória, educação e patrimônio. Revista Musas, v. 1. n. 1. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004. p. 135-146.
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DEVALLÈS, André; MAIRESSE, François. Conceitos-chave de museologia. Tradução comentários Bruno Brulon Soares Soares e Marília Xavier Cury. São Paulo: Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus; Conselho Internacional de Museus; Pinacoteca do Estado de São Paulo; Secretaria de Estado da Cultura, 2013. Disponível em: < http://icom.museum/fileadmin/user_upload/pdf/ Key_Concepts_of_Museology/Conceitos-ChavedeMuseologia_pt.pdf>. Acesso em: 24 mar. 2015. FÁVERO, Osmar. Educação não-formal: contextos, percursos e sujeitos. Educ. Soc., Campinas, v. 28, n. 99, p. 614-617, maio-ago. 2007. Disponível em: <http:// www.scielo.br/pdf/es/v28n99/a17v2899>. Acesso em: 24 mar. 2015. FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e crise do capitalismo real. São Paulo: Cortez, 2010. GADOTTI, Moacir. A questão da educação formal/não formal. ���������������������� Suíça: Institut International des Droit de l’enfant (IDE), 2005. Disponível em: <http://www.vdl.ufc. br/solar/aula_link/lquim/A_a_H/estrutura_pol_gest_educacional/aula_01/imagens/01/Educacao_Formal_Nao_Formal_2005.pdf>. Acesso em: 24 mar. 2015. GADOTTI, Moacir. Educação popular, educação social, educação comunitária: conceitos e práticas diversas, cimentadas por uma causa comum.. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE PEDAGOGIA SOCIAL, 4., 2012, São Paulo. Proceedings... Associação Brasileira de Educadores Sociais. Disponível em: <http://www. proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC00000000920120 00200013&lng=en&nrm=abn>. Acesso em: 24 mar. 2015 GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e o educador social: atuação no desenvolvimento de projetos sociais. São Paulo: Cortez, 2010. GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. GRINSPUM, Denise. Educação para o patrimônio: museu de arte e escola – Responsabilidade compartilhada na formação de públicos. 148 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), São Paulo, 2000. HORTA, Maria de Lourdes P. et al. Guia Básico da Educação Patrimonial. Brasília: IPHAN, Museu Imperial, 1999. MARANDINO, Martha (Org.). Educação em museus: a mediação em foco. São Paulo: Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação Não-Formal e Divulgação em Ciência; FEUSP, 2008. Disponível em: <http://parquecientec.usp.br/wp-content/ uploads/2014/03/MediacaoemFoco.pdf>. Acesso em: 24 mar. 2015.
Artigo recebido em abril de 2015. Aprovado em agosto de 2015
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DOCUMENTAÇÃO ARQUEOLÓGICA SOBRE AS FIGURAS ZOOMORFAS DE CERÂMICA DO SÍTIO BRAZABRANTES I NO CENTRO OESTE BRASILEIRO José Luiz Lopes Garcia1* Pontíficia Universidade Católica de Goiás Francesco Palermo Neto2** Pontíficia Universidade Católica de Goiás RESUMO: O presente artigo pretende destacar pequenas peças zoomorfas em cerâmica encontradas no Estado de Goiás a 30 km da capital Goiânia próximo à cidade de Brazabrantes no Sítio Brazabrantes I, dentro do Projeto da Ferrovia Norte-Sul, Extensão Sul. Os métodos de escavação utilizados iniciaram-se com níveis artificiais de 0,10 m durante todo o resgate, até quando se começou a escavação da trincheira e suas ampliações decorrentes da grande quantidade de material encontrado. Espera-se que o aprofundamento das pesquisas no Sítio Brazabrantes I e a análise laboratorial de todo material resgatado possa trazer mais esclarecimentos sobre as peças ali encontradas. PALAVRAS CHAVE: Arqueologia;Resgate;Zoomorfos
ABSTRACT: This article seeks to highlight small zoomorphic ceramic pieces found in the state of Goias- Goiania 30 km from the capital near the town of Brazabrantes in Brazabrantes Site I, within the North-South Railway Project. Excavation methods began with artificial levels of 0.10 m throughout the rescue, even when it started to dig the trench and its expansions resulting from the large amount of material found. Hopefully that the deepening of the research material in Brazabrantes Site I and analysis laboratory of all material rescued can bring further clarification of the pieces found there. KEYWORDS: archeology; rescue; zoomorphic.
1* Atualmente é coordenador geral de pesquisa da Funadação Aroeira PUC – GO. 2** Arqueólogo PUC-GO.
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Dentro da língua portuguesa, a palavra “zoomorfo” caracteriza-se como qualquer forma que carregue em si uma característica animal, derivando-se dela o conceito de zoomorfismo, culto religioso que dá às divindades formas animais (SILVEIRA BUENO, 2007). Sabe-se que no estudo da arqueologia as figuras zoomorfas encontradas em cerâmica possibilitaram, até certo ponto, hipotetizar estudos sobre a fauna de cada região onde as peças foram encontradas (CADENA e BOUCHARD, 1980: 50). André Prous (1992:233) destacava as esculturas zoomorfas dos sambaquis , em pedra e osso, divulgadas desde o século XIX pelos primeiros arqueólogos, que se recusavam a acreditar que os indígenas brasileiros, tão ´atrasados` e selvagens, pudessem ser os autores de obras esteticamente tão impressionantes. Sendo assim, até os anos 30 procurou-se uma origem andina para essas realizações. O que se sabe é que foram pouco mais de 240 peças encontradas em quase quarenta sítios, desde o sul de São Paulo (Iguape) até o Uruguai. Além dos sambaquis, foram achados também na encosta norte da serra no Vale do Jacuí e em sítios abertos do Uruguai. 1
Cadena e Bouchard (1980:50) ressaltaram um estudo de análise das espécies da fauna local realizado a partir da seleção de pequenas figuras de cerâmica, pré-colombianas, procedentes da região de Tumaco, Colômbia e da região de La Tolita, Equador, pertencentes às coleções do Museu Nacional de Antropologia de Bogotá e do Museu do Banco Central do Equador, em Quito. Pesquisando-se sobre os estudos arqueológicos na região Amazônica (NEVES: 70; PROUS, 2006:119), encontraram-se relatos sobre um pequeno, porém representativo repertório de estatuetas em pedra polida representando seres humanos e animais, com destaque para onças e sucuris. Estes artefatos foram associados à cerâmica Konduri, encontrada próxima a Santarém, na região dos rios Nhamundá e Trombetas, bem como na região de Parintins, caracterizada também por uma profusão de apliques modelados entre os quais dominavam os sapos e o urubu-rei. Também em locais como a Ilha de Marajó, Santarém, alto Tapajós e até mesmo ao norte de Manaus registrou-se a presença de artefatos de pedra conhecidos como os muiraquitãs, encontrados inclusive fora da Amazônia, nas Guianas e ilhas do Caribe (NEVES, 2006:70). O fato é que a distribuição de muiraquitãs por ampla área indica que as populações amazônicas do início do segundo milênio não estavam isoladas, mas sim integradas em redes de comércio ou de outros tipos, que permitiam o contato. Devido ao seu tamanho reduzido e alta portabilidade, muiraquitãs são peças sujeitas a roubo e contrabando (NEVES, 2006, p.70).
Muitas outras ocorrências foram registradas em pontos isolados, mas ainda insuficientemente estudados da Amazônia. Simonsen (1980:30) e Prous (2006:121) falam de modelagens cerâmicas pré-históricas representando animais (sobretudo peixes, inclusive arraias, aves, tamanduá, porco-espinho) que foram jogadas em grande quantidade na lagoa Miararré, no Alto Xingu, perto da 1 A palavra sambaqui seria derivada de tamba (marisco) e Ki (amontoamento) em tupi. Trata-se, portanto de uma acumulação artificial de moluscos, vestígios da alimentação de grupos humanos. A palavra caracteriza sítios arqueológicos de depósitos homogêneos, nos quais as conchas estão bastante repartidas em superfície e profundidade, formando a quase totalidade da amassa sedimentar (PROUS, 1992).
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aldeia Kikuro, provavelmente datadas dos séculos XIV e XV. Segundo os indígenas atuais, a presença destas peças na lagoa, garantia a riqueza em peixes, desde que as peças não fossem tocadas com a mão pelos homens. Na fronteira entre o domínio da floresta amazônica e as extensões da caatinga do Nordeste, antigas prospecções realizadas em 1919 evidenciaram a existência de ricos sítios no baixo curso do rio Pindaré (Maranhão), onde em lagoas rasas foram coletados milhares de cacos de cerâmica original, com as paredes marcadas por impressão de folhas e de cestaria, feitas na pasta ainda úmida e com apêndices eventualmente zoomorfos (PROUS, 2006:93). A presença de representações cerâmicas zoomorfas tanto na região do Equador como na Amazônia confirmaram a teoria da influência da Mesoamérica e Andes centrais na civilização do Novo Mundo. O conhecimento das seqüências culturais de ambas as áreas tornou evidente que este intercâmbio começou em época relativamente antiga (MEGGERS, 1979:68). Durante o Período Formativo2 inicial, os mais significativos traços, incluindo a manufatura de cerâmica e certas plantas domesticadas passaram de uma à outra região. Começando pouco antes da era cristã e continuando até a época da conquista espanhola, a evidência de contato é mais abundante, refletindo, talvez, expedições planejadas de comércio (MEGGERS, 1979, p.68).
Pequenas máscaras de cerâmica e numerosos detalhes de vestimentas, ritos e artes, estavam entre os elementos introduzidos do México para a costa do Equador. Abundantes figurinhas de argila (faces grotescas com aspecto felino), feitas com moldes, encontradas na região da Mesoamérica, mais especificamente em todas as terras altas e nas costas de Vera Cruz, Chiapas e Guatemala, confirmaram que aos poucos estas figuras iam perdendo seu significado, sendo descartadas após breve período de uso, provavelmente em rituais de cura (MEGGERS, 1979:68). Pretende-se com este artigo destacar pequenas peças zoomorfas em cerâmica encontradas no Estado de Goiás a 30 km da capital Goiânia próximo à cidade de Brazabrantes no Sítio Brazabrantes I, dentro do Projeto da Ferrovia Norte-Sul, Extensão Sul, que é apresentado a seguir. O Projeto da Ferrovia Norte-Sul - Apresentação Sintética: O Projeto de Levantamento, Monitoramento e Resgate do Patrimônio Arqueológico das Obras de Implantação da Extensão Sul da Ferrovia Norte Sul (FNS) entre os Municípios de Ouro Verde – Goiás e Estrela D’Oeste – São Paulo, foi elaborado e vem sendo coordenado pela equipe de arqueólogos da Fundação Aroeira. Trata-se de um projeto que vem sendo executado desde o segundo semestre de 2010 e encontra-se em fase de encerramento. Foram realizados levantamento e resgate do patrimônio histórico cultural e pré-histórico na área de implantação desse projeto, que abrange 26 municípios em Goiás, 5 municípios em Minas Gerais e 9 municípios no Estado de São Paulo (NUNES e MENDONÇA, 2010) 2 O período Formativo da civilização mesoamericana alcançou seu clímax entre 1.500 e 1.000 a.C.
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Os programas de levantamento, monitoramento e resgate de sítios arqueológicos em áreas de impacto ambiental são práticas irreversíveis, que têm se tornado permanente na pesquisa arqueológica brasileira. Com isso, o gerenciamento de bens culturais pela arqueologia desenvolvida em contexto de impacto ambiental, é prática necessária, pois como sabemos, o patrimônio arqueológico é um bem esgotável e o sítio arqueológico não é renovável e nem tão pouco pode ser reposto (Lipe, 1974 citado por NUNES e MENDONÇA, 2010). Ainda segundo os mesmos autores, o objetivo principal do projeto da FNS é incorporar conhecimento efetivo sobre o processo de ocupação territorial através dos padrões de assentamento e subsistência das populações pré-históricas que habitaram a região, ou seja, compreender a maneira pelas quais as atividades sócio-culturais dos grupos estavam inter-relacionadas e distribuídas sobre aquela paisagem. O termo paisagem é muito bem apresentado e discutido por Chantal Blanc-Pamard e Jean-Pierre Raison na Enciclopédia Einaudi, edição portuguesa de 1986, que caracteriza a paisagem como a análise de tudo quanto é visível à observação, sendo, portanto um mecanismo complexo de múltiplas variáveis. É esta a evolução duma ciência que, tendo começado pela simples descrição do ambiente que envolve o homem, veio no nosso tempo debruçar-se com maior atenção sobre a rede de relações que ligam e ligaram os homens ao território desde que, com as primeiras formas de domesticação animal e vegetal, a sua ação transformou a natureza (Blanc-Pamard e Raison, 1986, citados por MORAIS, 2006). Caracterização da Área Trabalhada – O Contexto Ambiental e Histórico do Sítio Brazabrantes I: A área total do projeto de engenharia da Extensão Sul da Ferrovia Norte Sul é de 665,80 km de extensão, estendendo-se pelo centro-sul de Goiás, oeste de Minas Gerais e São Paulo. Inserida principalmente no domínio do Cerrado e em áreas de tensão ecológica caracterizada por savana, floresta estacional, com influência de elementos atlânticos (IBGE, 2004 citado por NUNES e MENDONÇA, 2010). O trecho da ferrovia onde se localiza o Sítio Brazabrantes I inicia-se no km 17, que foi o objeto de estudo da presente pesquisa. O trabalho de resgate no Sítio Brazabrantes I teve início em 04 de fevereiro de 2011. A ferrovia cruza a fronteira do Município de Brazabrantes (GO), com seu traçado acompanhando a margem direita do Ribeirão Cachoeira, em seguida o Ribeirão dos Gonçalves e mata de galeria. O sítio localiza-se no Município de Brazabrantes a 3,8 km de distância da sede municipal. Emancipado em 1958, o município conta com uma área de 124 Km2 e uma população de 3142 habitantes sendo a principal atividade econômica o comércio e a pecuária (IBGE, 2007 citado por NUNES e MENDONÇA, 2010). O Sítio Brazabrantes I encontra-se em área rural dentro de uma fazenda de criação de gado nelore. Apesar de seu solo não ter sido mexido recentemen-
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te, mesmo assim sua área foi degradada há alguns anos atrás, com a aragem do solo para o plantio de capim braquiaria, que dificulta a visualização de material arqueológico, aliado a isso o pisoteamento pelo gado acentuou a compactação do solo. Estradas foram abertas para circulação interna da fazenda, várias cercas foram construídas e outras desmanchadas para manejo do gado, impactando também o solo com uma grande quantidade de estacas e mourões. Apesar da degradação, a área em que se encontra o sitio tem em seu entorno o Ribeirão dos Gonçalves, que no trecho em que acompanha o sítio, suas margens são protegidas por mata galeria, ribeirão esse que ainda hoje demonstra a presença da fauna em seu entorno, com alta piscosidade de suas águas e abundância de mariscos em suas margens arenosas. Raposas, pacas, aves de pequeno e médio porte foram registradas durante o trabalho, demonstrando que a área em tempos pretéritos deveria ser abundante em fauna e flora, fortalecendo a hipótese de ter sido um ótimo local para assentamento. Especificando a área de estudo, tem-se como principal vegetação o capim braquiaria, devido a criação de gado no local. Encontra-se também a vegetação de cerrado e mata de galeria que acompanha o leito do Ribeirão dos Gonçalves. O terreno tem inclinação suave que vai se acentuando a medida que se aproxima do rio. Com exceção a sudoeste há alguns trechos de inclinação íngreme que se inicia a aproximadamente 80 a 100 metros antes do rio. Durante o século XVI, no Brasil Central, motivado inicialmente pela captura de índios e, posteriormente, pela exploração mineral, o colonizador português utilizava como rota de penetração os rios de mais fácil navegação, formando pequenos povoados às suas margens para o apoio das suas atividades. Face às dificuldades da empreitada colonial, os portugueses buscaram alianças com alguns grupos tribais, absorvendo dos nativos, técnicas de controle da natureza e estratégias de sobrevivência na região. A partir de 1641 o bandeirantismo começou a mudar de caçador de índios para busca de jazidas de ouro.A mineração concentrou-se nas áreas centro-sul, polarizada pela Vila de Goiás. Vila Boa foi fundada por Bartolomeu Bueno da Silva Filho, em 1727, com o nome de Arraial de Santana, na região do Rio Vermelho. “Pesquisas revelaram que a região que compreende o Rio Tietê abaixo, indo para Mato Grosso e para Goiás”, ou seja, incluindo o atual Triângulo Mineiro, passou a ser conhecida pelos bandeirantes como a "região dos bilreiros ou caiapós" (Taunay: 1975, citado por NUNES e MENDONÇA). Há diversas referências que indicam que esta era uma área de influência dos grupos Kayapó do Sul. Os Kayapó foram perdendo o seu domínio do território inicialmente para os bandeirantes, que adentraram o sertão em busca de escravos e ouro. Esta região que era território tradicional dos Kayapó começou a ser compartilhada por outros grupos indígenas que foram levados de outras áreas do centro-oeste para os Aldeamentos implantados pelo governo da Capitania de Goiás, desde 1748 e que sobreviveram até a metade do séc. XIX. O Sítio Brazabrantes – Características arqueológicas: Quando se iniciou o resgate no Sítio Brazabrantes I, logo na primeira intervenção de 1m x 1m, constatou-se ser um sítio diferenciado, pois foram retirados aproximadamente 410 fragmentos cerâmicos até o nível 0,60m.
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A partir desse fato os sedimentos foram peneirados e minuciosamente vistoriados em todas as intervenções. Outro marco importante no inicio dos trabalhos foi o primeiro fragmento zoomorfo encontrado com tamanho aproximado de 2 a 3 cm de comprimento que veio a confirmar que a metodologia de peneirar todos os níveis de todas as intervenções era o correto. Esses fatores fizeram com que durante os trabalhos de resgate fossem escavadas 515 sondagens com dimensão de 1m x 1m e profundidade variada num total aproximado de 43.219 fragmentos cerâmicos e 1.973 fragmentos líticos. Observaram-se algumas concentrações de material cerâmico que se destacaram pela grande quantidade de fragmentos. O Sítio Brazabrantes I caracterizou-se, portanto, por apresentar material lítico e cerâmico disperso na superfície da área, constituindo-se em uma aldeia a céu aberto de grandes dimensões, conforme detalhamento mais a frente. No estado de Goiás estes assentamentos do tipo aldeia têm sido vinculados às tradições Uru ou Aratu (SCHMITZ et al. 1982: 248). Estes sítios caracterizam-se por estarem estabelecidos predominantemente em uma área de mata mesófila e situam-se sobre declives ou topos planos de pequenas elevações. Distam de 60 a 800 m de água mais próxima e apresentam elementos cerâmicos identificados como neo-brasileiros, supondo-se como o final da fase do período de contato com os colonizadores europeus (WÜST, 1983). Enfoque teórico-metodológico: Conforme já descrito anteriormente o Sítio Brazabrantes I encontra-se numa área que será impactada pela Ferrovia Norte Sul, destruindo assim boa parte das informações remanescentes dos antigos habitantes do sítio. Visando amenizar este fato, foram empregados procedimentos metodológicos de resgate ou salvamento arqueológico que buscaram contribuir com a compreensão do sítio e suas relações com o entorno, como por exemplo, a observação detalhada dos materiais resgatados e dos locais onde foram encontrados. Essas informações passadas para o croqui de campo contribuíram para uma melhor visualização e tomada de decisão dos passos da pesquisa de campo. Esta proposta iniciou-se com a definição de sítio arqueológico que envolvesse as áreas de atuação dos que ali viveram e a paisagem, onde buscavam seus recursos de matéria prima. Tentou-se assim, se colocar no lugar desses antigos habitantes e buscar mais informações espaciais a partir da relação entre a cultura material e os recursos disponíveis encontrados no entorno do sítio. Para obter informações sobre o ambiente que pudessem estar relacionadas a fatores econômicos, foi feita uma verificação do entorno da área. No sítio Brazabrantes I foram identificadas fontes de matéria-prima muito próximas às áreas de concentração de material arqueológico. O afloramento rochoso próximo à margem do rio é de matéria-prima semelhante a uma das machadinhas encontradas no sítio, o que pode sugerir uma fonte de recurso disponível. A sudoeste foi identificada também uma área com argila de boa qualidade que poderia ter sido usada pelos seus moradores da época. Além da disponibilidade de água fornecida pelo rio, e da fauna e flora da mata de galeria.
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O conceito de retroalimentação proposto por Redman (2006) fez surgir novos questionamentos e mudanças em campo. No caso específico deste trabalho foi a observação dos locais onde os materiais foram encontrados, a paisagem, ou seja, todas as informações observadas em campo que retroalimentaram o trabalho para que se pudessem ser visualizadas novas situações, utilizando-se do raciocínio dedutivo e indutivo, obtendo-se mais informações e tirando-se mais conclusões que pudessem ajudar no objetivo final. Sabe-se que uma ferramenta que o arqueólogo deve utilizar é sua caderneta de campo, neste caso, as anotações feitas no dia a dia foram somando informações para uma análise ou raciocínio prévio sobre o sítio e seu entorno. Este conjunto de informações induziu ou direcionou certas ações em campo, para uma melhor tomada de decisão do que deveria ser feito. No reconhecimento do entorno do sítio, foram percorridos vários caminhos pelo pesquisador, iniciando-se com distâncias próximas aos possíveis limites do sítio e indo até um raio aproximado de dois quilômetros, sendo que em algumas direções essa distância não foi possível de ser percorrida, devido a barreiras naturais, como por exemplo, o Ribeirão dos Gonçalves. Quanto aos métodos de escavação iniciou-se por níveis artificiais de 0,10 m durante todo o resgate, até quando se começou a escavação da trincheira e suas ampliações decorrentes da grande quantidade de material encontrado (Figuras 1 e 2).
Fig. 1 e 2 Detalhe da concentração de material cerâmico na trincheira.
Alguns locais com material cerâmico se destacaram pela grande quantidade de fragmentos. Essas áreas de concentração foram separadas no croqui para serem melhor observadas, constatando-se cinco grupos compostos com uma média de 1.300 fragmentos em cada grupo, formando um polígono com uma área interna praticamente sem material ou com pouco material. Analisando-se ainda essa concentração, separou-se o grupo de sondagens com maior número de fragmentos, e dentre elas a sondagem com maior quantidade de material. A partir dessa sondagem marcou-se inicialmente mais 06 sondagens consecutivas na mesma linha sentido norte sul, que juntas formaram uma trincheira de seis metros. Nelas o material cerâmico estava sobreposto, fazendo com que desde a superfície até o nível 0,40 m fossem feitas escavações utilizando-se a decapagem. Foram marcadas mais cinco quadrículas desse mesmo ponto, com sentido para o norte, aumentando-se assim a trincheira para 11 metros de comprimento. Escavando essas cinco sondagens verificou-se que a quantidade
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de material aumentou muito nos três primeiros metros, e as duas últimas ainda apresentou material, mas em quantidade bem menor que nas três anteriores citadas. Nesse trecho quando observado o perfil oeste verificou-se uma mancha mais escura se sobressaindo ao latossolo vermelho, com comprimento aproximado de sete metros (Figura 3) e espessura que varia entre 0,20m e 0,40 m do centro para as extremidades com fragmentos cerâmicos incrustados. Isso feito constatou-se que na direção norte e sul a quantidade de material reduzia. Este fato mostrou que a trincheira deveria ser aberta na direção oeste e leste, mas partindo-se do ponto com maior concentração. Decapou-se uma superfície de 110 m2 até 0,20m, de onde se retirou mais de 28.110 fragmentos cerâmicos até esse nível. A escavação da trincheira foi feita em várias profundidades, de acordo com as quantidades de material que apareceram até se atingir pelo menos dois níveis estéreis, ou seja, 0,20m de profundidade. Nesta trincheira se chegou a 105 intervenções, sendo destas 34.272 cerâmicos e 1.329 líticos resgatados. Durante os trabalhos de resgate, e pensando-se em todas as especificidades apresentadas pelo sítio Brazabrantes I, sentiu-se a necessidade de mais informações sobre o assentamento, mais especificamente na escavação da trincheira, pois esta se localizava exatamente no ponto do assentamento onde foi encontrada uma maior quantidade de material cerâmico. Decidiu-se coletar sedimentos deste local, assim como sedimentos junto com o material cerâmico para que fosse feita uma datação por termoluminescência. Estes sedimentos foram retirados exatamente dos pontos onde se visualizou a camada estratigráfica mais escura (mancha) com cerâmicas incrustadas (Figura 3).
Figura 3. Trincheira com detalhe da mancha no perfil estratigráfico.
Os resultados prévios demonstraram que a aldeia provavelmente constituía-se de moradias em torno de uma área central vazia, parecendo ter forma elíptica, com aproximadamente 100m x 80m. Estas concentrações mais densas abrangem uma área de 180m x 160m, o que corresponderam a 10,2% da área total do sítio. Wüst e Carvalho (1996:47) colocam que os sítios pré-coloniais no Centro-Sul de Goiás estão ligados as tradições Aratu e Uru, um assentamento anular, com grandes aldeias que podem ter chegado até dois mil indivíduos. No sítio
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Guará 1, objeto de estudo das autoras, as concentrações estão ocasionalmente associadas a solo preto, que parece corresponder a antigas áreas de habitação e seus entornos, também partem do pressuposto que o espaço de um assentamento não pode ser tratado de forma homogênea. As informações coletadas em campo confirmaram as autoras acima colocadas, ou seja, que a maior concentração de material esteve associada ao solo escuro, exatamente como a mancha onde foi escavada a trincheira e onde foi encontrado o maior número de fragmentos cerâmicos e líticos do sítio. Resultados A área de delimitação do sítio através do material encontrado, tomando como base de sul a norte, atingiu a uma extensão de 540 metros, de oeste para leste a extensão chegou a 520 metros. Salientando-se que dentro da área total do sítio, temos pequena quantidade de material nas sondagens que o delimitaram e fragmentos espalhados na superfície por toda a área, por causa da retirada da vegetação original e aragem na época em que foi plantado o capim. Neste artigo serão ressaltados apenas os fragmentos cerâmicos com representação zoomorfa. Parece que a localização das moradias está relacionada aos pontos com grande concentração de material cerâmico e solo antropogênico. No centro desses pontos temos pouco ou nenhum material. A concentração de cerâmica nos pontos citados perfaz aproximadamente 79% de todo o material cerâmico do sítio. A profundidade máxima de deposito arqueológico chegou a 1,20m, sendo que na abertura de todas as sondagens o patamar adotado foi de escavar até 0,60m. Chegando-se nesse nível e encontrando-se material foram escavados mais 0,20m até não se encontrar mais material, ou seja, todas as sondagens têm no mínimo 0,20m de camada estéril. Analisando-se os materiais arqueológicos retirados do sítio observaram-se alguns exemplos de fragmentos cerâmicos diferenciados, tais como uma borda acastelada ou algum outro tipo de decoração cuja representação lembra olhos de algum tipo de animal ou pássaro, caracterizando-se, portanto, como formas zoomorfas (Figs. 4, 5, 6, 7,8).
Figura. 4. Zoomorfo - Coruja
Figura. 5.Zoomorfo - Passarinho
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194 Figura. 6. Zoomorfo - Papagaio
Figura. 7. Zoomorfo - Tucano
Figura. 8. Zoomorfo - Sapo
No Estado de Goiás não há referências de bordas com apliques zoomorfos, sendo necessária uma pesquisa mais detalhada para associação cultural do material. Esse material foi encontrado em algumas sondagens do sítio, sendo que em sua maioria foram em sondagens com maior concentração de material cerâmico, associado a fragmentos de lascas. A região onde se encontra o sítio está localizada a aproximadamente 20 km da capital do Estado de Goiás, Goiânia. No local ainda existe fauna abundante e com parte de mata de galeria preservada, isso foi constatado durante o trabalho de resgate ou salvamento, sendo documentada em fotos e aqui apresenta-se esta fauna destacada como similar aos zoomorfos recolhidos. Foram cinco tipos zoomorfos: 1. A coruja 2. O passarinho 3. O papagaio 4. O tucano 5. O sapo Percebe-se que quatro destes tipos morfológicos se encontram dentro da classe das “aves” e um na classe de “anfíbios”. Os tipos morfológicos não serão discutidos em termo de classes, mas sim em seu aspecto espécie, ou seja, tentando-se encontrar afinidades na literatura sobre a fauna da região, utilizando-se como referência o livro de Hidasi (1997) sobre as Aves de Goiânia e da Revisão E Detalhamento da Carta de Risco e Planejamento do Meio Físico de Goiânia (ITCO, 2008).
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Zoomorfo 1 - Coruja: Destacam-se seis tipos de corujas da ordem Strigiformes, presentes na região. São elas: 1. Tyto alba tuidara Gray,1829, conhecida vulgarmente como Suindara,da família Tytonidae, que vive nos cerrados, campos abertos, grutas, casas abandonadas e torres de igrejas. 2. Rhinoptynx clamator clamator Vieillot,1807, conhecida vulgarmente por Coruja-orelhuda,da família Strigidae, que habitam os cerrados, campos, florestas e matas fechadas. 3. Otus choliba decussatus Lichtenstein, 1823, conhecida vulgarmente como Corujinha-de-orelha, também da família Strigidae. 4. Pulsatrix perspicillata perspicillata Latham,1790, conhecida vulgarmente como Murucututu,também da família Strigidae. 5. Glaucidium brasilianum brasilianum Gmelim,1788, conhecida vulgarmente por Caburé ferrugem, também da família Strigidae. 6. Speotyto cunicularia grallaria Temminck,1782, conhecida vulgarmente por Coruja-buraqueira, também da família Strigidae. Zoomorfo 2 – Passarinho: Aves de cabeça grande, boca de sapo, pernas curtas e olhos enormes, caracterizam os pássaros da ordem Caprimulgiformes, que possuem hábitos noturnos e constroem seus ninhos em árvores de galhos secos, onde colam um ou dois ovos com saliva. Imitando com o próprio corpo a continuação de um galho seco (mimetismo), podem passar despercebidas no seu ambiente natural. Existem duas espécies da família Nyctibiidae, presentes na região: 1. Nyctibius grandis grandis Gmelin,1788,vulgarmente conhecido como Urutau-grande. 2. Nyctiibius griséus griséus Gmelin,1789, vulgarmente conhecido como Mãe-da-lua. Zoomorfo 3 – Papagaio: Muito estimados pelo homem, os papagaios da ordem Psittaciformes, da família Psittacidae, aparecem em grande quantidade em matas e cerrados. Seis são as espécies mais encontradas na região: 1. Ara nobilis longipennis Neumann, 1831, vulgarmente conhecido por Maracanã-pequeno. 2. Aratinga leucophthalmus leucophthalmus Muller,1776, vulgarmente conhecido por Aratinga-do-bando. 3. Aratinga solstitialis aurocapilla Kuhl, 1820, vulgarmente conhecido por Jandaia-de-testa-vermelha.
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4. Aratinga aurea aurea Gmelin,1789, vulgarmente conhecido por Aratinga-estrela. 5. Forpus crassirostris vividus Ridgway,1888, vulgarmente conhecido por Tuim-de-asa-azul.
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6. Brotogeris versicolorus chiriri Vieillot,1817, vulgarmente conhecido por periquito-de-asa-amarela. Zoomorfo 4 – Tucano: São aves belas e curiosas que são perseguidas pelos caçadores devido a sua carne saborosa e plumagem exuberante. Pertencem a ordem Piciformes, da família Ramphastidae, tendo asas curtas, pernas forte, cauda longa, bico enorme e uma língua fina e cumprida que parece uma pena à primeira vista. Três são as espécies encontradas na região: 1. Ramphastos culminatus pintoi Peters, 1945, vulgarmente conhecido como Tucano-de-bico-preto. 2. Ramphastos toco albogularis Cabanis, 1862, vulgarmente conhecido como Tucanuçu macho. 3. Pteroglossus castanotis australis Cassin,1867, vulgarmente conhecido como Araçari-castanho. Zoomorfo 5 – Sapo: São conhecidas cerca de 150 espécies de anfíbios no cerrado brasileiro, e aproximadamente 28% dessas espécies são endêmicas (RIBEIRO-JÚNIOR & BERTOLUCI, 2009:208). Em Goiânia e seu entorno, seis são as espécies encontradas (ITCO, 2008). São elas, todas pertencentes à classe Amphibia: 1. Barycholos savagei, da família Leptodactylidae, vulgarmente conhecida por rã. 2. Barycholos ternetzi, também da família Leptodactylidae, também vulgarmente conhecida por rã. 3. Bufo ocellatus, da família Bufonidae, vulgarmente conhecido por sapo. 4. Hyla biobeba, da família Hylidae, vulgarmente conhecida por perereca. 5. Hyla peseudopseudis, também da família Hylidae, também vulgarmente conhecida por perereca. 6. Hyla rubicundula, também da família Hylidae, também vulgarmente conhecida por perereca. Conclusões Uma primeira conclusão que se pode fazer desta análise diagnóstica das espécies pelo uso das pequenas peças zoomorfas de argila é a coincidência de terem sido registrados animais até hoje ainda existentes na fauna da região.
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Considera-se este Sítio Arqueológico Brazabrantes I como único, pois tais tipos de decoração não se enquadram dentro do padrão pré-estabelecido para esta região. Têm-se neste Sítio um algo mais apenas presente em outros tipos e formas encontradas somente na Região Amazônica. Sabe-se que a presença de representações cerâmicas zoomorfas tanto na região do Equador como na Amazônia confirmam a teoria da influência da Mesoamérica e Andes centrais na civilização do Novo Mundo, como também o início da comercialização de pequenas peças (MEGGERS, 1979:69).Teria este comércio chegado até aqui, enriquecendo culturalmente aos habitantes desta região? Cadena e Bouchard (1980:56) ao estudarem pequenas peças zoomorfas encontradas no Equador e Colômbia concluem que estas não tinham a função de representar os animais de subsistência dos habitantes da época, visto que os pré-colombianos tinham como meio de sobrevivência a pesca e não a caça e praticamente não houveram representações de peixes ou animais marinhos entre as pequenas peças encontradas. Sendo assim, os autores concluem que a representação da fauna nestas peças poderia simbolizar a expressão de valores cosmogônigos para estes povos ou relacionados à mitologia própria destes grupos. Espera-se que o aprofundamento das pesquisas no Sítio Brazabrantes I e a análise laboratorial de todo material resgatado possa trazer mais esclarecimentos sobre as peças ali encontradas, confirmando-se talvez a possibilidade de que estas representações zoomorfas em cerâmica possam ter sido objetos de decoração ressaltando a fauna conhecida e predileta, mas também terem sido utilizadas para representar diferentes hierarquias entre o povo ali existente. O fato de que aproximadamente 80% dos zoomorfos foram encontrados na trincheira que abrange aproximadamente 110m² é outro ponto que deverá ser investigado, buscando nas outras áreas de concentração, que não foram feitas o mesmo trabalho da trincheira, um resgate com as ampliações necessárias para poder ter dados suficientes para uma comparação do que se tem hoje e aí sim, ser feita uma análise das figuras zoomorfas abrangendo todo o sítio e a distribuição espacial mais próxima possível da realidade da época. Referências BUENO, S. 2007. Silveira Bueno: minidicionário da língua portuguesa/ Silveira Bueno. – São Paulo: FTD. CADENA, A e BOUCHARD, J.F. LAS FIGURILLAS ZOOMORFAS DE ��� CERAMICA DEL LITORAL PACÍFICO ECUATORIAL.1980. In: Bull. Inst.Fr.Et.And. (IFEA).1980,IX,número 3-4,pp.49-68.Retirado em www.ifeanet.org/publicaciones/ boletines/9(3-4)/49.pdf, em 19/05/2012. HIDASI, J. 1997. Aves de Goiânia: Fundação Jaime Câmara, 1997.324.p.II. ITCO (Instituto de Desenvolvimento Tecnológico do Centro-Oeste). 2008. Revisão e Detalhamento da Carta de Risco e Planejamento do Meio Físico de Goiânia. MEGGERS, B. J. 1979. América pré-histórica/ Betty J. Meggers; tradução de Eliana Teixeira de Carvalho. – Rio de Janeiro: Paz e Terra.
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A DocumentaçãoArqueológica sobre as Figuras Zoomorfas de Cerâmica do Sítio Brazabrantes I no Centro Oeste Brasileiro
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Artigo recebido em maiode 2015. Aprovado em julho de 2015
POR UMA POLÍTICA DE CIDADANIA: O ECOMUSEU “DOS CAMINHAMENTOS DO SERTÃO” Alcidea Coelho Costa1 Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal Sulivan Charles Barros2 Universidade Federal de Goiás RESUMO: O Ecomuseu “Dos Caminhamentos do Sertão” enquanto manifestação da comunidade da cidade de Sobradinho/DF, expressa toda a dinâmica populacional tanto nos valores políticos, sociais e culturais quanto nos recursos naturais, considerados todos esses como peças-chave aos bens patrimoniais da cidade. Seu espaço territorial permite experiências, práticas e reflexões do indivíduo na ideologia do ser cidadão, contada nas histórias coletivas por meio de narrativas de vida com a função de orientar o comportamento da sociedade e a atuação do sujeito com a prática da democracia. PALAVRAS CHAVE: Ecomuseu; Cidadania; Movimento Cultural; Memória; Patrimônio.
ABSTRACT: The Ecomuseu “Dos Caminhamentos do Sertão” (Hinterland Pathways Ecomuseum), presented as a manifestation of the community from Sobradinho (DF), expressed by all the population dynamics - politicial, social, cultural values and by the natural resources, all these considered keys of the city’s heritage. Its territorial space allows experiences, practices and reflections of the individual citizenship ideology, told in collective histories by narratives of life with the role to guide society’s behavior and mankind behavior with democracy. KEYWORDS: Ecomuseum; Citizenship; Cultural Movement; Memory; Patrimony.
1 Mestre em Ciência Política, Centro Universitário Unieuro/DF. Professora da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. 2 Doutor em Sociologia, Universidade de Brasília, UnB. Professor da Universidade Federal de Goiás – UFG.
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O início do caminhar
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O interesse pelo Ecomuseu “Dos Caminhamentos Do Sertão” surgiu a partir de iniciativas de um grupo de professores do Centro de Ensino Fundamental nº 8, da Região Administrativa de Sobradinho II, quando estes procuraram técnicos e órgãos governamentais das Secretarias de Estado de Educação e de Cultura para auxiliá-los na organização de idéias e fatos que ocorriam naquela região, com intuito de torná-la uma referência histórica e social, transformando-a em local de museu para o Distrito Federal. Desde então, várias ações ocorreram, e têm ocorrido, em Sobradinho/ DF com o propósito de a comunidade local realizar trabalhos para a melhoria da qualidade de vida e incentivar o espírito de reconhecimento de seu patrimônio como algo que lhes dêem forma e vida na identificação de seus valores, e reforço em suas crenças e costumes manifestados na cultura local, como herança do seu passado. A pesquisa demonstrou que, os espaços territoriais de Ecomuseus permitem experiências, práticas e reflexões do indivíduo no valor da ideologia do ser cidadão, contada nas histórias coletivas que têm a função de orientar o comportamento da sociedade e da atuação do homem com a prática da democracia com destaque nos estudos da Ciência Política. A pesquisa sobre o Ecomuseu “Dos Caminhamentos do Sertão”, iniciada a partir do primeiro contato com os professores do Centro de Ensino Fundamental 8, de Sobradinho II/DF, foi participativa, com base nos eventos promovidos pelos professores e educandos da escola, sendo essas movimentações consideradas também ações do Ecomuseu. Ressalta-se que, há programações constantes promovidas pelas pessoas que estão vinculadas ao movimento cultural da cidade que considero serem ações próprias do Ecomuseu, todas direcionadas à preocupação de articulação da comunidade local, para o exercício de preservação e de pertencimento do patrimônio local. Realizou-se encontros com moradores da região vinculados ao movimento artístico da cidade e ao Ecomuseu, o qual trato como parte da pesquisa como estudo de caso e metodologia aplicada para a pesquisa que permite a observação do processo, o contato direto com os interlocutores, por meio de entrevistas e relatos de histórias de vida que demonstraram o exercício de sensibilização e, consequentemente, a conscientização da população para a reflexão e práticas políticas, no desejo de melhoria da qualidade de vida social e ambiental como atuação coletiva e individual no local de sua moradia. Trouxe os Estudos de Cidadania como linha de pesquisa para o universo de discussão da Ciência Política, porque acreditamos que as categorias sociais representativas da comunidade tiveram uma relação forte na organização do espaço territorial, como espaço de luta e movimentos sociais, partindo de um cenário cultural apresentado pelas diversas formas de percepção e visualização dessas práticas. Essas questões iniciais foram o ponto de partida para o meu interesse pelo estudo da temática de Ecomuseus, para que pudesse compreender que os
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problemas comuns e existentes nas relações entre espaço e cultura sejam compreendidos como espaços que internalizam ações que miram para ampliações de cidadania. Também são contribuintes para o sentimento e reconhecimento da comunidade como organismo vivo que promove o poder sobre a determinação política de cada indivíduo. Sendo assim, o trabalho de pesquisa teve como objetivo geral investigar e analisar a produção cultural da comunidade da Região Administrativa de Sobradinho/DF por meio de ações integradoras como resposta à hegemonia1 do Estado para com a sociedade carente dos benefícios e da sua presença efetiva. Como objetivos específicos, buscou-se compreender as formas de organização social do Ecomuseu e como elas se configuraram de modo a promover o espírito de pertencimento, visibilidade e sua caracterização à sustentabilidade política, social e cultural das propostas discutidas pela própria comunidade em estudo. Vale ressaltar que a pesquisa sobre o Ecomuseu oportunizou o aprofundamento do conhecimento político-social e da produção cultural da cidade. Pudemos observar mais detalhadamente a potencialidade da prática cidadã por meio da mobilização cultural, no sentido de se reconhecer como estimuladora das ações políticas e ter como resultados exercícios sócio-culturais da região em estudo. Verificou-se também que houve uma relação profunda com as experiências de vidas das pessoas com as quais tivemos a oportunidade de ter contato, tanto para a entrevista como também para conversas informais, durante o desenvolvimento da pesquisa, sendo esses moradores da cidade de Sobradinho/DF desde o surgimento como cidade satélite de Brasília, alguns até não tão antigos na cidade, mas que procuraram muito permanecer e tê-la como referência à infância, à juventude e ainda, aos dias de hoje. Essas pessoas foram de alguma forma, envolvidas e, assim, tornaram-se interlocutoras/colaboradoras da história, mantendo continuamente viva a motivação para o movimento artístico, político e ambiental, atitudes tão marcantes pelos moradores de lá. É esse o fator determinante para que o exercício do ser cidadão seja tão vivo nos Ecomuseus, pois surgiram a partir do desejo da própria comunidade, trazendo à tona os anseios e problemáticas apresentadas na formação de cada ambiente dinamizado, com objetivo de convencer as pessoas da importância de sua preservação e do valor de seu patrimônio, encorajando-as a conservá-los através da sua essência e sua continuidade nas novas gerações. Estrada à vista... O trabalho de pesquisa foi realizado com o método essencialmente qualitativo, cuja base está na investigação dos indivíduos e na interpretação dos sentidos frente à realidade subjetiva. Trabalha com a realidade, com o universo de significados, de motivos, de aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes (Minayo, 2007). 1 Baseado em Antonio Gramsci pode-se definir Hegemonia como forma de dominação do Estado. No presente estudo, indico a contra-hegemonia como uma demonstração adversa à Hegemonia Estatal, manifestada pela comunidade que se considera em condição de minoria social e política, e em recusa ao circulo fechado das determinações societárias.
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A pesquisa qualitativa lida com as interpretações da forma como as pessoas se expressam e falam sobre o que consideram importantes e sobre como se sentem enquanto atores sociais no mundo social.
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A proximidade com interlocutores/colaboradores fez com que as respostas tivessem um aprofundamento na subjetividade, da forma que, nas falas, o não explícito, é um elemento que está indiretamente revelado nas entrevistas, na busca mais perfeita da interpretação e análise de suas realidades, não perdendo de vista a ética, não mencionando o que não permitiram durante as horas entrevistadas, e também não os identificando, se assim desejassem. O tipo de metodologia aplicado na pesquisa foi o estudo de caso, realizado por meio de entrevistas dos relatos das histórias de vida dos antigos moradores da Região Administrativa de Sobradinho, o qual pretendeu compreender as relações, as atitudes, os hábitos e as representações e, principalmente, interpretar as suas visões de mundo. Fomos a Sobradinho a cada quinze dias, no período de dezembro de 2006 a junho de 2009, nos eventos programados para a comunidade, fazendo contatos com pessoas que estão envolvidas, de alguma forma, com as ações culturais da cidade. Eram artistas plásticos, líderes comunitários e pessoas que trabalhavam com o turismo e com a saúde da população local, entre outros. Foram eles e elas: Sra. Domicília Viegas, conhecida como Dna. Nana, moradora do Santuário da Nova Aliança, setor de chácaras de Sobradinho; Sra. M. Kalil, artista plástica; Sr. Nogueira de Lima, artista plástico; Sra. Liege, conhecida como Inuká, moradora da Chácara Aldeia da Terra, localizada em Sobradinho dos Melos; Sra. Ana da Rua do Mato, moradora da Rua do Mato desde 11 anos de idade; e a Professora aposentada Sra. Sílvia Santana. Utilizamos como instrumento de pesquisa de coletas de dados, anotações das reuniões que foram realizadas antes e durante o período da pesquisa, documentos e leituras de textos para que me orientassem melhor sobre como trabalhar com entrevistas, para legitimar e estabelecer uma confiança nesse processo, permitir que tornasse mais verdadeiro no momento de desenvolvimento do trabalho. As pessoas foram escolhidas para mapear as representações simbólicas, a movimentação social e a participação política do local, estavam dentro de um planejamento organizado. Buscou-se trabalhar com a memória, que está intimamente ligada à identidade, retratando muitas vezes o invisível, o não lido, mas tendo como base a construção da identidade coletiva e da cidadania. Isso trouxe uma significação marcante às questões levantadas, que muitas vezes não foram percebidas no campo da política e da cultura do indivíduo e da comunidade. Investigamos em cada interlocutor/colaborador o valor intrínseco nos seus relatos. As experiências que trouxeram tornaram-se estímulos para atuarem como realizadores da cultura. Foram vivências que pude apreciar quando iniciamos o diálogo - as lembranças que afloraram foram marcas que ficaram em suas vidas. Tínhamos o interesse de investigar como chegaram ao Distrito Federal, como traçaram as expectativas, suas buscas e quais perspectivas encontraram no início de suas trajetórias, em um lugar no qual a dinâmica como cidade estava surgindo.
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Fizemos a inter-relação com a história oral, com coleta de depoimentos relativos ao cotidiano da cidade, e do trabalho, no sentido de resgatar e registrar as tradições e suas referências culturais anteriores à vinda para cidade de Sobradinho. As entrevistas foam descritas por meio de gravador e registrei fotograficamente. Analisei-as e trouxe-as para o que pensei encontrar como resultado de pesquisa, que confirmou o papel que os Ecomuseus têm como objetivos primordiais: o agir para proteger seus conjuntos ambientais, sociais, políticos e culturais através da prática cidadã. Os interlocutores/colaboradores foram entrevistados baseados em um roteiro de perguntas, no qual o conteúdo foi analisado por meio das mensagens e suas variantes, e com a preocupação de valorizar o significado das diferentes falas. Busquei analisar as ideologias e o funcionamento das organizações através das produções artísticas e culturais dos sujeitos envolvidos com o Ecomuseu. ������������������������������������������������������������������ A função dessa metodologia foi subsídio para o Ecomuseu como acervo vivo e transformando-o em documento oral, como retrato de pessoas que formaram o passado e serão lembradas futuramente como elementos importantes para o valor e pertencimento das gerações do amanhã, num procedimento de cidadania mais consolidado. A pesquisa consente ao leitor se situar na localidade, no espaço social e na condição de cada indivíduo com uma forte preocupação na identificação dos interlocutores, os quais serão abordados pelos próprios nomes. A pesquisa trouxe um significado das diferentes falas, que desvendou como a sociedade se ergue num determinado ambiente e se organiza de forma particular e distinta, consciente de sua cidadania, onde a preocupação maior está no futuro, baseando-se na comprovação de Minayo (2007: 13), que diz: “os objetos de estudos das ciências sociais possuem uma “consciência histórica”, e que não é apenas o investigador que dá sentido ao trabalho intelectual, são todos os seres humanos que dão significados às ações e às correntes que se projetam para o futuro”. A pesquisa foi composta por dados subjetivos demonstrados nas reações, nas emoções e pensamentos que se tornaram importantes para contribuir na observação das representações da realidade, nos comportamentos individuais e nos reflexos do coletivo, e também oportunizou categorizar os papéis de cada interlocutor/colaborador nas histórias que foram sendo relatadas. As pessoas permitiram viver o presente com lembranças de épocas vividas no passado, de fatos que consideraram importantes, registrando vozes, vida e pensamento, tornando-se memória pessoal, social, familiar e grupal. Esses registros cruzaram os modos de ser do indivíduo e de sua cultura. As lembranças foram escolhas que perpetuariam para serem apreciadas na história de vida. Baseado na pesquisa de Bosi (2007: 37), foi utilizado como método de abordagem, inicialmente, a formação de um vínculo de amizade e confiança com os seus recordadores. Após esse primeiro momento, ela se considerou o sujeito e o objeto. Sujeito, enquanto indagava e procurava saber. Objeto, quando ouvia e registrava como um instrumento de receber e transmitir a memória de alguém.
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Nesse trabalho, no período dos relatos, ficaram mais presentes os fatos guardados nas lembranças, trazendo a consciência de um momento único, singular, não repetido e irreversível da vida, que aparece por via da memória. Referem-se às situações definidas, porém individualizadas.
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Ainda em Bosi (op.cit., 2007: 471), os interlocutores/colaboradores, em suas narrativas, traz a memória como ofício, o velho é muito bom de narrar, o passado transforma-se em exercício, os faz sentir importantes e capazes. Nasce uma relação de interesse comum em conservar o que foi narrado e o que deve poder ser reproduzido pelo ouvinte. A narrativa transforma-se em arte na relação com a alma, com o coração, olhos e mãos. Bosi considera o narrador um mestre de ofício, que conhece seu mister, tem o dom do conselho. “A ele foi dado o envolvimento de uma vida inteira. Seu talento de narrar lhe vem da experiência; uma lição de vida que, muitas vezes, se extrai de sua própria dor; sua dignidade é de contá-la até o fim sem medo” (op. cit., 2007, p.91). A importância de fazer um trabalho com história oral, com lembranças e memórias de pessoas que estão engajadas no processo de criação dos espaços culturais e museais, está categoricamente submersa no desempenho da cidadania, que contribui para formação de uma história que organiza em trajetória uma comunidade política e culturalmente. Riquezas da cidade: as singularidades de Sobradinho/DF e o Ecomuseu dos Caminhamentos do Sertão Primeiramente, discorro sobre a história da origem do nome Sobradinho, que oficialmente apresenta duas versões: a primeira, no final do Séc. XVIII, no reinado de Portugal, foi construído um sobrado como posto de contagem para controlar a passagem do ouro e receber o quinto (imposto pago pelo Brasil durante período de mineração). A segunda, antes de 1850, o Sr. Antônio Gomes Rabelo, um dos primeiros ocupantes da Fazenda Sobradinho, ergueu um cruzeiro como marco de suas terras, sendo que em um de seus braços, uma casinha com dois pavimentos foi construída pela ave joão-de-barro. Já para o historiador Paulo Bertran, o nome Sobradinho tem outra versão. Foi a partir de vários estudos que descobriram um trecho de doze quilômetros da antiga Estrada Real. Ela passa paralela aos quatro parques de Sobradinho. Pesquisas realizadas verificaram que há conexões histórico-culturais entre as cidades de Formosa e Corumbá, num trecho aproximado de 150 km, abrangendo os municípios de Padre Bernardo e Cocalzinho – GO. A história da Estrada Real visava retratar que por lá existiam as principais jazidas no Brasil, descobertas entre 1694 e 1730, resultante das famosas “Picadas”. Pessoas de diferentes lugares saíam à procura do melhor caminho para chegar ao sertão de Minas e estabeleceram uma complexa conexão sócio-econômica entre Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e os centros criadores de gado do Rio São Francisco. O elo dessa conexão eram as “Picadas”, ou seja, estradas que foram improvisadas por garimpeiros, pecuaristas, mascates e as pessoas que aportavam do sertão.
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No entanto, o Fisco Português, preocupado, assumiu o controle dessas estradas oficializando-as como Estradas Reais, mais conhecidas como Estradas dos Currais. As Picadas da Bahia foram oficializadas por Dom João V e redescobertas por Paulo Bertran, em meio às suas pesquisas (ECO MAGAZINE, 2006:18). O documento é um roteiro de Dom Luiz da Cunha Menezes, que elaborou, detalhadamente, o caminho da cidade da Bahia para a Vila Cachoeira e desta para Vila Boa, então capital de Goiás. Esse caminho bifurcava-se. O primeiro seguia para São Francisco, percorrendo várias cidades mineiras, encontrando-se com as Picadas de Goiás até Luziânia-GO. O segundo seguia o rio Carinhanha, passando por cidades goianas até chegar à Vila Boa. Para chegar a Picadas de Cachoeira, a saída era da cidade histórica de Cachoeira – BA até o rio Contas, local de mineração, e seguia por outro caminho ao norte de Minas Gerais, tomando rumo sudoeste. O Trecho Vale do Paranã, em Formosa-GO, têm vestígios naturais e culturais os quais se encontram sítios arqueológicos, cachoeiras e comemora-se a Festa do Divino. O Trecho das Águas Emendadas em Planaltina – DF apresenta o fenômeno de águas emendadas, as bacias dos Rios Maranhão e São Bartolomeu, inúmeras lagoas, o Vale do Amanhecer, e a Pedra Fundamental que marca o centro do País. No Trecho Chapada da Contagem, em Sobradinho – DF, com inúmeras fazendas históricas, a região do Pólo de Cinema e as paisagens da Serra da Contagem, localizava um importante posto de arrecadação de impostos no período imperial. O retrato da história da ocupação do Cerrado, que foi remontada a milhares de anos, condiz com grande movimento de vários povos que passaram e deixaram suas marcas. A ocupação econômica aconteceu com o avanço da colonização da Coroa Portuguesa que, aos poucos, estabeleceu cidades em torno da exploração dos recursos naturais do planalto brasileiro. Esta ocupação tomou outras dimensões com a construção de Brasília nos anos 1960, onde grandes áreas de antigas fazendas foram ocupadas sem que fossem preparadas sustentavelmente para as novas populações, até porque nessa época não havia uma preocupação com a utilização fundamentada nos moldes ambientalistas da atualidade. O norte do Distrito Federal, ao apresentar suas paisagens, partes altas do Planalto Central, caracteriza uma região tipicamente de nascentes que fazem parte de uma rica rede de drenagem que deságua em três grandes bacias hidrográficas: Amazônica, São Francisco e Prata, que contribuem significativamente para a sustentação de diversos ecossistemas nestes três distintos biomas. Esse cenário é composto por uma grande área verde, muito arborizada e com temperaturas agradáveis quase o ano inteiro. Sobradinho, Região Administrativa V do Distrito Federal, tem como vizinhos o estado de Goiás e as Regiões Administrativas de Brasília, Brazlândia, Lago Norte, Paranoá e Planaltina. No período de 1956 à 1960, no início da construção de Brasília, seus primeiros moradores vieram da Vila Amauri, do Bananal e das ocupações próximas à Vila Planalto. No local dessas ocupações foi determinada a construção do lago artificial Paranoá e fez-se necessária, na época, a transferência dessas famílias às cidades que estavam sendo criadas para abrigar os operários e acampamentos formados próximos às obras do Plano Piloto.
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A cidade cresceu e, com o passar do tempo, seu projeto inicial como área urbana foi alterado, expandido pela pressão do crescimento populacional. Assim, criou-se o Setor de Expansão do Setor Oeste de Sobradinho, hoje conhecido por seus moradores como Sobradinho II, que inicialmente abrigou a população que vivia aos arredores do Ribeirão Sobradinho e do Lixão, no período final da década de 1980. Foi a partir dos anos de 1980 e 1990 que os movimentos de conscientização cresceram e buscaram garantir melhores condições de vida para as nossas novas gerações. Dessa forma, foram instituídas áreas de preservação para garantir a sobrevivência de mananciais e a preservação de espécies características do bioma cerrado. Como resultado desses anseios e lutas, com preocupação inicialmente ambiental, a história do Ecomuseu dos Caminhamentos do Sertão naturalmente cresceu como espaço de produção de ações educacionais, culturais e políticas. A proposta inicial foi a organização ecológica do Vale da Contagem, onde vivem mais de duzentas mil pessoas em volta dos quatro parques ecológicos: Parque Recreativo e Ecológico Canela de Ema, Parque Vivencial Ecológico de Sobradinho/Horto Florestal, Parque Ecológico Jequitibás e Parque Vivencial Sobradinho Dois que necessitavam de investimento em suas estruturas e, por isso, não estavam preparados para uso da comunidade, principalmente por estarem localizados em ambientes urbanos, por sofrerem grande pressão social e constantes ameaças com o uso impróprio, falta de orientação e acompanhamento. Uma das várias preocupações da população da cidade era com o Ribeirão Sobradinho, que fazia parte da importante rede de drenagem e, apesar de não abastecer a população com água potável, dilui efluentes e segue curso para preencher a vazão de rios caudalosos. Seis nascentes deste córrego e um viveiro do Horto Florestal encontram-se no interior do Parque Vivencial Sobradinho/ Horto Florestal. Para José Ivacy, em entrevista a Revista Eco Magazine: É fundamental que se cuide das nascentes, uma herança que está preservada para nós, e que não aprendemos sua importância na escola. Então, estamos num momento anterior, compreender e passar para as outras pessoas, chegando às crianças. Daqui a dez ou quinze anos, teremos uma postura diferente com a questão (op.cit., 2006:12).
Em Sobradinho II, no Centro de Ensino Fundamental 8, onde estudam jovens moradores dos arredores do Parque Ambiental Canela de Ema, os professores, em umas das reuniões pedagógicas no ambiente escolar, iniciaram um trabalho multidisciplinar com conteúdos das disciplinas de História, Meio Ambiente, Geografia e sobre o território de ocupação da cidade, que foi o principal estímulo para que pudessem estar integrados à consciência política e à construção de práticas educativas ambientais e urbanísticas da região, próxima à escola e de moradia de seus alunos. Inicialmente, o assunto ecológico foi o tema “Abraço à Lagoinha do Parque Ambiental Canela de Ema”, localizado próximo à escola, que se encontrava naquele momento, no início do período escolar de 2005, muito poluído. Nessa região, foram criados quatro Parques Ambientais. Os educandos
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observaram mapas e percorreram trilhas que faziam interligações do Ribeirão Sobradinho aos Parques Ecológicos:Vivencial Sobradinho/Horto Florestal, Jequitibás, Vivencial Sobradinho II e Canela de Ema; juntamente com os corredores naturais da cidade. Os alunos trabalharam em campo e registraram tudo o que deparavam e que pudessem remeter ao tema. A partir dessas práticas pedagógicas, foi realizado o 1º Fórum de Educação Ambiental do Vale da Contagem, nos dias 17 e 18 de novembro de 2005, no auditório do Ministério Internacional Batista do Avivamento – MIBA, em Sobradinho. O objetivo desse Fórum foi a compreensão integrada do meio ambiente ao Vale da Contagem e o enraizamento da Educação Ambiental para a comunidade e na cidade. O resultado foi apresentado por meio da produção de trabalhos artísticos e expressivos como a pintura plástica, o grafite e uma construção de maquete, realizados pelos alunos da Escola.A partir desse evento, foi criado um espaço de encontros, interações e troca de experiências entre educadores e instituições ambientais do Centro-Oeste. Posteriormente, ocorreu o I Seminário do Ecomuseu dos Caminhamentos do Sertão, em junho de 2006, no Teatro Nacional Cláudio Santoro, em Brasília/DF. Esse seminário teve como objetivo sensibilizar a população do DF para a importância da criação de um espaço museal que remetesse à história inicial da cidade e ao rico patrimônio dessa comunidade. Contou com a participação de autoridades governamentais, professores, coordenadores da rede de ensino público, artistas, estudantes universitários e sociedade civil. Após o Seminário, realizou-se também, o II Encontro de Educadores Ambientais do DF e Entorno, em novembro do mesmo ano. Para difundir o trabalho do Ecomuseu, outras atividades variadas foram realizadas periodicamente, como a cavalgada nos doze quilômetros da Estrada Real, para mostrar os problemas e o potencial para as pesquisas, as características do cerrado, levantamento histórico de como era a vida dos grupos que passavam por essa região e, também, muitas visitas às nascentes. Conforme José Ivacy, na mesma entrevista, os quatro Parques Ambientais da cidade estão interligados pelo Ribeirão Sobradinho e seus braços à bacia do Rio São Bartolomeu, dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) do Planalto Central. Os parques são cercados também pela APA da Cafuringa e pelas Reservas Biológicas da Contagem e Estação Ecológica de Águas Emendadas, que estão entre o Parque Nacional de Brasília e a Chapada dos Veadeiros, em Goiás. José Ivacy considera que: Os Parques não poderiam ser vistos de forma separada, eles são naturalmente interligados ambientalmente e historicamente a um passado imemorial de ecossistema frágil e que está sendo destruído antes de ser conhecido, por isso o núcleo de estudo do Vale da Contagem passou a ter o objetivo de estimular a construção de um ambiente sustentável em torno desse corredor ecológico e muita forma de estudar a história da ocupação humana local (op.cit. 2006:18).
O Ecomuseu dos Caminhamentos do Sertão é uma proposta com visão de futuro. É um projeto de construção coletiva que deseja ter um ambiente equilibrado para as gerações que virão. É um instrumento de desenvolvimento
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comunitário que visa o conhecimento e a valorização dos agentes do patrimônio natural, histórico e cultural do Vale do Ribeirão Sobradinho. É um ambiente delicado, onde considera que todos são agentes e não somente visitantes. É um exercício de cidadania que visa à construção da identidade, por meio de um profundo senso de lugar e de continuidade histórica.
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Para Wagner Santana, também relata “o Ecomuseu prima pelo bem que é imaterial, a cultura, a tradição, a forma artesanal de se fazer as coisas, o modo de vida do lugar que deve ser preservado. Sobradinho preservou suas serras e os caminhamentos que escondem histórias.” (op.cit. 2006:18). Para José Ivacy: Esses caminhos começaram a ser feitos pelos animais e pelos paleoíndios ou índios americanos, que habitaram essa região há mais de doze mil anos e bem mais tarde foram utilizados pelos colonizadores.A intenção é trabalhar esses conceitos, contar essa história para a nossa geração, um elemento histórico forte que não estudamos na escola e que entendemos que é direito das crianças saberem para que possam desenvolver uma identidade do lugar e compreenderem que hoje temos um local abandonado, mas com nossa capacidade de organização e criação de novas alternativas, podemos visualizar um projeto de futuro diferente para o lugar. (op.cit. 2006:19).
O Ecomuseu “Dos Caminhamentos do Sertão” trabalha com o resgate histórico, com a ética sertaneja. Acredita-se que nesse trabalho esteja representado na vida dos moradores e que trás, por meio de obras artísticas, o estímulo na construção de uma simbologia e de um imaginário. São fotógrafos, artistas plásticos, músicos, ativistas e moradores tradicionais que conduzem as informações às novas gerações e a incitação para o reconhecimento cultural da cidade. O Ecomuseu, como agente promotor da história e da cultura, visa reunir registros documentais, fotográficos, publicações, objetos, projetos e trabalhos artísticos que possam contribuir para a transformação da área em local de pesquisa, preservação e exposição, não tem o intuito de poder absoluto das produções, mas sim ser facilitador do movimento artístico da comunidade como resposta a um discurso contra-hegemônico. Identificamos como um grupo de pessoas que estão preocupadas com as questões ambientais, culturais, sociais e políticas, sensíveis aos problemas da região como: poluição do ar, poluição dos mananciais, desmatamento de áreas verdes e da paisagem que compõem o cenário da cidade, a construção de áreas de lazer e de cultura, a saúde, a educação e alimentação, como também um elemento que visualize a prática turística. É um instrumento que desenvolve poder para uma população na fabricação e na exploração de seus saberes, de suas competências, que visa propor ações concretas numa luta de organização espacial urbana mais humanizada, menos agressora e mais democrática. Possibilita formar cidadãos conscientes do papel de conquistador do espaço de decisão e do espaço convencional de vivência coletiva e individual. O Ecomuseu mostra-se em processo de desenvolvimento político, cultural e socioambiental. O Ecomuseu dos Caminhamentos do Sertão é uma entidade que ainda não foi instituída como um ecomuseu como pessoa jurídica
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e em cartório, o que não deixa de legitimar suas reuniões e práticas, que são periódicas, conforme o tema que se queira discutir, e em locais que permitem a viabilidade desse processo. As pessoas que participam das reuniões do Ecomuseu dos Caminhamentos do Sertão não são somente as que estão engajadas ao movimento, são também outras que contribuem para o desenrolar das reivindicações. Essas assembléias são registradas em um livro de ata, no qual são anotados as questões e os encaminhamentos determinados. Os participantes mais freqüentes eram em torno de quinze pessoas, que compareceram conforme a temática e a pauta a ser discutida em reuniões previamente agendadas. As atividades profissionais foram diversas entre o grupo, participaram profissionais de educação, líderes comunitários, artistas plásticos, escritor, poeta, turismólogo, entre outros. As reuniões normalmente aconteciam a cada quinze dias, mas não de forma rígida, podia ocorrer com espaços de tempo maiores ou menores, conforme a urgência de atuação que se apresente. Esses encontros eram marcados ao final de cada reunião e normalmente eram distribuídas as ações a serem providenciadas por cada integrante. Nesses momentos, foram discutidos vários apontamentos, por exemplo, a participação dos integrantes em evento em comemoração ao aniversário da cidade, em outras ações e manifestos que precisariam ser organizadas em locais que tinham visualização, para que o ato chamasse atenção da população ou dos governantes da cidade com o intuito de focalizar algum problema ocorrido, e em alguns outros planejamentos. Alguns movimentos já ocorriam em anos precedentes como: Ato Cívico pela implantação do Parque Recreativo e Ecológico Canela de Ema, em junho de 2005; o I Fórum de Educação Ambiental do Vale da Contagem, em novembro de 2005; Seminário Ecomuseu dos Caminhamentos do Sertão, em junho de 2006; Encontro de Lideranças, em março de 2007; o III Abraço da Lagoa do Parque Canela de Ema, em julho de 2007; IV Abraço a Lagoa do Parque Canela de Ema, em agosto de 2008; e previsão do II Fórum de Educação Ambiental para o segundo semestre do ano corrente. Nem todas as reivindicações foram alcançadas e cumpridas, mas tornaram-se mais importantes como movimentos que, mesmo sendo de uma pequena parcela da população, demonstraram que havia um desconforto e permitia sensibilizar para as questões políticas, sociais, ambientais e culturais, em consonância com o local. O grupo vinha ampliando suas ações e adesões dos sujeitos que vislumbravam pela qualidade de vida, tanto dos moradores como da cidade. Esses trabalhos que mobilizariam a implantação do Ecomuseu, representado e afirmado como agente político-social em processo de desenvolvimento. Por meio dos registros das entrevistas feitas com os moradores antigos e recentes, foram apresentados em suas histórias os relatos da forma como chegaram à cidade e quais os momentos marcantes vividos nessa trajetória histórica e cultural.Trouxe a tarefa de buscar na memória, a essência da identidade do local e o fortalecimento patrimonial, que são as bases para o fundamento dessa museologia comunitária.
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Desejei ressaltar nesse trabalho, a lembrança da cidade no passado, como se via e como sentia o olhar das primeiras construções, e como os objetos podiam valorizar a expressão do sentimento para com a cidade. Um objeto, por simples que seja, é portador de valores que não escapam ao olhar do cidadão, e permite que gerações posteriores à sua possam usufruir desse mesmo sentimento de pertenciemento e respeito, e também, compreender que o espaço pode representá-lo. Os moradores e seus coadjuvantes vêem à cidade de Sobradinho com olhar de admiração. A cidade torna-se ainda mais sedutora na medida em que os moradores a conhecem melhor. É como um espelho no qual a comunidade possa se olhar e reconhecer o território onde vive, onde viveram as populações precedentes, na descontinuidade ou na continuidade das gerações. Que essa população mostre aos visitantes, o respeito ao seu trabalho, demonstre seus comportamentos e sua intimidade, juntamente com privilégio de pertencer a um local de belíssima paisagem natural e bagagem cultural. Fatos estes foram relatados nas falas de seus moradores os quais foram registrados por meio de entrevistas subsidiaram a análise do presente trabalho. São registros que ficaram para a história da cidade e suscitaram a valorização dos personagens na promoção de reconhecimento do passado, na busca de caminhos com melhores opções de qualidade de vida para o futuro. Considerações Finais A museologia permite tratar o valor que existe quando há o envolvimento da sociedade na preservação dos espaços naturais e culturais, daí a realização deste trabalho de pesquisa, que discorre sobre a população da Região Administrativa de Sobradinho/DF, cidade esta, vista como local privilegiado ambientalmente, produtora de artistas de grande potencialidade e da movimentação cultural para o Distrito Federal. Várias ações ocorreram e têm ocorrido com um propósito de a comunidade local realizar trabalhos para a melhoria da qualidade de vida e incentivar o espírito de reconhecimento de seu patrimônio como algo que lhes dêem forma e vida na identificação de seus valores, reforçando também suas crenças e costumes manifestados na cultura local, como herança do seu passado. Acredito que o objetivo da pesquisa foi atingido, isto é, possibilitar um novo olhar sobre a questão cultural e, principalmente e ao mesmo tempo, tornou possível investigar o Ecomuseu dos Caminhamentos do Sertão como local de cultura e de pertencimento, definido como o espaço que permeia a história, a memória e organizações políticas, levantadas e discutidas de acordo com as necessidades do momento, e que gera a melhoria da qualidade de vida, reconhecimento político e de cidadania da população local. A pesquisa demonstrou que os espaços territoriais neste caso Sobradinho/DF, permitiram experiências, práticas e reflexões do indivíduo no valor da ideologia do ser cidadão, contadas nas histórias coletivas que tiveram a função de orientar o comportamento da sociedade e da atuação do homem com a prática da democracia, com destaque nos estudos da Ciência Política.
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A pesquisa sobre o Ecomuseu dos Caminhamentos do Sertão constatou a importância da comunidade participativa por meio de eventos promovidos por ela, pelos professores e, principalmente, pelos educandos do Centro de Ensino Fundamental nº 8 de Sobradinho II, como também seus artistas sendo todos considerados movimentos e ações do Ecomuseu. As ações foram preocupações direcionadas à articulação da comunidade para o exercício de preservação e de pertencimento do patrimônio local, foram características do próprio retrato da Democracia e do pleno exercício de cidadania de um povo. As entrevistas com interlocutores/colaboradores geraram informações significativas sobre a própria ação ecomuseológica, sobre o olhar crítico e político que permitiu que aqueles tivessem o espaço para se posicionar contra ou a favor do reconhecimento governamental para com a conduta da população. As vivências foram significativas em decorrência das histórias de vida contadas por eles, nas quais compartilharam suas experiências nas relações com a cidade. As entrevistas evidenciaram relatos considerados relevantes mostraram o quanto o conceito de ecomuseu já estava enraizado nas falas e gestos dos interlocutores/colaboradores como bem disseram no momento em que definiram o ecomuseu. A experiência de ecomuseu no Brasil é nova, mas muito significativa para a comunidade, inédita na história de Sobradinho/DF, considerada um legado em construção pela própria comunidade, um legado de cidadania. A história da cidade, a natureza, o trabalho promovido pelas pessoas, aquilo que se pode contar tornam-se potencialidades para incrementar como resultado de Ecomuseu com seu patrimônio material e imaterial. Consideram-se todas as manifestações uma contribuição de grande significação para o acervo ecomuseal, mesmo que se tenha um sentimento de alguém ou algo esquecido, velho e com pouco valor para o povo. Essas experiências foram de grande valia na conscientização do tratamento para com as pessoas, patrimônio vivo do Ecomuseu dos Caminhamentos do Sertão. Constatei, por meio desse trabalho de pesquisa, o quanto é possível uma comunidade se organizar em prol da regeneração de vidas, tanto na apresentação da riqueza natural do local como também na preocupação da preservação cultural de seus personagens artísticos, ainda em pleno exercício registrado pela memória captada nas entrevistas gravadas, tornando-o gratificante e instigante à minha pessoa. Foi esse fator determinante que permitiu apontar para o exercício do ser cidadão vivo nos ecomuseus, partindo do desejo da própria comunidade, trazendo à tona os anseios e problemáticas apresentadas na formação de cada ambiente dinamizado, com objetivo de convencer as pessoas sobre a importância de sua preservação e do valor de seu patrimônio, encorajando-as a conservá-los por sua essência e sua continuidade nas novas gerações. Ao finalizar o trabalho, compreendi o que acontecia com a comunidade de Sobradinho/DF, mas ainda permanecem muitas indagações, já que as discussões sobre ecomuseus ainda são recentes no Brasil, e não se esgotam em si, mas abrem possibilidades para novas pesquisas.
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Referências BARROS, Sulivan Charles. Brasil Imaginário: umbanda, poder, marginalidade social e possessão. Tese de Doutorado em Sociologia. Brasília: Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, 2004
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BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. MINAYO, Maria Célia de Souza (org.). Pesquisa Social.Teoria, método e criatividade. 25ª edição. Petrópolis, RJ:Vozes, 2007. MINC, Carlos. Como Fazer Movimento Ecológico e Defender a Natureza e as Liberdades. 3ª edição. Petrópolis:Vozes, 1987. MINISTÉRIO DA CULTURA, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e Fundação Nacional de Arte. O Registro do Patrimônio Imaterial. 2ª edição. Brasília: 2003. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Ética e Cidadania: construindo valores na escola e na sociedade/ Secretaria de Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Brasília: 2007. __________________________Programa ética e Cidadania: construindo valores na escola e na sociedade. Relações étnico-raciais e de gênero. Módulo 3: Direitos Humanos e Módulo 4: Protagonismo juvenil. / organização FAFE – Fundação de Apoio à Faculdade de Educação (USP), equipe de elaboração Ulisses F. Araújo. Brasília: 2007. REVISTA ECO MAGAZINE. Ano 1, Edição 1, 2006. _________________________ Edição 3, 2006.
Artigo recebido em julho de 2015. Aprovado em setembro de 2015
PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO: FERRAMENTA INDISPENSÁVEL NA GESTÃO EFICIENTE DE MUSEUS Ednaldo Soares1 Universidade Federal da Bahia
RESUMO: Enquanto conhecimento científico em construção, a Museologia tem se voltado mais à discussão derredor de temas que respeitam sua base ontológica e epistemológica. Embora menos discutidos, o planejamento estratégico e marketing museal têm demandado a atenção de museólogos, especialmente daqueles ligados a instituições socialmente engajadas, empenhadas em instituir estreitos relacionamentos entre o museu e essas ferramentas gestoriais, visando à sustentabilidade institucional. Este ensaio é mais um exemplo dessa preocupação. Demais, levanta a questão acerca da necessária multidisciplinaridade curricular para a formação do museólogo, que precisa de diferentes subsídios práticos e teóricos para atuar mais efetivamente na gestão de museus. PALAVRAS-CHAVE: museu, planejamento estratégico de museu, marketing museal, museólogo, multidisciplinaridade.
Strategic planning: essential tool for efficient management of museums ABSTRACT: Still under construction, Museology has turned more often to round about discussion of issues concerning its ontological and epistemological basis. However, strategic planning and museum marketing have also called attention of professionals of this field, especially those linked to institutions socially committed to establishing close relationships between the museum and these management tools to provide institutional sustainability. This essay is another example of this concern. Furthermore, it raises the issue regarding the demand for multidisciplinary studies to provide qualification for students seeking a career in the field, and need different practical and theoretical subsidies to manage museums efficiently. KEY WORDS: museum, museum strategic planning, museum marketing, heritage student, multidisciplinary studies.
1 Mestre e doutor em Administração. Integrante de grupo de pesquisa na EAUFBA e estudante de Museologia.
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No campo das ciências humano-sociais há aquelas que, em dado momento, tiveram crise de identidade; ora relacionada com a definição do objeto de estudo, ou com a busca pela metodologia mais adequada para o desenvolvimento de estudos na área, ora para dirimir a dúvida shakespeariana: “to be or not to be” um campo do conhecimento científico, i.e., ser ou não ser ciência. Assim sucedeu com a sociologia; no início, denominada Física Social. Idêntico fato ocorreu com a antropologia social, cujo crédito para a definição como um campo do saber deve-o muito à etnografia-funcional (olhar sobre o “outro” – o “exoticus”) desenvolvida por Bronislaw Malinowski. E não seria diferente com a Museologia, que ainda se encontra em fase de construção, enquanto uma área do conhecimento científico. Fase esta, em que ainda se permite questionar sobre o seu objeto de estudo: o museu1 - estudos a seu respeito, incluindo sua organização (TSURUTA, 1958 apud CERÁVULO, 2004:322) -, ou a relação homem-objeto/realidade, denominada fato museal (GUARNIERI, 1990:7), também referida apenas como a relação entre o homem e a realidade, ou entre o homem e o real? Resultado de discussões acadêmicas, atualmente entende-se a referida relação como o foco ou o objeto de estudo da Museologia, não obstante haja quem ainda insista em querer perpetuar a primeira alternativa2 retro mencionada, quando na verdade o museu é o locus onde o referido relacionamento se dá ordinariamente a cotio. Melhor: o museu é o meio ou o ambiente por excelência utilizado para se proceder à comunicação museológica, mediante a qual a relação homem-objeto/realidade se processa. Ali o passado (quer objeto, quer memória) é preservado, dialoga com o presente e aponta direcionamentos para o futuro. Visto como um mecanismo estratégico utilizado para aprimorar processos democráticos, promotor de educação, inclusão sociocultural e desenvolvimento local e para fortalecer a institucionalização do setor museal (SECULTBA, 2012?:5), o museu é também entendido “como um privilegiado espaço discursivo de interpretação de uma dada realidade, e de disciplinarização de sentidos sobre essa realidade.” (BORGES, 2011:37). Entretanto, cabe salientar que a Museologia, e, por conseguinte a relação homem-objeto/realidade, “pode alcançar muitos outros lugares ou instituições além do museu” (BELLAIGUE, 1992:2). Sendo assim, pode-se melhor compreender a citada relação conforme a rationale defendida por Scheiner (apud BORGES, 2011:41), ou seja, como “algo que está sendo (devir)”, sem estar aprisionada a uma única dimensão espacial. Mesmo porque “toda a tentativa de reduzir os museus a um único aspecto, corre o risco de não dar conta da complexidade do panorama museal no mundo contemporâneo” (CHAGAS, 2012:12); época em que “o espaço e o tempo são 1 “Luogo in cui sono raccolti, ordinati, custoditi ed esposti al pubblico oggetti di interesse artistico, storico o scientifico” (ENCICLOPEDIA ZANICHELLI, 1995:1218) (Lugar onde objetos de interesse artístico, histórico e científico são recolhidos, classificados, custodiados e expostos ao público. – Tradução nossa). 2 “[Muséologie:] Science de l’organisation des musées, de la conservation et de la présentation des objets qu’ils détiennent.” (LAROUSSE, 2015) (Museologia: Ciência da organização de museus, da conservação e apresentação dos objetos que possuem. – Tradução nossa). “Like the German-group the Leicester-group does not seem to be interested in museology as academic discipline.” (MENSCH, 1992:2).
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separados da prática da vida e entre si” (BAUMAN, 2001:15). A discussão derredor do objeto de estudo não foi (ou não é) uma particularidade da Museologia. Ela também já esteve presente em outros campos do saber. Por exemplo: na Administração, que, apesar de ser um campo do conhecimento científico reconhecidamente construído, a controvérsia à volta de seu objeto de estudo ainda o conduz para dois focos distintos: (1) as organizações; e (2) a gestão. Para grande parte dos teóricos da Administração, seu objeto de estudo são as organizações; para outros (esses em número menor), trata-se da gestão. Foge do escopo deste ensaio o aprofundamento teórico atinente à definição do objeto de estudo da Museologia, até porque se tem o conhecimento e a aceitação de que a Museologia é de facto um novo campo do saber; por conseguinte, trata-se de uma ciência3 social aplicada, cujo foco de estudo recai na relação homem-objeto/realidade (base ontológica). Para a Museologia, o importante não é a localização do objeto (dentro ou fora do museu), mas o sentido/valor (histórico e/ou cultural) que lhe é atribuído, a ponto de se pretender/decidir preservá-lo, musealizando-o. Entretanto, apesar do objeto de estudo da Museologia não ser o museu em si, de uma coisa se tem certeza: a Museologia está intimamente ligada a ele, muito embora não seja a ciência dos museus (BELLAIGUE, 1992:1). Ora, o museu é uma organização, logo, como as demais organizações, ele precisa ser estrategicamente administrado; isto é, necessita de gestão eficiente a fim de desempenhar a função de laboratório em o qual a experimentação museológica se realiza, sendo reconhecidamente útil à sociedade por sua capacidade de promover diálogo intercultural, territorialização da cultura etc. Só que ao se pensar em gestão eficiente, pensa-se logo em planejamento estratégico. O museu é uma instituição não neutra (CURY, 2008:30; PESSANHA, 1996:34), pois, desde a sua criação subscreve-se nele um posicionamento de cunho ideológico (político), que o acompanhará sempre e se mostrará nas exposições e nas escolhas dos objetos a serem preservados e expostos. Isso é parte do importante papel social do museu. Conseguintemente, ao se definir a missão de um museu, o seu caráter ideológico carece ser levado em consideração. A missão é parte integrante do planejamento estratégico de uma organização e é com a implementação desse instrumento gestorial que se parte para se construir a “[...] ação criadora de valores culturais e civilizatórios” (GUIMARÃES; BARBANTE, 1991:6 apud CURY, 2008:30) inerentes aos quefazeres da organização-museu. ������������������������������������������������������������������������������������������������� O caráter científico da museologia tem sido apontado desde longa data, conforme comprovam as seguintes narrativas: “As the Italian philosopher and naturalist Ulisse Aldrovandi lay ill in November 1603, he dictated his last will and testament — a remarkable and inspiring manifesto of scientific museology. He bequeathed his monumental collections and writings to be held in public trust so that they would be maintained for future generations…” (ROMANO; CIFELLI;VAI, 2014:271). (Grifos nossos). “[…] la moderna idea di museo, in cui la funzione di raccolta delle opere convive con quelle di studio, ricerca e fruizione sociale, nasce con l’illuminismo [... ed] è generalmente di carattere scientifico o enciclopedico” (ENCICLOPEDIA ZANICHELLI, 1995:1218) (... a moderna ideia de museu, na qual a função de recolher obras convive com as de estudo, pesquisa e fruição social, nasceu com o Iluminismo ... e, geralmente, é de caráter científico ou enciclopédico. – Tradução e grifos nossos).
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O planejamento estratégico, sendo uma ferramenta de gestão, tem sido utilizado por museus “socialmente engajados” (e.g.: British Museum’s Strategic Plan, Victoria & Albert Museum’s Strategic Plan, Planejamento Estratégico do Museu de Arte do Rio, Piano Strategico del Museo della Navigazione Fluviale etc.). Destarte, pesquisadores no campo da Museologia (e.g.: CURY, 2008:75) têm sugerido que os museus devam fazer uso desse instrumento de gestão, com vistas à intermediação eficiente e eficaz no relacionamento homem-objeto/realidade e à sustentabilidade dessas instituições. Referindo-se à relação homem-objeto/realidade, grosso modo, o que fica mais em evidência é o objeto (“testemunho da realidade”). Pergunta-se, então: e o homem, como ele entra nesse relacionamento? Que homem é esse (intelectual, iliterato, adulto, adolescente, criança, masculino, feminino, branco, negro, índio, pobre, rico, ou o ser humano independente de qualquer restrição/limitação)? Toda organização-museu precisa se preocupar com ele e defini-lo, com vistas à formação de seu público. O propósito deste ensaio é o de promover uma reflexão sobre planejamento estratégico de museu (plano museológico), pois, acredita-se que ele auxilia a responder questões desse gênero, e utilizando-o, um museu pode estabelecer metas ou pretensões futuras, definindo sua missão, a exemplo da seguinte:“our mission is helping you understand and enjoy the art o four time.” (MOMA, 2015). II Planejamento estratégico é a pedra angular de uma boa gestão. Isso porque “organizations that fail to plan, plan to fail” (KREITNER, 2009:147). E, de acordo com esse autor, planejamento estratégico é o processo de lidar com a incerteza através da formulação de futuros cursos de ações para se atingir resultados específicos. Para ele, o planejamento fornece o caminho para tornar ideia em realidade (KREITNER, 2009:147). Desse modo, o planejamento estratégico se torna a primeira função da gestão administrativa (management). E sendo a função administrativa fundamental, o planejamento estratégico se preocupa com a determinação dos objetivos de longo prazo da organização e dos meios para que eles possam ser alcançados. Na elaboração do planejamento levam-se em consideração variáveis exógenas (e.g.: mercado, concorrência) e endógenas (e.g.: potencialidade da organização – condição técnico-operacional, profissional e financeira). O planejamento estratégico é desdobrado em planos (anuais) táticos e operacionais bem coordenados para não destoarem do caminho por ele traçado. Por essa razão, valendo-se de estudos no campo da Administração relacionados com planejamento estratégico (Administração por Objetivos – APO4), Cury (2008:75) chama a atenção para a diferença entre planejamento e plano. Isso porque o plano resulta do planejamento (está contido no planejamento), sendo ele (plano) a ação sistematizada a ser realizada. Demais, o plano tem início, meio e fim. O planejamento, por seu turno, é um Processo sistemático, através do qual os integrantes de uma organização identificam e definem ações que precisam ser executadas para superar problemas, fortalecer potencialidades e alcançar objetivos comuns. O 4 Para melhor aprofundamento sobre a matéria, ver LODI, João Bosco. Administração por objetivos. Uma crítica. São Paulo: Pioneira, 1972, p. 112.
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planejamento surge para redirecionar os caminhos melhorando as ações. (MACIEL, 2003:1).
Ora, apesar da quase consensualidade desse entendimento, há quem não acredite que exista uma resposta “correta” sobre o que venha ser planejamento, já que [O] planejamento se projeta em tantas direções que o planejador não consegue mais discernir sua forma. Ele pode ser economista, cientista político, sociólogo, arquiteto, ou cientista. Mesmo assim, a essência de sua vocação a planejamento lhe escapa. Ele a encontra em toda parte e em nenhum lugar específico. Por que o planejamento é tão ilusório? (WILDAVSKY, 1973 apud MINTZBERG, 2000:22).
Mesmo assim, planejamento estratégico é entendido “como um conjunto coerente de grandes prioridades e de decisões que orientam o desenvolvimento e a construção do futuro de uma organização num horizonte de longo prazo” (PORTO, 1998:1). Sendo assim, Cury (2008:75) propõe que o planejamento estratégico deva ser considerado quando se pensar em gestão de museus. III O conceito de plano diretor tornou-se confuso; isso porque, de acordo com Villaça (2010:2), a confusão advém da sua inexistência na prática. No entanto, cabe lembrar que a utilização da expressão “plano diretor” está mais relacionada com o planejamento urbano ou planejamento físico-territorial das cidades. Seu principal objetivo está voltado à orientação do poder público em seus esforços para: garantir aos munícipes uma melhor qualidade de vida; consolidar princípios de reforma urbana; promover regularização fundiária etc. Portanto, muito embora a expressão também seja usada para referir-se ao planejamento (ou plano) global de organizações, plano diretor é mais bem entendido e utilizado como uma ferramenta de gestão relacionada com política de desenvolvimento de municípios. Por seu turno, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) utiliza a expressão “plano museológico”, compreendendo-o Como ferramenta básica de planejamento estratégico, de sentido global e integrador, indispensável para a identificação da missão e da instituição museal e para a definição, o ordenamento e a priorização dos objetivos e das ações de cada uma de suas áreas de funcionamento. (Portaria Normativa nº 1, de 05/07/2006)
Detalhadamente, também sugere que o plano seja dividido em três fases5: • Fase 1 – Definição operacional e missão (diagnóstico global: situação atual); • Fase 2 – Programas (necessidades para o futuro: situação ideal); e • Fase 3 – Projetos (soluções). Para tanto, é necessário que se proceda à análise SWOT, isto é, análise dos pontos fortes (strengths) e fracos (weaknesses), das oportunidades (opportunities) e ameaças (threats) da e para a organização-museu. 5 Para detalhes da aplicação prática da sugestão, ver “Plano Museológico – Museu da Abolição”, disponível em: < http://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2011/07/planmuseoabolicao.pdf>.
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Devido à sua importância, o planejamento estratégico de museu tem sido abordado em vários eventos, a exemplo do II Encontro Paulista de Museus, ocorrido em junho de 2010, ocasião em que se discutiu amplamente a gestão dessas instituições. Outro exemplo foi a Convenção intitulada “L’ Azienda Museo: della conservazione del valore alla creazione di valori”, ocorrida em Florença, em 6 e 7 de novembro de 2003. Nesse evento, a preocupação voltou-se para a definição da missão e das estratégias do museu. Entende-se ainda que: 1) com o plano museológico ou planejamento estratégico de museu, viabiliza-se a formulação da missão, visão e valores da organizaçãomuseu visando à sua própria definição e ao alcance de seus objetivos de longo prazo; e 2) o planejamento pode ser construído seguindo-se um viés específico. No caso, o viés aparentemente mais adequado é aquele que enxerga o planejamento “como um meio de estabelecer o propósito da organização em termos de seus objetivos de longo prazo, programas de ação e prioridades de alocação de recursos” (PORTO, 1998:3). Através desse viés ficam claramente definidos, por um lado, a razão de ser e os objetivos de longo prazo da organização-museu e, por outro lado, estabelecem-se as ações e alocam-se os recursos para se atingir tais objetivos (PORTO, 1998:3). Ao se definir a missão, em geral deve-se procurar responder questões, tais como: qual é o escopo de nossa organização? O que há de específico naquilo que fazemos? (ISAIA, ?:10). Age-se assim porque há o entendimento de que a missão é a Razão de ser de um museu, que ajuda a explicitar também a sua finalidade (relação entre o que faz e a demanda social), os públicos, os produtos e serviços e expectativas, orientando os esforços de todos no museu. (CURY, 2008:76).
A visão ordinariamente exprime (ou deve exprimir) aquilo que a organização deseja ser ou tornar-se, enquanto que os valores são as convicções e as normas fundamentais da organização relativas ao que é correto, justo, ou desejável (ISAIA, ?:10). Esses também podem ser expressos pontuando-se qualidades específicas: imaginação, generosidade, coerência etc.. Ainda com relação ao planejamento estratégico e à sua implementação para o alcance dos objetivos de longo prazo, dois conceitos estão estritamente com ele relacionados: (1) eficácia – elemento central no processo de gestão que envolve a realização de um determinado objetivo organizacional6; e eficiência - elemento central no processo de gestão que equilibra a quantidade de recursos utilizados para atingir um objetivo contra o que de fato foi alcançado7 (KREITNER, 2009:7 - adaptação nossa). 6 “effectiveness [-] entails promptly achieving a stated objective” (KREITNER, 2009:7). 7 “efficiency [-] enters the picture when the resources required to achieve an objective are weighed against what was actually accomplished” (KREITNER, 2009:7).
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Em outras palavras, tem-se que a eficácia (relacionada com o produto) é a capacidade do planejamento estratégico para atingir as metas e os objetivos estabelecidos e a eficiência (relacionada com o processo) refere-se à otimização no uso dos diferentes recursos em relação aos resultados alcançados pelo planejamento estratégico (FRASSON, 2001:91). Cabe lembrar, que, ao se pensar em planejamento estratégico, implicitamente pensa-se em marketing, o qual exerce importante papel no sucesso de qualquer organização, pelo fato de estar diretamente relacionado com o que o “consumidor” deseja ou valoriza. Seus conceitos aplicam-se em organizações com e sem fins lucrativos porque “[…] the same basic principles used to sell soap are also used to ‘sell’ ideas, politicians, mass transportation, [...], museums, [...]” (MCCARTHY; PERREAULT JR.; 1993:7). Marketing não são apenas a venda e propaganda de bens e serviços como muitos executivos (incluindo diretores/gerentes de museus) pensam. “Marketing is both a set of activities performed by organizations and a social process” (Ibid., 1993:8). Seu propósito é identificar as necessidades (inclusive as culturais) dos “consumidores”. Portanto, o plano museológico ou planejamento estratégico de museu precisa incluir o que se chama de marketing museal - o estudo descritivo do mercado (museal) e a análise da interação desse mercado e dos “usuários” (o público) com o museu (ISAIA, 2015:4). Nesse caso, conforme esse autor, os seguintes elementos são fundamentais: (1) definição de uma missão própria e precisa e de um equilíbrio entre a missão e a demanda pública; (2) conquista de uma base de público e o apoio da coletividade; e (3) geração de fundos (reserva suficiente para manter o museu). Conforme menção retro, o marketing se volta à antecipação de necessidades dos consumidores. Para tanto, requer o envolvimento e o compromisso de toda a organização; porém, o demandado esforço conjunto nem sempre existiu. Isso porque quando as organizações eram fragmentadas em departamentos, cada um deles era um universo preocupado apenas com suas tarefas específicas. De maneira geral, isso mudou, mas alguns tipos de organização continuam a manter as cercas departamentais. E embora haja exceções, o museu é uma dessas organizações onde a departamentalização ainda persiste e os muros intraorganizacionais não são facilmente derribados. IV A questão ao redor do planejamento estratégico de museu traz também à baila outra relacionada com a formação multidisciplinar do museólogo; ou seja, questiona-se acerca da necessidade de se incluir no conjunto dos componentes curriculares obrigatórios para a formação desse profissional, outros da área da Administração especificamente programados, isto é, com conteúdos “tailor-made” para o curso de Museologia a fim de, entre outros propósitos, subsidiar o museólogo para, em conjunto com a equipe multidisciplinar do museu, participar da elaboração do planejamento estratégico e da gestão da instituição. Esta é uma preocupação que precisa ser assumida pelos cursos de Museologia. A esse respeito, Duarte Cândido (2012:54-57; 2014:42) preocupa-se e
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concorda com esse posicionamento, admitindo que a formação do museólogo deva também prepará-lo para atuar na gestão de museus. Por fim, mas não menos importante, o planejamento estratégico de museu deve se preocupar com o aumento quantitativo de visitantes (público) visando à concretização da relação homem-objeto/realidade em maior escala, nos moldes da iniciativa pensada e empreendida pelo pintor Emanoel Araújo (apud MAYRINK, 2001:46), quando ocupava o cargo de diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo: “A idéia era abrir o museu, e subverter a noção de um lugar sério, sisudo, arrogante [...]” (sic). Foi desse jeito, mostrando dinamismo (estrategicamente planejado), que a referida instituição popularizou Rodin em São Paulo e se tornou um dos museus paulistanos mais visitados. Tal atitude também vem ao encontro do que afirmou Marilisa Rathman ex-presidente do Museu Brasileiro da Escultura (MuBe): “O museu estático está fadado a desaparecer, o dinâmico será o do futuro. Como centro de cultura deveremos agir quase como uma agência de notícias, que trabalha com o espírito. (RATHMAN apud MAYRINK, 2001:48). Cabe finalmente lembrar que o dinamismo de uma organização-museu, o qual se expressa de várias maneiras (e.g.: engajamento sociocultural, promoção de educação etc.), resulta da criatividade estrategicamente planejada de seus gestores; não advém de improvisação, nem ocorre por acaso. Referências BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BELLAIGUE, Mathilde. O desafio museológico. In: Fórum de Museologia do Nordeste, 5, 1992, Salvador. 8 p. mimeo. BORGES, Luiz C. Museu como espaço de interpretação e de disciplinarização de sentidos. Museologia e Patrimônio. Rio de Janeiro: Marcus Granato e Diana Farjalla, v. 4, n. 1, p. 37-62, 2011. CERÁVULO, Suely Moraes. “Em nome do céu, o que é museologia?” Perspectivas de museologia através de publicações. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. São Paulo: v. 14, p. 311-343, 2004. CHAGAS, Mário de Souza. Museus, memórias e movimentos sociais. Cadernos de Sociomuseologia, América do Norte, fev./2012. Disponível em: <http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/2654/2023>. Acesso em: 30 jun. 2015. CURY, Marília Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo: Annablume, 2008. DUARTE CÂNDIDO, Manuelina Maria. “A gestão e o planejamento institucional nos currículos universitários de Museologia: estudo preliminar”. In: Musear, Revista do Departamento de Museologia da Universidade Federal de Ouro Preto, ano 1, n. 1. Ouro Preto: UFOP, p. 51-60, junho de 2012. ____________________. Cartas de navegação: planejamento museológico em mar revolto. Cadernos de Sociomuseologia. Lisboa: CEIED, v. 48, abril/2014. Disponível em: http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/
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Artigo recebido em julho de 2015. Aprovado em setembro de 2015
O PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO MUSEAL (PNEM) E SUA ARTICULAÇÃO NA REGIÃO DOS INCONFIDENTES Valéria da Conceição Chaves1 Universidade Federal de Juiz de Fora
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo divulgar o Plano Nacional de Educação Museal e apresentar as ações de articulação desenvolvidas na Região dos Inconfidentes, através da promoção da práxis pedagógica no ambiente do Museu de Ciência e Técnica da Escola de Minas.Trata-se, de uma pesquisa-ação, justificada através de ações participativas e discussões acerca das propostas apresentadas no Plano, através das quais pretendeu-se capacitar professores/multiplicadores da rede estadual, para o desenvolvimento de ações interdisciplinares dentro dos museus. Almeja-se, assim, promover um novo olhar sobre a Educação Museal, implicado com a mudança e o comprometimento destes profissionais nas ações educativas em museus.
ABSTRACT: This work aims to announce the National Plan of Education for Museums and to present the articulated actions carried out in the Inconfidentes Region, in Minas Gerais state, Brazil, by promoting pedagogical praxis inside the Science and Technology Museum of the School of Mines. The research-action is justified by participative takings and discussions about the propositions described in the Plan, which aimed to qualify public school teachers – who will turn into multipliers – in order to develop interdisciplinary actions inside museums. The goal resides on a new look upon Museum Education by changing those professional’s commitment with more engaged educational actions in museums.
PALAVRAS-CHAVE: Plano Nacional de Educação Museal, professores, Ouro Preto/MG.
KEY WORDS: National Plan of Education for Museums, teachers, Ouro Preto, Brazil.
1* Mestre em Educação (UFJF), Especialista em Educação Empreendedora (UFSJ), licenciada em História (UFJF), bacharela em Turismo (UFOP).
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O Plano Nacional de Educação Museal (PNEM) e sua articulação na Região dos Inconfidentes
1. Introdução A realização deste artigo está diretamente relacionada ao interesse de divulgação do Fórum de Discussões, promovido dentro de uma plataforma virtual, concebida e programada para compor o Plano Nacional de Educação Museal (PNEM), nos anos de 2013/2014.
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A realização dos diferentes Fóruns apresentados na plataforma virtual visou à participação democrática de diferentes segmentos representativos de instituições educacionais e museais em todo o território nacional e também foi aberta à participação do público em geral. A “Plataforma de Diálogo para a construção de um Programa de Educação Museal”, elaborada pelo PNEM, na base: http://pnem.museus.gov.br/ foi um programa idealizado pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), construído “a fim de fortalecer e sistematizar demandas e diretrizes para o campo de educação nos museus” (PNE, 2013), que articulou Fóruns de Discussões, através de uma plataforma virtual, com 9 (nove) fóruns virtuais, cada um relacionado a um eixo temático do Plano. Portanto, foram formados 9 (nove) Grupos de Trabalho, cada um com um(a) coordenador(a), possuidor de conhecimentos na área e fomentador das discussões. A participação nos fóruns virtuais esteve aberta no período novembro de 2012 a abril de 2013. Para tanto, foram estabelecidas as seguintes regras para participar dos Fóruns: 1. Os fóruns são abertos e públicos para qualquer pessoa participar e encaminhar propostas; 2. Para encaminhar propostas crie um novo tópico no eixo temático relacionado; 3. Os tópicos criados devem necessariamente ser novas propostas para o Programa; 4. Verifique se o assunto que quer discutir já tem um tópico criado para não haver repetições, caso aconteçam duplicações de temas os moderadores irão remover seu tópico; 5. Comentários agressivos, difamatórios, spam, propagandas ou que não contribuam para o bom andamento do debate serão deletados pelos moderadores, caso haja reincidência deles o usuário poderá ser banido. O objetivo do PNEM, ao abrir as discussões nos Fóruns virtuais, foi democratizar a participação de pessoas envolvidas e interessadas nas temáticas, com o intuito de criar um texto base para a construção de documentos orientadores de políticas públicas voltadas aos museus. Para tanto, a construção deste documento tinha o “objetivo de constituir diretrizes para as ações de educadores e profissionais dos museus na área educacional, fortalecer o campo profissional e garantir condições mínimas para a realização das práticas educacionais nos museus e processos museais” (PNE, 2013). A partir, destas discussões, o PNEM criou um documento embasado nos debates relativos às práticas e ações educacionais descritas pelos participantes, cujo perfil era a atividade direta ou indireta com a Educação Museal. Para tanto, foram definidos nove (9) eixos temáticos (FÓRUM) e seus respectivos coordenadores:
Valéria da Conceição Chaves
Perspectivas conceituais – Ozias de Jesus Soares; Gestão – Daniele de Sá Alves; Profissionais de Educação Museal – Rafaela Gueiros; Formação, capacitação e qualificação – Kátia Frecheiras;
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Redes e parcerias – Fernanda de Castro; Estudos e pesquisas – Rita Matos Coitinho; Acessibilidade – Isabel Portella; Sustentabilidade – Girlene Chagas Bulhões; Museus e Comunidade – Diego Luiz Vivian. Tendo em vista a percepção geral destes Eixos (Fóruns) e seus GT’s (Grupos Temáticos), elaborou-se um quadro para a apresentação destas composições (Fóruns e Grupos Temáticos), conforme pode ser visto, a seguir.
FÓRUM
PARTICIPAÇÕES
GT (Grupos Temáticos)
Nº GT
1. Perspectivas conceituais; Coordenador GT: Ozias de Jesus Soares;
114
1- Contribuições Rio Grande do Sul (GT duplicado) 2- Debate em grupos – Educação e Museus – contribuições p/ PNEM 3- Museu como ferramenta de Educação 4- Concepções de Educação 5- Museus Virtuais 6- Educação museal? Educação Patrimonial nos museus? 7- Educação e patrimônio integral 8- Construção do Projeto Político Pedagógico 9- Fomentar a construção de uma Política Nacional de Educação Museal 10- Mediação ou visita guiada? 11- Planejamento Participativo 1 2 12- Parceria e colaboração – museus como lugares de encontros e formação integral 13- Quais as funções dos museus? 14- Museu: Lugar ou Espaço de Memória?
14
2. Gestão: C o o rd e n a d o r GT: Daniele de Sá Alves;
61
1- Contribuições Rio Grande do Sul; Inventário das ações educativas; Programa Educativo-cultural no Plano Museológico; Missão Educacional; 5- Financiamento de ações educativas Qual o lugar da educação museal?
6
3. Profissionais de Educação Museal; Coordenador GT: Rafaela Gueiros;
132
1- Contribuições Rio Grande do Sul 2- Fomento e valorização para o educativo do museu; 3- Escolas de ensino do 1º grau envolvidas na educação museal; 4- Internet como veículo de educação 5- Fortalecimento do educador de museus; 6- Perspectiva de Futuro Profissional; 7- Igualdade regional; 8- Processo de formação inicial e continuada; 9- Setor/área/coordenação/departamento educacional; 10- Promover a abrangência de Profissionais; 11- Financiamento para o educativo do museu.
11
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4.Formação, capacitação e qualificação; C o o rd e n a d o r GT: Kátia Frecheiras;
57
1- Promover Oficinas de Conservação Preventiva de Acervos Museológicos; 2- Contribuições Rio Grande do Sul; 3- Investimento na formação dos profissionais de educação; 4- Contatos e parcerias com instituições de ensino; 5- Fomentar publicações para educadores; 6- Contatos e parcerias com instituições de natureza diferenciada do ensino formal; 7- Estágios técnicos; 8- Promoção e difusão do conhecimento da área educacional;
8
5. Redes e parcerias; C o o rd e n a d o r GT: Fernanda de Castro;
50
1- Parcerias externas; 2- Redes entre os profissionais do educativo; 3- Parcerias com Instituições de Educação profissionalizante; 4- Parcerias com instituições de educação básica; 5- Projetos itinerantes – ampliando ações educativas em museus; 6- Parcerias com instituições de cultura e pesquisa; 7- Parcerias com instituições de educação não formal e demais grupos organizados; 8- Ações Colaborativas entre escolas e museus no contexto da formação de professores;
8
6. Estudos e pesquisas; C o o rd e n a d o r GT: Rita Matos Coitinho;
40
1- Contribuições Rio Grande do Sul; 2- Criação de revista ou periódico específico em educação museal; 3- Desenvolvimento e fomento de pesquisas; 4- Consolidação de Estudos e Pesquisas; 5- Produção de conhecimento e pesquisa nos educativos dos museus; 6- O que é "o fazer científico" nos museus? 7- Estudo de público e não-público; 8- Periódicos para publicação;
8
7. Acessibilidade; C o o rd e n a d o r GT: Isabel Portella;
45
1- Contribuições Rio Grande do Sul; 2- Formação para atendimento de pessoas com necessidades especiais; 3- Acessibilidade social e física; 4- Adaptações em museus para promover acessibilidade; 5- Democratização do acesso; 6- Conceituação de acessibilidade; 7- Transversalidade da acessibilidade;
7
8.Sustentabilidade; C o o rd e n a d o r GT: Girlene Chagas Bulhões;
41
1- Contribuições Rio Grande do Sul; 2- Sustentabilidade no PNEM – sugestões da REM-GO; 3- Um exemplo de ação educativa; 4- O que é Sustentabilidade; 5- Limpeza Urbana da Cidade de Vitória da Conquista-BA: os aspectos urbanos e sociais (sem aprovação); 6- Onde está a sustentabilidade? 7- Ações educacionais e desenvolvimento sustentável; 8- Revista Bons Fluidos - Razão, Sustentabilida e Mudanças Interiores; 9- Discurso ambientalista dá lucro a empresas;
9
9. Museus e Comunidade; C o o rd e n a d o r GT: Diego Luiz Vivian;
85
1- Considerações gerais sobre o museu regional de Vitória da Conquista e suas conquistas; 2- Propostas de Ações Rio Grande do Sul; 3- E a ‘comunidade interna’ dos museus?! 4- Ações educacionais e memória coletiva; 5- Mobilidade Cultural; 6- Participação comunitária; 7- Museus e comunidade: ações educativas para uma nova prática na museologia social; 8- Gestão Pública em Museus; 9- Museu Divino Dias Maciel; 10- Informação /faz; 11- Fomentar por meio de ações educativas a autogestão da memória da comunidade;
11
9 Fóruns
625
TOTAL:
Tabela 1. Eixos (Fóruns) e seus GT’s (Grupos Temáticos); elaborado pela autora
82
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Como se vê as discussões dentro dos 9 Fóruns geraram um total de 625 participações, desenvolvidas através de 82 Grupos Temáticos (GT). A partir, destas participações foi também promovida a construção de um blog, o “Blog do Pnem” (com Grupos de Trabalho e Fóruns). Em ambos os ambientes, foi promovida e incentivada a discussão em torno da Educação Museal, consolidando o documento definitivo do PNEM, numa proposta construída coletivamente, uma vez que tanto os Fóruns, quanto o blog foram abertos para participação popular através do envio de propostas e reflexões. Para tanto, foram abertas inscrições para articuladores, engajados na área da Educação em Museus e com interesse em participar das discussões, bem como na mobilização e sensibilização de suas comunidades, razão pela qual esta autora tornou-se articuladora na Região dos Inconfidentes, a partir do convite recebido através da Superintendência Regional de Ensino (S.R.E.), via IBRAM, uma vez que já havia desenvolvido algumas ações de promoção e orientação de educadores em visitas a museus. Ampliando a discussão fomentada pelos Fóruns, buscou-se fundamentar a articulação do PNEM em Ouro Preto, oferecendo a continuidade das discussões e reflexões através da criação de um grupo de professores/articuladores, capazes de perceberem as ações educativas nos museus sob a ótica do comprometimento com a mudança e a ação responsável dos profissionais da educação. Ao apresentar este levantamento, tem-se como objetivo esclarecer a importância deste tipo de instrumento democrático e a forma com que foi realizada a participação nas discussões promovidas pelos Fóruns, além de analisar criticamente o instrumento coletivo construído, a partir do diálogo. A questão geradora deste estudo foi proposta, a partir, do Fórum: “Redes e Parcerias”, Tópico: “Parcerias com instituições de educação básica”, neste fórum foram discutidas a importância e as consequências geradas pelas parcerias entre instituições museais e de educação básica. Dentre os participantes houve quem apresentasse situações como a falta de recursos para levar o transporte dos alunos até os museus, mas o que ainda é mais incômodo é a falta da práxis na formação dos professores. Nesse sentido, a articulação do Fórum dos Inconfidentes propôs a seguinte reflexão, no Fórum: (...) faltam parcerias junto às instituições de formação dos professores (Faculdades e Universidades), afinal se o futuro professor tiver a oportunidade de aprender, desenvolver e promover visitas técnicas, então provavelmente ele será um profissional contagiado por esta ideia. Ao contrário, aquele que não teve a oportunidade de vivenciar, planejar e realizar uma visita técnica a um museu com seus colegas de turma, poderá se sentir inibido a promovêla junto a um grupo de alunos adolescentes (agitados e eternamente insatisfeitos) (FÓRUM REDES E PARCERIAS in: PNEM).
Afinal, como formar para a práxis, sem a experiência da mesma? A partir desta questão, desejou-se refletir sobre a relação existente entre a teoria e a prática na formação dos professores, em prol de ações educativas em museus, uma vez que este é um dos grupos, que mais promove a práxis da Educação Museal. Este projeto faz parte das reflexões motivadas pela experiência enquanto articuladora do PNEM, principalmente nas participações promovidas pelo Fó-
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rum de discussões, “Redes e Parcerias”, Tópico: “Parcerias com instituições de educação básica”, promovido pela Coordenadora do GT: Fernanda de Castro, que propôs, entre outras questões, que:
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Museus e escolas são espaços que podem oferecer ações conjuntas de formação.Muitos são os projetos realizados entre museus e escolas de forma orgânica que devem ter avaliadas as possibilidades de transformarem-se em políticas públicas constantes. Parcerias entre secretarias de educação e cultura e instituições culturais e escolares, podem garantir ou pelo menos ajudar na melhoria da qualidade do ensino. Não se trata se escolarizar o museu, mas de ampliar as suas possibilidades educativas. Que tal pensarmos em uma proposta do tipo “Museus e escolas em comunidade”, “Museu adote uma escola”, algo que promova ações educativas continuadas entre museus e escolas? (CASTRO, 01/12/2012, Coordenadora do PNEM no GT Redes e Parcerias; Tópico: Parcerias com Instituições de Educação Básica).
Para tanto, propôs-se dar o “primeiro passo”, desenvolvendo uma parceria dentro da instituição de ensino estadual, de maior representatividade na Região dos Inconfidentes – a Superintendência Regional de Ensino de Ouro Preto/MG (S.R.E), formando um grupo de professores/multiplicadores, para o desenvolvimento de ações interdisciplinares dentro dos museus. A escolha por um grupo específico ocorreu pelo reconhecimento acerca de sua área de atuação, uma vez que o grupo escolhido era parte do Programa de Intervenção Pedagógica do Ciclo Básico Comum (PIP CBC, ou PIP II). Trata-se de um Programa da rede estadual de ensino de Minas Gerais, formado por equipes interdisciplinares para atuar em todas as escolas que compõem a Superintendência (polo). No caso de Ouro Preto esta equipe atendia todas as escolas estaduais compreendidas nos municípios de: Acaiaca, Diogo de Vasconcelos, Itabirito, Mariana e Ouro Preto (cidades de Minas Gerais), na Região dos Inconfidentes, sinalizando, assim a abrangência desta ação. A Equipe PIP CBC é uma equipe interdisciplinar, cujas ações integram a capacitação de professores em sua área de atuação, bem como o repasse de metodologias de ensino e avaliação.Desta forma, ao envolvê-los o objetivo foi tornar o PIP/CBC uma equipe de professores/multiplicadores (em várias disciplinas) para a sensibilização em prol das atividades interdisciplinares desenvolvidas nos museus. 2. Método do Trabalho Encontrar um método estruturado teoricamente que seja capaz de resolver os problemas e questões apresentadas durante as análises propostas é algo praticamente impossível. Isto porque, não existe uma verdade absoluta e para um mesmo fato podem existir várias explicações. No caso da Intervenção Pedagógica, isto parece ser ainda mais distante, posto que é uma proposta, relativamente, nova se comparada às demais e ainda carece de muitas experiências educacionais. Assim, a forma com que o pesquisador aborda o tema e o enunciado dos problemas revela seu modo particular de entender e enfocar determinadas questões na pesquisa. Desta forma, “a abordagem e o método se revelam nas formas de pensar e de se fazer no transcorrer da pesquisa e não por declarações abstratas de adesão a esta ou aquela perspectiva” (GATTI, B. 2003, p.15).
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De tal maneira que, a escolha por um determinado modelo explicativo, anuncia a postura do pesquisador ratificando sua trajetória até um dado momento. A pesquisa é um cerco em torno de um problema. É necessário escolher instrumentos para acessar a questão, vislumbrar e escolher trilhas a seguir e modos de se comportar nessas trilhas, criar alternativas de ação para eventuais surpresas, criar armadilhas para capturar respostas significativas (GATTI, B. 2003, p. 17).
Pensando nisto, optou-se por conduzir este estudo na linha de investigação qualitativa, que pareceu mais conveniente, uma vez que compreende que “a investigação como interpretação é um processo dinâmico, um movimento” (CLARETO, s.n.t., p. 2) capaz de promover com este movimento uma busca de novos sentidos, já que o conhecimento é subjetivo e não consta de uma verdade única como desejava Descartes. Se na concepção cartesiana de conhecimento, a pesquisa pressupõe uma verdade a priori a ser alcançada através do “Método”, aqui ela é, antes de tudo, a soma dos saberes concebidos, tanto no conteúdo material, quanto nas inferências realizadas. Justificando, assim, a utilização da pesquisa bibliográfica, acerca do tema: educação e recuperação dos alunos com dificuldades de aprendizagem, como estratégia metodológica mais adequada para a realização da pesquisa. Além disto, a realização da pesquisa exigiu a análise dos dados levantados e o relato das observações participantes. Para isto, recorreu-se, principalmente às obras: “Educação e mudança”, “Pedagogia da autonomia” e “Pedagogia do oprimido”, de Paulo Freire, para a realização das análises, posteriormente, apresentadas. Tais obras foram selecionadas em função da sua relação direta com o tema e serviram para dar subsídios aos argumentos relativos ao novo olhar sobre no processo de ensino e aprendizagem nos museus. Diante do exposto, este trabalho propiciou a elaboração de um material reflexivo sobre a práxis pedagógica da Educação Museal, justificando-se pela possibilidade de promover ações participativas e discussões acerca da Educação Museal, como elemento para a excelência no processo de ensino-aprendizagem. Para isso, foi desenvolvida uma ação junto a um grupo de 10 professores multiplicadores, atuantes na Equipe de Intervenção Pedagógica (PIP), dos anos finais, da Superintendência Regional de Ensino (S.R.E. Ouro Preto). Estas ações compuseram-se de vários momentos práticos e/ou reflexivos e envolveram colaboradores internos e externos, num período de aproximadamente dois meses e meio (entre outubro/2013 e janeiro/2014). Para a atividade de sensibilização, foi convidado como colaborador o professor Samir Antunes (professor de Arte do PIP/CBC), para a atividade de reconhecimento geológico da rota da Estrada Real, foi convidada como colaboradora a professora Fernanda Pedrosa (professora de Ciências do PIP/CBC) e ainda houve a colaboração da psicóloga Cláudia Itaborahy, para palestrar aos professores. Assim, a primeira ação ocorreu no final do mês de outubro/2013 (30/10/13) quando a equipe participou de uma pequena palestra esclarecendo informações sobre a elaboração do Plano Nacional de Educação Museal, bem como as ações propostas pela articuladora em questão. Durante esta palestra o grupo foi convidado a participar das ações aqui apresentadas e diante da assertiva, todos foram informados da programação das atividades a serem desenvolvidas.
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Assim, no mês de novembro (dia 01/11/2013), foram realizadas as ações de sensibilização, participação e visitação ao Museu de Ciência e Técnica da Escola de Minas, pertencente a Universidade Federal de Ouro Preto/MG. Para as ações de “sensibilização” o professor (convidado) Samir Antunes elaborou algumas atividades no adro do Museu. Tais atividades duraram em torno de 40 minutos e constaram da participação da equipe, dividida em duplas, visando a maior descontração participativa colaborativa. Logo após, o professor explicou o objetivo das atividades e questionou aos participantes sobre como haviam realizado visitações anteriores, surpreendendo-se ao descobrir que havia entre os professores alguns que nunca haviam realizado visitação no citado Museu, apesar de serem todos nascidos e/ou residentes em Ouro Preto e distritos. Por isso, fez uma breve explanação sobre a importância do Museu, principalmente em relação ao espaço educacional no qual ainda se constitui, destacando seu caráter utilitário, uma vez que abriga espaços educacionais ativos (salas de aula) do Departamento de Engenharia de Minas e do Departamento de Artes Cênicas, ao encerrar desejou a todos uma boa visita ao museu e voltou a integrar a Equipe, participando da visitação com os demais. A seguir, foram distribuídos aos professores os “tickets”, de visitação aos diversos espaços do Museu e iniciando-se a visitação. Neste momento, a professora (convidada) Fernanda Pedrosa (professora de Ciências do PIP/CBC), fez explanações diversas sobre a formação geológica da rota da Estrada Real e apresentou aos participantes alguns exemplares, expostos no museu, que fazem parte desta formação, gerando grande satisfação aos colegas que relatavam a “alegria” em aprender algo novo. No setor de Mineralogia, o grupo contou com uma visita guiada, realizada pelo monitor Renan Rodrigues (graduando em Turismo/Ufop) que encantou os professores com suas exposições. Nesta ocasião vários professores declararam que desconheciam o serviço de visita guiada, oferecido pelo museu. No setor de Mineração o grupo contou com uma grata surpresa, a participação voluntária de dois professores da equipe (Renivaldo Barbosa e Ricardo José), respectivamente formados em Geografia e Letras (Inglês), que já haviam trabalhado no setor de mineração e explicaram detalhes do funcionamento dos maquinários expostos. Promovendo automaticamente a sensação de participação e colaboração mútua, na visitação e encerrando assim esta etapa das atividades. No mês de janeiro/2014, conforme agendado ocorreu, numa das salas do Museu, a palestra: “O mal estar docente”, ministrada pela psicóloga Cláudia Itaboray, que abordou questões levantadas em seus estudos de mestrado sobre as expectativas e frustrações dos professores no dia-a-dia de trabalho e suas consequências. Além de propiciar um momento de reflexão acerca da própria atividade docente, esta atividade complementar serviu à reflexão de que os espaços do museu estão abertos à utilização da comunidade, para a realização de atividades educativas diversas, atendendo assim alguns dos pressupostos apontados nas discussões do PNEN acerca das parcerias e da Educação Museal, para maior aproximação e integração com o público nos espaços museais. 3. Referencial Teórico Para pontuar o referencial teórico, pontuado neste trabalho, recorreu-se, especialmente, ao trabalho de Paulo Freire, “Educação e Mudança”, publicado
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no Brasil, em 1979, período em que este educador, retornava de quinze anos de exílio, imposto pela ditadura militar. Neste trabalho, como o próprio título sugere, Freire aponta a importância da educação, como elemento provocador de mudança. Não só a mudança comportamental do indivíduo, que passa a perceber o mundo à sua volta, com olhar mais crítico, mas também na mudança que esta nova postura pode promover para a sociedade. Logo no prefácio da obra, escrito por Moacir Gadotti, o educador questiona: “Pode a educação operar a mudança? Que mudança?” (GADOTTI, in: FREIRE, 1979, p. 10). Além disso, Gadotti (1979, p.11) apresenta uma discussão que dialoga sobre a “possibilidade de uma educação libertadora, transformadora”. No entanto, A tradição pedagógica insiste ainda hoje em limitar o pedagógico à sala de aula, à relação professora-aluno, educador-educando, ao diálogo singular ou plural entre duas ou várias pessoas. Não seria esta uma forma de cercear, de limitar a ação pedagógica? (GADOTTI, in: FREIRE, 1979, p.11)
É neste contexto, que Gadotti e Freire (1979), afirmam que muitas vezes a tradição pedagógica impõem limites ao diálogo, tão indispensável na condução da mudança, porque muito mais que possibilitar o diálogo, essa educação transformadora é também um ato politizador, que liberta a mente do oprimido de sua condição cíclica. Pois, “numa sociedade de classes não há diálogo, há apenas um pseudodiálogo, utopia romântica quando parte do oprimido e ardil astuto quando parte do opressor” (GADOTTI, in: FREIRE, 1979, p.13). Diante deste suposto, Gadotti afirma que: Nossa educação é sustentada por esses dois tipos de humanismo que, embora se combatam entre si, são ambos conservadores: o humanismo idealista, de um lado, lutando por uma educação pietista cujo ideal educativo conduziria ao obscurantismo da Idade Média, frequentemente encabeçado pela escola particular e religiosa; por outro lado, o humanismo tecnológico, reduzindo toda educação a um arsenal de metodologias e de instrumentos de aprendizagem, despolitizando a grande massa da população, mais frequentemente professado pelas escolas oficiais e burocráticas. Um se perde na contemplação dos ideais de uma sociedade “humana”, “acima” da luta de classes, outro elimina todo ideal, substituindo-o pela ciência e pela técnica (GADOTTI, in: FREIRE, 1979, p.14).
É por perceber e anunciar o sentido político da educação, que Paulo Freire foi e continua sendo um educador de relevância tão especial e que sua obra além de propor agentes de mudança passou a compor o poder simbólico que a educação pode alcançar na sociedade. Por isso, “depois de Paulo Freire ninguém mais pode ignorar que a educação é sempre um ato político. Aqueles que tentam argumentar em contrário, estão defendendo uma certa política, a política da despolitização” (GADOTTI, in: FREIRE, 1979, p.14). Ao relacionar esta percepção da Educação para a Educação Museal, percebe-se o quão intrínseca é esta relação na formação do educador, como indivíduo comprometido com a sociedade e o espaço. No entanto, a questão do compromisso do profissional com a sociedade coloca algumas reflexões das quais não se pode fugir e que são necessárias para o esclarecimento do tema.
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Em primeiro lugar, a expressão ‘o compromisso do profissional com a sociedade’ nos apresenta o conceito do compromisso definido pelo complemento ‘do profissional’, ao qual segue o termo “com a sociedade”. Somente a presença do complemento da frase indica que não se trata do compromisso de qualquer um, mas do profissional. A expressão final, por sua vez, define o polo para o qual o compromisso se orienta e no qual o ato comprometido só aparentemente terminaria, pois na verdade não termina (FREIRE, 1979, p.15).
Portanto, a primeira condição para que um ser possa assumir um ato comprometido está em ser capaz de agir e refletir. Como nos afirma Freire (1979), é “preciso que seja capaz de, estando no mundo, saber-se nele”. Saber que, se a forma pela qual está no mundo condiciona a sua consciência de estar, é capaz, sem dúvida, de ter consciência desta consciência condicionada. Quer dizer, é capaz de intencionar sua consciência para a própria forma de estar sendo, que condiciona sua consciência de estar. Se a possibilidade de reflexão sobre si, sobre seu estar no mundo, associada indissoluvelmente à sua ação sobre o mundo, não existe no ser, seu estar no mundo se reduz a um não poder transpor os limites que lhe são impostos pelo próprio mundo, do que resulta que este ser não é capaz de compromisso. É um ser imerso no mundo, no seu estar, adaptado a ele e sem ter dele consciência (FREIRE, 1979, p.16).
Assim, através do distanciamento promovido pela reflexão, o indivíduo é capaz de sair de seu contexto, reconhecê-lo e admirá-lo, que são condições necessárias para que se instale o desejo transformá-lo e, “transformando-o, saber-se transformado pela sua própria criação [...] de sujeito histórico, pois somente este é capaz, por tudo isto, se comprometer-se” (FREIRE, 1979, p.17). Este comprometimento reflete a assertiva de que “não pode haver reflexão e ação fora da relação homem-realidade [...] esta relação implica a transformação do mundo, cujo produto, por sua vez, condiciona ambas, ação e reflexão” (FREIRE, 1979, p.17). Se a realidade condiciona seu pensar e atuar não autênticos, como podem pensar corretamente o pensar e o atuar incorretos? É que, no jogo interativo do atuar-pensar o mundo, se, num momento da experiência histórica dos homens, os obstáculos ao seu autêntico atuar e pensar não são visualizados, em outros, estes obstáculos passam a ser percebidos para, finalmente, os homens ganharem com eles sua razão (FREIRE, 1979, p.18).
“É atuando ou não podendo atuar que se lhes aclaram os obstáculos da ação, a qual não se dicotomiza da reflexão” (FREIRE, 1979). Portanto, as ações analisadas neste artigo pontuam sobre a reflexão apresentada no PNEM, através de seus fóruns de discussão acerca da importância de estabelecerem-se redes cooperativas de formação para a Educação Museal. Nestes fóruns surgiram sugestões sobre como estas redes cooperativas para a Educação Museal poderiam contribuir na formação dos estudantes de licenciaturas (futuros professores), possibilitando a oportunidade de exercitar e aprender através da atuação-reflexão. Afinal, é através da atuação-reflexão (da formação teórico-prática) que o indivíduo experimenta, através dos diversos exercícios (reflexivos e práticos) a condição de profissional, posto à prova. É por meio destes momentos que ele será avaliado em suas percepções, não apenas
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como aprendiz de técnicas capazes de atender as necessidades do mercado, mas como ser social, cidadão, finito na sua condição de completude, ciente de sua necessidade de sempre saber mais, visto que o conhecimento é uma necessidade constante. Nesse contexto, a sua atuação no mercado torna-se uma consequência de sua transformação educacional. É também através destes momentos que o educando poderá experimentar o sentimento de frustração diante dos obstáculos que impedem o êxito de suas propostas e, a partir disto, exercitar a construção de estratégias que estejam para além das necessidades do mercado e coincidam com as necessidades da formação de um profissional comprometido com a mudança. O momento de frustração é importante, segundo Freire (1979), porque através dele: Os homens encontram-se profundamente feridos em si mesmos, como seres do compromisso. Compromisso com o mundo, que deve ser humanizado para a humanização dos homens, responsabilidade com estes, com a história. Este compromisso com a humanização do homem, que implica uma responsabilidade histórica, não pode realizar-se através do palavrório, nem de nenhuma outra forma de fuga do mundo, da realidade concreta, onde se encontram os homens concretos. O compromisso, próprio da existência humana, só existe no engajamento com a realidade (FREIRE, 1979, p.18).
Freire informa ainda que é a capacitação profissional, que sistematiza as experiências possibilitando ao educando recorrer e utilizar-se do patrimônio cultural com maior frequência, aumentando assim sua responsabilidade com os homens. É, portanto, através desta responsabilidade social, que o educando percebe sua responsabilidade em evitar a burocratização de seu compromisso profissional, “servindo, numa inversão dolosa de valores, mais aos meios que ao fim do homem” (FREIRE, 1979, p.20). Há, portanto que se compreender, durante nas ações de visitação aos museus a importância da elaboração do planejamento prévio, pautado em atividades que ocupem os educandos no exercício da reflexão-ação, pois é através da prática, que poderão ser avaliadas as percepções dos indivíduos acerca da aplicação dos conhecimentos teóricos que lhes foram disponibilizados. No entanto, até o presente momento, o que se pode observar é que na maioria das atividades propostas, ainda não há uma percepção clara deste tipo de conduta. Sob este prisma, o educando não se transforma e também não modifica sua relação com o espaço do(s) museus, já que existe um desconhecimento sobre a sua funcionalidade na sociedade. Desta forma, o professor formado, sem a experiência deste exercício, pode não ter autonomia para enfrentar a sensação de frustração, diante dos obstáculos limitadores de suas propostas, ou a ousadia de desenvolver projetos inovadores embebidos com ideias e propostas de ações diferenciadas nestes espaços, daí a necessidade de capacitá-los. De outra forma, a experiência desta práxis educacional, habilita-o a explorar os museus (dentro e fora do seu entorno), a partir da ação-reflexão, criando estratégias para um pensar autêntico, carregado de autonomia, comprometido socialmente, com a Educação Museal.
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4. Resultados e discussão
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A primeira ação formativa contou com a participação de 01 articuladora e dois professores convidados para a ação educativa formativa: Fernanda Pedrosa e Samir Antunes e uma convidada externa, a psicóloga Cláudia Itaboray. Nesta ação as atividades foram divididas em três etapas denominadas: “Antes”, “Durante” e “Depois”, assim discriminadas: Antes, durante e depois: a articuladora do PNEM, mobilizou os recursos humanos e materiais, pauta de atividades, organização da visita e feedback aos participantes. Antes da visita: ao iniciar a visitação, o professor de Arte, Samir Antunes, promoveu “Ação de Percepção”, constando de uma atividade coletiva e ao ar livre, para despertar o “olhar e os sentidos” dos participantes para a visitação. Durante a visita: A professora de Ciências Fernanda Pedrosa, explanou sobre a formação geológica da rota da Estrada Real e apresentará aos participantes, alguns exemplares expostos no museu e que fazem parte desta formação geológica.
Após a realização de todas estas atividades, foi realizada uma conversa de feedback e aplicado um questionário, visando a analisar a participação e o interesse dos participantes, onde pode-se perceber um clima geral de satisfação em relação as atividades desenvolvidas e o interesse dos participantes em multiplicar, junto a outros professores da rede de ensino, o aprendizado adquirido. A aplicação do questionário gerou alguns gráficos que serão apresentados, a seguir.
Gráfico 1; elaborado pela autora.
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O Gráfico 1 sinaliza a satisfação dos professores na realização da visitação ao Museu de Ciência e Técnica da Escola de Minas, da Universidade Federal de Ouro Preto, pontuando um aspecto interessante se considerado o fato de alguns professores já conhecerem este museu. Outra importante constatação realizada diz respeito à expectativa dos participantes. Neste caso a análise das informações obtidas informa que, para 40% da equipe de participantes as ações superaram sua expectativa.
Gráfico 2; elaborado pela autora.
Este dado sinaliza uma questão importante apontada pelas discussões do PNEM: muitas vezes os cidadãos visitam o museu uma única vez, pois não tem expectativa de encontrar algo novo no seu interior. Na verdade, ao analisar esta questão, a partir da “expectativa”, pode-se comprovar que através da utilização dos recursos e meios adequados é possível transformar e/ou redirecionar o olhar do visitante para o museu, de forma a conduzi-lo na percepção de elementos novos em cada visitação, mesmo quando estes elementos constituem-se em objetos visitados já conhecidos. No gráfico, a seguir foram analisados os aspectos positivos das ações:
Gráfico 3; elaborado pela autora.
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Em relação a este gráfico, o que chama a atenção são os elementos relativos à organização, planejamento e interação, principalmente por tratar-se de um momento de reconhecimento em relação ao trabalho dos colegas de equipe, que também foram colaboradores das ações. Por fim, para alimentar o desejo de novas ações os professores foram instigados a pensarem ações similares que pudessem ser desenvolvidas em outros museus da cidade e, de forma geral, todos responderam positivamente, gerando um saldo positivo para pesquisa-ação proposta. Tendo em vista o intuito qualitativo desta pesquisa, pode-se concluir que, a partir do envolvimento e da avaliação positiva do grupo a proposta apresentada promoveu através da ação prática e da reflexão a conscientização e a formação de professores multiplicadores em prol de ações educativas interdisciplinares realizadas dentro de museus. Tratando-se, portanto de uma pesquisa-ação, cuja intenção foi integrar os professores da rede estadual de educação básica, aos conhecimentos provocados e produzidos pelas reflexões apresentadas na plataforma virtual do PNEM. A compilação dos dados através dos gráficos possibilitou avaliar o trabalho realizado, permitindo perceber as situações positivas e negativas, que poderão ser reiteradas, ou inibidas, em ações futuras. Torna-se necessário, no entanto, apreender em que circunstâncias este processo se realiza exigindo diálogo entre a teoria e a prática, como condutoras de um comportamento ético e responsável no planejamento e execução dessas ações. Desta forma, essa proposta converge com a metodologia do PNEM, por meio da qual a participação colaborativa, pretende democratizar a discussão acerca da Educação Museal, que visa à elaboração e redação de diretrizes voltadas aos museus no que tange as ações educacionais. Considerações Finais A partir, das ações e reflexões promovidas acredita-se que somente através da educação (reflexão-ação) que é em si ato político, é possível formar professores proprietários de um saber capaz de promover a Educação Museal, de forma consciente e prazerosa, capacitados tanto para o exercício do magistério, quanto para a promoção de ações educativas interdisciplinares nos museus. Desta feita, o documento final do Programa (PNEM), precisa estar alinhado não somente aos marcos estruturantes e legais dos campos cultural e museal brasileiro, como: o Estatuto de Museus; a Política Nacional de Museus; o Plano Nacional Setorial de Museus; e Plano Nacional de Cultura, e principalmente o Plano Nacional de Educação, uma vez que este último encerra uma importante contribuição no diz respeito às matrizes curriculares, dos cursos de formação em licenciatura e que a mudança que se espera, a partir do Plano envolve atitudes que precisam estar presentes desde a formação dos professores. Somente assim, através de uma formação mais completa, no que diz à teoria e a prática, poderá se afirmar que os profissionais licenciados tiveram em sua formação acadêmica o aprendizado necessário para o exercício da Educação Museal, sem isso, o que se faz é repassar ao indivíduo a responsabilidade que antes deveria ser acarretadas às instituições educacionais.
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A construção do Plano Nacional de Educação Museal, de forma coletiva traçou uma via de discussão participativa e co-responsável em prol do planejamento e execução das ações de Educação Museal. Contando para isso, com a participação expressiva de interessados na área, para a consolidação das informações constantes no documento. Neste sentido, as ações propostas pela articulação da Região dos Inconfidentes (aqui apresentada) pretendeu promover a conscientização e formação de uma equipe de professores/multiplicadores para a sensibilização da Educação Museal. Além disso, esta “Boa Prática” deverá propiciar a motivação e a valorização dos profissionais, através de momentos de socialização e troca de experiências (feedback) ampliando as ações reflexivas em prol da Educação Museal. No entanto, as políticas públicas deste setor da educação, envolvem um processo complexo, que deveria exigir das instituições ensino um comprometimento abrangente, desde a elaboração do Projeto Político Pedagógico, passando pela análise de suas Matrizes Curriculares e da inserção de atividades práticas nas disciplinas em que houver maior relação com a Educação Museal. No tocante à “questão das parcerias”, apontada num dos fóruns do PNEM, pode-se dizer que, a falta destas parcerias relaciona-se, também, à ausência de relações diretas do PNEM com o Plano Nacional de Educação, uma vez que estas parcerias deveriam ser firmadas no campo das políticas públicas, abrangendo assim os demais setores. Prova disso, foi a capacitação de um grupo de professores/multiplicadores cujo programa (PIP/CBC), que já existia a mais de 2 anos, foi desarticulado, pela política educacional estadual, pouco menos de 4 meses após o fim das ações. Desta forma, o exercício democrático da construção do Plano Nacional de Educação Museal, deve também incluir ações de interação com o Plano Nacional de Educação, uma vez que são políticas complementares para a Educação Museal, pois visam a uma mudança que não se relaciona apenas com o espaço de formação profissional, mas que compreende todo o processo educacional, como ação dialógica entre conhecimento e indivíduo e estabelece uma nova ordem cultural, na qual é possível cada um reconhecer-se efetivamente como sujeito capaz de captar uma realidade, fazendo-a objeto de seus conhecimentos, assumindo, conforme nos afirma Freire (1979) a postura de sujeito cognoscente de um objeto cognoscível. Referências BARRETO, Margarita; TAMANINI, Elizabete; PEIXER, Maria Ivonete da Silva. Discutindo o ensino universitário de turismo. Campinas: Papirus, 2004. BARRETO,Vera. Paulo Freire para educadores. São Paulo: Arte & Ciência, 2004. DESCARTES, Renê. O Discurso sobre o método. São Paulo : Hemus, 1978. GAETA, Cecília. Profissão: professor. IN: Análises regionais e globais do turismo brasileiro. TRIGO, Luiz Gonzaga Godoi (Editor). São Paulo: Roca, 2005. GATTI, Bernadete. Algumas considerações sobre procedimentos metodológicos nas pesquisas educacionais. Educação em Foco, 2003.
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MOREIRA, A.F.B., ALVES, M.P.C., GARCIA, R.C. (orgs.). Currículo, cotidiano e tecnologias. Araraquara: Junqueira & Martins, 2006. FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Trad. Moacir Gadotti e Lílian Lopes Martin. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
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_____. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. _____. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. PNEM. Disponível em: http://pnem.museus.gov.br/
Artigo recebido em junho de 2015. Aprovado em setembro de 2015
CURIOSIDADE E ENCANTAMENTO: A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DOS VISITANTES DE UM MUSEU DE CIÊNCIAS. Gustavo Lopes Ferreira1 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano Daniela Franco Carvalho2 Universidade Federal de Uberlândia RESUMO: O texto apresenta os resultados do estudo de público realizado em um museu de ciências durante uma pesquisa, na qual se realizou a produção de um artefato interativo para um museu de ciências, percorrendo desde a sua concepção até a recepção pelos visitantes. O artefato foi uma proposta de fornecimento de uma experiência interativa com o conhecimento científico, relacionado as aves do Cerrado. Nas observações do público percebemos comportamentos e falas dos visitantes que denotaram que o contato com o artefato permitiu mais do que uma experiência intelectual com o conhecimento científico, possibilitou uma experiência estética, pelo aflorar das emoções. PALAVRAS-CHAVE: Museu de ciências; Experiência estética; Emoção; Experiência museal; Interatividade.
Curiosity and charming: the Aesthetic visitor experience of a Science Musem ABSTRACT: The article presents the public study results conducted in a science museum during a research on the production of an interactive artifact to a science museum, from conception to the front desk by visitors. The artifact was a proposal for providing an interactive experience with scientific knowledge, related birds of the Brazilian Savana (Cerrado Biome). In comments from the public perceive behaviors and speeches of visitors which denote that contact with the artifact allowed more than an intellectual experience, but an aesthetic experience by the emotions. KEY WORDS: Science museum; Aesthetic experience; Emotion; Museum experience; Interactivity.
1 Gustavo Lopes Ferreira: Possui graduação em Ciências Biológicas e mestrado em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. Atualmente é professor do Ensino Básico Técnico e Tecnológico do Instituto Federal Goiano (IF Goiano), Câmpus Ceres-GO. Acumula experiências em educação em ciências, especificamente em museus de ciências e na área de educação ambiental, bem como na formação de professores. É membro participante do Prodocência no IF Goiano. 2 Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Campinas (1997), mestrado em Ciência de Alimentos pela Universidade Estadual de Campinas (2000) e doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2006). Atualmente é professora adjunta do Instituto de Biologia da Universidade Federal de Uberlândia, colaboradora do Grupo FORMAR-Ciências da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Formação de Professores, atuando principalmente nos seguintes temas: divulgação científica, museus e mídias. Bolsista CNPq de Produtividade em Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora.
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Curiosidade e encantamento: a experiência estética dos visitantes de um museu de ciências.
Apresentação
A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca (...) (LARROSA, 2015: 18)
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A colocação de Jorge Larrosa vem ao encontro das proposições deste texto, ao nos fornecer indícios do que venha a ser o autêntico sentido da experiência humana.Vivemos um tempo em que se é possível estar e vivenciar, ainda que virtualmente, diversas experiências, estar em contato com pessoas, informações, visitar lugares longínquos. Presenciamos a era em que as tecnologias da informação e da comunicação realizam o papel de aproximar e democratizar o acesso ao passado, ao presente e porque não ao futuro. Em meio a essa profusão de vivências, indagamo-nos sobre qual(is) sentido(s) as experiências têm adquirido? Em que medida elas tocam ou modificam os sujeitos? Na contemporaneidade é possível se viver uma experiência nos moldes propostos por Larrosa? O que é preciso para que a experiência seja algo que nos aconteça, nos passe, nos toque? Nos deparamos com tais questionamentos durante uma pesquisa na qual realizamos a produção de um artefato para um museu de ciências. O presente texto focaliza os resultados encontrados no estudo da recepção deste objeto pelo público, apresentando-os sob uma perspectiva de análise que centraliza as emoções dos visitantes como parte importante da experiência museal. Durante o estudo, objetivamos criar um artefato interativo1 inserido à exposição de longa duração do Museu de Biodiversidade do Cerrado (MBC) – Uberlândia (MG), apresentando e analisando os principais aspectos do processo de criação. Além disso, buscamos estudar o objeto junto ao público visitante, na intencionalidade de investigar seus comportamentos e emoções no momento de interação com o artefato. O MBC possui 14 anos de existência e tem se configurado como um promotor de atividades de divulgação científica e como núcleo de pesquisa na área da Biologia e da Educação em Ciências. Propusemos por meio da criação do artefato interativo, a possibilidade de o visitante ter contato com um museu de vanguarda, buscando efetivar a comunicação do público com a exposição, consolidando este espaço museal como um importante instrumento de popularização do conhecimento científico apoiado na interatividade. A noção de artefato foi obtida pelo diálogo entre as teorizações dos autores McLean (1993: 93 apud FALCÃO et al., 2003: 190), Nascimento e Ventura (2001), Abbagnano (2007), sendo entendido como um objeto produzido pela criação humana, projetado segundo os princípios da interatividade e com a função de divulgar conhecimento científico na exposição de um museu de ciências. Não é um objeto neutro, ao contrário possui uma intencionalidade, uma visão de mundo, porta a bagagem ideológica de seus criadores. Essencialmente o artefato foi uma proposta aberta a intervenção física do público visitante. Seu objetivo principal foi o de proporcionar uma experiên1 Neste texto, optamos por utilizar os termos: elemento expositivo, objeto expositivo, objeto museal, artefato interativo como sinônimos de artefato.
Gustavo Lopes Ferreira, Daniela Franco Carvalho
cia interativa com o conhecimento científico, especialmente relacionado as aves do Cerrado e ao trabalho de um(a) ornitólogo(a). Para além do contato com o conhecimento elaborado cientificamente, intencionamos com a criação do objeto expositivo ir ao encontro das emoções do público, produzindo, o que Wagensberg (2009) denomina de “estímulos”. Esses estímulos não se direcionaram somente à inteligência e à racionalidade, também rumaram para a retenção das emoções do público. Em visita a um museu de ciências o público vivencia uma experiência que é antes de tudo emocional (WAGENSBERG, 2000; NAVARRO, 2009). Os estímulos a que fazemos referência não advém da visão da psicologia comportamental, presente nos estudos de público nos museus nas décadas de 60 e 70. Neste período, para Köptcke (2003), os estudos se pautaram no modelo de estímulo-resposta, no qual se focalizava o papel da exposição ou de parte de seus elementos, que funcionariam como estímulos responsáveis por desencadear certos comportamentos e reações no público. Como explica Wagensberg (2000), a produção dos estímulos pelo artefato relaciona-se a possibilidade de promoção de mudanças entre o antes o depois da visita, de modo que o visitante saia com mais perguntas do que quando entrou no museu. Assim, o público pode produzir seus próprios sentidos, pela experiência única vivida junto ao objeto expositivo. A criação do artefato acompanhou a ideia da construção de algo esteticamente atraente, que servisse de matriz para o florescimento de uma experiência de fruição, de encantamento. Estas sensações, ao contrário do que se poderia pensar, muitas vezes não emana de um “prazer intelectual de chegar a compreender plena e racionalmente um conceito científico, senão advém da simples e aberta percepção de algo esteticamente atraente” (NAVARRO, 2009: 25). Neste sentido, delineamos um estudo de público que permitiu a observação dos comportamentos dos visitantes. Ao estudarmos a percepção do público sobre o artefato nos vimos diante de certos comportamentos, emoções e falas, que surgiram na negociação com os discursos carregados pelo objeto expositivo. Considerar a experiência museal do visitante forneceu-nos informações do alcance dos objetivos pretendidos com a criação do artefato. Conforme Falk e Storksdieck (2005) uma situação de visita a um museu é atravessada pela intersecção de contextos: o físico (a distribuição e a organização espacial dos objetos, o design e a forma de exposição, a arquitetura, objetos), o pessoal (motivação da visita e expectativas, conhecimentos e experiências prévias) e o sociocultural (a mediação social no interior do grupo com que o indivíduo visita e/ou interage no museu - escola, família, amigos, mediadores, guias, etc.). A existência e a influência desses contextos foram evidentes durante o estudo de público, pudemos observá-los nos comportamentos, expressões, falas, e até mesmo nas emoções de cada visitante estudado. Antes de adentrarmos no estudo de público, se faz necessário apresentarmos o artefato museal criado, desde sua produção, materialização e instalação no MBC. De modo geral, sua estrutura foi composta por cinco atividades que se complementaram. No que concerne aos museus de ciências, na contemporaneidade há uma tendência de criação de uma nova museografia a partir de objetos capazes de
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promover uma tripla interação do público com a exposição, conforme aponta Wagensberg (2000): manual (hands on), mental (minds on) e cultural (heart on). O conceito de “interatividade manual” pressupõe a interação física do visitante com objetos da exposição, em que o sujeito adquire um papel ativo durante a visitação. A “interatividade mental” implica a prática da inteligibilidade da ciência, tornando os conhecimentos científicos mais próximos da vida cotidiana, despertando o que Wagensberg (2000: 23) denomina de “emoções sobre a inteligibilidade do mundo”. Em síntese, tem-se o conceito da “interatividade cultural” que está atrelado a ideia de que o museu é um espaço de identidade cultural e, portanto, valoriza as identidades coletivas do seu entorno. Estas noções foram importantes pilares para se pensar a construção do objeto expositivo. O pressuposto inicial que norteou a criação do artefato esteve ligado à singularidade do objeto. Tivemos em mente que para o contexto específico do MBC, seria necessário algo inovador, planejado, construído para a exposição de longa duração e integrado ao seu projeto expográfico interativo. Desta maneira, produzimos um objeto museal em consonância à temática geral da exposição, que é a biodiversidade do bioma Cerrado, idealizado de forma a ser autoguiado. No artefato buscamos divulgar os resultados de um levantamento da avifauna presente no Parque Victório Siquierolli2, onde o MBC está abrigado. As aves estudadas nesse levantamento e que foram apresentadas no objeto expositivo são todas espécies presentes no Cerrado. Nosso objetivo principal foi oferecer ao visitante, por meio do contato com o artefato, a oportunidade para tocar nos bicos das aves e estar em contato com o profissional que estuda esses animais, no caso o(a) ornitólogo(a). O artefato teve um caráter interativo, oferecendo estímulos aos sentidos, aguçando o tato, a audição e a visão. Em sua estrutura foi possível manipular bicos dissecados de quatro espécies de aves do Cerrado3. Estes bicos foram dispostos no interior de uma mesa, com quatro furos, em que se impossibilitou a visualização pelo visitante. Após tocar nos bicos, o público teve como desafio associar algumas informações sobre as aves cujos bicos foram tocados. Isto foi realizado por meio de um painel, contendo 16 triângulos que giravam independentemente. Esses triângulos estavam distribuídos em quatro colunas e quatro linhas. Na primeira coluna, havia desenhos de bicos variados, na segunda havia imagens reais de alimentos de aves, na terceira encontrou-se pequenos textos que relacionavam o formato de bico ao tipo de alimento, e por último tinha-se as imagens reais das espécies. Cada linha referiu-se a uma ave tocada. A ideia é que o visitante ao manipular os bicos conseguisse estabelecer conexões com suas experiências prévias e pudesse associar informações-imagens no painel, objetivando encontrar relações entre os diversos hábitos alimentares e o formato dos bicos. Na sequência, havia um vídeo editado de uma entrevista com um ornitólogo, no qual contemplou-se a fala que mostra como é, o que faz, qual é a rotina 2 O artigo que serviu de embasamento para a criação do artefato foi: VALADÃO, Rafael Martins; FRANCHIN Alexandre Gabriel; MARÇAL JÚNIOR, Oswaldo. A avifauna no Parque Municipal Victório Siquierolli, zona urbana de Uberlândia (MG). Biotemas, v.19, n.1, p.81-91, mar. 2006. 3 As espécies escolhidas para compor o artefato foram: Colaptes melanochloros (pica-pau-verde-barrado); Caracara plancus (carcará); Ramphasto toco (tucanuçu); Ardea alba (garça-branca-grande).
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de trabalho desse profissional. O público pôde ouvir o conteúdo da entrevista utilizando um fone de ouvido, bem como recorrendo à legenda. Após ter contato com a entrevista do ornitólogo, seguiu-se a atividade de montar o boneco-ornitólogo(a), que teve como objetivo estimular o visitante a fixar imagens de vestimentas e instrumentos imantados em uma chapa de aço que simulava a silhueta um(a) ornitólogo(a) preparado(a) para ir a campo. Dentre esses objetos, havia algumas imagens que faziam parte ou não do trabalho desse(a) cientista. Completando o cenário do artefato, tivemos os elementos artísticos, que foram criados pensando na composição de uma unidade estética junto as atividades propostas. Entendemos a apreciação dos componentes artísticos sob a perspectiva do desfrutar de algo esteticamente atraente, ou no caso, de uma vivência prazerosa junto a Ciência e a Arte. Para tanto, nos aparatos artísticos, privilegiamos a dimensão representacional de animais e elementos da natureza, utilizando variados materiais, cores e técnicas. Assim, os elementos artísticos foram compostos pela seriema em tamanho maior pintada sobre chapa de aço, pelo painel de sombras de aves, pelo móbile de aves e pelas penas adesivadas no chão. Compreendemos que as condições objetivas e subjetivas que constituem os sujeitos humanos e seu contato com o mundo estão em um mesmo plano, desta forma ao estar numa situação de visita a um espaço como o museu, percebe-se que o público vive uma experiência carregada de sentidos emocionais, repletos de sensações de prazer, desprazer, alegria, medo, espanto, surpresa, curiosidade. Almejamos com a criação do artefato ir ao encontro desses sentidos e por meio deles, formar sua percepção, construir seu discurso, fundindo a racionalidade com os sentimentos, constituindo uma unidade capaz de ressignificar o sentido da sua experiência. O estudo de público Os estudos de público em museus foram desenvolvidos, ainda que timidamente, nas décadas de 1920 e 1930, e sistematizados e incorporados pelas instituições, a partir de 1960 e 1970 (KÖPTCKE, 2003; STUDART, ALMEIDA, VALENTE, 2003). Nessa época, os trabalhos dedicavam-se a traçar mapas que demonstravam os trajetos seguidos pelo público ao longo da visita, e indicavam as áreas da exposição que mais atraiam sua atenção. Podemos notar que os estudos de público foram se modificando, à medida que o entendimento sobre o papel das exposições se redefiniam, ou seja, acompanharam as mudanças da museografia. Na década de 1970 o foco estava na exposição, neste sentido, conforme Studart, Almeida e Valente (2003), a avaliação realizada junto ao público atendia aos interesses dos organizadores. Essa forma de abordagem com o público, privilegiando os aspectos expositivos, se direcionam para perceber o quanto as diferentes formas de expor impactavam a experiência do visitante, como se a experiência museal fosse determinada exclusivamente pelo componente físico da visita. Considerando a necessidade de refinar o entendimento sobre o público, os museus optaram por outras formas de abordagem do visitante, entendendo-o não somente pela perspectiva de sua relação com a exposição, mas buscando
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perceber como essa experiência é balizada por múltiplos fatores. São por eles que o visitante vai interpretar e dar sentido ao que foi vivido no museu. Então, o foco é deslocado da exposição para o público. Para explicar a complexa trama que configura o momento da visita a um museu, são utilizadas diferentes bases teóricas, psicologia, educação, ciências sociais, comunicação. (STUDART; ALMEIDA; VALENTE, 2003). Nesta direção, os estudos de público buscaram contemplar outros aspectos, além do físico, apontando dimensões que poderiam influenciar a visita ao museu. A identificação dessas outras dimensões é tratada nos trabalhos de Falk e Storksdieck (2005). Nos afiliamos a estes autores por considerarmos que o visitante vai ao museu trazendo seu repertório pessoal de experiências, conhecimentos prévios, sua bagagem cultural acumulada ao longo de diferentes situações, memórias, expectativas e interesses, tudo isto constitui o contexto pessoal que acompanha o visitante singularmente. Junto a este, temos o contexto social, com vistas as interações sociais oportunizadas durante a visita, quer o visitante esteja em grupo (familiar, escolar) ou individualmente, mesmo nesta situação, compartilha a visita com outros sujeitos que estão no museu, sejam outros visitantes ou os próprios mediadores. No mesmo sentido, estão as condições físicas da exposição, suas instalações, disposição dos elementos expositivos, design, formando o contexto físico. Assim, a confluência desses três contextos - físico, social e pessoal - se constituem e fazem a diferença no momento em que o visitante está no museu e, portanto, foi importante pensarmos em instrumentos de pesquisa de público adequados para contemplar tais dimensões. Recorrentemente são utilizados como instrumentos de coleta de informações dos visitantes de museus, a observação, os questionários e as entrevistas. Esses métodos têm suas funções nas diferentes fases do fazer museográfico, servindo para obter informações que podem reorientar o trabalho desenvolvido pelos museus. Por exemplo, no momento de planejamento ou após a montagem de uma exposição. De forma mais específica, realizamos o estudo de público, no momento posterior à materialização e instalação do artefato. Não foi nossa pretensão efetuarmos uma abordagem do visitante no contexto geral da exposição do MBC, mas estuda-lo diante do artefato criado, ainda que entendamos que foi impossível pensa-lo de forma desconectada dos aspectos globais da exposição de longa de duração. Almejamos com a realização do estudo de público lançar olhares sobre o comportamento dos visitantes diante do artefato, observando as principais movimentações ocorridas, e o quanto a interação com a nossa proposta foi capaz de prover momentos de emoção, catalisados pelas mais diferentes interações, cognitivas e intelectuais. Utilizamos a observação como método para o estudo de público, pensando-a como possibilidade para uma primeira aproximação com visitante. Desenvolvemos uma abordagem direta do comportamento do público, para isto, inicialmente elaboramos uma planilha de observação, baseados no trabalho com grupos familiares em museus desenvolvido por Studart (2005). Com tal planilha realizamos algumas observações, a fim de verificarmos sua funcionalidade na prática. Logo no início, esta ferramenta nos pareceu impor uma certa inflexibilidade, diante do aparecimento de outras informações relevantes, tendo sua
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aplicabilidade a um visitante idealizado, movendo-se conforme nossas intenções e interagindo com todas as atividades propostas no artefato. No entanto, na situação real percebemos que o público vive seu momento de visita das mais diversas formas, criando seu próprio percurso, vendo o que lhe interessa, sendo impossível prever seus comportamentos. Ainda em campo, readequamos a forma como realizaríamos as anotações das observações, passando a utilizar parte da planilha combinada com a construção de narrativas. Essa redefinição acompanhou, ainda que intuitivamente, a proposta de Almeida (2012: 11), ao apontar que “os procedimentos de observação não são previamente definidos, eles são construídos ao longo da pesquisa, a partir do trabalho ‘em campo’, ou seja, da observação dos visitantes, de como eles interagem com as exposições e entre si”. Enxergamos nas narrativas uma forma de registro que possibilitou a ampliação dos aspectos anotados, que segundo Vianna (2007) oportuniza a inscrição dos diferentes episódios vividos. Nas narrativas descrevemos a localização, a ação, as expressões, as reações, os comportamentos e as conversas produzidas pelos visitantes no momento da interação com o artefato. O MBC é um espaço frequentado por grupos organizados, formado principalmente pelo público escolar, que corresponde a maioria das visitas realizadas, as quais são agendadas previamente. Ainda, é visitado por pessoas que vem por conta própria, o denominado público espontâneo ou autônomo, conforme nomenclatura de Studart, Almeida e Valente (2003). Nossa proposta com o artefato era alcançar essa diversidade de públicos, proporcionando momentos de diversão e interação com o conhecimento científico. O público alvo das observações foi o espontâneo. Este trabalho foi realizado em quatro períodos de três horas cada, aos finais de semana. Optamos por realizar observações do tipo discreta, baseados em Studart (2005). Nestas o visitante é observado sem ser avisado previamente, semelhante ao que foi feito por Almeida (2012), em estudo no Museu Lasar Segall - São Paulo. Ao final da visita, apresentávamos aos observados o termo de consentimento livre e esclarecido, explicando brevemente sua utilidade e a pesquisa. Quando eram crianças ou jovens, menores de 18 anos, foi solicitado que o termo fosse assinado pelo acompanhante. No estudo de público, observamos visitantes desacompanhados e em grupos. Nesta última situação especificamente, o uso da narrativa mostrou-se um instrumento valioso para anotarmos a localização, a ação e o deslocamento dos integrantes, evidenciando os momentos que o artefato oportunizou o uso coletivo e as interações entre o grupo. Foi considerado na categoria “individual”, a situação da visita na qual mesmo o visitante estando em grupo no Museu, tenha interagido sozinho com o artefato. O inverso também é válido, para o visitante que estava sozinho no MBC, mas que no momento do contato com o objeto expositivo tenha interagido com outros sujeitos, neste caso sua situação de visita foi considerada em “grupo”. Portanto, determinamos a situação da visita exclusivamente no momento da interação com o artefato. Foram incluídos no estudo os visitantes que interagiram com o artefato, não importando se tivessem participado de todas as atividades propostas ou
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mesmo que tivessem concluído integralmente. O simples fato de olhar, manusear e produzir alguma interação, foi o critério de inclusão utilizado.
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Os registros foram produzidos com o auxílio da planilha e da construção das narrativas, e essas anotações se complementaram para produzirem os resultados. Ao realizarmos o estudo de público tivemos a oportunidade de compreender não somente os visitantes, como também o próprio trabalho que realizamos com a criação do artefato, por meio de seus comportamentos, falas e movimentações. Ao final do estudo, tivemos uma gama de dados, que nos permitiu traçar uma caracterização geral do público visitante do artefato, e ao mesmo tempo, produzir uma análise sobre as formas como interagiram com esse objeto. Caracterização do público visitante do artefato Foram realizadas 38 observações, que totalizaram 102 pessoas sendo nove visitantes desacompanhados e 29 grupos, compostos por aproximadamente três indivíduos. Percebemos a preferência do público em realizar as atividades na companhia de outras pessoas, principalmente familiares, isto se aproximou do trabalho desenvolvido por Almeida (1995) no Museu do Instituto Butantan (MIB) - São Paulo, que encontrou como resultado que a maioria dos visitantes vão ao museu com amigos ou familiares, correspondendo a 68% contra 12% dos que vão sozinhos. Em cada observação, contabilizamos o tempo que o público passou no artefato, de maneira que, iniciávamos a contagem a partir do momento que pelo menos um integrante do grupo interagisse com qualquer objeto presente na estrutura. E parávamos o cronômetro, quando o último participante deixava o artefato. O mesmo foi válido para os visitantes desacompanhados. Ao longo das observações, percebemos que alguns grupos, cerca de cinco, saíram para conferir o restante da exposição do museu e voltaram ao artefato para continuar a realizar uma atividade inacabada ou para iniciar outra. Nestes casos, o tempo geral gasto no objeto interativo foi determinado pela soma dos tempos parciais, contabilizados a cada vez que esteve em contato com o objeto. Não tivemos uma diferença significativa no tempo de interação com o artefato entre os visitantes desacompanhados e em grupo, ambos passaram em média três minutos. Tivemos como tempo mínimo, um grupo formado por dois jovens que interagiu com o objeto durante 27 segundos, e no polo oposto, um grupo de seis integrantes que passaram 16 minutos e 30 segundos interagindo com o artefato. Este último caso foi o único que realizou integralmente todas as atividades propostas e em conjunto. Talvez isto, justifique o tempo dispendido. Comparando o tempo gasto pelos visitantes nos artefatos interativos com aqueles sem essas características, no estudo de Cone e Kendall (1978) foi apontado que em exposições com elementos interativos o tempo gasto nos módulos é maior do que naquelas sem módulos interativos, as quais não ultrapassam 30 segundos. Os resultados observados em nossa pesquisa, se direcionam para reafirmar esse entendimento. Esse valor quando combinado com as reações e as falas dos visitantes, tornou-se expressivo para nos indicar o interesse que o objeto interativo suscitou no público, retendo sua atenção.
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Ao longo das observações procuramos anotar nas narrativas a localização e a ação do visitante sobre o artefato, percebendo para qual(is) atividade(s) o público se direcionou. Isto foi um indicativo da capacidade de certas atividades terem sido mais atraentes do que outras e servirem para cativar as emoções do público. Neste sentido, diante das situações observadas, podemos considerar que o visitante percorreu o artefato conforme seus interesses, criando seu próprio percurso, segundo sua vontade. E deste entendimento, podemos compreender o porquê a maioria dos observados não realizaram todas as cinco atividades propostas, como se esperava inicialmente. Nesta perspectiva da produção de percursos ao longo do artefato, houve um equilíbrio entre o total das observações daqueles que interagiram apenas com uma atividade, e daqueles que realizaram duas ou mais. Dentre estes, 15 observados, incluindo grupos e visitantes desacompanhados fizeram duas atividades, 3 se envolveram em três e 2 participaram de todas. Em cada ação empreendida pelo público no artefato, não tivemos a intenção de verificar se respondiam ou utilizavam o objeto corretamente, mas procuramos perceber, para qual(is) atividade(s) se direcionou e como se comportou nela, anotando suas expressões, reações e possíveis falas. Percebemos que houve mais do que uma interação entre sujeitos e objetos, demonstrada na adesão às atividades propostas. O público pôde compartilhar ações, ao interagir simultaneamente em uma mesma atividade com outros sujeitos, efetivando trocas de ideias e de conversas. Pôde-se evidenciar os papeis assumidos pelos integrantes dos grupos observados. Naqueles que haviam crianças presentes, observamos que elas em sua maioria foram as responsáveis por incitar aos demais a entrar em contato com o objeto, literalmente conduzindo a atenção de seus pais, tios, avôs, em direção ao artefato, funcionando como verdadeiros animadores. Voltando a atenção para as diferentes ações desenvolvidas pelos sujeitos na interação com o artefato, observamos que invariavelmente, elas seguiram uma base comum, compondo o que chamamos de fases da interação, são elas: olhar, focar a atenção, produzir resposta. A primeira fase está ligada ao que Wagensberg (2009: 25) denomina de “estímulo”, entendido como aquilo que captura o interesse do público, que é capaz de fazê-lo passar de um estado em que não está especialmente interessado em algo a outro, no qual queira viver a experiência de uma dada situação, basicamente com aquilo que é de seu interesse. Assim, percebemos que o visitante se aproximava de um objeto do artefato em específico, olhava-o, observava-o atentamente, como se tentasse extrair dele informações, passando pela fase inicial, que é o olhar. Ao ser atraído pelo estímulo oferecido pelo objeto, o visitante então, entra na fase de focar a atenção, neste momento, estabelece os mais variados tipos de interações, para realizar determinada atividade. Durante essa segunda fase, o público empreende o que Wagensberg (2009: 25) denomina de “conversação”, que pode ser consigo mesmo, com o objeto e com o outro. Podemos dizer que, quando o sujeito fala consigo mesmo, está acessando seu universo interior, suas experiências e conhecimentos prévios, sua bagagem de vida, quando conversa com o objeto, manipula-o, modifica-o, experimenta-o, da forma que lhe convém, e enfim quando conversa com o outro, está
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ampliando e agregando outras possibilidades para a produção de respostas, trocando ideias, compartilhando pensamentos e outras conversas. São nessas múltiplas possibilidades de engajamentos que a interatividade tem seu ápice, aflorando nos sujeitos certas necessidades de interações, a fim de efetivarem a situação vivida. Ao final, o visitante ao mesmo tempo que modifica o artefato, também é modificado, produzindo respostas, esta é a terceira e última fase do processo. A produção das diferentes respostas emergidas nas interações que os visitantes estabeleceram ao longo do artefato corresponde ao clímax da experiência. É neste momento que percebemos que o visitante viveu uma experiência que “só adquire sentido e valor a partir de seu lugar único”, nos dizeres de Bakhtin (2010: 26). Ou seja, compreendemos que mesmo que o sujeito esteja imerso em uma determinada cultura, impregnada por certos valores, ele tem liberdade diante das situações vividas, para atribuir certos valores e sentidos, esta é a sua condição emotivo-volitiva, a qual se faz presente na existência única de cada sujeito, conforme expressa Bakhtin (2010). Portanto, a resposta produzida por e em cada sujeito no contato com o artefato está direcionada a maneira singular com que se valorou essa experiência, e isto variou entre os diferentes visitantes. As emoções do público no artefato Propusemos com o artefato criar um momento propício para que o visitante pudesse assumir um papel mais ativo e de intervenção durante a visita, principalmente diante da possibilidade de tocar nos bicos das aves. De modo geral, todos aqueles que passaram por essa atividade, se sentiram convidados a manipulá-los. Esta foi a atividade que mais despertou o interesse do público, aproximando-o de uma experiência carregada de expressões e falas emocionadas, emitidas durante ou após a interação com as peças. Antes de tocarem nos bicos, o que mais se viu e ouviu nas expressões dos visitantes foi o florescimento de sentimentos, como a curiosidade, e também a agonia, e por vezes o medo, diante do contato com algo ainda desconhecido. Essas formas de emoção foram acompanhadas de falas como: Tenho agonia de pôr a mão (fala de uma mulher justificando a uma criança porque não colocava a mão dentro da mesa de toque) Ai meu Deus! (fala de uma jovem pouco antes de pôr a mão nos bicos) O que será que tem aí? (criança falando a um adulto, diante da mesa de toque)
Durante a interação com os bicos, observamos reações que demonstraram o alcance da dimensão emotivo-volitiva dos visitantes, ou seja, do valor emocional atribuído àquilo que foi vivido. Assim, podemos notar mais do que uma experiência intelectual com o conhecimento científico, que a atividade 1 potencializou uma experiência estética, catalisada pelas emoções, como propõe Duarte Jr. (1981). As emoções emergidas na interação com a atividade de tocar nos bicos foi expressa nas falas de alguns visitantes: Nossa! (fala que demostra a reação de surpresa de uma mulher ao tocar em um dos bicos) Dá medo! (uma jovem descrevendo a sensação sentida após tocar nos bicos) Nossa levei um susto! (fala de uma jovem descrevendo a sensação de ter tocado nos bicos) Que legal! (fala de uma criança ao pôr a mão nos bicos)
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Analisando tais reações esboçadas pelo público nos aproximamos do que coloca Navarro (2009), ao fazer referência a vocação estética dos museus de ciências, verificando que do contato com a exposição o visitante descreve a situação vivida atribuindo valores emocionais, muitas vezes, relacionados ao encantamento e ao espanto. Nesse sentido, é que palavras como legal, nossa, susto e medo, retiradas das falas dos visitantes, acompanhadas de suas entonações adquirem sentidos que nos fez perceber, que o público viveu uma experiência estética com o artefato. Consideramos o que aponta Duarte Jr. (1981) de que as entonações das falas dos sujeitos, “carregam inflexões e maneirismos que se constituem em expressões diretas dos seus sentimentos”. A pertinência do artefato talvez esteja contida na possibilidade de potencializar a vivência da experiência estética. Para Duarte Jr (1981: 98), esta “envolve a ampliação e a combinação de sentimentos, conduzindo o público a novas modalidades de sentir”. Consideramos que perceber a forma como os sujeitos foram tocados pelo contato com objeto é tarefa demasiadamente difícil, pois as emoções evocadas pelo fruir, são elaboradas pelo sujeito no seu universo particular de memórias, na sua trama de experiências, sentimentos e interesses. A experiência estética aparece na teoria de Duarte Jr. (1981: 84) a partir da reflexão sobre as formas com que o homem se relaciona com o mundo. Para tanto, diferencia os modos de como opera a “experiência prática, voltada ao agir no cotidiano, e a experiência estética, inclinada pela percepção direta de harmonias e ritmos”. Afirma que, a nossa experiência prática, empreende uma relação com o mundo enxergando-o como objeto, buscando a utilidade de cada coisa, apreendendo suas funções, numa visão utilitária do mundo. Já na experiência estética, o sujeito e o objeto formam uma unidade, sem se prender a utilidade das coisas, e isto requer o abrir da percepção para uma experiência sem mediações, principalmente de bases conceituais, percebendo a harmonia e beleza do mundo. Em suma, a experiência estética provê meios para pensarmos as experiências vividas, de modo que elas nos toque e nos permitam atribuir os mais diversos sentidos, catalisados por emoções que podem fazer aflorar sentimentos prazerosos, ligados a descoberta e ao maravilhamento. Procuramos efetivar a experiência estética do artefato como algo que afeta, que toca e transforma o sujeito, nos moldes propostos por Larrosa (2015). Intencionamos que os sentidos produzidos não se condicionassem somente a bases racionais ou objetivas, formas estas consagradas de se obter conhecimento. Mas, de fato, que por meio de uma experiência estética se tivesse a possibilidade de abertura a múltiplas percepções, sensações e que isso fosse um estímulo à produção de discursos forjados na negociação com outros. A forma como cada sujeito interagente se comportou e se emocionou parece estar ligada a sua condição singular ou ao emotivo-volitivo, proposto por Bakhtin (2010). Desta maneira, a forma como o artefato tocou os visitantes, tem a ver com a capacidade de ir ao encontro de suas emoções, do seu emotivo-volitivo, conduzindo-o ao que Larrosa (2015) diz ser a própria experiência, como aquilo que nos toca, que nos passa e deixam marcas.
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Considerações finais
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Compreendemos que o emocionar-se é um componente importante das nossas experiências, e que quanto a isso os museus precisam se atentar, procurando fornecer em suas exposições estímulos que sejam capazes de catalisar as emoções do visitante. A intenção principal com a criação do artefato durante a pesquisa foi pensar no fornecimento de tais estímulos, compreendendo que antes de uma experiência intelectual com o conhecimento científico, é preciso se abrir a experiência estética. Esta experiência é a forma como o sujeito pode se conectar com a essência das coisas, enxergando a beleza, as harmonias e ritmos, próximo ao que propõe Duarte Jr (1981). Nessa perspectiva, concebemos o artefato diante da sua potencialidade de não só sensibilizar os sentidos, por meio de atividades interativas, mas com isso, também sensibilizar os sentimentos, entendendo que eles entram em cena no processo de compreensão humana. Desta maneira, acreditamos segundo Duarte Jr. (1981), que os sentimentos são formas básicas do conhecimento humano, e que eles dirigem a atenção, a inteligência, e as maneiras como compreendemos e atribuímos sentidos às situações vividas. Conectados à ideia de que os sentimentos dirigem nossas ações, podemos pensar que o próprio processo criativo do artefato e as escolhas feitas ao longo dele, são de certa maneira frutos desse florescer de sentimentos, como formas primeiras de percepção. São essas formas, que nos guiaram, ainda que instintivamente, pelos caminhos e escolhas realizadas. Portanto, acreditamos que o objeto criado condensa não somente um ato de criação racional, mas está carregado de sentimentos, sentimentos de seus conceptores. Referências ALMEIDA, Adriana Mortara. A observação de visitantes em museus: sobre ratos e seres humanos. Revista Museologia e Interdisciplinaridade, Brasília, v.1, n. 2, p.1029, 2012. BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Editora Pedro & João Editores, 2010. CONE; KENDALL. Space, Time and Family Interaction: Visitor Behavior at the Science Museum of Minnesota. Curator, California, v.3, n. 21, p. 245-58, 1978. DUARTE JÚNIOR, João Francisco. Fundamentos estéticos da educação. São Paulo: Editora Cortez Autores Associados, 1981. FALCÃO, Douglas et al. Museus de ciências, aprendizagem e modelos mentais: identificando relações. In: Educação e Museu: a construção social do caráter educativo dos museus de ciências. Rio de Janeiro: Editora Access, 2003. FALK, John; STORKSDIECK, Martin. Using the contextual model of learning to understand visitor learning from a science center exhibition. Science Education, Estados Unidos, v. 89, p.744–778, 2005. KÖPTCKE, Luciana Sepúlveda. Observar a experiência museal: uma prática dialógica. Caderno do Museu da Vida, Rio de Janeiro, p. 5-21, 2003.
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Artigo recebido em junho de 2015. Aprovado em setembro de 2015
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DECIFRANDO CONCEITOS EM MUSEOLOGIA: ENTREVISTA COM MÁRIO CANEVA MOUTINHO
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Ana Carvalho1 Universidade de Évora
RESUMO: Mário Caneva Moutinho fez a sua formação em Paris, primeiro em Arquitectura e depois com um doutoramento em Antropologia Cultural (1983). Ao voltar a Portugal na década de 80 deu-se a descoberta pelo património local, pela procura de soluções na defesa e resgate desse património que o vai levar até ao mundo dos museus. A reflexão sobre os museus e o seu papel na sociedade levou-o a tomar partido de abordagens menos convencionais, conhecidas então como Nova Museologia. É no mundo académico que tem feito carreira, sendo um dos precursores da introdução da Museologia como curso universitário de pós-graduação em Portugal. É desde 2007 reitor da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (Lisboa), cargo que ocupa com perseverança em tempo de crise(s). Foi no seu local de trabalho habitual que encontrámos Mário Caneva Moutinho para esta entrevista. PALAVRAS-CHAVE: Museologia, Sociomuseologia, ensino Museologia, Nova Museologia, Mário Caneva Moutinho.
Deciphering Concepts in Museology: Interview with Mário Caneva Moutinho ABSTRACT Mário Caneva Moutinho studied in Paris, initially in Architecture, and afterwards in Ethnology (PhD, 1983). He returned to Portugal in the 80’s, discovering the local cultural heritage, and pursuing solutions for the safeguard of that heritage. That passion led him to museums. A critical reflection about the museums role in society guided him to sympathise and adopt less conventional approaches of museums and practices, then known as New Museology experiences. He has made his career in the academia, and was the precursor of introducing Museology as a course of post graduation level in Portugal. He is since 2007 dean of Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (Lisbon), position that he embraces with perseverance in times of crisis. It was at his usual workplace that we met Mário Caneva Moutinho for the interview. KEYWORDS: Museology, Sociomuseology, museology training, new museology, Mário Caneva Moutinho
1 Investigadora do Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS) da Universidade de Évora, arcarvalho@uevora.pt. Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto UID/HIS/00057/2013.
Ana Carvalho
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Mário C. Moutinho, 22 de Junho 2015, Reitoria da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa. Foto: Ana Carvalho
Ana Carvalho (AC) – Qual é o primeiro museu que se lembra de visitar e que memórias guarda dessa experiência? Mário C. Moutinho (MM) – Eu vivia em Monte Redondo que é uma aldeia ali ao pé de Leiria e tinha sete anos quando o meu pai decidiu mostrar Lisboa aos seus dois filhos.Visitámos imensas coisas e uma delas foi exactamente o Museu de Arte Antiga e o Museu dos Coches. Lembro-me perfeitamente de ter entrado no Museu dos Coches, ter ficado deslumbrado, entrar no Museu de Arte Antiga, ser um pouco mais cansativo, mas também me aperceber que eram espaços diferentes. E penso que foi importante, lembro-me perfeitamente desse primeiro contacto com os dois museus, o enquadramento familiar que havia na altura. AC – Poderia falar um pouco sobre o seu percurso profissional e o que o levou a interessar-se pelas questões do património e dos museus? Como é que se dá essa aproximação? MM – Ela vem através do Prof. [Manuel] Viegas Guerreiro (1912−1997). Quando ele se reformou na Faculdade de Letras (Universidade de Lisboa) fui eu que ele escolheu para continuar a dar as aulas de Antropologia Cultural e Etnografia Portuguesa. E assim foi. E como o meu trabalho anterior tinha sido sobre os lapões na Suécia, o meu doutoramento, ele dizia «os Lapões da Suécia estão muito longe de Portugal, tens que trabalhar sobre temáticas portuguesas e é aí que tem de residir o teu futuro, em Portugal». Eu aceitei o desafio – 1980 e pouco – também em Monte Redondo. Pensei fazer uma monografia, ainda no âmbito da Antropologia, não sabia bem ainda o quê, mas trabalhar sobre alguns dos aspectos que eu pudesse fazer na área da Antropologia e em Monte Redondo.
Decifrando Conceitos em Museologia: Entrevista com Mário Caneva Moutinho
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Foi durante esses trabalhos preliminares que me apercebi da quantidade de património material que existia por todo o lado. Tenho em mente várias dessas situações, eu disse de facto: «há aqui um problema que está nesta aldeia a passar-se, deve ser o que está a passar-se noutras aldeias do país, em muitas outras regiões, faz todo o sentido que se olhe para este património com mais cuidado». Ligando a Antropologia e a Arquitectura, de onde eu vinha também, houve um momento em que pensámos, porque não fazer aqui um museu? Na altura era o Museu Etnológico de Monte Redondo, que se pensou em fazer com todos os cuidados da Antropologia, com todo o rigor científico. E aí é que começou uma primeira campanha de recolha de objectos que funcionou de uma maneira espectacular. Ao fim de algumas semanas havia lá um milhar de objectos, desde as coisas mais pequeninas até a moinhos inteiros. Ou seja, havia uma disponibilidade e uma preocupação das pessoas com esse património. E o discurso era recorrente: o que está aqui é importante, tem que ser preservado, tem que servir para o futuro, temos que transmitir. Nós não levávamos um discurso sobre a importância do património, mas isso estava perfeitamente interiorizado. E então o que houve ali foi apenas definir uma área sobre a qual podíamos trabalhar, porque, entretanto, já havia um grupo de pessoas à volta da ideia. Fomos à papelaria da aldeia comprar um livro de registo e dissemos: «está aberto o registo do futuro museu», e envolveram-se campos de trabalho, dezenas, centenas de pessoas que se envolveram no projecto. E ao fim de alguns meses nós tínhamos um acervo imenso, voltámo-nos a sentar e a perguntar: mas afinal isto é mais do que estávamos a pensar, a gente vai continuar ou vai devolver tudo, pedindo desculpa às pessoas pelo incómodo? A decisão na altura, óbvio que foi de avançar com o projecto, só que era um projecto perfeitamente tradicional, um projecto onde havia participação, mas não era uma participação em termos de processo museológico para a aldeia, era uma participação de quem oferece e de quem transfere uma responsabilidade. Desde o início que a gente não se equivocou com estes tipos de participação. Aí houve um acaso feliz, que foi os primeiros encontros com o Hugues de Varine, que na altura era director do Instituto Franco-Português1. O Hugues de Varine é que me pôs em contacto com outras pessoas que no país também andavam à volta das mesmas preocupações, como o António Nabais. No fundo ele teve um papel importante que foi ligar várias pessoas que ele acompanhava e dizer: «afinal vocês têm muitas coisas em comum e, portanto, vale a pena conversarem». Isso depois consolidou o projecto. E aí eu percebi que além daquilo que estávamos a fazer, e que tinha um valor relativo, a preservação material de património com uma ideia de museu mais ou menos elaborada, para um outro rumo que seria a Museologia como um recurso para a própria povoação, para a própria área que estava envolvida. Perguntou-me qual foi o meu primeiro vínculo:Viegas Guerreiro e depois Hugues de Varine. E penso que foi muito importante o papel do Prof. Viegas Guerreiro, com quem eu depois trabalhei até mais tarde na Faculdade de Letras (Universidade de Lisboa), como com o Hugues de Varine que depois parei relações com ele, até hoje. 1 Hugues de Varine foi director do Instituto Franco-Português em Lisboa entre 1982 e 1984. Entre os cargos mais proeminentes que ocupou destaca-se o de director do Conselho Internacional de Museus (ICOM) entre 1964 e 1974. Para maior aprofundamento veja-se Varine (2013).
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AC – Voltando atrás, o facto de ter feito a sua formação em Paris influenciou a sua forma de ver os museus e o património, e o seu olhar sobre o que era possível fazer em Portugal? MM – Julgo que não, pois na altura a minha atenção estava centrada nos meus estudos de Arquitectura/urbanismo e de Etnologia. Nesses anos todas as referências estavam lá, acessíveis, criativas, questionadoras, nas aulas, nas conferências, nos debates. Roland Barthes, Michel Foucault, J. P. Sartre, Simone de Beauvoir, Levi Strauss e muito mais. Mas certamente que foi esse universo pós Maio 68 que me ajudou a construir o modo de me relacionar com o mundo. Também é verdade que os museus que estavam ao meu alcance viviam no seu isolamento das verdades absolutas… AC – Como surgiu o ensino da Museologia na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias? Sei que há um antes da Lusófona, um pré… MM – Antes da Museologia na Universidade Lusófona… isto é fruto do acaso e não é fruto do acaso. Houve a realização em 1984 do encontro dos museus no Quebeque (Canadá): 1.º Atelier Internacional de Nova Museologia2. E aí os canadianos que organizaram o encontro, que foi o Pierre Mayrand (1934−2011) e o René Rivard em particular, pelo lado do Canadá, Marie-Odile de Bary, pelo lado da França, mas sobretudo os canadianos. Eles organizaram-se e correram um pouco o mundo à procura de experiências onde houvesse uma prática que fosse aquilo que se chamava na altura de Nova Museologia, digamos um envolvimento das pessoas. Não um envolvimento parasitário (eu aproveito a tua participação e faço o meu projecto), mas um envolvimento noutros termos. Eles estiveram em Monte Redondo, porque então Hugues de Varine indicou que fossem visitados meia dúzia de museus em Portugal e entre esses museus, aqueles que eles seleccionaram na altura como projectos com uma abordagem um pouco diferente, mas ainda um pouco confusa, foi exactamente o Seixal, quando estava lá o António Nabais, e Monte Redondo.3 E assim foi, ao participar nesse encontro, no qual acabámos tanto o A. Nabais como eu por ter um papel muito activo. Aí ficou claro que a Museologia era tudo aquilo que eu poderia pensar enquanto antropólogo. Mas além disso, era muito mais, havendo um embasamento muito mais consistente do que eu alguma vez imaginara, e que isso se repetia um pouco por todo o mundo. O encontro do Quebeque foi a possibilidade de entrar em contacto com John Kinard (1936/1989), com o pessoal que trabalhava nos ecomuseus da Escandinávia, os ecomuseus de França na altura, e no fundo dizer: nós andamos todos à procura de um outro exercício de responsabilidade social que passa através de uma instituição que ainda por cima é muito positiva em todo o lado. Porque pensar a ideia de museu em qualquer parte do mundo é uma ideia mais positiva do que negativa. Quando se fala de museu abre-se um espaço. A ideia de museu é: museu, património, memória, tudo isso abre perspectivas. E no fundo havia muito mais gente interessada nesta abordagem. 2 Deste atelier resultou a Declaração do Quebeque (Princípios de base da Nova Museologia). 3 Sobre o Ecomuseu Municipal do Seixal e o seu papel no movimento de renovação da Museologia em Portugal veja-se Filipe (2000). Para uma panorâmica mais global do desenvolvimento da Museologia portuguesa após o 25 de Abril veja-se Camacho (1999), entre outros.
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AC – Mais gente do que hoje? MM – Não, hoje há mil vezes mais gente envolvida do que nessa altura. Porque nessa altura havia um certo pioneirismo no meio disso tudo. Hoje em dia não. As coisas estão mais consolidadas.
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E, nessa reunião se percebia o envolvimento da Universidade do Quebeque em Montreal, onde havia um trabalho consistente neste campo. Na altura fiquei um pouco com a ideia de que se podia ir muito mais além em termos do País, daquilo que se estava a fazer, e o importante era as pessoas conversarem sobre o que faziam, mas de uma maneira muito pouco organizada. No ano seguinte (1985), quando foi feita aqui [Lisboa] a fundação do MINOM (Movimento Internacional para uma Nova Museologia) deu-se a consolidação das ideias anteriores. Passámos a ter uma organização que nos apoiava e sobretudo uma organização com pessoas com quem mantínhamos contacto. E foi aí que nasceu a ideia da formação: andamos todos a ter as mesmas práticas, mas nunca parámos para reflectir de uma maneira estruturada. Ou seja, o primeiro curso foi [em 1989] na UAL (Universidade Autónoma de Lisboa) foi efectivamente juntar todas aquelas experiências que havia em Portugal mais comprometidas socialmente e depois reunir um conjunto de pessoas que pudessem, vindas do mundo académico, mas pudessem ajudar as que estavam no terreno a reflectir e, consequentemente, a melhorar o trabalho. Eu lembro que a abertura do curso foi Hugues de Varine que a fez, onde ele disse: «é o único curso que conheço sobre Museologia Social» ainda não se usava Museologia Social, [mas sim] Nova Museologia. E, portanto, ele sentiu e acarinhou o projecto de uma maneira muito forte, e sabendo nós o trajecto dele, isso dava-nos confiança. E depois criou-se uma relação com várias pessoas, tanto os ecomuseus de França, que vieram participar nessas formações, como do Canadá, em particular o Pierre Mayrand, quer de Espanha, onde nesta altura o Instituto Catalão de Antropologia propôs ao Museu de Monte Redondo fazer um seminário sobre o que andávamos a fazer. Foi o meu primeiro seminário da vida. Lógico que nesse seminário fomos sete, porque não fazia sentido ir só eu. Todos participaram activamente, mesmo as pessoas que nunca tinham entrado numa universidade, e estávamos a fazer no Instituto Catalão de Antropologia que era o lugar da Antropologia mais de vanguarda na Catalunha. E isso também abriu portas, porque também descobrimos novos parceiros que trabalhavam (isto tudo em particular) na Catalunha em projectos absolutamente extraordinários de museologia comunitária, participativa. Isso ajudou a estruturar e a dar consistência ao primeiro curso. E no primeiro curso estavam imensas pessoas que hoje em dia continuam nos museus dos Açores, da Madeira, daqui, pode-se citar nomes: Clara Frayão Camacho, Graça Filipe. Enfim, mais ou menos estávamos todos por ali. Depois as coisas iriam ganhar outra consistência. Ainda tenho o texto organizador desse primeiro curso. Eu acho que ele era de facto o olhar para a frente. E todo ele muito centrado sobre o museu como recurso de trabalho, não um fim em si, mas em que medida isso podia ajudar a consolidar, a ganhar identidade, a ser mais bem gerido e isso ia desde os professores, das informações de sistemas IBM que vieram trabalhar connosco,
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que deram mais consistência a essa aprendizagem, como pessoas das outras áreas e também aqueles que em Portugal tinham tido um pouco mais de reflexão sobre isso. E aí nasceu o primeiro curso, que foi efectivamente na UAL. O que nós sabíamos sobre Museologia nestas áreas era muito limitado. Eu lembro-me, por exemplo, a relação das autarquias com os museus, já era importante nessa altura, quem é que poderia dar um seminário de museologia e autarquias? Ninguém no país, ninguém tinha trabalhado ou reflectido, não havia artigos sobre essa matéria. O que é que nós fizemos? Criámos o encontro “Museologia e Autarquias” e passámos a ir às câmaras para haver esse contacto, entre o que se passava, muito centrado na realidade da altura, os primeiros encontros “Museologia e Autarquias”.4 O princípio é por aí. AC – O ensino da museologia na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias demarca-se dos restantes pelo enfoque na função social do museu, daí a utilização inicial dos termos Nova Museologia e Museologia Social. Em 2007 assinala-se uma mudança para um novo conceito: a Sociomuseologia. A que se deve? No que diferem os conceitos? MM – Há diferenças. Eu diria que a Nova Museologia é uma constatação de uma prática e essas práticas têm um rótulo: Nova Museologia. E são as práticas que vão da Casa del Museo [México] até aos museus da Escandinávia.5 Essa nova prática que tem um conjunto de documentos fundadores, naturalmente o mais importante deles que é a Declaração de Santiago do Chile (1972). Era uma prática e as pessoas juntavam-se porque tinham aquela prática, mas quando começamos efectivamente a aprofundar uma reflexão sobre essa prática aí é evidente que temos que ir buscar outros recursos das diferentes áreas do conhecimento. E é na busca do que se pode ir buscar a todas as áreas dentro das ciências sociais essencialmente, que nós vamos encontrar uma profundidade conceitual muito mais elaborada do que era a Nova Museologia. A Nova Museologia diria que é uma bandeira, a Sociomuseologia é uma área de conhecimento que tem a ver com a enorme maioria dos museus que há no mundo. Portugal, passou de 40 museus com mais de 100 anos a 1500 criados nos últimos 40 anos. É exactamente o mesmo processo em toda a parte do mundo, toda a América Latina é isso, e na Europa também. A compreensão dessa prática exigiu que se fosse buscar um embasamento logicamente às ciências sociais. Houve um esforço grande de reflexão porque antes dessa altura a Museologia era essencialmente uma técnica, não ia muito além da técnica, tinha uma história, mas essencialmente era a técnica, a técnica de fazer museus, a técnica 4 O encontro anual “Museologia e Autarquias” existe desde 1990: http://www.museologia-portugal.net (Acesso em: 27 Jun. 2015). 5 As décadas de 1960 e 1970 do séc. XX constituem fases relevantes para a crítica e auto-avaliação nos museus, em que movimentos como a Nova Museologia, com origem em França, surgem na defesa do papel social dos museus, da interdisciplinaridade, da valorização do património local ao serviço do desenvolvimento e da participação das comunidades (Desvallées e Mairesse, 2013), contexto a partir do qual se emblematizaram vários museus como: Anacostia Museum, em Washington (1967), La Casa del Museo, no México (1973), l’Écomusée du Creusot, em França (1972) e l’Écomusée de la Haute-Beauce, no Quebeque (1978). Para uma análise crítica da Nova Museologia veja-se «La Belle Histoire aux Origines de la Nouvelle Muséologie» (Mairesse, 2000). São também fundamentais para a compreensão deste movimento: L’initiative Communautiare: Recherhe et Expérimentation (Varine, 1991) e os dois volumes de Vagues: Une Anthologie de la Nouvelle Muséologie (Desvallées, 1992; 1994), que incluem textos de inspiração da Nova Museologia.
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de expor, a técnica de conservar, a técnica de preservar. E com esse aprofundamento, eu diria quase epistemológico, compreendeu-se a Museologia como área das ciências sociais. E isso não existia antes. Antes eram técnicas, agora pela realidade do mundo que mudou, há uma densificação do conhecimento que levou à construção de uma Sociomuseologia. Porque a Museologia Social, se pudermos ainda fazer [o paralelo], a Museologia Social é um pouco a Nova Museologia.Agora, a Sociomuseologia é a área dentro das ciências sociais que trata estas questões, e tem um conjunto de características, uma delas, talvez a mais importante, que é a de assumir a interdisciplinaridade como base para esta reflexão. A gente não pode partir para esta reflexão sem as ciências sociais para compreender os diferentes processos societais. E eles estão em contínua mudança, que é um outro elemento importante de todo este processo. Esta reflexão da Sociomuseologia assenta no princípio que a sociedade está em mudança, e, portanto, tem que haver uma disciplina que é capaz de se transformar e evoluir à medida que a mudança também vai acontecendo, porque senão a certa altura nós ainda continuávamos a pensar uma outra realidade, que não é aquela que já está. E hoje nós assistimos, mesmo dentro desta Museologia, que se reconhece como uma ciência social, a mudanças profundas nos últimos 20 anos, sem dúvida.6 AC – Qual o lugar das colecções na Sociomuseologia? Podem os museus existir sem objectos? MM – É um debate que já passou. Declaradamente podem existir museus sem colecções permanentes. Eu lembro-me que um dos casos, talvez mais paradigmáticos na altura foi o Museu da Civilização no Quebeque, que é um grande museu de referência e que nasceu exactamente com esse princípio: não ter colecções, mas no entanto, com uma actividade de envolvimento enorme com aquela cidade. E era um grande museu nacional! Um outro paralelo: os museus da ciência, que na verdade não têm “nenhum” objecto original, não tem nenhuma Madona. Tudo é construído para explicar leis, explicar fenómenos e não há essa dimensão patrimonial que nos é dada por um passado. Portanto, essa discussão do “museu com colecções” e “museu sem colecções” já desapareceu pela própria realidade. Efectivamente, há museus que têm colecções, há outros que podem ter ou não ter colecções. E entre as duas coisas há uma mistura de tudo isto. Agora, centrar o trabalho do museu nas colecções, cada vez mais é um processo que não tem grande consistência. Hoje são poucos os museus que não assumem que têm outras responsabilidades para além das colecções. É aquilo que ultimamente tenho vindo a chamar de “museus complexos”, que são museus complexos não pela complexidade das tarefas, mas complexos porque têm na sua origem conceitos estruturantes de natureza diferente. Hoje em dia nós temos museus em que se assiste a uma área de actividade assente nos conceitos da Museologia de objectos, se quisermos chamar assim, e que dentro da mesma instituição existem áreas também de actividade completamente voltadas para a sua responsabilidade social. Como é que dentro do museu, a mesma pessoa pode trabalhar numa área e na outra? Digamos que há aqui uma complexidade de conceitos que tornam 6 A respeito de um maior aprofundamento da noção de Sociomuseologia veja-se Moutinho (2007).
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o perfil de quem trabalha hoje no museu mais complexo do que poderia ser há uns anos atrás, quando se dizia que não era preciso haver especialistas de Museologia: o arquitecto faz o museu, o pintor faz a obra e qualquer um pendura na parede. Nos museus mais ligados a determinadas áreas científicas como a Antropologia aí era preciso o antropólogo, que classificava, determinava. Portanto, acho que há aqui uma complexidade que efectivamente é uma nova realidade. E isso nos leva a uma tomada de consciência essencial que é: que formação para estes museus, que conjugam duas realidades que estão consolidadas: a realidade do museu “tradicional” e a realidade do museu com responsabilidade social. Que formação dar? Eu diria que esse é o grande desafio das universidades que querem olhar para o panorama dos museus na sua globalidade. Se no início nós dávamos os cursos muito centrados para os museus da Nova Museologia, declaradamente hoje nós damos a formação, pelo menos aqui, para uma Museologia que tem que ter em consideração as duas coisas, essas duas realidades que sendo necessárias uma à outra acabam por dialogar uma com a outra. AC – A formação em Museologia tem uma dimensão teórica e uma dimensão prática. Como é que essa articulação se transpõe para os programas curriculares da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias? MM – Uma a não resolução, pelo facto de as pessoas virem em geral já de uma prática-museu, uma prática profissional. AC – É um critério ou isso acontece? MM – Acontece, não foi determinado. As pessoas vêm com uma experiência do seu museu ou dos seus museus onde trabalharam ou das suas instituições. Elas vêm de facto com uma prática muito grande, digamos que não faz sentido propor estágios a essas pessoas, já estagiaram dez, 20, 30 anos. Mais recentemente, aparecem pessoas mais à saída da licenciatura sem uma prática museológica, aí nós tivemos que encarar o problema de uma outra maneira. Mas para a maior parte dos cursos, para os mestrados (depois a nossa formação que era de especialização passou a ser mestrado uns anos mais tarde), não se põe propriamente essa questão da prática, o que as pessoas querem é reflectir sobre o que andam a fazer e ao reflectir equacionar novos desafios. Há, porque a sociedade mudou, um outro tipo de pessoas que vem à formação no âmbito do mestrado, mas sobretudo no âmbito do doutoramento, e aí elas podem não ter essa prática. A maioria tem, mas podem não ter. O que tivemos que fazer foi introduzir estágios em museus. Não pudemos introduzir estágios em todas as áreas, por exemplo, nunca entrámos pela área da conservação e do restauro porque há outras instituições que o estão a fazer e que o fazem bem, apesar de termos tido aqui durante dez anos o Eng. Luís Casanovas (1926/ 2014)7 a dar conservação preventiva por ser importante para as pessoas aferirem o que é que andavam a fazer e o que é que não andavam a fazer. Isso é válido, o que faziam e o que não faziam, desde um museu mais pequenino até um museu nacional. Andou aqui gente de todos esses museus. O Eng. Casanovas tinha essa qualidade, ficarei sempre reconhecido pelo trabalho que ele desenvolveu aqui. 7 Sobre a sua obra veja-se Casanovas (2008).
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Mas, portanto, há áreas de uma prática museológica que nós não mexemos, não faz sentido como essa da conservação e restauro. Há outras que nós consideramos muito importantes que é aquilo que tem a dimensão comunicacional, não só porque esta universidade tem recursos no domínio da comunicação extremamente consistentes e desenvolvidos, mas porque efectivamente a comunicação em museu já não é o que era há dez, 15, 20 anos atrás. Hoje em dia, ou se faz uma utilização inteligente dos novos recursos ou então continuamos a não aproveitar o mundo em que vivemos. E, por exemplo, um caso concreto desta preocupação: nós estamos a trabalhar com uma rede de escolas cujo lema do trabalho é “guerra às cartolinas”, porque a exposição em si nas escolas em Portugal é fundamental. Todas as turmas, todos os cursos fazem exposições e é muito trabalho dos professores, dos alunos, de envolvimento, e depois tudo aquilo se traduz numa exposição perfeitamente medíocre em que as coisas caem, os pioneses caiem e, portanto, há uma degradação do conteúdo que resulta de uma ausência de recursos expográficos que faria o respeito pelo trabalho que está ali envolvido. Neste momento, por exemplo, temos um grande programa em que estamos a transferir para as escolas os recursos tecnológicos no campo da Realidade Aumentada, uma coisa relativamente simples e de fácil aprendizagem. Este ano já são seis as escolas que inauguraram exposições feitas com o recurso da Realidade Aumentada. É óbvio da parte dos alunos uma disponibilidade total e encontro da parte dos professores um renovar também total. Tem sido um trabalho muito interessante ver como essas escolas só estavam à espera de qualquer coisa que as ajudasse. Trabalhamos neste momento com a Realidade Aumentada, temos todos os recursos necessários para fazer, tanto corpo docente, como também um conjunto de assistentes que trabalham directamente com as escolas. Não quer dizer que de hoje para amanhã não se introduzam outros campos porque, claro, não se consegue abranger a totalidade dos recursos que existem hoje. AC – Qual o balanço que faz da formação pós-graduada em Museologia na Universidade Lusófona e qual o seu papel para o desenvolvimento da Museologia portuguesa? MM – Contribui para que muitas pessoas que trabalham nos museus tenham tido espaço para reflectir, para dialogar com pessoas que vieram de outros horizontes e de outras experiências, reflectir sobre o que é que andavam a fazer, abrir janelas e portas sobre tudo aquilo que efectivamente pode ajudar, pode consolidar as ideias, pode questioná-las naturalmente. Tem sido sempre um trabalho feito muito pela positiva. Abrir espaços de diálogo, eu diria que tem sido o trabalho daqui destes cursos, agora de mestrado e doutorado. É abrir janelas e conclamar para que as pessoas tragam os seus conhecimentos atendendo às diferentes áreas do saber. Nós temos teses de doutoramento feitas por engenheiros civis como temos por historiadores. É tão bem-vinda uma tese feita por um engenheiro civil que nos trás as suas competências de engenharia civil e as põe ao serviço da Museologia, como do historiador, do psicólogo ou do arquitecto. É desta interdisciplinaridade que todos nós ganhamos.
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E uma coisa é certa e cada vez é mais clara para mim, o curso tem sido capaz de introduzir mesmo nos seus próprios programas aquilo que os alunos nos trazem como as suas preocupações, porque há momentos em que uma pessoa sente uma necessidade de discutir determinadas áreas, aprofundar outras, e o curso tem assumido isso. Um exemplo, talvez o melhor de todos: a existência de disciplinas sobre Museologia e género não era provável há 20 ou 30 anos atrás. É evidente que quando nos chegam alunos com essa preocupação, que tanto professores como colegas compreendem a dimensão, então provavelmente a universidade tem de criar formação, criar seminários sobre essa área. Mesmo a questão relativamente à computação e à Museologia, mesmo a questão dos serviços e o museu entendido como entidade prestadora de serviços, o mesmo quando se trata de museus no âmbito da Museologia Social. Eu diria que é isso, essas portas que se abriram, e essa capacidade de integrar as preocupações das pessoas que andavam por aí à procura de ter parceiros para melhorarem a sua reflexão e o trabalho que têm. AC – Como vê hoje o ensino da Museologia em Portugal, como se evoluiu e em que ponto estamos? MM – Imenso. Eu lembro-me que em 1990, quando nós começámos na UAL, nenhuma universidade se tinha preocupado verdadeiramente com a Museologia, não havia um único diploma de Museologia, era quase “tudo” autodidactismo. Claro que tinha havido o curso do IPPC (Instituto Português do Património Cultural), muito importante para o país, mas foi pontual, apareceu, nasceu e fechou8. Depois transferimo-nos para o Instituto Superior de Matemáticas e Gestão que viria a dar origem anos mais tarde à Universidade Lusófona. Passado uns meses apareceu a Nova [Universidade Nova de Lisboa] com um mestrado [em Museologia e Património].9 Foi importante, uma instituição pública a assumir a Museologia como uma área digna da Academia e de atribuir um grau. Foi muito importante a existência desse primeiro mestrado na Nova e depois seguiram todos os outros10, e hoje em dia há mestrados, vários doutoramentos.11 8 O curso aludido na entrevista é o Curso de Conservadores de Museus que decorreu entre 1981 e 1984. O curso de conservadores começou a funcionar com regularidade a partir de 1965, mas entre 1974 e 1981 houve um período em que não existiu qualquer formação (Camacho, 1999). 9 Antes da criação de pós-graduações e mestrados na área da Museologia, nalguns cursos universitários leccionava-se a disciplina de Museologia. Esse foi o caso do curso de Ciências Antropológicas e Etnológicas do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina que criou em 1970/ 1971 a disciplina de Museologia por iniciativa Jorge Dias (1907/ 1973) e que veio a ser leccionada por Ernesto Veiga de Oliveira (1910/ 1990). Foi ainda o caso da Universidade Nova de Lisboa que no início da década de 80 introduziu a cadeira de “Museologia e Antropologia” no âmbito da licenciatura em Antropologia sob a responsabilidade de Mesquitela Lima (director do departamento de Antropologia), e cujo programa fora definido por Henrique Coutinho Gouveia (Camacho, 1999: 146). 10 Nos anos seguintes abriram novos cursos de pós-graduação e mestrado, designadamente na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (1998), na Universidade de Évora (1999), entre outros. O aumento da oferta de cursos académicos em museologia em Portugal está também ligado ao facto de a partir de 2001 um novo enquadramento normativo da carreira nos museus exigir uma pós-graduação ou mestrado para acesso ao lugar de conservador de museu (art. 3.º do decreto-lei n.º 55/2001). 11 Em Portugal, para o ano lectivo 2015/ 2016 estão disponíveis pelo menos cinco doutoramentos ligados à Museologia: Universidade Lusófona, Universidade do Porto, Universidade de Évora (História e Filosofia da Ciência, especialização Museologia), Universidade Nova de Lisboa (História da Arte, especialidade em Museologia e Património Artístico) e ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, juntamente com Universidade Nova de Lisboa (Antropologia: Políticas e Imagens da Cultura e Museologia).
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Foi importante este ter começado, foi importante a Nova como [universidade] pública ter aberto essa área, ajudou ao reconhecimento. Na altura, aliás, havia alguns professores que andavam entre a [Universidade] Nova e a UAL e os princípios da [Universidade] Lusófona. Portanto, num país tão pequeno nada é fechado.
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Mas metade do que fazemos aqui na U. Lusófona se deve aos contributos de museólogos e professores das universidades brasileiras. Isso é uma dívida que temos de reconhecer permanentemente. E que no Brasil também foi a mesma coisa. Durante muitos anos, aí já tinham desde há 70 anos uma licenciatura em Museologia, uma coisa muito conservadora, até tinham uma disciplina que se chamava “Instrumentos de Estrutura e Suplício”, porque era muito centrada sobre as colecções e sobre o Museu Histórico Nacional, era um curso feito à medida daquele museu. Gustavo Barroso quando criou o primeiro curso de Museologia (1932) foi à procura de resolver um problema que era não ter pessoas qualificadas dentro daquele museu para ganhar a dimensão que viria a ter. Como aqui, no início também era: vamos fazer isto para todos nós que andamos envolvidos, uns já no mundo académico, outros fora do mundo académico, mas todos envolvidos no mesmo trabalho. Portanto, há em Portugal uma mudança radical como no Brasil, onde através da intervenção do Gilberto Gil hoje há 14 licenciaturas, há três mestrados, há um doutoramento e mais dois encaminhados. Em cinco anos, seis, sete anos, o Brasil mudou totalmente o panorama do ensino da Museologia. AC – A oferta de cursos em Museologia de 2.º ciclo (mestrados) e 3.º ciclo (doutoramentos) em Museologia tem vindo a aumentar em Portugal. Pergunto, se considera esta uma situação sustentável? É preocupante? MM – Não, não é preocupante. Será o que a sociedade determinar. Se continua a haver necessidade das pessoas irem à universidade para aprofundar os seus conhecimentos ou para encontrar uma profissão, os cursos mantém-se, se não houver não há. Digamos que aí não se consegue mudar este grande rio que faz as coisas. Aliás, viu-se com a crise que houve uma retracção de toda a formação. Provavelmente quando a crise passar, para alguns já passou, voltará a haver um novo élan no meio de tudo isto e as universidades também irão atrás e voltarão a ter mais cursos e adaptar-se-ão, umas mais, outras menos, àquilo que for na altura. A mim não me preocupa que possa haver períodos como aquele que estamos a viver, quer dizer preocupa-me enquanto cidadão, de resto as coisas são como elas são.12 AC – O departamento de Museologia da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias tem vários protocolos com universidades brasileiras. Fale-me um pouco desta relação com o Brasil. Como é que começa? MM – Começa concretamente desde 1992, com a realização da primeira conferência internacional de ecomuseus (I Encontro Internacional de Ecomuseus) que foi realizada na cidade de Rio de Janeiro por iniciativa da Prefeitura. Na altura tinha como objectivo criar uma rede de ecomuseus na cidade com elementos 12 Sobre o panorama do ensino da Museologia nas universidades portuguesas veja-se Vaquinhas (2013) e, ainda, Brigola (2009).
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de construção de identidade, de criação de relações de vizinhança. A Ecomuseologia era entendida como algo que podia ajudar a Prefeitura a resolver uma série de problemas sociais e havia na altura uns sete, oito ou nove projectos de ecomuseus em curso. É também para responder a essa necessidade que convocaram a conferência do Rio de Janeiro, da qual saiu um livro essencial 13. Continua a ser a conferência mais importante onde já participei. Foi aí que se estabeleceram relações e me apercebi que havia muitos outros museus e muitas outras pessoas, uns na universidade outros na prática que trabalhavam este tipo de Museologia. Em 1992 estamos ainda a falar de Ecomuseologia, mas também já estamos a falar de outros tipos de museus, como no caso em Salvador do Museu Didático Comunitário de Itapuã, como alguns dos casos na própria cidade do Rio de Janeiro como por exemplo o Ecomuseu de Santa Cruz e o projecto do Ecomuseu do Cajú. E aí apareceu uma rede de pessoas que conseguimos fazer com que viessem a Portugal para trazer essa experiência. Desde 1993, 1994 que todos os anos há meia dúzia de professores que vêm e outros tantos que vão também.14 É que eles tinham uma reflexão, temos de pensar o Brasil saído da ditadura, um Brasil que se redescobre completamente, um Brasil onde há um espaço grande para a discussão sobre cidadania, identidade, relações sociais e é dentro desse caldeirão de imensas preocupações que existe também gente que nos museus faz parte desse processo. Não foi um conjunto de iluminados que decidiu levar para o Brasil os ecomuseus, de maneira nenhuma! Há um processo social no Brasil extremamente forte que fez com que as universidades, nesta área como noutras, e as próprias instituições tivessem também uma resposta. Tudo aquilo estava em grande ebulição a tal ponto que se conseguiu um Ministério da Cultura com Gilberto Gil, onde todas estas ideias de Museologia Social, Nova Museologia, ganharam consistência. Eu diria que é talvez o único país que tem uma política para os museus assente no lugar que os museus podem ter na sociedade além de guardar o património. Eles têm uma visão bem ampla. A forma como está organizado o próprio Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) é testemunha disso e a maneira como o Brasil soube articular com toda a América Latina, também ela saída das ditaduras diga-se de passagem, em que há um espaço de actuação que se cria nas comunidades, mesmo nas mais longínquas, e tudo isso faz com que haja um movimento cultural e social importante na América Latina ligado sem dúvida aos museus. Isso vê-se no [Programa] Ibermuseus, os testemunhos que aparecem, são inspiradores pelo menos. AC – Quais os pontos de contacto e de distanciamento entre a realidade museológica brasileira e a portuguesa? MM – No Brasil há uma militância muito maior que em Portugal. Há uma convicção, as pessoas que estão nestas áreas da Museologia são pessoas envolvidas a cem por cento. Em Portugal eu não sei se teremos… Era assim nos anos 90, não sei se é assim hoje, acho que não. 13 cf. AAVV (1992). 14 Entre os professores brasileiros convidados estão: Mário Chagas (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), M. Cristina Bruno (Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo), Marcelo Cunha (Universidade Federal da Bahia), Rosana Andrade do Nascimento (Universidade Federal da Bahia), Maria Célia Santos (Universidade Federal da Bahia), Maria das Graças Teixeira (Universidade Federal da Bahia), Maria Ignez Mantovani Franco (empresa EXPOMUS – Exposições, Museus, Projetos Culturais) e Denise Studart (Museu da Vida): http://www.museologia-portugal.net/ (Acesso em: 27 Jun. 2015).
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AC – Mas de uma forma associativa ou individual? MM – De tudo, como trabalham, o sítio, como se envolvem, as horas que percorrem para irem a um sítio, para irem a outro, para voltar, para se encontrarem. As inúmeras estruturas que se criaram, onde todas essas pessoas se juntam e dialogam, a vida desses espaços, por exemplo na internet centrados sobre a Museologia Social, tem uma ebulição grande. E eu penso que em Portugal não. Não sei porquê, mas acho que não. E esta crise ainda deteriorou mais essa “realidade”, ao passo que no Brasil são dez anos de euforia, quase que diria. AC – A conjuntura de restrições orçamentais dos últimos anos em Portugal tem obrigado a reestruturar os cursos de Museologia e a sua adaptação. Como é que este processo se tem passado na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias? MM – Cada vez mais nós estamos centrados no doutoramento. O mestrado já é acessório. E o doutoramento, em que metade dos professores e metade dos alunos vem do Brasil. E o doutoramento cresce. Aliás, quem cria o doutoramento é a Judite Primo, que organiza todo o processo, porque ela já vem de uma formação de licenciatura e mestrado em Museologia, coisa que nenhum de nós portugueses tem é uma licenciatura em Museologia. Eu acho que é essencial ter formação de base em Museologia como para qualquer outra área profissional. A Museologia ao nível do doutoramento nasce em 2007, no momento em que chega a crise, mas mesmo assim cresceu sem qualquer dificuldade, com as turmas perfeitamente consistentes. E depois a crise aprofunda-se. Mas a Universidade Lusófona teve o bom senso de, tendo isso em consideração, abrir o maior programa de bolsas que há no país a seguir à Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Estão abertas 100 bolsas de estudo para os diferentes doutoramentos. O problema da Museologia é idêntico aos outros doutoramentos, porque a primeira coisa que as pessoas abandonam é a formação. Isso faz com que muitas pessoas neste momento, todas elas, aliás, nos dizem: «eu sempre quis fazer o doutoramento, mas nunca tive foi a oportunidade». E agora ainda menos. Mas com as bolsas nós estamos aí com grupos maravilhosos de alunos… As bolsas de estudo permitem manter esta situação neste contexto de multifacetada. Aquilo que nós mudámos, porque há um outro perfil de estudantes que é aquele que precisa de estágio, de uma prática, foi uma maior atenção a expografia que ligámos à computação. Essas são as nossas mudanças. Porque fora disso há outros cursos na Universidade Lusófona que têm muito a ver com questões de natureza cultural e museológica, temos um curso de património imaterial, temos uma dezena de cursos que de alguma maneira têm a ver com as questões da cultura e da comunicação. Dentro da Museologia propriamente dita, o que nós temos é um maior aprofundamento desta compreensão inter-pluri-multi-trandisciplinar do que é a Museologia. E como implementámos o programa de bolsas de estudo a situação mantém-se. Não sei por quanto tempo, o tempo que for possível, também sem grande drama, porque nada tem que ser permanente. É como os museus, eu sempre disse que há museus intermitentes. AC – Acha que esta crise pode ser uma oportunidade para os museus? MM – Por agora não. Agora é um atrofiamento permanente. Quando houver uma alteração aí certamente irá renascer uma vontade de fazer coisas
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por todo esse país, só que aí já partirão de uma situação bem diferente daquela que o país partiu quando foi a seguir ao 25 de Abril (1974). Será outra realidade, quero eu dizer. A gente partiu de um país completamente fechado e atrofiado para uma descoberta de um património democratizado. Agora será um repartir em cima de dez anos de crise. AC – A crise levou a cortes significativos no sector dos museus e a mudanças significativas em Portugal, mas isso não tem suscitado muito debate por parte das universidades ligadas à Museologia. Concorda? MM – Mas a história das universidades foi sempre andar dez anos, 20 anos atrás da sociedade. Por isso consegue ser juntamente com a Igreja as únicas instituições que têm mais de 1000 anos: as universidades e a Igreja, o resto… Mesmo os exércitos são bem mais recentes. Anda sempre muito atrás, joga sempre pelo seguro. Fala-se muito de inovação, etc, mas em Portugal acaba por não ter grande expressão. É verdade que as universidades estão alheadas um pouco de todos estes debates. Consequentemente, é normal que as áreas da cultura também estejam alheadas. Então, é tão dramático o que acontece, por exemplo, com toda a história do Museu Nacional dos Coches15 quanto é com o despedimento de uma fábrica que foi deslocalizada para Singapura. São coisas que são a expressão deste tempo de neoliberalismo, de crise. As universidades estão um bocado afastadas, aliás, vê-se mesmo em termos de debate político. A natureza própria das universidades é de andar atrasada em relação ao mundo. AC – O mundo dos museus e das universidades têm permanecido na maior parte das vezes em campos de actuação distanciados. Na sua opinião, de que forma universidades e museus poderão trabalhar mais em conjunto? MM – Como a Museologia que a gente tem feito aqui tem sido sempre uma Museologia que convoca as pessoas à cidadania e à responsabilidade social, de alguma maneira nós manteremos sempre uma atitude crítica relativa à sociedade. Depois, como há toda esta retracção, o nosso espaço aqui, confesso que também nunca pensei propriamente… Eu vejo mais o espaço da Museologia e da sociedade neste momento com este tipo de trabalho que estamos a fazer com as escolas. Estamos a levar recursos para as escolas que elas podem utilizar para tudo o que quiserem, inclusive para a Museologia. Mas a aproximação com a realidade social continua muito difícil, porque esta crise fez com que se criassem clivagens e separações entre universidades, instituições, entre os sindicatos, entre o poder da comunicação, nada disto funciona muito bem. Acho que agora estamos mais num momento de resistir do que…, não sei por quanto tempo. AC – Quais são hoje os grandes desafios dos museus? MM – Aquilo que nós constatamos hoje é que os museus têm uma prática completamente diferente daquela que tinham há 15 anos atrás. Acho que há mudanças profundas que resultam, como dizia, da introdução e da articulação de vários conceitos. Sem dúvida que há uma mudança e é a partir dessa mudança que o futuro se vai fazer. 15 Veja-se por exemplo o texto de Silva (2015).
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Penso que houve uma série de modas, inclusive das tecnologias, que veio, fez o seu efeito, mas que passou e que agora centrará a relação da Museologia com as tecnologias de natureza diferente. Até à data os museus viviam com os restos que eram produzidos em termos de tecnologias, nós usamos computadores, nós usamos projectores, usamos essas coisas todas. Alguma coisa veio cair aos museus e fez a renovação das novas tecnologias da informação e comunicação dentro dos museus com base noutras áreas do conhecimento e da actividade. Penso que agora estamos suficientemente maduros para que haja um período em que os museus, qualquer que seja a sua forma, sejam eles a exigir novos recursos tecnológicos. Há um espaço para que sejam os museus a solicitar novos processos, novos produtos que lhes sejam efectivamente úteis. Neste momento nenhum museu pediu à indústria o que quer que seja, utilizou aquilo que eles trazem, 99,9% digamos assim. Eu penso que as pessoas já perceberam que introduzindo nos museus tecnologias que não melhoram verdadeiramente o processo da comunicação, que são apenas mais uma questão de imagem que se quer renovar, do que propriamente criar uma nova estrutura de trabalho com outros embasamentos não resulta. Acho que as pessoas estão a perceber que tudo isso envelhece muito rapidamente. O que as pessoas precisam neste momento é de coisas que sirvam à comunicação que é necessária para as instituições em que trabalham entre a responsabilidade social, o património, o território. Aí é necessário outros recursos, talvez os museus saibam aproveitar essa oportunidade e ser eles a solicitar à indústria os recursos que ainda estão por descobrir. Porque tudo aquilo que a gente utiliza não foi feito para os museus, foi feito para outras coisas. Talvez haja aqui uma nova tomada de consciência. É provável, até porque entretanto os museus ganharam uma dimensão maior do que tinham há 30 anos atrás. Primeiro, porque são centenas, milhares de instituições espalhadas pelo mundo, já não são “coisas” quase residuais da sociedade. Em todos os países se assistiu a este aumento das instituições. Elas hoje ocupam um lugar cada vez maior em termos das actividades tradicionais de turismo, mas também de educação, cada vez mais prestam serviços que não estavam previstos. Portanto, eu diria que o museu encaminha-se, quer se queira quer não, para ocupar um lugar quase económico, essencial, que não tinha antes. Anteriormente, todos os museus tinham de ser subsidiados pelo Estado. Hoje não, são instituições que ou conseguem encontrar uma racionalidade de prestação de serviços ou não vão sobreviver. Há dez anos atrás nenhum governo ousaria fechar um museu, hoje já não é verdade, eles fecham uns atrás dos outros, porque esse museu subsidiado tem os dias contados, ou então encontra uma racionalidade, que não é só uma racionalidade económica, é uma racionalidade social. Se um museu presta um serviço é porque as pessoas desejam esse serviço, precisam desse serviço. Se não precisam não há museu, se precisam há. E como hoje estamos em sociedades onde 70% da actividade económica são serviços, tanto em Portugal como no Brasil como na Suécia, entre os 60 e os 80%, o resto é indústria e agricultura. O lugar dos museus é como entidade prestadora de serviços. E, portanto, tem que renovar completamente a sua maneira de trabalhar. A metodologia que hoje se utiliza, e não sei qual é a que faz funcionar os museus, não é muito profissional. De vez em quando vêm aquelas pessoas do mundo dos negócios para os museus, arrasam com tudo, aliás já
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vimos aqui em Portugal situações dessas. Ou vêm e têm uma percepção de que este sector da economia tem outras finalidades e outras sensibilidades e é capaz de adaptar uma gestão a essas realidades novas e aí acaba por transformar efectivamente o museu subsidiado num museu que sobrevive e que vive dos serviços que presta: serviços culturais, serviços de todo o género, tudo isso é importante. Acho que há alguns caminhos: uma relação diferente com as tecnologias, que é ainda um pouco provinciana, aliás quantas vezes uma pessoa chega a um museu e tem os ecrãs e depois aquilo já não funciona. É um certo provincianismo, um deslumbramento, mas talvez estejamos agora em condições de perceber para lá do deslumbramento. Há uma utilidade profunda nesses recursos, então vamos utilizá-los mas de uma forma inteligente, de uma maneira que efectivamente sirva à instituição e que não seja obrigatoriamente ter um ecrã muito bonito. Há uma relação diferente com a tecnologia e os museus podem beneficiar disso. Toda essa tecnologia móvel que existe agora, penso que isso é muito importante porque é aquela que está a crescer. Houve uma geração que viveu com o computador em casa e há outra que vive com outros recursos no bolso. E o museu ou faz parte desse processo ou então definitivamente fica para trás. Mas não há razão nenhuma para que fique para trás.Até porque eu continuo a acreditar que há um lugar muito importante para os museus como espaço de reflexão, de comunicação, de trabalho, de parceria, de diálogo, tudo aquilo que quiser. Mas não quer dizer que todos entrem por esses caminhos, uns ficarão para trás. AC – A crise que se vive em Portugal poderia levar ao repensar de estratégias e prioridades. Na sua perspectiva, quais poderiam ser as prioridades da política museológica nacional? MM – Nós vivemos num país que não tem uma política cultural, que não tem uma política museológica. Tem havido retracção de tudo isso. A única coisa que eu sei é que gostaria que houvesse uma política. Agora, qual ela seja? É aquela que for articulada com o renovar das outras políticas todas: estamos a falar de uma nova política educativa, uma nova política para o trabalho, uma nova política para a política propriamente dita. E se tiver por referência, por exemplo, o que se passa no Brasil, eu vi como se criou e constituiu toda uma política para a cultura e para os museus, de raiz. O que havia era o mesmo que havia aqui durante anos e anos. E de repente houve uma vontade política, mas houve todo um governo, houve todo um país inteiro, houve toda uma relação com o FMI (Fundo Monetário Internacional) que se alterou. Houve tudo isso e de repente nós estamos em presença de uma política consistente que aborda todos os campos, dos mais tradicionais àqueles mais inovadores. Em Portugal, de facto a única coisa que eu tenho é pessimismo, não vejo nada de bom. Estes últimos acontecimentos mostram isso, hoje vive-se de duodécimos. AC – Que museu faz falta em Portugal? MM – Duas coisas. Em termos de país faz falta um respeito e uma dignificação de todo o esforço que centenas de milhares de pessoas têm tido relativamente ao património. Efectivamente, por todo o país há uma consciência de património que não é respeitada, que é marginalizada. E, portanto, em termos de país o que eu queria era um reconhecimento desse trabalho. Posso dar um
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pequenino paralelo que eu gosto muito de fazer. Em Portugal há três equipes de futebol importantes: é o Sporting, o Benfica e o não sei quê… E depois há milhares de clubes de futebol espalhados pelo país, que vão desde o clube informal das crianças que brincam na escola até aos clubes regionais. Isso faz o panorama do futebol em Portugal, do desporto. Para ter desporto, para ter trabalho em equipe a gente tem que ir à procura dessas realidades espalhadas pelo país. Eu penso que nos museus é a mesma coisa, existe uma dúzia de museus centrais que eram respeitados mesmo em termos de financiamento e depois o resto não era reconhecido para nada. Aquilo que eu gostaria, era que fosse reconhecido que o trabalho efectivo e que a real Museologia é a que está espalhada pelo país, que não é a Museologia do espanto, do brilho, mas são outros processos que estão lá. O património é salvo, é tratado, é transferido, é transmitido, através desse trabalho relativamente modesto no país inteiro desde o Minho até ao Algarve, milhares de iniciativas… Eu gostava de ver isso reconhecido. A outra parte é Lisboa ter um museu de referência como qualquer cidade contemporânea que se preocupa com a sua atractividade cultural, era tempo que Lisboa tivesse um museu decente de referência.A gente vai a qualquer cidade e há sempre um elemento-referência, uma pessoa quando vai àquele país diz «eu vou porque tenho que ir aquele museu». Não sei sobre o quê, há mil coisas para falar hoje em dia e que o museu pode ser o recurso. Também pode ser em Oeiras… AC – Qual o museu ou projecto que mais o impressionou no últimos anos? MM – Os museus comunitários no Brasil. Por todas as razões: pela militância, pela consistência, pelo trabalho que fazem, pelas dificuldades que afrontam. São verdadeiras guerreiras as pessoas que trabalham nos museus, em particular nos museus de favela. É de facto um mundo de inspiração, sem qualquer dúvida. AC – Que projecto lhe falta fazer? MM – Não pensei em nada concreto para o futuro, já é difícil manter o que fazemos. Para já é sobreviver a esta crise sem nos vendermos, mantendo a convicção do lugar que os museus podem ter na sociedade contemporânea, manter esse projecto vivo. AC – Quer acrescentar mais alguma coisa... MM – Há uma questão que está por de trás de tudo, que é uma questão de convicção. O que nós fazemos ou é por convicção, no caso da Museologia, porque uma pessoa efectivamente acredita que pode ser útil, que pode ter um papel, que pode contribuir para uma série de coisas. Esta convicção marcou todos estes meus anos na Museologia. Sempre fiz as coisas por convicção, mesmo quando era bem mais fácil dizer outras coisas. Enfim, não tem sido fácil, dentro do relativismo não estamos no Iraque, aqui é tudo simples, mas de facto é isso, há uma convicção. Penso que as pessoas que se têm envolvido, com quem eu tenho trabalhado mais ao longo desses anos também têm feito e fazem por convicção, de acreditar que efectivamente há aqui um espaço de trabalho. Se a entrevista deixar transparecer que há uma razão de ser a tudo isto e que essa razão de ser, não é outra que seja o de acreditar no que se anda a fazer… AC – Obrigada.
Ana Carvalho
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UMA POSSIBILIDADE DE INTERLOCUÇÃO ENTRE ARQUIVOLOGIA, BIBLIOTECONOMIA, MUSEOLOGIA E CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO Daniele Galvão Pestana Nogueira Universidade de Brasília Os investigadores das áreas de Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia encontram pontos de correspondência entre essas disciplinas, com o cuidado de não valorizar um modelo em detrimento do outro. O livro Arquivologia, Biblioteconomia, Museologia e Ciência da Informação: o diálogo possível, do professor Carlos Alberto Ávila, editado em 2014 pela Briquet de Lemos, traz mais uma área do conhecimento para o debate: a Ciência da Informação. Oswaldo Francisco de Almeida Júnior, que escreveu o prefácio do livro destacou que: Os objetos ou os núcleos do objeto não impedem a relação. Ao contrário, exigem a troca, o diálogo. As áreas de interesse do livro precisam uma das outras. A existência isolada pode até ser possível, mas acarretando empobrecimento teórico e prático; um olhar apenas para o próprio âmago, alijando-se do mundo, dos homens e das outras ciências; um não pertencimento ao universo do conhecimento humano.(ARAÚJO, 2014)
Almeida Júnior ainda relata que o encontro da Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia pode ser definido com base na análise de suas transformações, como fundamento para as teorias epistemológicas implícitas em cada uma. Mas quando se trata da ligação destas com a Ciência da Informação, é percebido que esses encontros aconteceram em ritmos diferentes. Araújo relata no livro que esses encontros com a Ciência da Informação ocorreram primeiramente com a Biblioteconomia, seguida pela arquivística, e por último com a Museologia. No caso específico da Biblioteconomia, a sua relação com a Ciência da Informação é mais estreita do que com os outros campos, tanto no Brasil como no exterior, em razão da própria constituição desses campos, do compartilhamento de seu papel social e da preocupação dos registros gráficos. A proximidade da Museologia com a Ciência da Informação, no país, é atípica, visto que na literatura internacional essa relação quase não aparece. Essa relação foi oportunizada por diversos fatores como: vínculos institucionais, políticas públicas, ações acadêmicas e estudos preliminares. A ausência de cursos de pós-graduação stricto sensu em Museologia levou estudiosos e pesquisadores a desenvolverem suas pesquisas na Ciência da Informação. Tal fenômeno também foi encontrado no campo da Arquivologia, tendo sido realizados um número considerável de pesquisas de mestrado e doutorado na área da Ciência da Informação. A riqueza do conteúdo apresentado pelo autor se dá pela sua formação e experiência acadêmica. Carlos Alberto Ávila Araújo possui doutorado em Ci-
Daniele Galvão Pestana Nogueira
ência da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais-UGMG (2005) e pós-doutorado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2011). Atualmente, atua como professor da Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG. Araújo possui um percurso acadêmico entre o jornalismo e a comunicação social, e hoje se debruça sobre a epistemologia da Ciência da Informação e para a articulação desta com a Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia. Na apresentação do livro, o autor nos contextualiza para o fato que as ideias expostas constituem a consolidação, com alterações de algumas propostas apresentadas em diversos artigos publicados em revistas especializadas e capítulos de livros. Tais argumentos e opiniões tiveram como ponto de partida quando Araújo, como professor da Escola de Ciência da Informação da UFMG, fez parte da Comissão de criação do curso de graduação em Arquivologia e de Museologia, em 2008. Neste momento foi percebido a necessidade de fundamentação teórica para propor e justificar o diálogo e a cooperação desses novos cursos entre si e com as áreas da biblioteconomia e a Ciência da Informação. O objetivo do livro aqui apresentado é proporcionar uma leitura sobre essas áreas do conhecimento (Arquivologia, Biblioteconomia, Museologia e Ciência da Informação) e oferecer uma proposta de diálogo, com a ideia de que independente do objeto de cada ciência pode haver interlocução entre elas, revelando que não há barreiras intransponíveis. O autor nos oferece uma leitura sobre essas áreas, trazendo questionamentos, apresentando suas incompatibilidades e sugere interação entre elas. O livro é uma proposta de aproximação entre as áreas. Araújo estruturou o livro em três capítulos. Nos dois primeiros, a Arquivologia, Biblioteconomia, Museologia e Ciência da Informação são abordadas nos seus aspectos históricos e síntese das correntes. No primeiro capítulo, especificamente, é apresentado algumas das reflexões científicas em arquivologia, biblioteconomia e museologia que foram desenvolvidas ao longo do século XX, destacando traços históricos e teóricos comuns e percurso para a consolidação de cada área. O texto revela vários pontos e aspectos comuns entre as três áreas, tendo o objeto ou as técnicas de tratamento e a relação do ser humano com a realidade medida pelas intervenções produzidas por essas áreas. Para Araújo, a existência de arquivos, bibliotecas e museus conduziu a criação de uma série de procedimentos e métodos, em virtude da necessidade de lidar com seus acervos. A preocupação comum dessas instituições, coleta, armazenamento, disseminação da informação, nos mais variados suportes e formatos tem favorecido uma aproximação entre esses campos. Uma nova configuração dessas instituições tem favorecido ao diálogo entre elas e a formação de equipes interdisciplinares em arquivos que pode armazenar documentos de biblioteca e objetos e documentos de museu, ou o museu com uma biblioteca e um arquivo, ou o mesmo pode se dar em uma biblioteca. No segundo capítulo, o autor traz para o diálogo a Ciência da Informação. Apresenta sua trajetória que por meio de contribuições desenvolvidas em diferentes subáreas e contextos temos um conceito amplo de informação que contempla suas dimensões físicas, cognitiva e intersubjetiva, considerando as várias maneiras por meio das quais algo se torna informação, isto é, é “in-formado”, no contexto da ação humana.
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Uma possibilidade de interlocução entre Arquivologia, Biblioteconomia, Museologia e Ciência da Informação
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As diferenças entre as quatro áreas apresentadas nos dois primeiros capítulos são apontadas no último capítulo estabelecendo um diálogo possível, A proposta de aproximação entre as áreas. Araújo resgata a ideia de “olhar informacional”, voltado para ação humana de “in-formar” (dar forma, existência material, a um pensamento ou ideia) e “se in-formar” (utilizar os registros materiais do conhecimento para construir suas ideias e pensamentos) e faz uma conexão ou traça um diálogo com as áreas apresentadas nos capítulo anterior, as áreas de Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia que seriam, usando a linha argumentativa de Antônio Malheiro da Silva, epifenômenos, isto é, manifestações, visíveis de um fenômeno maior e mais amplo: a informação. (ARAÚJO, 2014, 155) Araújo (2014, 157) se utiliza das ideias de Geornot Wersing, a informação, objeto de estudo da Ciência da Informação, pode ser compreendido e estuda por meio do estudo de outros fenômenos, estes sim, com existência concreta e material, na esfera da realidade humana
e também compartilhando com a perspectiva de Shera (ARAÚJO, 2014, 156), estudar bibliotecas, arquivo e museu e documento, antes de tudo estudar determinada realidade social. Araújo destaca a Information Science, que se consolidou nos anos de 1960, foi marcado pelo positivismo e tecnicismo, centrado nos aspectos físicos e operacionais dos fenômenos informacionais. Segundo o autor, nesse tempo não havia possibilidade de diálogo com a Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia. Agora com a retomada de autores como Garfinkel e Shera por pesquisadores contemporâneos – Rafel Capurro, Bernd Frohmann, Miguel Ángel Rendón Rojas, Birger Hjorland, Ronald E. Day, Marcia Battes, entre outros (ARAÚJO, 2014, 157) oferece um cenário estimulante para interlocução e fertilização mutua. O autor evoca uma das características, que para ele faz partes das 4 áreas que ele apresenta nos capítulos anteriores: o pertencimento ao terreno das Ciências Humanas e Sociais. Para o autor, pensar em informação não significa descartar a função de salvaguarda do patrimônio promovido pelo arquivos, bibliotecas e museus, é pensar nela e inseri-la como uma das funções em meio a outras, na dinâmica de discussões sobre a dimensão informacional. (ARAÚJO, 2014, 158, 159). Estudar a dimensão informacional nas instituições arquivísticas, biblioteconômicas e museológicas, com suas técnicas, seus acervos, seus profissionais que os constituiu é abrir a possibilidade de um campo de reflexão amplo e, portanto, favorável à aproximação, ao diálogo. Os conceitos de instituição, memória, documento, informação e interdisciplinaridade, guardam uma estreita relação com os campos apresentados. O que possibilita uma diluição das rígidas fronteiras disciplinares, trazendo benefícios teóricos e aplicações práticas mais ricas. As tendências contemporâneas apresentadas, em cada uma das quatro áreas citadas no livro, e em especial no Brasil, a Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia que compartilham do mesmo ambiente institucional nas faculdades ou escolas de Ciência da Informação, são fatores que promovem o diálogo entre todas essas áreas. Essas condições trazem espaço para reflexões científicas que ressaltam a dimensão informacional nas práticas arquivísticas, biblioteconômicas e museológicas por meio do olhar informacional da Ciência Informação.
Daniele Galvão Pestana Nogueira
Referência ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila. Arquivologia, Biblioteconomia, Museologia e Ciência da Informação: o diálogo possível. Brasília: Briquet de Lemos, 2014.
Resenha recebida em setembro de 2015. Aprovada em outubro de 2015
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MUSEUS E PATRIMÔNIO CULTURAL NO ENSINO DE HISTÓRIA
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Renato Rodrigues Lima1 Universidade de Santo Amaro
A obra intitulada como Patrimônio Cultural e Ensino de História foi organizada pelos pesquisadores Carmem Zeli de Vargas Gil e Rhuan Targino Zaleski Trindade. O livro foi finalizado em 2014 e impresso pela editora Edelbra. Esta produção trata da relação estreita entre Ensino de História, Educação Patrimonial e Cultura. O livro possui 181 (cento e oitenta e uma páginas) e está dividido em 11 (onze) trabalhos produzidos por diversos pesquisadores, tratando da temática Patrimônio Cultural e Ensino de História, conforme detalhamento adiante: 1) Evidências da História, Memórias entretecidas: experiências e novas aproximações educativas em torno do patrimônio; 2) Referências intelectuais e afetivas na aprendizagem docente: ensino de história e estágio supervisionado na UFRGS; 3) Estágio de docência em História: saberes e práticas na educação para o patrimônio; 4) Educação para o patrimônio na escola: experiências no estágio de docência em História; 5) Ensino de História e Educação Patrimonial: experiências de ensino e pesquisa na educação básica; 6) História, cultura e Patrimônios Regionais: construindo e registrando saberes e práticas; 7) Ação educativa em museu: uma experiência no Museu da UFRGS; 8) Museu de História da Medicina: “Cadê os Dinossauros”; 9) O Museu e a Praça: educação patrimonial e ensino de História; 10) Leitura da cidade: aprendendo a olhar Porto Alegre; 11) Fotografia e Educação para Patrimônio.
O primeiro trabalho apresentado no livro foi intitulado como Evidências da História, Memórias Entretecidas: experiências e novas aproximações educativas em torno do patrimônio. Nele a historiadora e professora do Programa de Pós-graduação em Educação da UFRGS, Maria Stephanou, fala sobre as relações em torno de patrimônio, história e educação. A pesquisadora inicia o trabalho esclarecendo que a educação patrimonial pode contribuir de forma ímpar para 1 Mestrando no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas: sociedade, cultura e linguagens da Universidade de Santo Amaro (UNISA).
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que o ensino de história avance em nosso tempo. Para Stephanou a pesquisa em patrimônio ajuda a responder as perguntas “para que, onde, o que, como, que convocações se fazem presentes e urgentes ao ensino de História?”. A pesquisadora demonstra que os demais trabalhos constantes no livro ajudam a compreender a importância de se ensinar e aprender História. Para Stephanou é importante que o leitor compreenda o significado de patrimônio, que segundo sua visão é: (re)conhecido em sentido lato e em sentido estrito, é concebido não apenas como patrimônio edificado, mas como produção histórico-cultural, tangível e intangível, mediação singular às proposições apresentadas.
Stephanou destaca que os autores deste livro “concebem a educação como prática constitutiva e não meramente mediadora, ou seja, acreditam que por meio da educação as pessoas produzem e transformam a experiência que têm de si e de suas relações com as outras pessoas e o mundo”. A pesquisadora alerta que não se pode considerar de forma simplificada a memória e patrimônio como História. Esclarece que nos museus, acervos e instituições culturais existem muitos vestígios de memória, os quais podem ser transformados em documentos da História. Para Stephanou pode-se inferir que as ações educativas que articulam memórias, ensino de história e patrimônio tornam possível: a) Compreender o passado por meio de outra linguagem baseada nos vestígios do passado; b) Compreender as várias épocas pela observação dos diferentes acervos; c) Elaborar uma análise crítica da linguagem e do discurso que os museus e acervos manifestam; d) Incentivo ao culto e sensibilização em relação às memórias; e) Leitura do passado para compreender o presente como herança, ruptura, inovação etc.
A segunda pesquisa refere-se à experiência das pesquisadoras Carla Beatriz Meinerz, Fernando Seffner e Nilton Mullet Pereira em um estágio realizado na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). As pesquisadoras narram inicialmente sua experiência em estágio de docência em História nos ano 80, na UFRGS e, segundo suas informações o estágio consistia apenas na preparação e apresentação de uma única aula para professora e alguns alunos da turma. Depois os professores conversavam com os alunos que fizeram a apresentação e iam dando dicas e solicitando novas apresentações. Na visão das pesquisadoras este método carecia de problematização teórica e histórica, tornando-se somente um procedimento didático. Já no ano de 2000 para atender as alterações no padrão de formação docente, atendendo à legislação federal e sugestões oriundas de pesquisas na UFRGS, houve mudança na preparação dos licenciados em História com a implantação do modelo três mais um, ou seja, três anos de disciplinas e um ano de prática docente dividido em: Estágio docente no ensino fundamental, estágio docente em ensino médio e estágio docente em educação patrimonial.
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Museus e patrimônio cultural no ensino de história
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Conforme informação das autoras percebeu-se no decorrer do novo modelo de formação dos professores de história que o mundo atual não comporta mais a ideia de que a universidade forma professores e, que os alunos tem uma identidade formada, antes disso, tanto o professor quanto o aluno são transformados durante a interação nas aulas e desenvolvem-se mutuamente. O cerne deste estudo é mostrar que o professor de história está sempre em transformação, pois o processo da docência é constante e contínuo e, que a sala de aula não é algo imutável. A sala de aula deve ser pensada como um espaço de interação social que é influenciado pela cultura ao seu redor. A terceira pesquisa recebeu o título de Estágio de docência em História: saberes e práticas na educação para o patrimônio. Trata-se de estudo sobre a experiência de estudantes na disciplina de Estágio de docência em história III – Educação Patrimonial do curso de Licenciatura em história da UFRGS, que ocorre em museus, arquivos, centros culturais e memoriais. A importância deste estudo é mostrar que não se aprende História apenas em sala de aula, longe disso, existem outros espaços propícios para este aprendizado, como por exemplo, os museus, memoriais entre outros. Nestes espaços os alunos da Licenciatura em História ampliam suas reflexões sobre o ensino de história, pois nestes locais estão expostos ao contato com alunos do ensino básico ao ensino médio, com dúvidas, perguntas e posturas que ajudam o futuro professor a entender as expectativas dos estudantes, como gerar interesse sobre os temas históricos etc. A pesquisa reforça o papel dos espaços de memória no ensino de História e a necessidade dos professores historiadores mostrarem a seus alunos como a memória é construída, além de debater e refletir sobre a função dos espaços memoriais e a escolha dos seus acervos, ou seja, por que seu escolheu uma peça e não outra? Por que o foco de um museu é aquele e não outro? A divisão quatro do livro aborda o ensino sobre patrimônio em escolas, tomando como exemplo o estágio em educação patrimonial realizado na Escola Técnica Estadual Irmão Pedro, no ano de 2012 em que esta instituição completou 50 anos de existência. A pesquisadora Bárbara Virgínia Groff da silva era bolsista do programa PIBID e realizou seu estágio docente nesta escola na zona norte de Porto Alegre, que contava com cerca de 1.500 alunos. O estágio foi realizado em uma turma de primeiro ano do ensino médio, composta por estudantes de diversas partes da cidade, os quais iniciavam sua experiência naquele local. Vale lembrar que a preocupação com o patrimônio cultural existe desde a década de 30 como pode ser observado pela criação do SPHAN (Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) mais tarde rebatizado como IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Continuando a falar sobre o estágio na Escola Técnica Estadual Irmão Pedro, a pesquisadora explica que o estágio aconteceu em três aulas e duas horas cada. No primeiro encontro ocorreu a apresentação da estagiária e a organização de uma pesquisa que utilizaria a fotografia como ferramenta, no segundo encontro os alunos tiveram que levar celulares e câmeras fotográficas para tirarem fotos de vários locais da escola e na última aula foram discutidos as imagens
Renato Rodrigues Lima
das fotos e o entendimento de que o imóvel do colégio Irmão Pedro era um patrimônio histórico, devido as suas características. A discussão foi importante para que os alunos compreendessem que o local onde assistiam às aulas era um patrimônio histórico, pois apresentava memórias, trajetórias, identidades e histórias de todos que frequentaram aquele espaço. Na quinta parte da obra intitulada como Ensino de História e Educação Patrimonial: experiências de ensino e pesquisa na educação básica, as pesquisadoras Mônica Martins da Silva, e Andréa Ferreira Delgado, professoras de história da UFSC falam sobre duas experiências de Educação Patrimonial no estado de Goiás e especificamente na cidade de Goiás que foi tombada como patrimônio histórico nacional. O primeiro caso trata de trabalho interdisciplinar abrangendo as disciplinas de História e Português e a segunda refere-se ao trabalho de Educação Patrimonial desenvolvido na disciplina de História de Goiás. Em ambos os casos, os alunos foram incentivados a consultar mapas em que constavam os imóveis tombados como patrimônio histórico, realizar a visita a esses imóveis, conhecer a história de Goiás como região de mineração e entreposto dos bandeirantes em suas entradas pelo interior do Brasil. Além disso, foi utilizada a figura da escritora Cora Coralina e suas obras que fazem referência a cidade de Goiás, para compreender a identidade e costumes do povo daquela região. Os alunos conheceram os museus da cidade de Goiás, fotografaram os espações públicos, ruas, imóveis, artefatos artísticos e puderam apreender mais sobre sua sociedade e cultura. O sexto trabalho comentado no livro foi definido como História, Cultura e Patrimônios Regionais, com ênfase no registro dos saberes e práticas. Foi realizado na Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNICHAPECÓ), nos cursos de Licenciatura em História, Matemática, Artes Visuais e Letras. Consistiram na realização de entrevistas e reflexão sobre a narração das memórias dos avós, pais, e outros familiares dos alunos dos cursos citados. Os universitários realizaram entrevistas com seus familiares e pessoas antigas da proximidade das suas residências, identificando aspectos interessantes sobre a história da sua região como, por exemplo: as medidas utilizadas no passado para medir terras, o conhecimento prático na plantação, fabricação de objetos etc. O grande resultado deste trabalho foi mostrar para os futuros professores que é importante utilizarem conhecimentos sobre história de sua região e de sua cultura para melhorarem a prática docente. O sétimo capítulo recebeu o título de Ação Educativa em Museu: uma experiência no Museu da UFRGS. Neste segmento do livro é discutida a aprendizagem adquirida pelos estudantes fora da sala de aula. É mostrado que no Museu os alunos devem participar de atividades interativas, a fim de quebrar a imagem de que neste espaço não se pode falar, movimentar-se e se expressar. Além desta ação realizada nas visitas aos espaços de memória foi efetivada uma ação intitulada como Meu Bairro, Muitas Memórias, em que os alunos tiveram que fazer desenhos dos pontos históricos da cidade de Porto Alegre e em seguida, apresentavam seus desenhos para sua turma de estudantes, dentro do prédio do Museu da UFRGS, ou seja, no momento da visita àquele museu os estudantes tinham a oportunidade de pensar em outros locais de memória da cidade e discutir sobre a importância destes locais.
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Museus e patrimônio cultural no ensino de história
No oitavo segmento do livro, denominado como Museu de História da Medicina: “Cadê os Dinossauros” os pesquisadores Rhuan Targino Zaleski Trindade e Paulo Sérgio de Souza de Azevedo apresentam uma experiência de ensino sobre patrimônio à partir da reflexão sobre museus temáticos.
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Segundo a visão destes pesquisadores, a visita e discussão sobre a temática de determinado museu pode ajudar a compreender a realidade da sociedade e as escolhas dos acervos de cada museu. No caso do Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul, nota-se a valorização da profissão de médico e de seus saberes. Entretanto a discussão entre professores e alunos pode ser estendida para que os estudantes compreendam que além do médico existem outros indivíduos importantes para realidade da saúde como, por exemplo, as parteiras no interior do país. Pode-se, ainda, aproveitar a discussão sobre o contexto da saúde para levantar questões como: Qual a situação da saúde no Brasil? Existe desigualdade no atendimento à população? Por que algumas doenças não foram erradicadas? As demais partes do livro tratam respectivamente de: a) Nona parte: intitulada como O Museu e a Praça: educação patrimonial e ensino de História fala das praças públicas de Porto alegre, da sua história a ligação com a igreja católica como religião oficial até o império, o que justifica a existência das igrejas em grande parte das praças etc.; b) Décimo segmento: há narração sobre uma experiência de olhar diferenciado sobre a cidade de Porto Alegre, em que os estudantes são incentivados a olhar a cidade e seus prédios, ruas, parques monumentos como patrimônios, fugindo da visão superficial que faz parte da vida corrida nas cidades; c) Última parte: trata do uso da fotografia na Educação para o Patrimônio, pois se trata de um registro imparcial da realidade.
O livro Patrimônio cultural e ensino de história é relevante, pois permite aos professores da disciplina de história repensar a forma de desenvolvimento das suas aulas. Ajuda o docente na tarefa de explicar aos estudantes porque é importante conhecer a história. Além disso, a obra auxilia na compreensão das diversas formas em que se apresenta o patrimônio cultural, seja pelos prédios com arquitetura maravilhosa, pelas estátuas, obras literárias entre outros. Concluindo, o livro aqui comentado merece ser conhecido por educadores das diversas disciplinas, mas principalmente por aqueles que tratam da História. Referência GIL, Carmem Zeli de Vargas; TRINDADE, Rhuan Targino Zaleski (organização). Patrimônio cultural e ensino de história. 1.ed.Porto Alegre, RS: Edelbra, 2014.
Resenha recebida em julho de 2015. Aprovada em outubro de 2015
CAPA
Elida Tessler
Você me dá a sua palavra, instalação work-in-progress, 2004-2013, apresentada em diferentes locais: Macapá/AP, Umbertide/Itália, Paris/França, Petrópolis/RJ, Melbourne/Austrália, México DC/México, São Paulo/SP, Campinas/SP, Itajaí/SC. Foto: cortesia da artista.
M&I: Muitos artistas criticam a interferência dos protocolos textuais típicos dos espaços museológicos.Tais protocolos são vistos como interferências negativas na relação entre obras e público. Mas em teus trabalhos frequentemente a textualidade funciona como (des) orientadora. Ora porque parece propor jogos de adivinhações, ora porque funde matéria (papel, metal, vidro, madeira etc) e palavra, numa evidente recusa à mimese. Como a palavra lida/ vista de seus trabalhos convive com o ritual das instituições museológicas? Elida Tessler: Gosto muito da palavra protocolo, tanto pela sua sonoridade quanto por sua própria definição. Entre os múltiplos elementos que me estimulam a criar um trabalho, o conjunto de regras que estabeleço para me relacionar com o espaço expositivo é fator essencial. As aproximações que tento ativar entre a arte e as vivências cotidianas não excluem os rituais das instituições museológicas. Ao contrário. Tento observá-las e compreendê-las para que o embate com o espaço durante a montagem dos trabalhos seja afirmativo, e não combativo ou excludente. É uma espécie de acordo que faço, criando um procedimento que envolve a aderência dos materiais por mim utilizados aos dados pré-existentes do lugar onde cada trabalho será instalado, sem minimizar em nada a sua base conceitual e as suas próprias origens de concepção.
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CAPA
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A vida somente à margem, instalação, 2013, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre. Foto: cortesia da artista.
Para pensar uma situação específica e muito recente, a exposição 365 atualmente sendo apresentada na Galeria Bolsa de Arte em Porto Alegre parte, justamente, do número de identificação de endereço fixado à porta de entrada do espaço expositivo. É dele que nasce o conceito da mostra, e também sua escala, se pensarmos a dimensão de tempo em seu ciclo de 365 dias do ano em coincidência com espaço habitado pela Galeria. Tomei a medida dos algarismos para reproduzi-los em uma das produções ali presentes. A noção de endereçamento logo se tornou a questão central desta nova proposição de trabalho: pode uma exposição ser um endereço? Invertendo um pouco a pergunta, encontro também o sentido de toda elaboração artística neste momento: a quem nos endereçamos quando oferecemos um trabalho artístico ao público? Ainda me encontro em fase de elaboração do que acabo de colocar, porém estou certa de que, em quase todos os meus trabalhos destes últimos anos, a interação entre a obra e o público, por assim dizer, é ativada pelo que este pode reconhecer como familiar, íntimo e pertencente ao seu cotidiano. Aliás, o cotidiano é minha matéria-prima. Por que desmerecer as interferências habituais dos espaços expositivos, sejam nos museus, galerias ou qualquer outro endereço que se ocupe da apresentação de produções contemporâneas de arte? M&I: Trabalhos como Inda (1996), Claviculário (2002), Palavras chaves para migrantes (2004), Contato (2004), Tubos de Ensaio (2006), Você me dá a sua palavra (2004-2013), entre outros, sugerem que o teu processo de trabalho contém uma operação colecionadora. Objetos, palavras, construções linguísticas parecem ser colecionadas obstinadamente e depois seriadas. Você se considera uma colecionadora, cujo processo de seleção e catalogação oferece uma infinidade de saídas poéticas? Ou o processo não passa pelo acúmulo? Elisa Tessler: Tudo passa pelo acúmulo. Somos constituídos por camadas de experiências e apego por coisas capazes de revelar alguns de nossos desejos.
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Guardamos coisas para lembrar de eventos importantes e muito provavelmente para esquecê-los também. Parece paradoxal, mas acho que é isso o que acontece no mundo de nossas gavetas, armários e quartinhos dos fundos. Penso ser antes uma acumuladora do que uma colecionadora. A coleção é um trabalho específico que requer tempo, atenção e procedimentos especiais. Minha mãe era uma pessoa que tinha muita dificuldade com o descarte das coisas, mesmo quando elas já não podiam mais cumprir as suas funções originais. Acho que aprendi com ela o valor do obsoleto e a resistência ao universo do consumo desenfreado, quando ela procurava – e encontrava – um outro destino para os seus objetos. Transformar uma coisa em outra é lição da poesia. Sempre lembro do poeta catalão Joan Brossa nos momentos em que percebo a força avassaladora dos pequenos desvios.
aINDA, 1996, instalação: meias de náilon e pregos; 0,90 m x 4 m; apresentado pela primeira vez na exposição individual “aINDA”, na Galeria de Arte da Unicamp, em Campinas-SP. Foto: http://www.elidatessler.com/
Cabe lembrar que palavras são coisas e coisas são palavras... por quê dissocia-las? A arte é uma linguagem entre tantas outras, seus códigos são explícitos, mas nunca unívocos. Precisamos estar aptos a perceber a ambiguidade das imagens e nos realimentar com a potência das expressões gráficas. Cheguei recentemente de uma viagem à Serra da Capivara (Piauí), organizada pelo Jailton Moreira para um grupo de alunos. Ainda estou sob efeito do que vi e vivi por lá. Creio que desaprendi tudo o que acreditava saber sobre as relações entre escrita e arte. Estou passando por um processo de alfabetização singular, procurando assimilar as orientações dos guias nativos que conhecem profundamente este tesouro que temos e que ainda é preservado no Parque Nacional da Serra da Capivara. Encontrei desenhos que expressam seriações e contabilidades de tempo antes impensadas por mim, porém praticadas intuitivamente em meus
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trabalhos. Por exemplo, todas as produções citadas por ti na questão acima incluem a necessidade de configuração de listas de palavras escritas antes de sua materialização nos objetos. As listagens tornam-se procedimento e recurso para que eu realize as classificações e catalogações que necessito para configurar poeticamente a minha própria vertigem. Há um detalhe interessante a ser citado aqui: Na exposição 365, eu apresento um trabalho intitulado “Desertões” que parte das anotações a lápis de Donaldo Schüler em uma antiga edição de “Os Sertões” de Euclides da Cunha. São 1018 lupas contendo fotografias destas grafias singulares. Eu não li o romance, somente as notas às margens do texto e as partes sublinhadas pelo meu amigo. Comecei a ler “Os sertões” após a abertura da exposição, e em pleno sertão nordestino, praticando um suprematismo ao pé da letra, isto é, passei a sobrepor a aridez da geografia agreste à árdua descrição da terra, do homem e da cultura daquela região nos últimos anos do século 19. Sem resistir ao apelo da lupa que eu carregava na mochila durante todo o percurso, minha leitura foi maculada pela queima produzida pela luz do sol em incidência contínua sobre algumas páginas do livro. Mas isto já é falar de outra perspectiva poética. Gostaria de fazer apenas mais uma observação: Inda, além de ser o título do trabalho criado em 1996 para a exposição “aINDA” realizada na Galeria de Arte da Unicamp (Campinas), é o nome de minha mãe em idish, cumprindo a tradição judaica de manter os nomes em português e na língua materna dos avós. Meu nome é a soma da partícula inicial do nome de meu pai, Elder, e o nome de minha mãe em português: Ida. Tenho prefixo e sufixo na contração que dá início a todo o processo de pesquisa em torno das palavras inscritas nas artes visuais. M&I: Robert Musil, Georges Perec, Fernando Pessoa, Isaac Bábel, James Joyce, Haroldo de Campos, entre outros escritores estão presentes em muitos de seus trabalhos. Recentemente você escreveu que incorpora objetos onde a palavra encontra uma superfície de pouso. Pensando em Horizonte Provável, no MAC-Niteroi, em 2004, ou A vida somente à margem (2005-2013), na Fundação Iberê Camargo, como em teu processo de criação a literatura pousa sobre as paredes de um museu? Elisa Tessler: Sinto-me privilegiada por poder conviver com a literatura de forma tão contundente e vital. Já não consigo separar o que leio do que vejo e, sobretudo, do que imagino ao longo da leitura. Torno os escritores cúmplices das proposições e dialogo com eles o tempo inteiro. Deles escuto as indicações para a busca do lugar onde as palavras podem encontrar seu campo de pouso. Da mesma forma como utilizei o conceito de aderência para comentar as instalações que crio nos espaços expositivos absorvendo suas características arquitetônicas ou operacionais, poderíamos pensar em acomodação, no melhor sentido que esta palavra possa propor. Inegavelmente, os objetos e as palavras “acomodam-se” nas paredes, no chão, nas superfícies disponibilizadas pelos museus ou outros espaços para que eu possa efetivar meus projetos. Os dois exemplos citados por ti têm origens e características diferentes, porém podem ser considerados como uma disposição antes de se considerar uma exposição. No caso de “Horizonte provável” (MAC-Niterói, 2004), o título do livro de Haroldo de Campos já sugere a disposição dos pratos ao longo dos
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encaixes das janelas que circundam a varanda do museu. É o que eu chamo de encaixe perfeito, não somente por razões técnicas, mas, sobretudo, conceituais. Qual poderia ser o melhor lugar para um horizonte provável do que uma linha de horizonte diante da Baía da Guanabara? Foi necessário o período de um ano de trabalho para equacionar o projeto e fazer coincidir uma linha – de pratos ou de palavras, como queiram - sobre a linha de horizonte. Realmente, tudo é uma questão de pouso. A arquitetura do museu sugere, para muitos, a forma de um grande disco-voador que aterrissa sobre o Mirante da Boa Viagem em Niterói. Ali temos também a Praia da Boa Viagem, com seu litoral oscilante, móvel e à mercê das marés que, literalmente, coordenam os horários de passagem para a Ilha da Boa Viagem. Todas estas boas viagens são incursões literárias de primeira qualidade. A forma circular do museu concebido por Oscar Niemeyer e a vista aérea que obtive em um cartão-postal me levaram a escolher pratos de porcelana branca para receber os 581 verbos no infinitivo coletados e listados ao longo da leitura de “Horizonte provável” de Haroldo de Campos, conjunto de ensaios publicado em 1977. As palavras foram impressas por meio de serigrafia. A ambiguidade entre o formato do disco e o de uma pérola tornou-se presente neste trabalho. De fato, a paisagem noturna vista através das paredes vítreas do MAC-Niterói nos oferece a imagem de um colar iluminado, ligando a orla urbana ao horizonte da baía.
Horizonte Provável, 2004, instalação: 581 pratos de porcelana com palavras serigrafadas, 27 metros de papel auto-adesivo impresso, um rolo de PVC branco com 596 metros de tira de papel impresso. Museu de Arte Contemporânea de Niterói – MAC-Niterói. Foto: http://www. elidatessler.com/
Já no caso da instalação “A vida somente à margem” apresentada na Fundação Iberê Camargo em 2013, todas as palavras têm origem no romance de Georges Perec “A vida modo de usar” publicado em 1978. Esta instalação cons-
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stituída por 1184 placas de acrílico branco com impressão serigráfica na cor preta, com dimensão de 5 x 20 x 0,02 cm. Obviamente, as palavras impressas são os advérbios de modo capturados ao longo da leitura do romance. Mas onde e como instalar as plaquinhas? É justamente o museu, com suas características próprias, que determina a forma final da instalação. Este trabalho vem modificando seu título desde 2005 de acordo com o local da exposição. Em seu percurso de apresentações temos:La vie seulement - Civitella Ranieri Center – Umbertide, Umbria, Itália.(2005) 1. A vida somente pátio – Unidade de Arte Contemporânea MAMAM – Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – Pátio de São Pedro, Recife, PE (2006) 2. A vida somente no parque – MAC-Ibirapuera, São Paulo, SP (2007) 3. A vida somente na escada – escadas de acesso aos andares do SESC Belenzinho. Exposição DESOBJETOS: A memória das coisas. São Paulo, SP (2012) 4. A vida somente à margem – Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, RS (2013) Neste último caso, também há uma ambiguidade importante a ser sublinhada: o título refere-se à situação específica do prédio às margens do Rio Guaíba. O arquiteto Alvaro Siza foi muito sensível ao desenhar as janelas com vistas panorâmicas para a paisagem da orla de Porto Alegre. Ao mesmo tempo, há a referência explícita à linguagem escrita, quando consideramos as notas à margem do texto. Dizer mais do que isto seria cometer um excesso de literalidade. O mais importante a reter neste momento é que a disposição dos objetos e palavras é decorrência do diálogo efetivo entre a proposição inicial e o espaço de exposição. M&I: Junto com Jailton Moreira, você criou um dos espaços expositivos mais importantes das artes no sul do país: Torreão, em Porto Alegre. Foi tua a primeira intervenção no espaço, Golpe de Asa, em 1993, e muitas outras se seguiram. Como foi o caso de Paisagens Instáveis, de Elder Rocha, de 2008, reproduzida na primeira capa de M&I. Como foi para uma artista conceber e administrar um espaço para artes num ambiente cultural tão adverso quanto o brasileiro? Elisa Tessler: É sempre bom lembrar da forma como o Torreão foi criado por mim e por Jailton em junho de 1993, pois naquele momento não pensávamos em um projeto de longa duração nem em um perfil específico que pudesse defini-lo como um espaço de arte contemporânea. Poderíamos dizer que o Torreão foi uma conjugação de necessidades e aspirações estimulada por uma longa conversa que eu e Jailton já vínhamos mantendo ao longo de nossa convivência na UFRGS, principalmente como professores da Escolinha de Artes da Associação de Ex-Alunos do Instituto de Arte. Cada um de nós teve uma formação diferente dentro e fora da Universidade, mas sempre com atenção e curiosidade compartilhadas. Há muitos anos, o Jailton realiza viagens para conhecer diferentes lugares e as mais variadas culturas, dentro e fora do país. Antes de ingressar como professora na Universidade, investi na realização de um Doutorado em História da Arte. Durante minha estadia em Paris, entre 1988 e 1993, tivemos o prazer de nos encontrarmos em duas ocasiões. Foi quando nos aproximamos
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ainda mais, reforçando algo que indicava uma estreita amizade e para a vontade de mantermos uma proximidade afetiva com possibilidade de trocas de ideias em torno do que estávamos pensando a respeito da arte naquele momento, mesmo sem saber muito bem como isso se daria. O fato é que, ao retornar para Porto Alegre em 1993, o Jailton me propôs imediatamente a parceria, já tendo encontrado a casa para alugar. Desta forma, o Torreão nasce efetivamente como um espaço de convivência, aberto para o público, com atividades relacionadas à pesquisa em artes visuais, ao ensino, à orientação de projetos artísticos e a intervenções de artistas no conhecido espaço da torre, isto é, uma sala de 4 x 4 m nos altos da casa, com 12 janelas e suas outras características arquitetônicas singulares que tanto estimularam os artistas em suas intervenções. Nos 16 anos de intensa atividade, tivemos a participação de 96 artistas, de diferentes gerações e origens, cada um imprimindo a sua versão para o mesmo espaço.
Golpe de Asa, 1993, instalação: tecido de algodão, gaze, recipiente de vidro, barbante e palha de aço. Foto: http://www.elidatessler.com/
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Temos a documentação de todas essas atividades e ainda nos permitimos diferentes formas de manter a nossa conversa mesmo sem as paredes da casa. Em 2009, o imóvel mudou de proprietário e foi rescindido o nosso contrato. A recente viagem à Serra da Capivara é um exemplo de nossa conversa permanente, e aproveito para dizer que foi esta a minha primeira participação no programa de “Conversas Nômades” que o Jailton propõe anualmente. O que deve ficar claro é que o Torreão não foi somente um espaço expositivo. Aliás, nós sempre negamos a palavra exposição preferindo a intervenção artística para definir nossa proposta. As intervenções na torre com as de Elder Rocha, Gê Orthof e dos Irmãos Guimarães, para citar somente alguns exemplos, constituíram apenas uma das partes visíveis de nosso projeto. Tanto eu como Jailton somos artistas pesquisadores, envolvidos com educação de forma continuada e convictos em nossas iniciativas, independentes de uma política cultural no contexto brasileiro. Nosso gesto é afirmativo. Eis tudo. Elida Tessler é artista plástica e professora do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Realizou doutorado em História da Arte Contemporânea na Université de Paris I –Panthéon – Sorbonne, Paris (França), onde residiu de 1988 a 1993. Entre 2009 e 2010, realizou o Pós-Doutorado na EHESS-Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales e junto ao Centro de Filosofia da Arte – UFR de Philosophie – Université de Paris I – Panthéon – Sorbonne. É pesquisadora do CNPq, desenvolvendo pesquisa em torno das questões que envolvem arte e literatura, relacionando a palavra escrita à imagem visual. Foi fundadora em 1993 e coordenou até 2009, junto com Jailton Moreira, o Torreão, espaço de produção e pesquisa em arte contemporânea, em Porto Alegre. Mantém um grupo de pesquisa chamado .p.a.r.t.e.s.c.r.i.t.a., em que articula produção e reflexão crítica a partir de textos de artistas e da presença da palavra em produções contemporâneas de arte. Publicou com Manoel Ricardo de Lima o livro Falas inacabadas – Objetos e um poema (2000).
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