Edição Especial
Ano 6 - No 54 - Maio 2013
Exemplar de Assinante Venda Proibida
R$16,00
Dia do Índio Gilberto Freyre
Índio
“Um Pensador “
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Identidade Cultural
Terra, respeito e vida
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Espelho de um povo
Hoje ĂŠ dia de quem nos inspira a buscar energia na natureza. E, mais do que isso, a conviver com ela em harmonia. 19 de abril, Dia do Ă?ndio.
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www.eletronorte.gov.br
Há 25 anos, a Eletrobras Eletronorte desenvolve os programas Waimiri Atroari e Parakanã, referências mundiais na promoção da autonomia indígena. É assim que, todos os dias, transformamos desenvolvimento sustentável em energia para o Brasil. 19 de abril, Dia do Índio.
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todos os animais Os animais são diretamente afetados pelo comportamento humano. Podemos ser cruéis e negligentes, mas também podemos manifestar bondade e compaixão — valores que exemplificam o melhor do espírito humano. Acesse hsi.org/compaixao e veja como você pode ajudar.
Proteção e respeito a todos os animais 6
Neo Mondo - Maio 2008
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32 páginas | 20,5 x 27,5 cm
Crianças criam! | ISBN: 9788566251005
Em um mundo marcado por brinquedos eletrônicos que funcionam a partir do botão power, que tal dar à criança o poder para construir seus próprios brinquedos? Imaginação acionada, materiais fáceis e disponíveis, fotos grandes mostrando o passo a passo e lá vem um divertido índio cara de pet, um charmoso robô que movimenta a boca, um teatro e suas marionetes e...diversão garantida! Do mesmo autor do consagrado livro FÁBRICA DE BRINQUEDOS, essa obra, além da proposta lúdica e divertida de criar brinquedos a partir de embalagens, tampinhas e outros materiais descartados no dia a dia, é uma excelente oportunidade para a criança experimentar a autonomia e o prazer de imaginar, criar, construir e brincar.
Os mais recentes lançamentos da Editora Caramujo já estão fazendo sucesso nas escolas. E vem muito mais por aí! 8
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Crianças brincam! 32 páginas | 20,5 x 27 ,5 cm | ISBN: 978856
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As crianças vão se encantar com essa história bem-humorada sobre um reino distante onde há um castelo, um rei e um espelho. Mas diferentemente das outras histórias, esse espelho não é mágico - ele mostra apenas a realidade. E a realidade é que, um dia, o rei desse reino distante olhou-se no espelho e viu que seu belo umbigo havia desaparecido de sua barriga. Quem teria roubado o umbigo? Um grande mistério a ser descoberto pelos leitores. As alegres e coloridas ilustrações de Ricardo Girotto dão o toque mágico a essa história escrita por Márcio Thamos em que umbigos escondidos sob grandes barrigas e umbigos à mostra em barrigas que roncam de fome apresentam uma trama delicada sobre compreensão, respeito e solidariedade.
Informações: 11
2669-0945 | 98234-4344 97987-1335
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Neo Mondo - Maio Um2008 olhar consciente
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Editorial
Seções ESPECIAL - DIA DO ÍNDIO
Perfil 10 Gilberto Freyre Um pensador do “ser brasileiro”
Dia de índio é sempre Ele quer ser respeitado e viver sua realidade
ESPECIAL - DIA DO ÍNDIO
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18 Pedro Martinelli Doutor das lentes 23 Artigo: Luciana Mergulhão Bicho Mãe
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24 Artigo: Natascha Trennepohl Reflexos da identidade de um povo Cultura Diversidade Cultural Resguardada Novas propostas e macanismos
Cultura 32 Identidade Cultural A formação do português brasileiro 39 Artigo: Dilma de Melo Silva Diversidade Cultural
36 Artigo: Márcio Thamos Uma língua latina com certeza 40 Artigo: Denise de La Corte Bacc Geodiversidade e Patrimônio Geológico EDUCAÇÃO A criança e a TV Revelações surpreendentes
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46 Artigo: Terence Trennepohl O direito fundamental de acesso à Educação Ambiental
Prezado leitor é com grande satisfação que preparamos mais uma edição de NEO MONDO para você. Começamos este editorial com uma frase de um dos maiores pensadores que o Brasil já teve… GILBERTO FREYRE…”TODO BRASILEIRO TRAZ NA ALMA E NO CORPO A SOMBRA DO INDÍGENA OU DO NEGRO”. A “Declaração universal sobre a diversidade cultural”, adotada pela UNESCO, em 2001, a fim de estimular o diálogo entre os povos e o desenvolvimento harmonioso de todas as nações, reconhece a diversidade cultural como o patrimônio comum da humanidade. Entre os diferentes povos que formam esta nação, os indígenas ganham importância crescente. Procuramos esclarecer o que é mito e o que é realidade, como funcionam os órgãos oficiais de defesa, e como está a organização dessa gente, com destaque para os Yanomamis. A EDUCAÇÃO é considerada pela constitutição um direito de todos e dever do estado e da família. Pensando nisso, entrevistamos o Dr. Claudemir Viana, do LAPIC (Laboratório de Pesquisas sobre Infância, Imaginário e Comunicação), que desenvolve pesquisas, com os alunos da ECA-USP sobre o mundo da infância e sua relação com os meios de comunicação. Tudo isso e muito mais, você terá o prazer de encontrar em nossas páginas. Tenha uma ótima leitura! NEO MONDO, tudo por uma vida melhor.
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Artigo: Rafael Pimentel Lopes A força publicitária da criança
50 Oscar Lopes Luiz Formador de Formadores: Vendedor de sonhos?
Expediente Diretor Responsável: Oscar Lopes Luiz Diretor de Redação: Gabriel Arcanjo Nogueira (MTB 16.586) Conselho Editorial: Oscar Lopes Luiz, Marcio Thamos, Dr. Marcos Lúcio Barreto, Terence Trennepohl, João Carlos Mucciacito, Rafael Pimentel Lopes, Denise de La Corte Bacci, Dilma de Melo Silva, Natascha Trennepohl, Rosane Magaly Martins, Pedro Henrique Passos e Vinicius Zambrana Redação: Gabriel Arcanjo Nogueira (MTB 16.586), Rosane Araujo (MTB 38.300) e Antônio Marmo (MTB 10.585) Revisão: Instituto Neo Mondo Diretora de Arte: Renata Ariane Rosa Projeto Gráfico: Instituto Neo Mondo
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Presidente do Instituto Neo Mondo oscar@neomondo.org.br
Publicação Tradução: Efex Idiomas – Tel.: 55 11 8346-9437 A Revista Neo Mondo é uma publicação do Diretor de Relações Internacionais: Vinicius Zambrana Instituto Neo Mondo, CNPJ 08.806.545/0001Diretor Jurídico: Dr.Erick Rodrigues Ferreira de Melo e Silva 00, reconhecido como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), Correspondência: Instituto Neo Mondo pelo Ministério da Justiça – processo MJ nº Rua Antônio Cardoso Franco nº 250, 08071.018087/2007-24. Casa Branca – Santo André – SP Cep: 09015-530 Tiragem mensal de 70 mil exemplares com Para falar com a Neo Mondo: assinatura@neomondo.org.br redacao@neomondo.org.br trabalheconosco@neomondo.org.br Para anunciar: comercial@neomondo.org.br Tel. (11) 2669-0945 / 8234-4344 / 7987-1331 Presidente do Instituto Neo Mondo: oscar@neomondo.org.br
distribuição nacional gratuita e assinaturas. Os artigos e informes publicitários não representam necessariamente a posição da revista e são de total responsabilidade de seus autores. Proibido reproduzir o conteúdo desta revista sem prévia autorização.
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Perfil
Divulgação
Autor de “Casa-grande & Senzala” é reconhecido mundialmente pelo pioneirismo dos estudos da cultura brasileira Da Redação
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m 2013, completarão 113 anos de nascimento de um dos primeiros intelectuais a discutir o “ser brasileiro”: Gilberto Freyre. Nascido em Recife, Pernambuco, em 15 de março de 1900, formou-se bacharel em Ciências e Letras e posteriormente mestre em Ciências Sociais pela Columbia University de Nova Iorque, realizando doutorado em diversas instituições no decorrer da carreira. Sua principal obra foi publicada em 1933: “Casa-grande & Senzala”, livro que revolucionou a intelectualidade da época ao apresentar novos conceitos sobre a formação da sociedade brasileira, considerando a mistura de “três raças”: índios, africanos e portugueses. Durante o período de estudos na universidade americana, Freyre teve contato com o antropólogo Franz Boas, que viria a ser a principal referência na elaboração de uma linha de pensamento que diferenciava raça e cultura, separava herança cultural de herança étnica e considerava o conceito antropológico de cultura como o conjunto dos costumes, hábitos e crenças do povo brasileiro. Hoje, mesmo tendo aspectos de sua obra criticados (veja abaixo), Gilberto 10
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Ficha
Gilberto de Mello Freyre Nasceu no Recife, Pernambuco, em 15 de março de 1900, filho do Dr. Alfredo Freyre - educador, Juiz de Direito e catedrático de Economia Política da Faculdade de Direito do Recife - e Francisca de Mello Freyre. Sociólogo, antropólogo, escritor, pioneiro da Antropologia Cultural Moderna Brasileira com a obra “Casa-grande & Senzala”.
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Foi doutor pelas Universidades de Paris (Sorbonne), Colúmbia (EUA), Coimbra (Portugal), Sussex (Inglaterra) e Münster (Alemanha). Em 1971, a Rainha Elizabeth lhe conferiu o título de Sir (Cavaleiro do Império Britânico).
Todo brasileiro traz na alma e no corpo a sombra do indígena ou do negro
Obras:
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Casa-Grande & Senzala, 1933. Sobrados e Mucambos, 1936. Nordeste: Aspectos da Influência da Cana Sobre a Vida e a Paisagem..., 1937. Assucar, 1939. Olinda, 1939. O mundo que o português criou, 1940.
Freyre ainda inspira estudos e conquista admiradores. Ele foi tema de exposição majestosa no Museu da Língua Portuguesa, entre novembro de 2007 e maio de 2008, que reuniu acervo da Fundação que leva seu nome, criada meses antes de sua morte, ocorrida em 18 de julho de 1987. E, no ano passado, foi tema do livro “Gilberto Freyre-Social theory in the tropics”, lançado pelo conhecido historiador da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, Peter Burke e sua mulher, a brasileira Maria Lúcia Garcia Palhares Burke, do Centro de Estudos Latino-americanos da mesma universidade. A obra situa-o em seu contexto cultural e político, sem ocultar as críticas, mas reconhecendo também suas enormes contribuições à compreensão da sociedade brasileira. Mas, afinal, quais são essas contribuições? Certamente são muitas, mas destaca-se, no aspecto da historiografia, a maneira inovadora de considerar a história, não por meio de grandes feitos, mas sim pela análise da vida cotidiana, incluindo-se aí relatos orais e documentos manuscritos. Teria sido ele, então, um dos primeiros a pensar em “patrimônio imaterial”?
Muitos acreditam que sim. “Ele foi o precursor do conceito de patrimônio imaterial, conceito este que se concretizou com enorme sucesso”, afirmou Antonio Carlos Sartini, superintendente-executivo do Museu da Língua Portuguesa, no site da Fundação Gilberto Freyre. Outra contribuição da obra de Freyre foi a tentativa de desmistificar a noção de determinação racial na formação de um povo, apontando a miscigenação conferida no país como elemento positivo. Em “Casa-Grande”, o papel de índios e negros na formação do povo brasileiro é valorizada de forma praticamente inédita. Autor não é unanimidade Mesmo tendo alcançado sucesso dentro e fora do país, as ideias defendidas por Gilberto Freyre não são unanimidade. Membro da classe dominante pernambucana (o pai era juiz de Direito e catedrático de Economia política da Faculdade de Direito do Recife, e o avô senhor de engenho), é por vezes acusado de manter postura elitista, mostrando-se benevolente com a escravidão, na qual via consequências positivas do
A história de um engenheiro francês no Brasil,1941. Problemas brasileiros de antropologia, 1943. Sociologia, 1945. Interpretação do Brasil, 1947. Ingleses no Brasil, 1948. Ordem e Progresso, 1957. O Recife sim, Recife não, 1960. Vida social no Brasil nos meados do século XIX, (1964). Brasis, Brasil e Brasília, 1968. O brasileiro entre os outros hispanos, 1975. Influências Franz Boas (18598-1942) – crítico feroz dos determinismos biológicos e geográficos. Apontava que cada cultura é uma unidade integrada, fruto de um desenvolvimento histórico peculiar. Dentre suas obras principais, destacam-se: “The Mind of Primitive Man”, 1938 (A Mente do Homem Primitivo), e “Race, Language and Culture”, 1940 (Raça, Linguagem e Cultura).
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Perfil
ponto de vista cultural, no contato de brancos e negros. Apesar do termo nunca ter aparecido em sua obra, seus estudos foram interpretados como defensores da miscigenação como mecanismo desencadeador da “democracia racial”. Outros estudiosos da época, porém, refutavam esta ideia, ressaltando a injustiça e violência do regime escravista, no qual não vinham qualquer ponto positivo. Era o caso do sociólogo paulista Florestan Fernandes. No ponto de vista defendido por Florestan, não há igualdade racial no Brasil e a miscigenação é um mecanismo, não de ascensão social para negros e mulatos, mas, ao contrário, que promove a hegemonia da raça dominante. O embate de ideias dava-se porque, enquanto Freyre baseava-se na escola culturalista da antropologia de Franz Boas, Florestan utilizava o método histórico dialético de Karl Marx. A discussão continua, mas não diminui a importância do legado de Gilberto Freyre, ainda considerado um dos melhores “intérpretes do Brasil”.
“
Casa-Grande & Senzala foi a resposta à seguinte indagação que eu fazia a mim próprio: o que é ser brasileiro? E a minha principal fonte de informação fui eu próprio, o que eu era como brasileiro, como eu respondia a certos estímulos. Gilberto Freyre
”
Depoimentos
“E então apareceu Casa-Grande & Senzala. Saíamos do terreno da ficção, da pura criação literária, agora abria-se um nôvo caminho para o estudo, para a ciência. Foi uma explosão, um fato nôvo, alguma coisa como ainda não possuíamos e houve de imediato uma consciência de que crescêramos e estávamos mais capazes. Quem não viveu aquêle tempo não pode realmente imaginar sua beleza. Como um deslumbramento. Assisti e participei dêsses acontecimentos, posso dar testemunho. O livro de Gilberto, foi fundamental para tôda a transformação sofrida no país, verdadeira alavanca. O abalo produzido na opinião pública por CasaGrande & Senzala foi decisivo. Uma época começava no Brasil, o aparecimento de tal livro era a melhor das provas”. Jorge Amado
“Felizmente o Brasil futuro não vai ser o que os velhos historiadores disseram e os de hoje repetem. Vai ser o que Gilberto Freyre disser. A grande vingança dos gênios é essa”. Monteiro Lobato
“O que o Brasil e os brasileiros devem a Gilberto Freyre poderia ser definido como tomada de consciência histórica. Através da interpretação gilbertiana, o Brasil ‘reconhece-se’ e foi ‘reconhecido’ pelo mundo, o que é, por sua vez, um fato decisivo, uma data na história brasileira”. Gilberto Freyre com a amiga Rachel de Queirós Fonte: Foto de Arquivo pessoal, da família Aguiar Autor: Eduardo Adonias Aguiar 12
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Otto Maria Carpeaux Fonte: Biblioteca Virtual – Fundação Gilberto Freyre http://bvgf.fgf.org.br/
desArME-se
NEO MONDO não pretende explicar a violência urbana. Apenas faz um apelo às pessoas para que não se isolem à frente de um computador; saiam de si mesmas e convivam mais; eduquem-se para o Bem; cerquem-se de pessoas sempre melhores do que elas próprias; busquem o conhecimento na pesquisa, no estudo, na troca de ideias e de experiências positivas seja no campo pessoal seja no coletivo; cuidem-se e cuidem dos mais fracos, dos mais carentes, das crianças e adolescentes, dos idosos, das plantas, dos animais. Somente pessoas de mentes e corpos sadios saberão salvar o Planeta do fim dos tempos. O gênero humano e a Terra agradecem!
Especial - Dia de Índio
Dia de Índio é sempre
Mais que dono da própria terra, ele quer é ser respeitado e viver sua realidade Da Redação
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entar entender o que são povos indígenas, como vivem e o que fazem é embrenhar-se num emaranhado de etnias, costumes, organismos oficiais e não oficiais, de uma ponta a outra do País, mais intricado do que adentrar a própria floresta amazônica - ou o que vier a sobrar dela. Contribuição fundamental é a dos irmãos Villas Bôas, que iniciaram seus contatos com povos indígenas em meados do século 20 - tratados por eles com o respeito, a dignidade e a seriedade merecidos - e, de lá para cá, foram fiéis ao ideal de marechal Rondon, pioneiro na caminhada: “morrer se for preciso, matar nunca”. Noel Villas Bôas, um dos filhos de Orlando, mantém vivo o legado indigenista e, gentilmente, nos cedeu imagens que enriquecem esta edição da NEO MONDO. O censo de 2000 traz um dado que chegou a surpreender estudiosos: 734.131 mil brasileiros se definiram como índios,
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em 26 Estados e no Distrito Federal, mais que o dobro do número do censo de 1991. A Fundação Nacional do Índio (Funai) confirma a tendência crescente da população indígena, ao estimar que são hoje cerca de 1 milhão de índios agrupados em centenas de etnias que se distribuem por todo o País. E atesta que a taxa de crescimento demográfico desse segmento da sociedade supera o crescimento da população não-índia. Dá para dizer que a letra da música de Jorge Ben Jor faz sentido cada vez mais: em todo dia do ano, nossos índios podem comemorar seu dia. Importa mais, porém, conhecer um pouco mais do que pensam representantes dos próprios indígenas brasileiros, de instituições que trabalham diretamente com eles, para que a parte boa da música citada seja preservada: “Antes que o homem aqui chegasse/As Terras
Brasileiras/Eram habitadas e amadas/Por mais de 3 milhões de índios/Proprietários felizes/Da Terra Brasilis”...”Amantes da natureza/Eles são incapazes/Com certeza/ De maltratar uma fêmea/Ou de poluir o rio e o mar/Preservando o equilíbrio ecológico/Da terra, fauna e flora/Pois em sua glória, o índio/É o exemplo puro e perfeito/Próximo da harmonia/Da fraternidade e da alegria/Da alegria de viver!” Identidade retomada O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) entende que existe uma retomada da identidade étnica por parte de alguns grupos indígenas. Embora reconheça que o organismo, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), não disponha de dados sobre a citada autoidentificação, nos últimos anos, diversos grupos têm reassumido sua identidade étnica.
Acervo Orlando Villas Bôas
Indios do Alto Xingu dançando em homenagem ao Kuarup de Orlando Villas Bôas, 2003
Um desses grupos são os Tukanos, do qual faz parte Estevão Lemos Barreto (Kemarõ, em sua língua materna). Para ele, “a crescente autoidentificação de indígenas no País se deve a vários fatores sociais e políticos graças a algumas lideranças indígenas que levantaram a bandeira do direito a uma terra demarcada, desde os tempos da ditadura militar”. Nascido na Aldeia Mionã Pitó, na Terra Indígena Alto Rio Negro, município de São Gabriel da Cachoeira, a noroeste do Estado do Amazonas, e pai de 6 filhos, Estevão Tukano é formado em Ciências Sociais e iniciou pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia. Um dos fatores que motiva a autoidentificação, acredita, é a visibilidade que o movimento indígena conquista na mídia impressa e eletrônica. Outros são os programas de benefícios sociais de governos, ao reconhecer o direito diferenciado a povos indígenas
como sociedade de cultura de características próprias. Num momento em que “a conjuntura política do País se afunda numa profunda crise de estrutura social e política, onde quem não grita não é ouvido, quem não aparece não é visto, a estratégia indígena é muito bem utilizada”, avalia. O que, a seu ver, “tem despertado e motivado dezenas ou centenas de pessoas que até então viviam oprimidas, discriminadas, marginalizadas e muitas delas no anonimato a se autoidentificar como indígenas ou seus descendentes”. Tática contra o etnocídio Estevão Tukano ressalta que não se trata de uma questão de mera sobrevivência: “Quem sobrevive são os que migraram para centros urbanos de municípios e capitais dos estados, em busca de melhores condições de vida – ou da ilusão de que viver na cidade é privilégio -, e outros em busca de
aprimorar cada vez mais seus conhecimentos”. Não que não haja os que se adaptam e vivem bem em centros urbanos. Mas, “uma coisa é certa: indígenas que vivem na sua terra de origem, estes não sobrevivem e sim vivem dentro da realidade que o ambiente lhes proporciona, atendendo a aspectos culturais de cada povo”. Uma análise próxima da do Cimi, ao lembrar que, por muitas décadas, alguns povos indígenas tiveram de usar como mecanismo de resistência o ocultamento de sua identidade. O que, no entender da instituição, era necessário como um meio de proteção para que as pessoas sobrevivessem a diversas agressões. Houve casos em que muitos negaram sua identidade por medo, como os Koiupanká, em Alagoas. Outros se isolaram ou se integraram a outros povos para continuar existindo, como os Xetá do Paraná. Neo Mondo - Maio 2013
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Especial - Dia do Índio
Nos últimos 30 anos, é que muitos povos voltaram a assumir publicamente suas identidades. A partir daí, reapareceram no cenário nacional diversos povos que, por muito tempo, não eram conhecidos ou eram considerados extintos pelos registros oficiais do Estado brasileiro. Na visão do Cimi, é possível dizer que essa tática tenha sido a principal e mais eficiente estratégia na luta contra o etnocídio incentivado por políticas integracionistas. Ao fingir não ser mais indígena, o indivíduo pertencente a um determinado povo conseguia preservar sua integridade física. Ele deixava de ser perseguido por políticos e outras pessoas da região com interesses econômicos sobre suas terras e recursos naturais.
Crislian Michel Barreto Machado
Diversidade cultural expressiva A Funai cita alguns aspectos importantes, como o fato de a população indígena do Brasil representar uma das maiores diversidades culturais do planeta. São 220 povos diferenciados, falantes de 180 línguas, distribuídos em todo o território nacional. A instituição lembra que, para os povos que vivem em seus territórios tradicionais, o governo promoveu a regularização de mais de 400 áreas, totalizando 12% do território nacional. Se muitas dessas áreas enfrentam problemas de invasões, exploração ilegal dos recursos naturais e outras formas de pressão, a Funai - para conter os abusos e garantir os direitos dos povos indígenas - executa o Programa de Proteção e Promoção dos Povos Indígenas. O que é feito em ações que procuram considerar as especificidades culturais de cada povo, valorizando a autonomia e a participação dos indígenas nos processos políticos que definem suas condições de vida.
Estevão Tukano: “trabalho duro para ter condição digna” 16
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Telmo Ribeiro Paulino
Indígenas que vivem em sua terra de origem preservam a própria cultura num aprendizado constante
Firmeza Yanomami Para quem já foi consultor-antropólogo em convênio Funai-Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), atua em vários conselhos socioambientais, é membro fundador do Instituto de Empreendedorismo Indígena do Amazonas e presidente da Confederação das Organizações Indígenas e Povos do Amazonas (Coiam), pode-se dizer que Estevão Tukano é legítimo representante de povos indígenas. Ele fala com desenvoltura tanto de aspectos geográficos e históricos da região que mais conhece, o Amazonas - Estado que concentra o maior número de população indígena, algo em torno de “27% do seu total no Brasil e, portanto, a maior diversidade de povos indígenas” - como dos Yanomamis, etnia, segundo ele, mais focada pelos holofotes da mídia. O presidente da Coiam é cauteloso. “Se quem aparece na mídia é conhecido, todavia a mesma mídia que elitiza, destrói ou acaba com a imagem de qualquer cidadão”, diz. Estevão Tukano lembra que, entre suas características, os Yanomamis se destacam pela manutenção da cultura mediante o grafismo facial e a preservação ambiental. Habitantes de um território quantitativamente superior à área de muitos países europeus e sob a liderança de Davi Copenawa, esse povo, como “guardiões da floresta, trabalha duro para ter uma condição digna para viver”. O Cimi, por sua vez, destaca que os Yanomamis se mostram firmes contra a exploração mineral (por garimpeiros ou empresas) em suas terras. Ao lembrar que a terra Yanomami foi e continua sendo constantemente vítima de invasão de garimpeiros, que gera diversas consequências negativas para o povo, como vírus de doenças e contaminação de rios, o organismo
da CNBB considera que muito da força Yanomami está nas lideranças desse povo, que não toleram a exploração mineral em suas terras. Amazonas, um espelho Por contar com 178 terras indígenas demarcadas oficialmente, correspondendo a 29% do território do Estado, com 45.977.834 hectares, o Amazonas bem que pode ser um espelho para as demais unidades da Federação. O reconhecimento dessas terras, ressalta Estevão Tukano, representa papel fundamental na proteção das culturas dos povos indígenas e na conservação ambiental em vista do fator agravante de mudanças climáticas. O nível de organização indígena a que se chegou nesse Estado do Norte do País é fruto de muita consciência étnica e persistência, além de tudo. O presidente da Coiam afirma que, em sua trajetória, “lideranças indígenas das federações e organizações regionais do Amazonas discutiram em suas reuniões locais a necessidade de ampliar a articulação política do Movimento Indígena em outros Estados da Amazônia Brasileira”. Estatuto e relatório Quando já estávamos com esta matéria pronta, a Organização das Nações Unidas divulgou relatório, em que, entre outros aspectos, alerta para condições precárias em que vivem populações indígenas. Isto porque muitas delas não controlam suas terras e recursos. Se 15% da população brasileira vie na pobreza, entre os índios, a taxa sobe para 38%. O relatório, resultado de trabalho coordenado por James Anaya, descendente de apache, aponta sobretudo problemas em demarcações de terra, falta de recursos em projetos educacionais, pouca participação de povos indígenas em cargos políticos e, embora
tal, são 19 propostas no Senado e 15 na Câmara para modificar a forma pela qual as terras são demarcadas. Para Liana Utinguassú (saiba mais sobre ela no quadro abaixo), é triste constatar que o que se lê no relatório é mais e mais visto entre os índios brasileiros.
Acervo Orlando Villas Bôas
reconheça avanços nas iniciativas da Funai, defende que a Fundação abandone posturas paternalistas, para se tornar mais efetiva na defesa dos interesses indígenas. O relatório diz ainda que o novo Estatuto do Indio, que está em debate, limitará a proteção dos direitos dos povos. No toSERVIÇO
Para saber mais sobre as organizações indígenas citadas e ajudá-las em seus projetos, contatar: Fundação Villas-Bôas - www.expedicaovillasboas.com.br Coração da Terra - www.yvykuraxo.org.br Coiam - coiam.coiam@yahoo.com.br; ebtukano@hotmail.com Irmãos Villas Bôas: www.estadao.com.br/ext/especial/villasboas/; noelvillasboas@hotmail.com O site da Funai é www.funai.gov.br; e o do Cimi é www.cimi.org.br
Acervo Orla
ndo Villas Bô
as
Orlando Villas Bôas
Orlando, Leonardo e Cláudio Villas Bôas, Primeiros contatos com os década de 1950 Txikão, em 1967
Chegada dos Txikão ao Parque Indígena do Xingu, década de 1970
Claudio e Orlando com um índio xinguano, década de 1970
Ideal conservacionista e povos indígenas Entre as organizações envolvidas com a diversidade cultural estão a Fundação Villas-Bôas e a Yvy Kuraxo (Coração da Terra) - a primeira, do Pará; a segunda, do Rio Grande do Sul. A Fundação Villas-Bôas, presidida por Paulo Celso Villas-Bôas, está empenhada em um projeto da mais alta significância para tornar a Amazônia - e o País - sustentável: a Expedição Villas-Bôas pelo Brasil. Para isso, busca parcerias com áreas do setor produtivo, que lhe permitam viabilizar o projeto. Na empreitada, ele conta com sua “fiel escudeira” Liana Utinguassú, índia Guarani que preside a Yvy Kuraxo. Escritora e consultora, ela é autora do livro O Chamado da Terra. Paulo Celso esclarece: “A Fundação/Expedição Villas-Bôas pelo Brasil prima pelo conceito de Responsabilidade Social correlacionando-o com o amor ao próximo e ao planeta em um único tripé: o homem e sua família protegido pela força divina; a economia com o setor
produtivo; e a natureza e o trabalho com responsabilidade socioambiental”. Em que pese o sobrenome, Paulo Celso não é da família dos irmãos Villas Bôas, Orlando e Cláudio, indigenistas históricos. Mas o
ideal conservacionista, implícito em seu projeto, e a evolução dos povos indígenas caminham juntos. Assim como Paulo Celso e Liana, incansáveis à frente de ações pró-indígenas, como esta expedição. Acervo de Paulo Villas Bôas
Paulo Celso e Liana: os dois se dizem fiéis escudeiros; para ele, a Guarani é uma guerreira; ela o trata como irmão
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Especial - Dia do Índio
Doutor das Pedro Martinelli, fotógrafo da Amazônia, é pós-graduado em mato pelos irmãos Villas Bôas Da Redação
O primeiro índio fotografado em 1973, ao sair da pesca: “Nós levamos três anos para fazer contato, adiando ao máximo a catástrofe”
P
edro Martinelli é um dos poucos brasileiros que conhecem a Amazônia, não por ouvir falar e ler ou por meio de estudos de gabinete. Ele documenta a região e seu povo desde 1970, quando, aos 20 anos, foi enviado pela sucursal paulista do jornal O Globo para fotografar a expedição dos irmãos Villas Bôas, Cláudio e Orlando, sertanistas que, com o irmão Leonardo, idealizaram o Parque Nacional do Xingu (hoje Parque Indígena do Xingu), fundado em 1961 - a primeira terra indígena homologada pelo governo federal. Prêmio Esso de Jornalismo na categoria Informação Científica, Tecnológica e Ecológica (1996) , é fotógrafo independente desde 1994 e tem inúmeras reportagens publicadas nos 18
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principais periódicos do País. Reconhecidamente, um dos maiores fotógrafos brasileiros. Os Villas Bôas foram responsáveis por sua “pós-graduação em mato”, como Pedrão costuma dizer. Pedrão é como todos chamam esse descendente de italianos, criado em Santo André, no ABC, em São Paulo, em uma família de oito irmãos. Desde o início, em 1967, na sucursal do jornal Gazeta Esportiva - quando revelou a primeira foto e se apaixonou pela profissão -, sua carreira voou. Trabalhou no Diário do Grande ABC em Santo André até 1970 e foi para a sucursal paulista de O Globo, onde ficou até 1975. Fez de tudo, desde cuidar dos linotipos até aprender a fotografar e revelar.
“Cheguei na redação indicado por um amigo do Diário do Grande ABC, o Chicão. Nove da manhã, o chefe, que se chamava Garini, cortou um pedaço de jornal que estava lendo e falou: ‘senta e escreve’. Eu tinha trabalhado em cartório, fiz curso de datilografia, era bom nisso.” Foi assim que Pedrão se tornou rádio-escuta, não havia vaga para fotógrafo. Rádio-escuta é a pessoa que ficava ouvindo rádio e gravando os noticiários. “Acontece que eu mais fotografava do que gravava noticiário. Trabalhei bastante, e cinco meses depois O Globo tinha mandado dois fotógrafos para a Amazônia; nenhum deu certo, ninguém queria ir, com medo de malária, da mata. Eu fui, e pronto”.
Especialista em Amazônia Assim Pedrão começou a se especializar em Amazônia. Ficou em O Globo até 1975, trabalhou depois no Palácio do Governo de São Paulo e foi para a revista Veja em 1976, onde ficou até 1983, como fotógrafo e depois editor de fotografia. Entre 1983 e 1994 foi diretor de serviços fotográficos do Estúdio Abril. Pediu demissão para dedicar-se à documentação da Amazônia. “A primeira coisa que eu fiz foi ver se encontrava o índio que tinha fotografado em 1973. Até então ninguém sabia me dizer se eles estavam vivos, principalmente o que havia saído na foto de primeira página. Fiquei 20 anos tentando, as informações eram muito escassas, só sabia que eles haviam sido transferidos para o Xingu. Logo depois do contato, a estrada passou, morreu 70% da população, acho que ficaram vivos 76. Para impedir a extinção, a Funai os transferiu para o Xingu”, conta. Em 1994, com seu projeto pessoal elaborado durante anos, Pedrão comprou Divulgação
Pedro Martinelli
a expedição de contato com os índios gigantes, os Kranhacãcore (homem grande da cabeça redonda), como os inimigos Txucarramães os chamavam. Hoje são os Panará. A frente de atração era chefiada pelos irmãos Claudio e Orlando Villas Bôas, cuja missão era fazer o contato com os índios que estavam no rumo da rodovia Cuiabá--Santarém. “Fui para ficar um mês e acabei ficando três anos”, conta. “Encontrei meus mestres Villas Bôas, que tinham uma concepção contra a construção de estrada, a favor de manter os índios isolados, enfim...”. Ficou três anos no rio Peixoto de Azevedo (divisa de Mato Grosso e Pará) até fazer contato com os índios. “O contato foi em abril de 73.” Quando ninguém esperava, sai do meio da mata um índio gigante: ”Estava pescando e apareceu no fim da tarde, inteirinho, maravilhoso”, lembra. A foto do primeiro contato foi publicada na primeira página de O Globo, em 11 de fevereiro de 1973, depois que as partes íntimas do índio foram retocadas por ordem do censor que ficava na redação.
No mato, todo dia Então tudo começou. Mas Pedrão não era um iniciante em mato. “Eu já conhecia a Mata Atlântica em Santo André, desde menino caçava com meu pai, na Serra do Mar, que ficava do lado da minha casa. Meu pai fechava o açougue às 3 horas, e a gente ia para o mato todo dia. Eu tinha adoração pelo mato, a Mata Atlântica, deslumbrante, mas com um olhar de caçador, não de ambientalista, não tinha noção do tamanho da encrenca que estava por acontecer. Em 1970, eu queria conhecer a Amazônia”. Na época da ditadura, os militares começaram a construir estradas: Cuiabá--Santarém, Transamazônica, Perimetral Norte. Foi quando O Globo escalou Pedrão para cobrir
Pedro Martinelli: quase 40 anos de Amazônia, um trabalho inestimável
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Pedro Martinelli
Especial - Dia do Índio
O mesmo indio, quase 40 anos depois : “Fiquei amigo dele; hoje os Panará entendem perfeitamente o meu
um barco para fazer seu primeiro livro Amazônia povo das águas. Foi atrás dos Kranhacãcore com um antropólogo norte-americano, conhecedor da língua deles que, de certa forma, salvou a sua vida. “Eu fui o primeiro que participou do contato e voltou na aldeia 20 anos depois. Cláudio e Orlando se aposentaram e nunca mais voltaram. Os mais velhos me reconheceram, e foi uma loucura, o pajé os instigava pra me matarem.” Isto porque culpavam Pedrão, um membro da expedição de 1973, por todo o mal que aconteceu a eles depois do contato. “Mas o antropólogo Steve (Pedrão recorda-se apenas do nome – N.R.) foi contornando, na língua deles, calmo. Foi colocando minha história. Dormi na aldeia; foi dramático, 22
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acordei e pensei: estou vivo, então não me matam mais. Porque o lance é matar à noite, é clássico no Xingu: dão uma casa pra dormir e matam de borduna, muitos brancos morreram lá assim”, diz Pedrão. Ponte no lugar de aldeia Teve início, então, uma grande relação com aqueles índios. “Levei as fotos, eles viram parentes que tinham morrido, foi muito dolo-
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roso”, diz. Para o encontro, Pedrão encontrou um índio amigo da antiga expedição: “Fomos numa caminhonete e andamos até a antiga aldeia”. Encontraram terra arrasada.” Onde era aldeia tem ponte de concreto; fotografei tudo e liguei para Merval Pereira, então diretor do Globo, que nos anos 70 era colega repórter. Quando consegui falar, ele disse: ‘Vem para o Rio agora’. Ficaram loucos com o material, o jornal não tinha nunca voltado. Fizeram uma série de matérias, e ganhamos o Prêmio Esso de Informação Jornalística”. Em 1998, foi realizada uma grande exposição no Sesc Pompéia com o lançamento do livro Panará a volta dos índios gigantes. Compareceram seis índios, fizeram uma linda dança durante três dias. Entre eles, o índio gigante fotografado há 35 anos. De camiseta pólo, sapatos, não é mais um índio gigante; hoje ele é o seu Euclides. As contas do que se perdeu Desde 1970, Pedro Martinelli começou a fazer as contas de tudo que se estava perdendo. “Muita gente que fala em sustentabilidade não conhece mato, não tem idéia da perda. Hoje saiu uma notícia de que desmatamos 36 % menos que no ano passado. São burocratas de escritório que ficam tomando banho de luz fluorescente na frente do computador a vida inteira, nunca falaram com caboclo, nunca dormiram mais de uma noite no mato”, avalia. Pedrão se enfurece porque suas contas não batem com as oficiais. “Na minha conta, eu juro, quando vi a estrada chegando, nos anos 1970, as primeiras derrubadas, pensei que a Amazônica se acabaria em 20 anos. Posso ter errado, mas se continuar assim, em 20 anos não vai haver mais nada”, profetiza. Segundo Pedrão,nos últimos cinco anos a qualidade de vida piorou muito: “ A questão não é nem ambiental; o problema é a degradação humana que a Amazônia está sofrendo. Trabalhei para um especial da revista Veja e fiz a parte de Manaus inteira em quatro dias. Toda a periferia. Não dá para explicar, é egoísta pensar em árvore, preservação de mato, de bicho, com o ser humano naquelas condições”.
Problema maior é a degradação humana... Se nada for feito, (região) não dura mais 20 anos; como falar em sustentabilidade?
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Em Belém as pessoas moram em cima do esgoto, em palafitas Pedrão enfatiza: “Se falta esgoto em São Paulo, imagine em Belém e Manaus. Vou a Belém há quase 40 anos. Desde que construíram o Hilton Hotel, há 25 anos, até hoje, tem esgoto passando em frente. Duvida disso? Você pega um táxi e vai até o Porto da Palha, a 10 minutos do Hilton, na Avenida Beira Rio, você vai ver ser humano no pior estado.Você não imagina! O problema não é só deste governo, é de vários. Isso que eu falei na boca de um sociólogo fica interessantíssimo, jamais ele falará de saneamento básico, de esgoto, da degradação humana. Continuam falando uma linguagem que não existe. E daqui a pouco, vão falar o que mais?”. Fossa olímpica Para Pedro Martinelli, antes de salvar a Amazônia, as pessoas deveriam cuidar do rio Tietê, que passa no nosso quintal. “A raia olímpica da USP é de esgoto. Onde estão sentados os grandes cérebros do País, a 200 metros do rio Pinheiros, ao lado existe uma favela. Eu pergunto: há alguma assistente social fazendo trabalho naquela favela? Este país precisa de assistente social, para ensinar a cuidar de verme, tratar de saneamento. Porque há muitos trabalhos em favelas que ensinam a mexer em computador, mas não a defecar na fossa. Sim, deve haver aula de teatro, de música, mas não há fossa séptica.Esgoto, saneamento básico, estas são as palavras necessárias. Assim estaremos dando um passo enorme”, alerta. “No mato, para ver televisão a pessoa tem de matar uma paca, vender tartaruga.
Uma tartaruga vale R$ 5 , que é o preço de um litro de óleo diesel na Amazônia. Duas horas de TV consomem um litro de óleo diesel, ou seja, uma tartaruga. Cinco horas de TV valem uma paca. Para começar a discutir sustentabilidade, é preciso discutir qual a alternativa para o caboclo comprar o diesel dele e continuar a ver televisão sem vender tartaruga nem matar paca”, afirma. Todo o trabalho de Pedrão na documentação da Amazônia nunca foi financiado: ”Nem um litro de gasolina, nenhuma passagem de avião, ninguém me hospedou por conta. E também ninguém me questionou até hoje; só o caboclo poderia me questionar, mas não”. Enquanto grelha uma abobrinha na chapa, Pedrão , que em seu blog coloca estas e muitas outras histórias preciosas de sua vida profissional, diz que tem vontade mesmo é de falar sobre comida.”Sempre cozinhei, desde pequeno; todos os oito irmãos aprenderam a limpar casa, passar roupa e cozinhar - a nossa primeira grande lição de vida”. E a comida da Amazônia? Pedrão diz que está na moda,mas esta é mais uma frente de dilapidação do patrimônio de índios e caboclos: “Neguinho vai lá, usa a pimenta deles, a idéia deles, vota, faz um prato bonitinho para o mundinho fashion, mas o retorno, a contrapartida é zero”. Ele pergunta: como arrumar o mundo sustentável para esse homem da Amazônia? “Eu comprei ingresso na poltrona vermelha, numerada, vou sentar e assistir de camarote.”
Livros de Pedro Martinelli O livro Panará a Volta dos Índios Gigantes (1998) conta toda a história do contato, a transferência para o Xingu e a mudança para o Rio Iriri, onde os Panará estão desde 1994. Você pode encontrar a obra no site www.istitutosocioambiental.org Pedro Martinelli publicou ainda Casas Paulistanas (São Paulo, 1998), Amazônia o Povo das Águas (com exposição individual no Museu de Imagem e do Som, São Paulo, 2000), Mulheres da Amazônia (com exposição no Museu da Casa Brasileira, São Paulo 2004) e Gente X Mato, São Paulo 2008. Estes dois últimos podem ser adquiridos com o próprio autor no seu site www.pedromartinelli.com.br
Lição de Orlando Villas Bôas
“Durante a longa permanência entre os índios, a única contribuição que talvez lhes tenhamos dado foi mostrar aos civilizados que o índio brasileiro não é um selvagem agressivo e destruidor. Nós trouxemos a notícia de que eles constituem uma sociedade tranqüila, alegre. Ali, ninguém manda em ninguém. O velho é dono da história; o índio, dono da aldeia; e a criança, dona do mundo. Nesse tempo todo em que vivemos perto deles, nunca assistimos a uma discussão, a uma desavença na aldeia ou a uma briga de marido e mulher. Se a criança faz alguma coisa que o pai desaprova, ele não a repreende. Apenas a tira de onde está e a leva para outro lugar. É admirável, também, o respeito que os pequenos têm pela natureza, valor que adquirem observando o comportamento dos mais velhos. O chefe, ou cacique, é o líder cultural da aldeia. Ele goza de muitas prerrogativas, mas deve observar uma série de restrições: não pode falar alto, nem rir ou fazer gestos bruscos, por exemplo. Sua função não é impor regulamentos nem determinar tarefas, mas estabelecer uma ligação entre a comunidade e os pajés que se reúnem todas as tardes para conversar, fumar e deliberar sobre o bom andamento da tribo. O cacique não participa da conversa. Apenas ouve o que está sendo dito e na manhã seguinte, segurando o arco numa das mãos, dirige-se ao povo que se junta diante de sua maloca para escutar as recomendações dos pajés e, em seguida, colocá-las em prática. Supostamente os pajés nunca erram porque não têm outra preocupação além de ficar zelando pelo bem-estar da comunidade. Quando colocamos a possibilidade do diálogo entre os diferentes povos e culturas como horizonte a ser alcançado, precisamos logo esclarecer que ele pressupõe que os povos estejam fortalecidos e seguros (quanto é questão de suas terras; quanto é sua identidade étnica e nas suas relações com ‘os outros’)”. www.expedicaovillasboas.com.br/ portal/orlando-villas-boas.html
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BICHO MÃE Que bicho estranho e esquisito é esta espécie feminina, ao mesmo tempo em que deseja ver sua cria crescida com independência, deseja ardentemente que ela nunca saia de perto se aventurando demais. Afinal, o bicho mãe é quem sabe o que é melhor... Tem uma boca que professa e uma língua felina e doce que educa com firmeza e suavidade. Até pouco tempo atrás era apenas bicho filha, e reinava no âmbito de filha, mas ao se tornar bicho mãe pode compreender o que intensamente a espécie tem como instinto de proteção e preservação. Nossa! Os cientistas deveriam observar atentamente este animal mãe para buscarem maneiras mais eficientes de preservar o planeta, pois é um animal que a todo custo e sem limites olha, ora e cuida com muita dedicação da sua continuidade. Provavelmente, o bicho mãe é a única espécie que não será extinta do planeta. E, ai de quem ousar mexer com seus filhotes, vira, verdadeiramente, uma fera irracional envolvida por uma racionalidade que só a sua categoria consegue compreender. Proteger com seus filhotes é uma tarefa exclusiva da mãe felina. Bicho mãe é estranho mesmo! Bicho filha que se deliciava na sua filiação percebeu que aos quarenta anos algo novo acontecia, modificações ocorriam, bicho filha seria bicho mãe da filha ou filha da mãe. Este universo que se descortinou a sua frente revelou o ciclo inevitável e contra-
ditório que essa espécie vive, são perdas e ganhos em frações de segundos, de menina passa a mulher, de filha passa à mãe, de mãe a filha e de filha a filha da mãe.
filhote. Para o bicho mãe, este filhote nunca cresce, é seu menininho ou sua menininha crescidinho, mas pequeninos e indefesos. Bicho mãe é viajante mesmo!
São sentimentos opostos vividos durante a sua trajetória, são alegrias, fracassos, sonhos sonhados, sonhos abortados, esquecidos e paralisados, mas descobertas vividas profundamente no tempo e espaço de sua existência.
Tem um espírito astuto que sabe direitinho fisgar seu filhote, seja pelo estômago ou com suas sábias palavras. Só o bicho mãe consegue isso com tanta desenvoltura, traz seu filhote de volta ao longo de sua vida para baixo de suas asas.
Bicho mãe tem desejo de VIDA, vida que nasce a cada dia, vida que transforma e amadurece, vida que envelhece, mas que nunca perde a essência da infância. Bicho mãe tem alma de anjo “encapetado” e sensibilidade guerreira. Bicho mãe ama incondicionalmente, se entrega neste ofício sem vacilar. Bicho mãe tem um profundo sentimento de posse e pertence. Ama a sua continuidade e a continuidade de sua continuidade. Bicho mãe, quando tem uma prole, sabe o que cada um deles precisa e sente. Bicho mãe, quando tem um único filhote, sufoca-o de carinhos, preocupações e super-proteção. Bicho mãe é admirável mesmo! Bicho mãe surta numa explosão de raiva e rapidamente se recompõe com a mesma velocidade do surto como se nada fosse. Bicho mãe conhece o perdão e exerce-o com uma naturalidade quando se trata de aplicá-lo ao seu filhote. Bicho mãe é o bicho que mais se culpa, pois não aceita de forma alguma errar na criação de seu filhote. Bicho mãe é maluco mesmo!! Bicho mãe aproxima-se de Deus com tanta facilidade quando necessita suplicar pelo seu
Bicho mãe tem asas para acolher todos, presas para afastar qualquer perigo e nadadeiras para incentivar mergulhos. Bicho mãe arrasta, rola, voa e salta quantas vezes forem necessárias para ver os seus filhos saudáveis e satisfeitos. Bicho mãe tem medo quando seu filhote vai alçar o primeiro vôo, mas acompanha-o no primeiro, segundo, terceiro, quantos vôos forem necessários, com a mesma vibração, empolgação do primeiro. Bicho mãe é incansável mesmo!!! Bicho mãe é engraçado, consegue nos alegrar nos momentos mais complicados, nos distraindo e acalentando. Bicho mãe é um bicho esquisito mesmo!!! Mas um bicho eternamente apaixonante e apaixonado por sua cria. “Uma homenagem sempre atual a todas as mães do Planeta “. Luciana Stocco de Mergulhão Mestre em Educação, especializada em Psicopedagogia e graduada em Pedagogia. Professora universitária dos cursos de Pedagogia,Psicopedagogia e atendimento psicopedagógico. Experiência profissional de professora e coordenadora pedagógica de educação básica. Neo Mondo - Maio 2013
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Meio Ambiente C
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uando pensamos em meio ambiente no Brasil, as imagens recorrentes são da fauna e da flora nacionais, com toda a sua diversidade biológica. Não é para menos, o nosso País possui uma das maiores concentrações de plantas e animais do mundo. No entanto, o meio ambiente não se restringe ao meio natural, pois o seu conceito também está ligado ao meio artificial, social e cultural. Assim, quando se fala em proteção do meio ambiente, não se está restringindo o cuidado apenas aos exemplares da flora e da fauna, já que a definição de meio ambiente é ampla e abarca tanto o homem quanto a natureza. Seguindo essa linha, percebe-se que o patrimônio cultural nacional é parte do meio ambiente. No meio ambiente cultural, estão inseridas as criações artísticas, os objetos, os documentos históricos e tantas outras manifestações culturais, como a dança, a literatura, a música, e outras expressões que fazem parte da cultura brasileira. Os bens que compõem o patrimônio cultural podem ser materiais, como as
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construções históricas, ou até mesmo imateriais, como os dialetos de algumas comunidades indígenas. Ambos são importantes e merecem ser preservados, para que possamos garantir a identidade e memória dos diferentes grupos da sociedade e a das diferentes regiões do Brasil. Festas populares e de longa tradição, como a do Boi, em Parintins, o Guerreiro, em Alagoas, e a Semana Farroupilha, na região Sul, são exemplos da riqueza regional do nosso meio ambiente cultural. A Constituição brasileira de 1988 protege o meio ambiente cultural brasileiro, incumbindo ao Poder Público, com a colaboração da comunidade, a proteção desse patrimônio por meio de inventários, registros, vigilância, desapropriação e tombamento. O tombamento é uma medida administrativa usada para preservar bens de valor histórico, cultural, arquitetônico e ambiental. Tanto pode ser realizado em âmbito federal, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, como pode ser proveniente de ato estadual ou municipal. Na verdade, um
bem pode ser tombado simultaneamente em âmbito local, regional ou nacional. É o que acontece com o centro histórico da cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais, que é tombado pelo Município, pelo Estado, pela União, e até pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade. A lista do Patrimônio Mundial da UNESCO é formada por 878 locais escolhidos em razão de suas propriedades naturais ou culturais. Desse total, 689 são propriedades culturais, 176 são propriedades naturais e 25 são mistas. O Brasil possui 17 locais na lista, dos quais dez foram escolhidos por suas qualidades culturais. Assim, além da Cidade Histórica de Ouro Preto, também integram a lista por razões culturais os Centros Históricos das cidades de Olinda, Salvador, São Luís do Maranhão, Diamantina e Goiás; bem como as Ruínas de São Miguel das Missões; o Santuário do Bom Jesus do Congonhas; a Cidade de Brasília e o Parque Nacional da Serra da Capivara. Além dos centros históricos de algumas cidades brasileiras, os modos de criar e de produzir enraizados no cotidiano de
Natascha Trennepohl
Correspondente especial de Berlim – Alemanha
e Cultural no Brasil:
s da Identidade de um Povo comunidades também integram o patrimônio cultural brasileiro. Um exemplo disso são as técnicas tradicionais de construção de embarcações (e de navegação oceânica) desenvolvidas pela comunidade caiçara de Cairuçu, no Município de Parati (RJ), as quais são patrimônio cultural da referida comunidade. Neste caso, o meio idôneo para a sua proteção não é o tombamento, mas o registro. De acordo com a Constituição Brasileira, a proteção de documentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, bem como de monumentos, paisagens naturais notáveis e sítios arqueológicos faz parte da competência comum, o que significa dizer que cabe a todos os entes da federação. A Constituição prevê, ainda, o estabelecimento de incentivos para a produção e o acesso a bens culturais. O acesso às fontes culturais está previsto na lei que criou o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), em 1991. Essa lei ficou mais conhecida como Lei Rouanet, por causa do então ministro da cultura Sérgio Paulo Roua-
net. Atualmente, o Ministério da Cultura está apoiando um projeto de reforma da lei que visa ampliar a capacidade de fomento à cultura. Tal projeto ficou disponível para consulta pública até o início do mês de maio desse ano e propõe a instituição do Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Profic) com o objetivo de mobilizar recursos e aplicá-los em projetos culturais. Além dos instrumentos que já estavam previstos na Lei Rouanet, como o Fundo Nacional da Cultura (FNC), o Fundo Nacional de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) e os incentivos a projetos culturais, o Projeto de Lei inclui o “Vale-Cultura”, a ser regulamento por lei específica. O propósito central do vale está relacionado com a idéia do ex-ministro Gilberto Gil em fazer da cultura um elemento da cesta básica dos brasileiros. Assim, de acordo com o Projeto de Lei, o Vale-Cultura (no valor de 50 reais) deverá ser fornecido ao trabalhador que receba até cinco salários mínimos, podendo-se descontar de sua remuneração até 10% do valor, ou seja, 5 reais.
O Vale-Cultura pretende estimular a visitação de estabelecimentos culturais e artísticos, bem como incentivar o acesso a eventos e espetáculos, como peças de teatro, shows, museus etc. É interessante ressaltar que o vale inclui na área de atividades culturais a literatura, o que permitirá o seu uso para a aquisição de livros. É bem vinda a criação de diferentes meios para incentivar as manifestações culturais que refletem a identidade de um grupo. Assim como meios para proporcionar o acesso aos bens culturais e as formas de expressão, criações científicas ou culturais. Dessa forma, ajudamos a construir essa identidade e a fortalecer a história e o meio ambiente cultural de um povo. Afinal, é de todos nós o dever de preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Natascha Trennepohl Advogada e consultora ambiental Mestre em Direito Ambiental (UFSC) Doutoranda na Humboldt Universität (HU) em Berlim. E-mail: natdt@hotmail.com Neo Mondo - Maio 2013
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Acervo Iphan
Cultura
resguardada Para garantir a preservação do patrimônio cultural brasileiro, surgem novas propostas e mecanismos Da Redação
Patrimônios tangível e intangível Enquanto o patrimônio cultural tangível, composto por bens materiais, como monumentos, achados arqueológicos, obras de arte, etc, sempre recebeu aten-
ção de órgãos e governos, é relativamente nova a defesa do patrimônio intangível, composto por expressões culturais imateriais, como danças, lendas e tradições diversas, as quais são passadas por ancestrais aos seus descendentes. A expressão foi oficializada pela UNESCO em 1997 e, desde 2001, o órgão divulga, a cada dois anos, a Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Para obtenção da lista, os bens inscritos pelos países signatários da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial são avaliados por um júri internacional. Os bens imateriais inseridos na lista passam a receber incentivo para sua salvaguarda, como é o caso das expressões orais
e linguagem gráfica dos índios Wajãpi, do Amapá e do Samba de Roda do Recôncavo Baiano, ambos expressões brasileiras que já integram a lista (saiba mais sobre elas no quadro abaixo). Iniciativas governamentais brasileiras A Constituição Federal atribui ao poder público, com o apoio da comunidade, a proteção, preservação e gestão do patrimônio histórico e artístico do país. No Ministério da Cultura, existe uma seção especial própria para a questão da diversidade. A Secretaria de Identidade e Diversidade (SID) subdivide-se em oito áreas de atuação: culturas ciganas, indígenas, LGBT, do idoso, na infância, na juventude, na saúde e culturas populares. Acervo Iphan
S
e desde sua origem, o povo brasileiro recebe influências tão diversas, é de se esperar que sua produção cultural seja diversificada na mesma medida. Em tempo, a questão da preservação da diversidade cultural vem recebendo atenção não só de governo e Ongs (Organizações Não-Governamentais) brasileiras, como também de instituições pelo mundo afora. Em 2002, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) divulgou sua “Declaração Universal Sobre a Diversidade Cultural”, na qual afirmou que “o respeito à diversidade das culturas, à tolerância, ao diálogo e à cooperação, em clima de confiança e de entendimento mútuos, estão entre as melhores garantias da paz e da segurança internacionais”. Para o órgão, “a diversidade cultural apresenta um duplo desafio: assegurar a co-existência harmoniosa entre indivíduos e grupos de culturas diferentes enquanto defende a criatividade por meio de inúmeras expressões de culturas, estas denominadas como criação contemporânea e patrimônio cultural. O patrimônio cultural é subdivido em patrimônio tangível e intangível”. Os conceitos citados são colocados em prática por meio de “ações a favor da diversidade”, que incluem preservação dos direitos humanos, apoio aos indígenas, combate ao racismo, entre outras.
O frevo pernambucano é um bem cultural imaterial reconhecido pelo IPHAN
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Cultura
Edgar Rocha- Iphan
Tambor de Crioula Acervo Iphan
Francisco Mor - Iphan
Ofício das Paneleiras de Goiabeiras (ES)
Círio de Nossa Senhora de Nazaré (PA)
As áreas organizam encontros, seminários e prêmios para seus segmentos. Um dos destaques da programação atual é o Prêmio Culturas Populares, que chega à quarta edição em 2009 e contemplará 195 iniciativas com um prêmio de 10 mil reais. “Queremos homenagear todas as expressões das culturas tradicionais que fazem parte de nossa diversidade cultural”, declara o Secretário da Identidade e Diversidade, Américo Córdula, no portal eletrônico da Secretaria. Quem empresta o nome a esta edição do prêmio é a mestra Dona Izabel, artesã ceramista do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, que ficou famosa na região pela produção de noivas de cerâmica, ofício que continua ensinando. 28
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Prêmio Culturas Populares 2009 leva o nome da artesã Izabel Mendes, do Vale do Jequitinhonha (MG)
Também vinculado ao Ministério da Cultura, o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) é o responsável pela preservação, divulgação e fiscalização dos bens culturais brasileiros. Além dos 20 mil edifícios tombados, 83 centros e conjuntos urbanos, 12.517 sítios arqueológicos cadastrados e mais de um milhão de objetos cadastrados, o Instituto também viabiliza projetos de identificação, reconhecimento, salvaguarda e promoção do patrimônio imaterial. Na lista de bens imateriais já registrados pelo IPHAN, além da arte dos índios Wajãpi e do Samba de Roda do Recôncavo Bahiano, também reconhecidos pela UNESCO, figuram outros 13 itens. Confira a seguir. • Ofício das paneleiras de Goiabeiras (ES) • Círio de Nossa Senhora de Nazaré (PA)
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Modo de Fazer Viola de Cocho (MT/MS) Ofício das Baianas de Acarajé (BA) Jongo no Sudeste (RJ) Cachoeira de Iauaretê – Lugar sagrado dos povos indígenas dos Rios Uaupés e Papuri (AM) Feira de Caruaru (PE) Frevo (PE) Tambor de Crioula Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo (RJ) Modo artesanal de fazer Queijo de Minas, nas regiões do Serro e das serras da Canastra e do Salitre (MG) Roda de Capoeira e Ofício dos Mestres de Capoeira O modo de fazer Renda Irlandesa produzida em Divina Pastora (SE)
Bens Imateriais reconhecidos pela UNESCO Arte Kusiwa dos Wajãpi
Acervo Iphan
• De acordo com o dossiê do IPHAN sobre o assunto, atualmente os Wajãpi do Amapá são 670 pessoas distribuídas em 48 aldeias, os remanescentes de um grupo que chegou a 6 mil pessoas no início do século XIX. • Sua arte é peculiar, porque a tradição de decorar corpos e objetos são motivadas por prazer estético e não usados como marcas étnicas ou símbolos rituais. Eles possuem um repertório codificado de padrões gráficos que representam partes do corpo ou da ornamentação de animais e objetos. Esse sistema de representações é chamado de kusiwa.
Índios Wajãpi pintam a pele com urucum
Fotos: Luiz Santos - Iphan
Samba de Roda do Recôncavo Bahiano • O Samba de Roda é uma expressão musical, coreográfica, poética e festiva. Exerceu influência no samba carioca e até hoje é uma das referências do samba nacional. Permeia atividades econômicas, religiosas e lúdicas no contexto do Recôncavo Bahiano.
Samba de Roda do Recôncavo Bahiano
Bens Culturais brasileiros na lista do Patrimônio da Humanidade • • • • • • • • • • • • • • • • •
Parque Nacional do Jaú (AM) Ouro Preto (MG) Olinda (PE) São Miguel das Missões (RS) Salvador (BA) Congonhas do Campo (MG) Parque Nacional do Iguaçu (RS) Brasília (DF) Parque Nacional Serra da Capivara (PI) Centro Histórico de São Luís (MA) Diamantina (MG) Pantanal Matogrossense (MS) Costa do Descobrimento (BA / ES) Reserva Mata Atlântica (SP / PR) Reservas do Cerrado (GO) Centro Histórico de Goiás (GO) Ilhas Atlânticas (PE)
Marcelo da Mota Silva
Ouro Preto (MG)
Fonte: IPHAN - www.iphan.gov.br Neo Mondo - Maio 2013
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Cultura
A formação do português brasileiro, suas influências e seu papel como espelho da diversidade cultural Da Redação
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ndios, portugueses, negros e posteriormente imigrantes de várias nacionalidades. O caldeirão cultural em que se formou o povo brasileiro é mesmo singular e reflete na língua toda essa diversidade. “Não poderia deixar de ser diversa e particular a história do português falado aqui, inserido em um novo contexto e numa nova realidade social. Se a língua é o principal meio de expressão da cultura de um povo, e se a cultura brasileira é tão rica e singular em seus sincretismos étnicos, é natural que, com o passar do tempo, o nosso falar tenha adquirido características próprias”, disse o doutor em Estudos Literários, professor do Departamento de Linguística da UNESP-FCL/CAr e colaborador da Neo Mondo, Márcio Thamos. A história de formação do português brasileiro, a qual se refere o professor, é repleta de capítulos interessantes. “Ele deriva do português médio (século XV - primeiro quartel do século XVI), que foi a língua adquirida pelos portugueses que povoaram o país”, explica o doutor em Linguística e pesquisador da USP (Universidade de São Paulo) e Unicamp (Universidade de Campinas), Ataliba Teixeira de Castilho. Em seu trabalho “A hora e a vez do português brasileiro”, disponível no site do Museu da Língua, o pesquisador relata a trajetória de formação da língua falada no Brasil, destrinchando as influências recebidas ao longo de sua história. 32
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“Até o momento, a mudança natural da língua portuguesa e esses contatos que ela teve não deram origem a uma nova língua, fato que poderá ocorrer daqui a cerca de 200 anos”, completou. Influências indígenas e negras Segundo o estudo do pesquisador Ataliba de Castilho, quando os portugueses chegaram ao Brasil havia entre um a seis milhões de índios, falantes de cerca de 300 línguas, as quais se organizavam em dois grupos: Grupo Jê e Grupo Tupi-Guarani. Os falantes do grupo Tupi-Guarani, devido à sua distribuição geográfica mais costeira, influenciaram de forma mais ativa a língua falada no país. Já no século XVI, o tupi misturado ao português originou a Língua Geral Paulista, falada no interior de São Paulo, Mato
Grosso, Minas Gerais e Paraná, e que começou a ser extinta na segunda metade do século XVIII. Paralelamente às influências indígenas, entre 1538 a 1855, foram trazidos 18 milhões de escravos negros originários das culturas Banto (Congo, Angola e Moçambique) e Sudanesa (Sudão, Senegal, Guiné, Costa do Ouro, Daomé e Nigéria) que também passaram a influenciar a língua. As palavras Banto atingiram maior dispersão, enquanto as Sudanesas foram utilizadas de forma mais ativa na liturgia do candomblé. Estima-se que 10.000 vocábulos foram cedidos do Tupi-Guarani para o português brasileiro, na maioria substantivos próprios de lugares e pessoas. Já o número de palavras africanas incorporadas ao português brasileiro é 300.
Exemplos de contribuições linguísticas no português Palavras indígenas: Caipira, pipoca, maracujá, goiaba, mandioca, pitanga jacaré, tatu, arara; Nomes próprios de lugares: Moema, Butantã, Jaçanã, Maracanã, Guanabara, Canindé, Itu, Araraquara; Palavras africanas: fubá, caçula, angu, jiló, carinho, bunda, quiabo, dendê, dengo, samba;
A unidade do português brasileiro O Brasil é o principal responsável pela atual posição da língua portuguesa entre as línguas mais faladas no mundo: 8º lugar, com 191 milhões de falantes, dos quais 171 milhões vivem no país. Com tanta gente, é natural que a língua adquira diferentes nuances. Podemos, então, dizer que existem dialetos no Brasil? O pesquisador Ataliba de Castilho esclarece. “Depende do que entendermos por dialeto. Se assim designarmos as variedades geográficas que não dificultam a compreensão, temos dialetos. Se por dialeto se entende a variação geográfica de uma língua de difícil compreensão para falantes de outras regiões, então não temos dialetos do Português no Brasil. Nota-se atualmente a tendên-
cia a usar o termo para qualquer variação geográfica”, disse. O professor Márcio Thamos concorda com a explicação do pesquisador, mas admite que o uso do termo “dialeto” causa certo estranhamento. “Nos entendemos muito bem em qualquer parte do país, apesar das marcantes diferenças regionais. Não é o que acontece, por exemplo, com relação à Itália, onde as variações da língua podem ser tão grandes que ninguém estranha quando se diz que se trata de dialetos”, ponderou. Consideradas como dialetos ou não, o fato é que o português brasileiro apresenta, além das variações regionais, diferenças socioculturais. Além do falar caipira, nordestino ou gaúcho, temos o português culto e o
popular. Este chegou primeiro, já que os portugueses que vieram para o país eram na grande maioria representantes das camadas populares de Portugal. Somente com a urbanização, o português culto foi se firmando, também como forma de distinção de classes sociais: os alfabetizados e os analfabetos. Mas entre o português culto e o popular, qual deles é mais correto? Quem respondeu a forma culta enganou-se. Segundo o estudo do pesquisador Ataliba, no Brasil, ao contrário de outros lugares do mundo, a forma popular é menos valorizada e seus falantes são acusados de “falarem errado”, o que é contestado pelo pesquisador. “Quem pratica o português popular não fala errado, apenas opera com a variedade correspondente ao seu nível sociocultural”, diz no estudo.
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Cultura Fotos: Luciano Bogado
Museu da Língua Portuguesa – Mais de 1,7 milhões de visitantes em três anos
Conhecer a origem e desenvolvimento do português brasileiro fica mais fácil na completíssima Linha do Tempo
Museu da Língua Portuguesa Pioneirismo na preservação do patrimônio imaterial Em 2007, com apenas um ano de funcionamento, já foi eleito o “mais querido do Brasil” pela revista Veja. Um título merecido, já que só naquele primeiro ano recebeu quase 900 mil visitantes, mais do que o dobro do que tradicionalíssimo Masp (Museu de Arte de São Paulo). O Museu da Língua Portuguesa completou três anos de vida este ano, contabilizando mais de 1,7 milhão de visitantes. Localizado no centenário prédio da Estação da Luz, no Centro de São Paulo, tem aproximadamente 4 mil metros quadrados abertos para a visitação, nos quais é possível conhecer a história, a importância e as variações da língua Portuguesa, considerada como grande elo da identidade cultural do povo brasileiro.
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No mundo inteiro, só existe um outro similar: na África do Sul, o museu da língua Africâner. “A ideia do museu surgiu em 2001, quando a CPTM comunicou ao Governo do Estado sua disposição de transferir seus escritórios do edifício da Estação da Luz. Na ocasião, o governo decidiu implantar no prédio um equipamento cultural, pois fazia parte de uma política iniciada em 1998 de recuperação da região central da cidade. De início não se falava em museu, mas sim em um equipamento cultural dedicado ao nosso idioma. Em 2002, foi firmado um convênio com a Fundação Roberto Marinho para a conceitualização deste novo espaço, captação de recursos e implantação. Entre 2002 e março de 2006, uma equipe de mais de 40 profissionais, entre museólogos, arqui-
tetos, professores, sociólogos e artistas, trabalharam na criação do novo espaço, que ganhou o nome de Museu da Língua Portuguesa alguns meses antes de sua inauguração (até então o nome era Estação Luz da Nossa Língua)”, conta o diretor do Museu, Antonio Carlos Sartini. Para superar o desafio de trabalhar com o conteúdo imaterial que é o idioma, o museu teve que investir em tecnologia. “Foi a solução para dar materialidade a este rico e variado acervo. Muitos recursos de áudio e vídeo são usados nas exposições permanentes, o que o torna um espaço muito moderno e interativo. E novas tecnologias foram desenvolvidas especialmente para o museu, caso do Beco das Palavras, um divertido e educativo jogo etimológico”, explicou.
Nos totens multimídia, é possível conhecer as influências de outros idiomas
Além do conteúdo permanente, há exposições temporárias, cuja pauta já está fechada até 2011. Atualmente e até 11 de outubro, está em cartaz “O Francês no Brasil em Todos os Sentidos”, que tem como tema as relações entre o idioma português e a língua francesa, bem como os pontos de contato entre as duas culturas. “É a primeira mostra binacional do museu, com curadores brasileiros e franceses, e nasceu face ao Ano da França no Brasil, comemorado em 2009”, explicou o diretor. Em setembro, será inaugurada uma mostra em homenagem à poeta Cora Coralina. Outros importantes nomes da literatura brasileira já mereceram mostras temporárias: Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Gilberto Freyre e Machado de Assis foram os principais.
Não são só os nomes de peso, porém, que fazem o sucesso do Museu da Língua Portuguesa. A boa localização e os preços acessíveis dos ingressos ajudam a democratizar a visitação. “A política adotada pela Secretaria de Estado da Cultura e pela diretoria do museu facilita muito o acesso da população: preços baixos, gratuidade para todos aos sábados, participação em inúmeros projetos de cunho social e outras ações. O público do museu é muito variado, mas todos, ou a grande maioria, têm algo em comum: falam português, são os usuários e donos da nossa língua. Assim, com este elo entre todos, as reações costumam ser de identificação imediata, reconhecimento e orgulho pelo belo idioma que usamos”, encerrou Sartini.
SERVIÇO - Museu da Língua Portuguesa Praça da Luz, s/nº, Centro - São Paulo – SP Horários Bilheteria: de terça a domingo, das 10 às 17hs Museu: de terça a domingo, das 10 às 18hs (não abre às segundas-feiras) Ingresso: R$ 6,00 (seis reais) – pagamento somente em dinheiro Estudantes com carteirinha pagam meia-entrada Isentos do pagamento de ingresso: Professores da rede pública com holerite e carteira de identidade; Crianças até 10 anos; Adultos a partir de 60 anos. Telefone: (11) 3326-0775 www.museudalinguaportuguesa.org.br
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Uma língua latina A
ntes de nos entendermos como seres no mundo, antes de nos darmos conta de cada coisa no mundo, antes de descobrirmos que, neste mesmo mundo de que fazemos parte, cada coisa tem um nome, enfim, muito antes de cada um de nós, a fim de que pudéssemos nos tornar alguém no mundo e nos pudéssemos reconhecer a nós mesmos e ter um nome que nos individualizasse neste mundo, havia a realidade da língua – da língua materna de cada um, sem a qual não saberíamos quem somos e não conheceríamos nosso próprio mundo. Pode às vezes parecer exagero dos linguistas, como se estivessem a valorizar o objeto de seu escrutínio diário, mas, se pensamos na vivência de uma criança em formação, partindo da pré-consciência das coisas que começa a descobrir no mundo em que se vai ela mesma descobrindo, temos de admitir que a língua materna é muito mais do que um simples instrumento de comunicação – ela é uma estrutura social na qual se configura e se desenvolve necessariamente a psique de todo indivíduo, isto 36
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é, sua vida mental e emocional. A partir do domínio das palavras, o mundo torna-se pouco a pouco cognoscível, e os sentidos que dele emanam se fazem cada vez mais apreensíveis através da linguagem. É, sem dúvida, visceral, intensa e profunda a relação que se estabelece entre o ser e a língua materna. Instrumento sutil e eficiente a promover a interação dos indivíduos em sociedade, é através dela, ou melhor, nela mesma, que as noções e os conceitos mais fundamentais em relação a toda a vida se cristalizam no espírito. É na língua materna que reconhecemos nossa própria identidade. No poema “A língua mãe”, Manoel de Barros nos oferece um belo testemunho desse sentimento de encontro de si mesmo, de seu próprio ser ecoando prazerosamente na intimidade de sua língua: “Não sinto o mesmo gosto nas palavras:/ oiseau e pássaro./ Embora elas tenham o mesmo sentido./ Será pelo gosto que vem de mãe? de língua mãe?/ Seria porque eu não tenha amor pela língua/ de Flaubert?/ Mas eu tenho./ (Faço este registro/ porque tenho a estupefação/ de
não sentir com a mesma riqueza as/ palavras oiseau e pássaro)/ Penso que seja porque a palavra pássaro em/ mim repercute a infância/ E oiseau não repercute./ Penso que a palavra pássaro carrega até hoje/ nela o menino que ia de tarde pra/ debaixo das árvores a ouvir os pássaros./ Nas folhas daquelas árvores não tinha oiseaux/ Só tinha pássaros./ É o que me ocorre sobre língua mãe”. Pode-se dizer que a língua é o coração de uma cultura e o estilo de uma nação. Enquanto mantém seu idioma, a coletividade possui um poderoso fator de agregação. Afastando-se de sua língua, uma sociedade tende a se desarraigar, a perder sua unidade natural, e consequentemente a fragmentar-se. Foi o caso do Império Romano com o latim, de onde vem o nosso português. Segundo contavam os próprios antigos romanos, sua cidade havia sido fundada em 753 a. C. (é claro que eles não diziam “antes de Cristo”), na região centro-oeste da Itália conhecida como Lácio. Com o passar do tempo, enquanto o latim se enriquecia sob a influência de
Márcio Thamos
Réplica da escrita cursiva romana inspirada pelos tabletes de Vindolana
outras culturas mais antigas, principalmente a etrusca e a grega, Roma foi-se tornando uma importante cidade naquela região, mas até meados do IV século a. C. havia expandido pouco suas fronteiras. No século III, no entanto, já se tornara praticamente dona da parte meridional da Península Itálica e, no século II a. C., após vencer a guerra contra Cartago, derrotando enfim o general africano Aníbal, em 202, a cidade latina criou as condições para dominar todas as terras em torno do Mar Mediterrâneo. Conforme alargavam seu Império, os romanos levavam suas instituições sociais, seus valores e costumes para os novos territórios e impunham o latim como língua oficial entre os povos conquistados, que assim iam pouco a pouco assimilando a cultura dos latinos e se romanizando. Deve-se dar aqui uma breve explicação a respeito da distinção que se costuma fazer entre “latim clássico” e “latim vulgar”. Com tranquilidade pode-se entender que o latim clássico é a língua literária, altamente estilizada e lapidada pelos prosadores e poetas sob a influência da cultura grega, que chegou até nós por meio de inúmeras obras cujos registros escritos tiveram a felicidade de superar a ação devoradora dos séculos. Já o chamado latim vulgar (denominação tradicional um tanto imprópria por seu caráter depreciativo) não é senão a língua popular, coloquial e corrente, que abrangia as incontáveis variações da fala cotidiana, e cujo registro é naturalmente escasso.
Penetrando as mais distantes localidades do Império, o latim falado, vale dizer, a língua materna dos antigos romanos, ia tomando os matizes regionais que convinham às populações anexadas, de acordo com o substrato linguístico e cultural que esses povos guardavam como herança de suas tradições mais particulares. Com o passar do tempo, a relativa unidade linguística do Império começa a dissolver-se; e, a partir do século III de nossa era, a cultura geral transforma-se rapidamente. O cristianismo torna-se dominante em relação às religiões politeístas, e um progressivo enfraquecimento político de Roma leva à descentralização do poder do Estado. No IV século, o vasto domínio é divido entre Império Oriental e Ocidental, e já no século V, o Império Romano do Ocidente, cuja capital permanecia sendo Roma, acaba por ruir inteiramente sob o peso de sucessivas invasões de povos diversos. Todos esses fatos, como se pode bem compreender, contribuíram decisivamente para o aprofundamento da dialetação do latim. E então, às portas da Idade Média, inicia-se o período do chamado romanço, a língua coloquial intermediária entre o latim dos antigos romanos e as línguas neolatinas ou românicas, isto é, derivadas do latim, que se tornariam os idiomas maternos das futuras nações europeias, como o francês, o espanhol, o romeno, o italiano e o português. Da Península Ibérica, no tempo das Grandes Navegações, o português foi levado para as diversas regiões conquistadas pelos lusitanos em todo o globo e chegou ao Brasil, com o início da colonização, já
no século XVI. Aqui, assim como os romanos faziam em suas antigas colônias, os portugueses impuseram sua língua e seus costumes. As populações indígenas, desde sempre, foram sendo aculturadas; em seguida, grandes levas de escravos vieram da África, e a língua portuguesa aos poucos foi-se aclimatando aos falares tropicais. Mal se pode avaliar a importância de um país tão grande como o nosso ter um único idioma, sem maiores variações dialetais. A notável coesão nacional de nossa língua materna em seus falares regionais é, sem dúvida, um dos principais fatores que nos permitem perceber quanto o Brasil todo é sempre Brasil mesmo, quero dizer, quanto a identidade histórica, sincrética e singular, desse país se entrelaçou de norte a sul para dar no que deu em cada canto. Por trás de toda a riqueza das diversidades regionais, se entrevê um substrato cultural unificador que faz a gente se sentir em casa, muito à vontade, entre gente de aspecto e hábitos às vezes bem diferentes. Temos aqui uma língua latina com certeza!
Doutor em Estudos Literários. Professor de Língua e Literatura Latinas junto ao Departamento de Linguística da UNESP-FCL/CAr, credenciado no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da mesma instituição. Coordenador do Grupo de Pesquisa LINCEU – Visões da Antiguidade Clássica. E-mail: marciothamos@uol.com.br
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Diversidade cultural, modelo de desenvolvimento excludente e os meios de comunicação
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osso país, no processo de sua formação cultural, teve matrizes culturais diversas,desde a gama diferenciada de nações autóctones existentes em nosso território, passando pelos diferentes matizes de povos ibéricos até a enorme diversidade étnica dos grupos africanos escravizados que para cá foram trazidos, pela violência, no período do tráfego negreiro. Contudo,isso não se reflete no modelo de desenvolvimento erigido pelas elites hegemônicas, que optaram pela não inclusão de milhões de brasileiros,estabelecendo um eixo norteador favorecendo a matriz branca/cristã/européia, vista como “modelo” universal de humanidade. No aspecto legal, tanto no período da Colônia, Império, como na República, a postura dessa elite foi ativa e permissiva, permitindo a discriminação e o racismo, que até hoje atingem os descendentes de africanos e indígenas. Os indicadores de exclusão registrados por inúmeras pesquisas demonstram a desigualdade econômica e de acesso aos direitos por esses segmentos sociais,que vivem há séculos numa condição de “cidadania mutilada”(na afirmação de Milton Santos).
A Constituição de 1988 busca efetivar a construção de um Estado democrático de direito, com ênfase na cidadania plena e na dignidade da pessoa humana, mas a realidade social ainda permanece marcada por posturas subjetivas e objetivas de preconceito,racismo e discriminação. No que se refere aos meios de comunicação de massa, desde a implantação da Industria Cultural, nos anos 50, os mesmos atuam no reforço dos estereótipos que acentuam a pseudo “supremacia” branca. O que vemos, diariamente, na telinha? A ausência de negros e de indígenas na televisão, principalmente nas telenovelas, reforçando a tese da supremacia do homem branco/europeu,dentrodatolerânciaopressiva do “outro” considerado como inferior. Vivemos hoje num mundo embebido pela lógica midiática e,como afirma Sodré: ...a mídia funciona,a nível macro,como um gênero discursivo capaz de catalisar expressões políticas e institucionais sobre as relações inter-raciais ,em geral estruturada por uma tradição intelectual elitista que, de uma maneira ou de outra, legitima desigualdade racial pela cor... (1)
E se os personagens que aparecem são sempre mostrados em situação de inferioridade,apresentando a imagem do(a) negro(a) em três l’s:lúgubre,lúdico e luxurioso,no dizer de Conceição: O negro lúgubre está no noticiário na parte policial, ou como serviçal cabisbaixo,ou gaiato bêbado;o lúdico, em ocasiões eventuais,no Carnaval, em ambientes de alegoria, com instrumentos de batuques,muitas vezes fantasiados a maneira selvagem;luxurioso, ligado á libido,ao exagero sexual(2) Os estereótipos negativos reafirmam o imaginário surgido no período escravocrata, os afro descendentes vistos como integrantes da classe subalterna;a quase total invisibilidade do negro em situações positivas;a cultura e religiosidade negra sempre folclorizada; a situação social mostrada é a de favelado e/ou pobre,ignorante, drogado, criminoso. Como consequência, a auto estima dos descendentes de africanos é baixa,a ideologia do embranquecimento é introjetada em crianças e adolescentes que rejeitam suas ancestralidades milenares. Cabe a nós brasileiros(as) lutarmos por uma sociedade mais justa, igualitária, combatendo esse imaginário perverso e injusto. Notas (1) SODRE, Muniz.Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis:Vozes, 1999 (2) CONCEIÇÃO, Fernando. Mordendo um cachorro por dia in MUNANGA(org.) Estratégias e políticas de combate à discriminação racial. SP: EDUSP.1996
Professora doutora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, socióloga pela FFLCH\USP, mestre pela Universidade de Uppsala, Suécia, e Professora convidada para ministrar aulas sobre Cultura Brasileira na Universidade de Estudos Estrangeiros. Neo Mondo - Maio 2013
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Dihelson Mendonça
Geodiversidade Patrimônio A
diversidade é tratada em várias ciências, na Biologia, Ecologia, Sociologia, Antropologia, História. No caso das Ciências da Terra, falamos em Geodiversidade. Apesar de ser um conceito relativamente novo, vem sendo utilizado desde o início dos anos de 1990 e aplicado aos estudos da geoconservação, ou seja, à preservação do patrimônio geológico natural, dos monumentos geológicos, dos sítios fossilíferos, das paisagens naturais. Para alguns autores, é definida como a diversidade natural entre aspectos geológicos, do relevo e dos solos ou ainda estendendo sua aplicação aos estudos de planejamento territorial. Uma concepção mais ampla de geodiversidade apresenta as paisagens naturais como variedades de ambientes e proces-
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sos geológicos, que estariam relacionadas à seu povo e sua cultura (Stanley, 2001), estabelecendo uma relação direta entre a diversidade natural dos terrenos (compreendida como uma combinação de rochas, minerais, solos e relevo) e a sociedade. Menegat (2009) afirma que a paisagem não está fora do ser humano, que ela interfere na história humana e que estamos condicionados pela paisagem em que vivemos. A habilidade humana de ler e interpretar a paisagem, a cognição, fez com que o cérebro humano se desenvolvesse na e com a paisagem. O autor afirma ainda que a diversidade da cultura humana responde a uma diversidade de ecossistemas, que, por sua vez, responde à diversidade de geossistemas. Cada lugar pode ser lido em termos de elementos geológicos, geomorfológicos,
estruturantes da paisagem, de uma parte da superfície da crosta terrestre. O Serviço Geológico do Brasil CPRM (2006) definiu geodiversidade como o estudo da natureza abiótica (meio físico) constituída por uma variedade de ambientes, composições, fenômenos e processos geológicos que dão origem às paisagens, rochas, minerais, águas, fósseis, solos, clima e outros depósitos superficiais que propiciam o desenvolvimento da vida na Terra, tendo como valores intrínsecos a cultura, o estético, o econômico, o científico, o educativo e o turístico. No Brasil, os termos geodiversidade, geoconservação e geoturismo vêm sendo cada vez mais utilizados pelos geólogos e profissionais de outras áreas, como História, Turismo, Arquitetura, com a finalidade de conservação do patrimônio geológi-
Denise de La Corte Bacci
e Geológico Geoparque Araripe
co natural e desenvolvimento das regiões detentoras dessas paisagens. Nesse sentido, cresce o interesse por uma nova modalidade de gestão das áreas naturais, os geoparques. Os geoparques envolvem áreas geográficas com limites bem definidos, onde sítios do patrimônio geológico constituem parte de um conceito holístico de proteção, educação e desenvolvimento sustentável. Essas áreas envolvem diversos geossítios ou locais de interesse do patrimônio geológico-paleontológico de especial importância científica, raridade ou beleza, cuja importância é realçada não unicamente por razões geológicas, mas também em virtude de conterem aspectos adicionais de valor arqueológico, ecológico, histórico ou cultural (UNESCO, 2004). É uma iniciativa que visa a proteger o patrimônio geológi-
co e promovê-lo ao público em geral; apoiar a gestão racional das áreas protegidas com patrimônio geológico significativo; apoiar o desenvolvimento econômico e cultural das comunidades locais por meio da valorização do seu patrimônio e identidade única e do desenvolvimento do turismo geológico; e fornecer uma plataforma de cooperação entre Geoparques Nacionais, reunindo agências governamentais, organizações não-governamentais, cientistas e profissionais de diferentes países do mundo em uma parceria única que opera com objetivos comuns e de acordo com regulamentos da UNESCO. O Geoparque Araripe é o único no Brasil e foi criado por iniciativa do Governo de Estado do Ceará, em 2006, tendo a frente do processo a Universidade Regional do Cariri (URCA). Sua criação visa proteger e preser-
var legalmente os principais sítios geológicos (“geotopes” ou geossítios estratigráficos), afim de que recebam atividades científicas qualificadas, selecionados entre os demais pela representatividade estratigráfica, divulgação científica, para a população local e visitantes, sobre os conceitos de geociências e de ecoturismo. Sua concepção levou em consideração a Floresta Nacional do Araripe e aspectos culturais e históricos locais, no sentido de validar formas de apropriação dos recursos naturais da região com sólida alternativa de desenvolvimento econômico local sustentado, com incremento do turismo regional. Foi colocado ainda, como objetivo, o controle da extração e comercialização ilegal do patrimônio fossilífero. Com as diversas propostas de criação de geoparques no Brasil (pelo menos quatro em andamento), é preciso ampliar a divulgação e o debate, com vistas às implicações e potencialidades que os geoparques agregam, considerando-se os três pilares de sustentação dessa estratégia: conservação, educação e geoturismo. Essa é uma das maneiras que, certamente, contribuirá muito para a geoconservação em nosso país e para o desenvolvimento de muitos locais rumo à sustentabilidade. Para mais informação consulte: TEIXEIRA, W. FAIRCHILD, T. R., TOLEDO, M.C.M, TAIOLI, F. Decifrando a Terra. 2ª. Edição. Companhia Editora Nacional. São Paulo. 2009.
Denise de La Corte Bacci Graduada em Geologia pela UNESP, Campus de Rio Claro, mestrado em Geociências e Meio Ambiente pela UNESP e doutorado em Geociências e Meio Ambiente pela UNESP. Estágios na Università di Milano e University of Missouri_Rolla. Pós-doutorado em Engenharia Mineral pela POLI-USP. Atualmente é docente do Instituto de Geociências da USP.
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Educação
A criança
ea
TV
Pesquisas que enfocam esta relação do ponto de vista da criança fazem revelações surpreendentes Da Redação
O
s desenhos animados violentos são realmente prejudiciais à formação da infância? Qual a relação da criança com a programação televisiva? O que os produtos midiáticos representam para as crianças, seus mitos, símbolos e heróis? Essas questões tão atuais são a matéria-prima do trabalho do Laboratório de Pesquisa sobre Infância, Imaginário e Comunicação (Lapic), ligado ao o Departamento de Comunicações e Artes da Escola de Comunicações e Artes da USP, criado pela professora Elza Dias Pacheco, em 1994. Hoje aposentada, a livre docente em Psicologia da Comunicação foi pioneira ao tratar desta relação a partir da análise de representação que a criança constrói sobre o que vê na televisão. Após o doutorado na Espanha, a professora retornou ao Brasil e deu início à organização do núcleo de pesquisa para aprofundar essa linha de análise. Seus orientandos começaram a pesquisar aspectos mais particulares da representação infantil sobre os produtos midiáticos. Os trabalhos mais importantes e atuais, embora realizados no fim da década de 1990, são duas pesquisas integradas, financiadas por órgãos públicos, como CNPq e Fapesp, o que permitiu a presença de muitos pesquisadores no grupo. Entre 1994 e 1997, traçaram um grande mapa conceitual sobre a relação das crianças com a TV, “Televisão, Criança e Imaginário: contribuições para a integração Escola - Universidade e Sociedade”. E, de janeiro de 1998 a dezembro de 1999, “Desenho Animado na TV: mitos, símbolos e metáforas”. O professor Claudemir Viana fez parte dessas pesquisas desde o início, e hoje é um dos responsáveis pelo Laboratório (http://www.eca.usp.br/nucleos/lapic). Historiador pela USP, atuou 15 anos como professor do ensino fundamental e médio. Com mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação, Claudemir tem dez anos de experiência na gestão de ensino superior e há cinco trabalha no portal educativo Educarede: é gestor da comunidade virtual Minha Terra, com 8 mil participantes, alunos e professores de todo o país. Ele conta que a primeira pesquisa foi reveladora. “Para traçar o mapa conceitual das relações criança/TV, partimos para entrevistar quase 800 crianças em idade escolar, de 7 a 11
anos, em escolas públicas das cinco regiões da cidade de São Paulo, e aplicamos questionários perguntando o que assistiam, como, em que horários, e do que mais gostavam”. É importante lembrar que, naquela época, ainda não havia TV a cabo disseminada e a internet ainda era de difícil acesso à população. O trabalho do grupo concluiu que a criança assiste a toda a programação, não apenas a infantil, não por opção dela, mas pelo contexto familiar, pois pai e mãe ficam com o controle remoto. A pesquisa foi realizada com famílias das classes C e D, quando o televisor era apenas um e ficava na sala, situação que hoje mudou bastante com a queda dos preços dos aparelhos e a internet. “A resposta quase unânime à pergunta sobre o que a criança gosta de assistir foi desenho. Assim, percebe-se que a cultura televisa que se constrói na criança não vem só do desejo dela, mas de todo um consumo da família. Ela é educada nesse convívio familiar, com outras preferências, não só desenho, mas novela, jornal, filme, esporte, etc.”, afirma o professor. Ao entrar em contato com essa programação, a criança acaba conhecendo e apreciando alguns aspectos desses outros gêneros e aprendendo com seus conteúdos. A preferência, entretanto, é disparada o desenho animado, depois os programas de auditório, como os de Xuxa, Angélica, Sergio Malandro, Eliana, que na época tinham grande audiência. Mas o que atrai as crianças nessa programação? Segundo Claudemir, “o senso comum sempre afirmou que era o apresentador/ a que causaria grande mal às crianças, porque antecipavam sua sexualidade.” Pois os pesquisadores descobriram que não. “A criança gostava por causa das brincadeiras. Ela vê aquilo que é de seu interesse e não o que nós adultos vemos. Reside aí o diferencial desta pesquisa, que procurou entender a relação criança e mídia a partir da leitura dela, do seu interesse”, acentua. Outro erro muito comum nas análises acadêmicas é focar a criança e a mídia. “Mas ela não está isolada do mundo”, observa Claudemir. “Mesmo quando está sozinha frente à TV, não é um papel em branco. Ela tem seu histórico de vida, emoções e interesses naquele momento, uma cultura já acumulada, por mais pequena que seja. Estas são variáveis que interferem na capacidade desta criança ter seus interesses pelo que assiste”.
Por isso, a análise foi tão complexa, exigiu tantos anos e uma equipe interdisciplinar de 15 pessoas de vários níveis, estudantes de varias áreas, mestrandos e doutorandos em antropologia, história, psicologia, etc. A preferência dos pequenos telespectadores, em segundo lugar, ficou nos programas de auditório, depois em programas infantis sem auditório, apenas com o apresentador chamando desenhos, como o X Tudo da TV Cultura. Em seguida, uma extensa lista, de filmes a esportes. O papel do desenho animado Concluída a pesquisa, o Lapic partiu para o estudo do papel do desenho animado no desenvolvimento global da criança: “Desenho Animado na TV: mitos, símbolos e metáforas”. Os projetos contaram com a participação de outros docentes da USP e de outras instituições, além dos alunos de graduação, pós-graduação e doutorado. Claudemir conta que, desta vez, foram entrevistadas outras 300 crianças. E, como a intenção seria atingir o inconsciente da criança através de sua fala, não poderia ser feita uma entrevista formal, com questionário, como a anterior. O grupo foi para os parques públicos. “Criamos uma intervenção inusitada. O grupo de pesquisadores entrava vestido de palhaços, cantando musica fácil de repetir, com bumbos, cornetas, davam a volta no parque e as crianças iam chegando. Quando eram muitas, dois pesquisadores, entre os quais um de teatro, paravam e os personagens começavam a conversar com as crianças, até que chegavam ao assunto desenho. Um pesquisador perguntava sobre determinado desenho do qual eles falavam. Que desenho é esse? Quem assiste desenho? Aí a equipe toda, com gravadores e filmadora, conversava com pequenos grupos de crianças, fazendo as perguntas”. Sempre com crianças entre de 7 a 11 anos, colheram um rico material. Foram listados 179 desenhos, mas não havia recursos para analisar todos, e ficaram com os cinco mais votados, cruzando as falas das crianças com o conteúdo dos desenhos. Pica-pau, Pernalonga, Pateta em família, Máskara (desenho americano da década de 80) e o Yuyu Hakushô -- muito famoso na época, era ao segundo desenho japonês, logo depois dos Cavaleiros do Zodíaco, na extinta TV Manchete. O desenho provocava muita polêmica, porque era muito violento.
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Educação
Pica-pau: esperteza, malandragem, rapidez agradam até adultos
Pernalonga: estrutura semelhante ao do Pica-pau
Segundo Claudemir, a equipe se surpreendeu ao ver a facilidade com que as crianças descreviam esses desenhos e os personagens com nomes japoneses. “Gravamos vários episódios para conhecer os desenhos. Enquanto o pessoal da pesquisa sistematizava as falas das crianças conforme idade, sexo e desenho, outro grupo analisava o conteúdo de cada desenho. Num terceiro momento, fazíamos a relação entre a análise do conteúdo e o que a criança dizia, para localizar na leitura dela que tipos de mitos, símbolo e metáforas estavam presentes”. Apesar de realizadas há mais de dez anos, as pesquisas continuam atuais na sua essência. O desenho traz elementos 44
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fundamentais ao desenvolvimento global da criança e se dá no consciente e no inconsciente. A equipe recorreu a Carl Gustav Jung, que trabalhou muito com símbolos. Eles notaram que todos os desenhos têm o mito do herói. E, principalmente, que essa estrutura narrativa já estava presente mundo infantil, por meio dos contos de fadas, antes de toda a tecnologia da cultura midiática. Claudemir afirma que “o mito do herói tem papel importante no desenvolvimento do ser humano, ou seja, criar na pessoa, através das histórias, condições para o desenvolvimento de sua auto-estima e autoconfiança”. A criança projeta-se inconscientemente no personagem do herói. E não percebe que está compensando uma situação de fragilidade que ela vive na realidade. Por ser uma criança num mundo de adultos, sofre as consequências dos perigos reais do mundo e de seu imaginário: um bicho pode me morder, o lobo mau, o lobisomem podem me raptar. Até as frases dos pais são ameaçadoras: “Cuidado menino, não põe a mão aí que vai te queimar; se você não fizer isso, o bicho papão vai te pegar. A criança vive num contexto de ameaça e perigo. O herói, ao contrário dela, tem superpoderes e os usa para enfrentar perigos e vencê-los, ou para salvar a humanidade em perigo. Assim acontece uma catarse, afirma Claudemir, e a criança se realiza por meio de seu personagem. “Na consciência, vira uma referência para ela construir a capacidade de enfrentar desafios, que será fundamental na adolescência e no mundo adulto”. O mito do herói, presente em todos os desenhos animados, tem o poder de transformar as coisas. Assim como no famoso jogo do faz de conta, no qual a criança exerce o poder individual que não consegue ter no mundo real. “Há os heróis individuais, como o Super Homem, todos de origem norte-americana, de cultura individualista, mas também aparecem de outra forma, como o desenho japonês, um povo que tem cultura mais coletiva, no qual há um grupo de adolescentes heróis, cada um com poder diferente”. No desenho do Máskara, um jovem repórter tímido, frágil, vive reprimido pelo chefe autoritário. Na pensão onde mora, a dona é
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rabugenta e briga com ele. O rapaz tem medo, mas abre o guarda-roupa e coloca a máscara que achou e tem poderes sobrenaturais. Então, ele se transforma, torna-se alguém corajoso, irônico, sarcástico, enfrenta o chefe e usa poderes especiais para salvar pessoas de situações de perigo. E não só o Máskara se transforma, mas também seu cachorrinho, que era bobão, triste, covarde, vira outro. O mito do herói está representado explicitamente no Pica Pau. E explica o professor Claudemir Viana: “ Para nós, adultos, ele é um vilão, porque é safadinho, malandro, coloca os outros personagens em situação desagradável, e no fim, leva vantagem: com o jargão “eheheheheeh”, como se dissesse, você se deu mal... Mas, para a criança, ele é herói porque ela se projeta nele facilmente, é pequeno e frágil.” As historinhas do Pica-pau, com 7 minutos de duração, sempre começam com o pequeno herói tranquilo, mas chega alguém e o ameaça: ou um caçador o persegue, ou um animal mais forte, como o leão marinho Leôncio, ou alguém quer derrubar a árvore onde ele mora para fazer uma estrada, etc. O Pica-pau usa esperteza, malandragem, rapidez para inverter essa relação e consegue sempre, de forma que, quem o ameaça, se dê mal. Novamente há uma catarse, a criança se projetou num ser tão frágil quanto ela e supera, no contexto, as ameaças, como gostaria de ser capaz de fazer com as ameaças do seu cotidiano. Não à toa, comenta Claudemir, as gerações passam, há tantos novos desenhos, e o Pica-pau continua. “Recentemente, uma emissora de TV o colocou em horário nobre e aos domingos pela manhã, com sucesso. É a maior audiência do canal no horário. Mesmo os adultos gostam de ver, quem não adora o Pica-pau?” Outro desenho analisado, o do Pernalonga, tem estrutura semelhante. “Pateta talvez tenha interessado porque trazia referências de diferentes modelos de família, além da sua, por ser bobão, vivia sob as ordens da esposa cujo rosto não aparecia, dando ordens e broncas. O filhinho do Pateta é inteligente e esperto e salva seu pai das trapalhadas. O vizinho Bafo, um grande gato, é machista, mandão, estúpido, e, o filho, muito inteligente e educado, também salva o pai das trapalhadas”.
Pesquisas continuam atuais na sua essência; criança se realiza por meio de seu personagem
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A pesquisa concluiu que a criança tinha dois modelos de relação entre esposos e se projetava facilmente nos filhos que, ao contrário do que o espectador mirim sentia na sua família, eram mais inteligentes e espertos e salvavam os pais. Os pesquisadores ficaram muito surpresos ao assistirem pela primeira vez o desenho japonês, no qual um grupo de heróis luta contra outro grupo de jovens vilãos que querem destruir a Terra. “Ficamos surpresos com a violência do desenho, muito realista. Havia embates, luta marcial, ênfase em golpes, aparecia sangue, etc. O senso comum dizia que o desenho trazia consequências negativas para a criança.” Mas, surpreendentemente, não foi isso o que constataram. “As crianças achavam que era uma violência justificada, usada para salvar a humanidade. E, diz Claudemir,” é bem este o contexto da luta marcial e da violência na cultura oriental, que sempre luta como autodefesa”. Então a criança que assiste desenho violento não vai se tornar violenta? “Esta concepção é resultado da metodologia errônea utilizada, que decorre da fundamentação behaviorista da psicologia, aquela que faz testes com ratinhos: ele recebe um estimulo e só tem, necessariamente, uma resposta”, afirma. De acordo com o professor, “o estudo de comunicação do século passado teve muita influência dessa teoria, criando a fundamentação da teoria funcionalista.
Entendia-se que uma mensagem é um estimulo que provoca resposta determinada, ignorando inúmeras variáveis que interferem na relação, a começar pelo próprio sujeito. Ele não será influenciado apenas por um estímulo, pois tem um histórico de vida, interesses, sensações próprias que interferem nessa relação, aspectos culturais, familiares, outros contextos sociais, como escola, bairro. São fontes de referências que o constituem e isso interfere na leitura”. Entretanto, é claro que uma criança que assiste mais de 30 horas semanais de um único gênero televisivo violento está submersa de tal maneira que isso se tornará sua referência e pode causar desvio na sua formação. Diz Claudemir: “É como o chocolate, faz bem, é gostoso, mas sem exagero. Esporte idem, se você viver em função, deixará de viver outros aspectos importantes de sua vida.” Portanto, arremata o professor, não existe uma programação ruim ou boa, mas o tipo de relação que a pessoa tem com isso, e quem é essa pessoa: “Se viver numa família desequilibrada, pode ser perigoso dar toda atenção a um produto cuja história é de novo violenta, ela pode procurar nessa história uma “solução” para o que ela vive.” E atenção: muito mais violento que a programação de TV ou o jogo digital é o que a criança sofre dos pais, uma violência não necessariamente física, mas
Como conhecer o trabalho do Lapic As pesquisas do Lapic podem ser consultadas na Biblioteca da ECA, na Cidade Universitária, e também se transformaram em eventos científicos, como simpósios e filmes. São tão importantes que, em 2007, a Fapesp patrocinou a edição do livro “O cotidiano infantil violento: marginalidade e exclusão social”, organizado pela professora Elza Dias Pacheco. Claudemir conta que o Lapic trabalhava esses temas em 98, e começou a transcrever palestras dos encontros com pessoas de várias áreas. Mas, no ano 2000, pegou fogo o segundo andar da ECA. Como o grupo ficou mais de dois anos precariamente intalado, o trabalho acabou sendo interrompido. Em 2004, conseguiram retomar, e a maioria dos membros do grupo já havia encerrado seu mestrado e dou-
torado, alguns permaneceram como voluntários. “Em 2006, mandamos a proposta para a Fapesp financiar e, como a temática teve sua importância ampliada e quase nenhuma produção cientifica, o livro foi editado.” Ele é vendido no Lapic, pessoalmente ou via site, na Edusp e na livraria Cultura por R$ 30 e serve para custear o laboratório, atualmente sem verbas para pesquisa porque a professora responsável se aposentou e os órgãos públicos não financiam professores aposentados. No grupo não há nenhum professor da USP que possa pedir financiamento, e assim as pessoas são voluntárias, atendendo interessados, mantendo o site. Outro livro “Televisão, criança, imaginário e educação”, em sexta edição, resulta da primeira pesquisa e está esgotado.
agressões verbais, brigas de casal, ausência da figura do pai. Claudemir lembra um estudo da Universidade Estadual da Bahia sobre o papel dos jogos violentos para o desenvolvimento da criança, constatando que, exceto às situações extremadas de desequilíbrio, quando a criança está jogando exerce uma catarse. O ser humano é violento como qualquer animal. A criança está aprendendo a lidar com isso e aprende de várias maneiras, como brincando de brigar. São formas da criança exercitar esse instinto e, ao fazer isso, ela tem uma resposta social que a leva a perceber seus limites de suportar e os limites de sua violência.
Pateta: salvo das trapalhadas pelo filho
Desenho japonês: luta entendida como autodefesa
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meio ambiente há muito tempo é considerado como uma extensão do direito à vida. Ao longo do tempo, a evolução da proteção ao meio ambiente tornou-se um imperativo fundamental de sobrevivência e de solidariedade. Atualmente, é obrigatório preservar para as presentes e futuras gerações. Ora, a importância é tamanha que, para o sistema jurídico e para o chamado Estado Democrático de Direito, tornaram-se imperativos categóricos. Os Tribunais brasileiros, em diversos de seus julgados em prol do meio ambiente ecologicamente equilibrado, começaram a entender que essa preocu-
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pação encontra guarida na Constituição Federal de 1988, com a referência ao bem-estar, sobrelevando a preocupação com a atribuição de responsabilidade a todos os entes da Federação e, mais que isso, à sociedade. O desenvolvimento desses preceitos deu ensejo ao Direito Ambiental como novo ramo jurídico de estudo, e a Educação Ambiental como sólida base para colocar isso em prática. De fato, o meio ambiente é um direito humano fundamental, assim como o direito à vida, apesar de não estar contido no art. 5.º da Constituição Federal, mas sempre interessado
em proteger os valores fundamentais da pessoa humana e necessário a toda população brasileira. O meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado representa um bem e interesse transindividual, garantido constitucionalmente a todos, estando acima de interesses privados. Essa previsão vem expressa no art. 225 da Constituição Federal e no art. 2.º da Lei n.º 6.938/81. Assim, o art. 225 da CF/88 erigiu o meio ambiente ecologicamente equilibrado “a bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
Terence Trennepohl
Correspondente especial de Boston – Estados Unidos
O Direito Fundamental de acesso
à Educação Ambiental
presentes e futuras gerações”, incumbindo ao Poder Público, para assegurar a efetividade desse direito. A Constituição Federal de 1988, diferentemente das demais até então promulgadas no país, fez valer uma exigência que muito preocupava os estudiosos do direito que lutavam para a inserção de normas que tratassem das questões ambientais. Inovando brilhantemente, a nossa Carta Magna trouxe um capítulo específico sobre o assunto, voltado inteiramente para o meio ambiente, definindo-o como sendo direito de todos e lhe dá a natureza de bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, incumbindo
ao poder público e à coletividade o dever de zelar e preservar para que as próximas gerações façam bom uso e usufruam livremente de um meio ambiente equilibrado. O direito à vida, assegurado como direito fundamental, inclusive enquanto princípio do Direito Ambiental, e garantido pela dignidade da pessoa humana, ganha substancial reforço quanto ao direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. São direitos que se complementam e se fortalecem, mutuamente. Dentre eles, está aquele de promover a Educação Ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente.
Assim, o § 1º, VI, da Constituição Federal, que versa a Educação Ambiental, trouxe a reboque a Lei n.º 9.795/99, que regulou a matéria, dispondo sobre a Política Nacional de Educação Ambiental. Basta colocá-la em prática.
Terence Trennepohl Sócio de Martorelli e Gouveia Advogados Senior Fellow na Universidade de Harvard Doutor e Mestre em Direito (UFPE) E-mail: tdt@martorelli.com.br Neo Mondo - Maio 2013
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Pequena, ma a força publicit
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criança sempre ocupou um lugar de destaque entre os apelos publicitários. Ao lado de filhotinhos de animais, mulheres esculturais e celebridades, o uso da imagem da criança é uma daquelas fórmulas que resistem ao passar dos anos. Criança é quase sempre sucesso de público e de crítica. Os comerciais com crianças não estão apenas entre os mais comentados pelo público geral, mas também entre os mais premiados em festivais de publicidade por todo o mundo. Quando o anunciante quer reduzir praticamente a zero o risco do seu investimento, ele aposta no poder das crianças. No intervalo publicitário da transmissão da final do futebol americano - o Super Bowl - onde 30 segundos custam facilmente alguns milhões de dólares, o apelo da imagem da criança é um dos mais presentes. Recentemente, a água mineral Evian comprovou a força da criança na publicida48
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de. Com um comercial repleto de bebês fazendo esportes radicais, a marca conquistou a simpatia instantânea de milhões de americanos. O sucesso foi tão grande que o vídeo passou a ser um dos mais vistos no Youtube. Muitos dos clássicos da publicidade brasileira são protagonizados por crianças. Quem não se lembra da campanha dos mamíferos da Parmalat? Veiculada há quase 15 anos, a campanha é ainda recordada com facilidade pelos brasileiros. Não é para menos. Na época, a empresa viu suas vendas crescerem 20% e despontou entre as três principais marcas de alimentos no Brasil. O sucesso da campanha também motivou novas idéias e promoções para a Parmalat. Em 1997, a empresa lançou a promoção “Mamíferos de Pelúcia”, responsável pela distribuição de mais de 15 milhões de bichinhos de pelúcia pelo País. Já em 2007, foi a vez da campanha “Mamíferos crescidos”, que
reuniu as mesmas crianças, agora bem mais crescidinhas. O poder da criança na publicidade é tão grande que ela pode não só vender produtos, como também eleger candidatos. Ainda nos anos 60, a campanha vitoriosa de Lyndon Johnson para a presidência dos Estados Unidos marcou a história da propaganda política com um filme estrelado por uma criança. O objetivo do filme era muito simples: alertar a todos sobre a intenção do candidato adversário de usar armas nucleares no Vietnã. No filme, vemos uma garotinha contando lentamente as pétalas de uma margarida. De repente, surge uma voz grave dando início a uma contagem regressiva para o lançamento de um míssil. Ao final, ouvimos o estrondo de uma explosão nuclear, e vemos o “cogumelo atômico” refletido nos olhos da garotinha. A criança é também uma das principais fontes de humor na propaganda.
Rafael Pimentel Lopes
s persuasiva: ária da criança Sempre com um ponto de vista muito próprio, a criança é com frequência a responsável por aquele comentário engraçado que marca o comercial. Na Alemanha, um comercial recente da Mercedes mostra um diálogo entre um garoto e o futuro padrasto num restaurante. Ao perceber que o homem é dono de uma Mercedes, o garoto diz: “O negócio é o seguinte: ou você vai me levar e buscar na escola todos os dias, ou pode esquecer namorar a minha mãe!”. Para produzir o efeito cômico desejado no comercial, a criança é normalmente representada de algumas formas bastante típicas. Uma das mais usadas é a criança precoce, aquela que é um mini-adulto, e que entende das coisas mais até do que os próprios pais. A campanha do E-trade, um dos sites mais populares para investimentos no mercado de capitais, mostra crianças acompanhando os seus investimentos
na Internet e dando dicas para adultos usando o jargão financeiro. Mostrar uma criança se comportando de modo diferente do esperado sempre chama atenção. Um comercial de sucesso do Sustagen Kids faz exatamente isso. Ao invés de mostrar uma criança esperneando no supermercado para ganhar um chocolate, a propaganda mostra a criança gritando para ganhar brócolis. Outro produto que já retratou a criança de modo curioso é o Gatorade Kids. A marca criou paródias de momentos marcantes de vários esportes, usando crianças para reproduzir cenas, como um “vôo” de Michael Jordan em direção à cesta ou o famoso soco no ar quando Pelé comemorava um gol. É claro que o uso da imagem da criança na publicidade não é necessariamente garantia de sucesso. No entanto, inúmeros exemplos comprovam seu grande potencial. Além de fortalecer a publicidade,
a criança ajuda a entender o que é a boa publicidade. Porque criança é como boa publicidade: espontânea, cheia de vida, e não precisa se esforçar para ser percebida. Desde bem pequena, a criança alcança com facilidade aquele que é o primeiro objetivo de toda peça publicitária: chamar atenção. É por isso que a publicidade recorre tanto à imagem da criança. Afinal, a publicidade precisa conseguir exatamente o que o choro de um bebê consegue: mobilizar as pessoas em poucos segundos. Publicitário da Jung von Matt, em Berlim Formado em Comunicação Social pela ESPM-SP e em Criação Publicitária pela Miami Ad School E-mail: rafael.lopes@jvm.de Neo Mondo - Maio 2013
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er docente para pessoas que escolheram a educação na sua formação, atualmente, me traz muitos questionamentos diante de uma sociedade que poucos têm a chance de se encontrarem, de apenas viverem e não só sobreviverem. Serei uma vendedora de sonhos para uma população que talvez já esteja predeterminada a continuar a ser explorada? 50
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Serei uma alienada romântica que planta sonhos e esperanças, e acredita no ser humano na sua mais pura essência? Ou serei mais uma que fortalece e contribui para a lógica histórica de acentuadas e perversas desigualdades sociais? Ou então mais uma peça do sistema que se cala e em suaves e dolorosas prestações entrega um diploma? Estas dúvidas intensificaram-se quando recebi o email de um aluno. Na verdade,
a mensagem começou com: “desculpe o desabafo, mas me vejo num caminho que não sei se ao certo se vale a pena percorrê-lo”, e seu desabafo trouxe vários protestos sobre a formação que o aluno tem na universidade. Indagações que venho fazendo sobre o meu real papel no contexto escolar. Aqui tomarei emprestada a idéia de Aldo Fortunati de que a escola de Educação infantil é um ambiente, um contexto no qual adultos
Luciana Stocco de Mergulhão
e crianças compartilham a vida cotidiana, criando relações, novas experiências e gerando novas compreensões. Percebo claramente que a experiência que vive e adquire na escola de educação infantil foi e é fundamental para o meu fazer pedagógico no ensino superior. Para alguns colegas acadêmicos isto pode parecer inconcebível, pois se trata de um ensino de adultos e não de crianças.
E, como resposta, tenho nossos adultos que nada mais são do que sujeitos de direito, assim como nossas crianças deveriam ser, adultos com coração e mente, atores sociais que criam relações, assim como nossos pequeninos que verdadeiramente são e criam. Adultos que desejam encontrar na figura do educador alguém que apóia, orienta, encaminha e assume uma pedagogia da escuta. Um educador/ observador atento, um profissional comprometido com seu papel, que divide as responsabilidades do processo de ensino e aprendizagem com seus alunos adultos, que também têm alma de criança desejosa e sedenta de conhecer seu entorno e significar suas experiências. Portanto, tenho muito forte a crença que a partir do momento que sei, que tenho consciência dos fatos, idéias e pensamentos, sou responsável por minhas ações. Não consigo desenvolver minha prática docente conformada e obediente aos tempos e espaços institucionais. Em uma época, aprofundei meus conhecimentos sobre a palavra e o sentido do tempo dentro dialógica escolar, o tempo Chronos (o tempo que rege nosso cotidiano, nossos compromissos e prazos) e o Kairós (o tempo da alma do espírito). Hoje, mais do que nunca, eles vem à tona, mas não mais para entender apenas a lacuna entre sujeito e instituição, compreendendo que cada um tem seu tempo. O meu tempo é agora e está muito claro e forte o sentimento de que chegou o tempo de me respeitar, de não me submeter ao que me machuca, fere e descaracteriza. Chegou o tempo de agregar pessoas que desejam mudanças, que desejam entender os discursos e transformarem-nos em práticas conscientes e felizes. Sei que muitas ações terão que ser construídas. Uma delas é resgatar a valorização profissional, NÃO quero só fazer parte desta forma de sobrevivência que alimenta o que é conveniente, necessário e eficiente para reproduzir e fortalecer apenas a uma pequena parcela da população.
E decidida, o momento é agora que será intensamente direcionado as reflexões para o papel do professor dentro de seu contexto. Não estaremos desviando nosso olhar para as questões históricas da política brasileira, que em nosso país estão entrelaçadas com as questões educacionais, pois muitas vezes acabamos não fazendo o que é essencial na nossa prática docente: Qual o meu papel diante da classe que estou? Pois o meu tempo é agora e sendo a educação um ato político. Faz parte do seu papel político assumir a responsabilidade diante do outro, e a nossa responsabilidade é dar novas possibilidades para os sujeitos saírem de suas condições de subordinações silenciosas e alienadas. Não adianta apenas apontar que o aluno chega ao Ensino Superior com sérias dificuldades em ler, interpretar e escrever, que não estão interessados, comportamentos estes produzidos pelo próprio sistema escolar. Pois, quando apenas denunciamos, estamos diante de um ciclo vicioso que apenas busca os responsáveis. Prefiro pensar e agir a partir da idéia: qual é a minha parcela nesta engrenagem? Não serão por palavras faladas ao vento, discursos que não refletem, e não são nossas ações. Não pretendo transformar o mundo, mas transformarei o meu mundo, desejo pessoas que muitas vezes estão subordinados, mas conscientes de sua atual situação e desejosos de mudanças. As novas gerações precisam ter oportunidades, acesso à informação e, sobretudo, serem insaciáveis por mudanças.
Luciana Stocco de Mergulhão Mestre em Educação, especializada em Psicopedagogia e graduada em Pedagogia. Professora universitária dos cursos de Pedagogia,Psicopedagogia e atendimento psicopedagógico. Experiência profissional de professora e coordenadora pedagógica de educação básica. Neo Mondo - Maio 2013
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