Cenas de um casal publicitรกrio
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Copyright ©2016 Raul Otuzi. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo que parcial, por qualquer meio e processo, sem a prévia autorização escrita do autor. Editor: Neto Bach Editoração: Alternativa Books Revisão: Alternativa Books Capa: Thiago Vinhático Ilustração: Paulo Fritoli Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ____________________________________________________________________________ Otuzi, Raul Cenas de um casal publicitário, ou, Qualquer outro nas galáxias / Raul Otuzi. -- São Paulo : Alternativa Books, 2016. ISBN: 978-85-68125-08-3
1. Ficção brasileira I. Título. II. Título : Ou qualquer outro nas galaxias. III. Série
16-08539 CDD – 869.3 ____________________________________________________________________________ Índice para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura brasileira
869.3
Impresso no Brasil em novembro de 2016 Nenhuma similaridade entre nomes, personagens, pessoas e/ou instituições presentes nesta publicação são intencionais. Qualquer semelhança que possa existir é mera coincidência.
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Rua Francisco Escobar, 116, Imirim Cep: 02541-010 – São Paulo – SP. Telefones: (11) 2236-2420 | 99590-7330 www.alternativabooks.com | editorial@alternativabooks.com.br
Para os meus queridos pais e alunos. Para a minha fiel leitora de todas as horas, Glauce. Para os casais e publicitรกrios, de todas as galรกxias.
Todos pensam em mudar o mundo, mas ninguÊm pensa em mudar a si mesmo. — Leon Tolstoi
Prefácio
Em 2007, me mudei para Ribeirão Preto. 21 anos na cara, uma experiência de seis meses numa agência pequena e nada a perder. Meu tempo era elástico. Encantei-me de cara, era um mergulho num mar de cerveja e eu vivia chacoalhando minha cabeça feito um tubarão num frenesi alimentar pelas pistas de dança da cidade. Como não amar? Sem demora, arrumei um estágio como redator em uma das maiores agências da Califórnia Brasileira na época. O tempo já não era tão elástico. Sabe como é, em estágio tem que fazer tudo, de cafezinho a trocar o cartucho das impressoras. E ainda arrumar tempo para criar títulos e até arriscar uns roteiros. É, amigo, as regras eram afiadas e as madrugadas longas e regadas à pizza fria harmonizada com Coca-Cola quente servida em copo de plástico. Uma coleção de momentos importunos, mas tudo bem, no final o que importava mesmo era o aprendizado. Na agência, conheci o Raul. Algo nele me causava entusiasmo. Tratava-se de um redator publicitário clássico, mas com uma juventude onipresente. Coordenava uma equipe que o consagrava. Na minha mesa, em frente a dele, criei o hábito de observá-lo para que, como num Telecurso 2000 da vida, aprendesse a distância. 9
Era bonito de ver os brainstorms acontecendo em tempo real, a equipe dando ideias, o debate em torno delas. Pouco a pouco, fomos nos aproximando e percebendo que dividíamos a mesma paixão pela poesia, algo maior que a Publicidade. Daí em diante, mantivemos a amizade, hoje muito mais no âmbito virtual, já que voltei para São Paulo e ele continua em Ribeirão Preto. A roda do tempo é implacável. Em “Cenas de um casal publicitário: ou qualquer outro nas galáxias” estão descritas imagens que, quem trabalha ou trabalhou em agência, vai rir, chorar e se emocionar. E quem não trabalhou, vai encontrar uma história de opostos que se atraem muito além do clichê. Em seu primeiro romance, Raul ri e faz rir da dificuldade em sermos nós mesmos, seja dentro ou fora de uma agência de Propaganda. Lauro e Lidiane formam um casal, à sua medida, imperfeitos um para o outro. Uma dupla criativa mesmo não trabalhando juntos e diretores de criação de sua história. O problema é que cada um a imagina de um jeito. É o pontapé inicial para uma série de desventuras que aborda de maneira burlesca a eterna “guerra” entre as duas principais cadeiras da criação de uma agência: redatores e diretores de arte. Mais que isso, as palavras de Raul também enumeram questionamentos sobre convívio, amizade, amor, sexo, desejo. E isso é feito com esmero e paciência. Apesar de ser um livro curto, os personagens são supreendentemente desenvolvidos. Ao final de cada capítulo, ele nos brinda com um raio-x do que passa na cabeça deles. É como se pudéssemos ler suas mentes. Comecei a leitura achando que encontraria um relato bem-humorado sobre a vida moderna e terminei questionando minha própria existência e se realmente estou seguindo aquilo que eu almejava quando tinha 21 anos. E fiz isso com um sorriso no canto da boca. As palavras do Raul, capítulo a capítulo, passam por uma metamorfose. Ele cria vulcânicas ambiguidades, conflitos intensos, sempre resolvidos com diálogos explosivos.
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Enquanto Lauro é mais idealista e sonha com projetos pessoais fora da publicidade, reforçando o coro de que “todo publicitário sonha em ser um ex-publicitário”, Lidiane almeja trabalhar fora e ganhar Cannes. Esses são os dois tipos mais frequentes na criação atualmente e “Cenas de um casal publicitário: ou qualquer outro nas galáxias” os coloca também no papel de casal, o que gera conflitos ainda mais homéricos. Quem é você nesta história? Descubra nas próximas páginas.
Leonardo Castelo Branco Escritor e roteirista, autor do livro Bíblia do Prazer, biografia de Oscar Maroni
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Raul Otuzi
Primeira parte
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1 O AROMA DO MOLHO de tomate caseiro – preparado com cebola roxa picada delicadamente, alho filetado, azeite extravirgem, azeitonas pretas chilenas, tomate pelado espanhol, tomate seco italiano e manjericão fresco – se instaura sem cerimônia em cada milímetro quadrado do apartamento emprestado pelo amigo e perfuma de fome e entusiasmo o ambiente. É um jantar romântico, sem data específica para tanto. E a graça, para ambos, está justamente nesse comemorar sem convenções, sem ficar reféns do calendário. Lauro é quem está cozinhando, com o máximo de esmero que é capaz e dedicado fervor. Está tomando gosto pela culinária, pegou a receita em um canal de gastronomia no YouTube. Lidiane é a sua convidada de honra. São namorados desde os tempos da faculdade. Estudaram juntos, na mesma sala. Fizeram publicidade e propaganda. Três anos depois da formatura continuam firmes, apesar dos constantes arranca-rabos, quase sempre começados por ela. Ele, 28 anos, redator publicitário. Ela, 25, diretora de arte. Mais sentimental do que o costume e para tentar dar um upgrade no relacionamento, ele quis fazer uma surpresa, dessas de provar amor eterno. Depois de muito pensar e planejar, ele decidiu tatuar o nome dela no tornozelo. Doeu como achava que não seria possível, mas entende que valeu a pena. Ele não vê a hora de ver a cara da namorada. Já fantasiou inúmeras vezes esse momento, o instante da revelação: Lauro, você é louco, mas um louco que eu amo muito! Putz, Lau, vou fazer uma tatoo com seu nome também, onde você quer: na virilha ou no meu seio esquerdo? Lauro, Lauro, Lauro. Meu lindo! Não sei o que dizer, só me beija, por favor. E ele: Beijo, Lidi. Virilha. Seio. Tudo. Que tal nos dois? Sou louco porque te amo. 15
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São quase onze da noite, o encontro amoroso está transcorrendo conforme foi pré-determinado por seus sonhos, preciso agradecer o Murilo por ter emprestado o apê, ele pensa. O CD do Coldplay está tocando pela segunda vez, o display do ar-condicionado marca 22º, a garrafa de vinho está quase no final, 3/4 já se foram, não há mais porque esperar, então ele diz algo como presta atenção, minha linda ruivinha de olhos amendoados, veja bem, o que eu sou capaz de fazer por você e isso é só o início. Sem mais falar, ele levanta a barra da calça da perna direita para mostrar o desenho que demorou quase três horas de sofrimento para ser concluído. Eu fiz por você, para você, anuncia em grande estilo, como se estivesse apresentando um novo slogan para um cliente muito importante. Ao pousar os olhos na tatuagem, ela grita: — Que droga é essa, meu? Baita fonte feia que você escolheu. Só não é pior que a comic sans. E a diagramação, então? Pobre e desproporcional. Um horror. Lauro pensa: ela deve estar brincando. Só pode estar. Lidiane pensa: ele deve estar brincando. Não pode ser uma tatuagem de verdade. Alguns minutos depois, quando percebem que tudo é muito sério, os dois sentam-se à mesa, tão falantes e à vontade um com o outro quanto um casal de meia-idade que foi acumulando desgastes e seus inevitáveis resíduos corrosivos, se ressentindo com as minúcias egoístas que nascem naturalmente nos relacionamentos de longa data. Ruminando, eles se servem do penne tricolore, a receita caprichosamente garimpada na web pelo redator, e mal apreciam o sabor do prato. Por um lado, sorte. Lauro tinha errado na mão. Havia passado do ponto, o molho estava salgado demais. Assim, um gosto alcalino-amargo insiste em estar presente em sua boca, fazendo par com a frase da namorada, que não para de ecoar em sua mente: um horror, um horror, um horror. Foi o início do fim. [Lidiane] Era para ser um jantar perfeito. Estava sendo. Apê transado, bem decorado, música boa, vinho gostoso (apesar de eu gostar mais de 16
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vodka) e uma receita de macarrão que prometia. Lauro escolheu direitinho. Eu gosto de massa e ele está dando os primeiros passos para começar a cozinhar bem, ao menos tem se esforçado. Eu valorizo isso. Mas ele foi inventar moda. Exagerou, tanto no sal, como no resto, principalmente no resto. Disse que era capaz de fazer tudo por mim. Tudo. E sem mais nem menos, me mostrou uma tatuagem na sua perna com o meu nome. Prova de amor? Mico. A arte era horrível. Pensei que fosse uma piada. Pensei que ele tivesse pintado com canetinha, é, canetinha. Algo provisório. Lavou, tá novo. Quando percebi que a coisa era séria, não resisti, fui autêntica como sempre, falei o que eu estava sentindo. Não filtrei nada. Fui dura? Fui o que sempre sou. Espontânea. É melhor ser sincera do que enganá-lo, não é não? Será que ele não tem o mínimo senso de ridículo? [Lauro] Você já passou por isso? Espero que não. Se sim, sabe bem como eu estou me sentindo. Um desgosto sem tamanho. Fazer tudo para agradar alguém e receber em troca palavras de deboche é frustrante demais. Eu pensei que a Lidiane fosse ficar feliz. Orgulhosa, pelo menos; lisonjeada, no mínimo. E que, em retribuição e por amor também (por que não?), nós fôssemos transar a noite toda, com ela gemendo e me agradecendo, me agradecendo e gemendo. Ai, Lau, que tudo! Era o esperado, não era? Que mulher não gostaria de ter o seu nome tatuado por seu namorado? Ah, Lidiane, você me surpreende. E de uma forma que às vezes dói no fundo da minha alma. Talvez eu esteja sendo exageradamente sensível. Talvez. Deve ser o vinho. Não estou acostumado. Não gosto, prefiro cerveja. Mil vezes. E Metallica. Coldplay é um porre, velho.
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2 OS PAIS DE LIDIANE queriam que a filha fosse médica. É uma profissão linda, você fica linda de branco e a sua conta bancária vai ficar sempre linda, a mãe dizia, sempre repetitiva, com ambição desmesurada. Porém, Lidiane tinha veia artística e decidiu por outros caminhos. Desde criança queria ser pintora. Golpeava o papel com cores fortes e pinceladas sutis, traços traiçoeiros que começavam insinuando uma coisa e terminavam demarcando outra. Sim, tinha talento para ser artista, mas como nascera em uma família pobre (de classe média baixa - ela corrigia, sempre altiva), no início da puberdade, resolveu estudar e ser publicitária, diretora de arte para ser exata, professava. Quando ficaram sabendo, Dona Gisele e seu Edgard tiveram o maior desgosto. Com as suas notas altas, é um desperdício, reclamaram. Calma, gente. Não sou burra. Publicidade dá dinheiro, não dá? Em São Paulo dá, apontavam todas as pesquisas que fazia nos sites especializados (ela não conhecia ninguém da área para perguntar diretamente e os figurões que conhecia pela TV não eram parâmetro, porque sempre tem uns fodões que ganham muito mesmo, em qualquer profissão, tipo o Marcello Serpa, o Washington Olivetto, o Roberto Justus, ué). Bem, se Sampa é a Meca, então eu vou para lá, depois vou para fora do Brasil, que esse país é pequenino demais para tudo o que meu coração anseia. Vou ser famosa. Respeitada. Vou ganhar muitos leões em Cannes (ela descobrira que esse era o maior e mais desejado prêmio da publicidade). Ah, se vou. Terei sucesso e reconhecimento mundial, custe o que custar. E ria, confiante. As tias aplaudiam, que menina determinada. O pai começava a sentir uma ponta de orgulho; a mãe, quando tinha paciência para prestar atenção, fazia 18
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pouco caso. Você deveria ser médica. Mé-di-ca. De preferência, geriatra, para cuidar da gente quando ficarmos velhos. Se bem que isso vai demorar, pelo menos no meu caso, sou muito jovem ainda. Com Lauro, foi bem diferente. Os pais fizeram festa, com direito a música ao vivo e cerveja Deus, quando ele disse que seria publicitário. É que quando era adolescente, Lauro só queria saber de fumar maconha. Aí já viu, para Dona Olga e seu Agenor qualquer coisa estava bom, eles só queriam que o filho fizesse faculdade. Qualquer uma. No mais, ele sempre teve o sonho de ser poeta. Ou músico. Ou os dois juntos. Ou simplesmente ser nada. Fazia versos desconexos, compunha algumas estrofes preguiçosas, enquanto sentia um tédio constante se instalar em sua alma. Sou um incompreendido, era sua frase recorrente. Rico e pressionado pelos pais para fazer algo de útil e concreto, quando completou 22 anos decidiu fazer publicidade. Não precisa saber matemática, precisa? Ah, graças a Deus! Portanto, os dois escolheram a publicidade não por vocação, mas por sobrevivência e ambição. É isso que ambos se acostumaram a dizer aos amigos, é o que eles diziam um ao outro. Só te conheci porque você não se contenta com pouco, garota. Ao contrário. Você é bem gananciosa. Quer herdar o mundo. Herdar não. Conquistar. Eu não nasci em berço de ouro, como certas pessoas, ela alfinetava e completava: E eu só te encontrei porque se você não estudasse seus pais te deserdavam. Bem capaz. Foi justamente esse pensamento comum que os aproximou na época de faculdade. No terceiro ano, se beijaram em uma festa, a primeira que foram na república do Sovaco, o cara engraçado que não tomava banho, tinha ideias marxistas e fazia filosofia na USP. Vocês vão se casar e vão ter três filhos. Os primeiros serão gêmeos, o amigo costumava dizer, brincando de adivinhação. Entretanto, ninguém dava bola, Sovaco não inspirava confiança, as suas previsões estavam na faixa dos 9,4% de acerto. Pior que os institutos de pesquisa fazendo contagem de manifestantes nas ruas.
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[Lidiane] Eu sempre quis fazer publicidade. Quer dizer, sempre é modo de falar. Quando eu era bem pequena, eu queria ser artista, que nem o Van Gogh. Sou doida por ele. As cores, as pinceladas, os girassóis. Tudo me fascina. Até seu país. A Holanda é cativante. Então eu vivia pintando, querendo ser igual. Mas logo percebi que o mundo costuma ser ingrato com os artistas, o reconhecimento financeiro é muito difícil. Como sou prática, me decidi por publicidade. Foi uma boa escolha. Gosto da profissão. Meus planos são ir para São Paulo e fazer carreira lá, aqui no interior do Estado a cabeça é muito fechada, as possibilidades são limitadas. Ribeirão Preto é uma cidade gostosa para morar, porém, é na capital onde mora o dinheiro. Meu sucesso está lá. Vou em busca dele, em breve. Muito breve. [Lauro] Eu nunca pensei em fazer publicidade. Música sempre foi a minha praia. Música e preguiça. Mas aconteceu. Até que foi bom, melhor do que eu pensava. Bem melhor. Meus pais me deram sossego, pararam de pegar no meu pé. E o melhor é que conheci a Lidiane. Logo de cara a gente sentiu uma coisa um pelo outro, mas foi só no final do curso que a gente ficou junto. Acho que o nosso primeiro beijo aconteceu na festa do pijama, ela estava calçando havaianas cor-de-rosa, os pezinhos lindos de fora. Não. Nesse dia, ela ficou com Paulinho Bronca (aquele idiota, filho de juiz!), depois com o Goiano. Ah, já sei, a primeira vez que a gente se beijou foi na república do Sovaco. Não foi? Não lembro direito, nessa época eu era muito louco, vivia chapado. Chapado, chapadão.
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3 LAURO ESTÁ EM UM BOTECO no centro da cidade acompanhado por William, amigo de infância, motoqueiro e mulherengo. Está desabafando, dizendo que a namorada é muito exigente, difícil à beça de agradar. Após um tempo calado, medindo as consequências do que queria dizer se fosse dito de fato, William concorda: — Verdade. A Lidiane é jogo duro, duríssimo. Tem vezes que não sei como você aguenta. Quando ela dispara a falar que vai ganhar Cannes, por exemplo. Chata, repetitiva, disco riscado. O redator suspira, assentindo com a cabeça. Então conta que fez uma tatoo com o nome dela e que, em vez de gostar, Lidiane criticou dizendo que a arte ficou bizarra. William ri. — Que mulher no mundo reclamaria de uma tatuagem com o nome dela? Depois de um silêncio óbvio, os dois respondem juntos: — A Lidiane! Novo silêncio. Ao longe, o alarme de um carro. — Você devia largar essa mulher, Lauro. Como percebe que o amigo não gosta do comentário, emenda dizendo que as mulheres são assim mesmo, mas que a Lidiane... bem, a Lidiane é pior, bem pior. Pronto. Não dá para negar. Não dá para ser falso. Não dá para ser falso? William era a pessoa mais falsa que Lauro conhecia. Traía a namorada sem o menor pudor. Falava mal dos amigos pelas costas. Mentia para os pais desde a adolescência, quando pegava o carro escondido e saía para beber. — Então é isso — William diz. — Mas se você gosta dela, paciência, eu respeito. 21
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Lauro toma um gole vigoroso de chope, pega um palito e alfineta uma fatia de calabresa para petiscar, porém desiste no meio do caminho. Tinha perdido a fome. William pede para Lauro mostrar a tatuagem, me deixa ver. — Olha aqui — e levanta a barra da calça. — Jesus, Lauro! Que coisa horrorosa, vou ser sincero, cara. A Lidiane tem razão. Isso aí soa como uma ofensa, não como uma homenagem. Ô coisinha feia! Um vento fresco corta a conversa. Quando cessa, William completa, rindo: — O cara que fez a tatoo pagou quanto para te usar como cobaia? Você devia pedir indenização. A fatia de calabresa, antes implacavelmente rejeitada, agora é devorada com fúria e sofreguidão. Nada como mastigar a decepção. [William] Conheço o Lauro há muito tempo. Nós estudamos juntos no primário. Era divertido, nenhum de nós gostava de estudar, então a gente vivia aprontando. Uma vez entramos no banheiro feminino e ficamos espiando as meninas lá. Quando a Roseli descobriu que a gente estava escondido, eu saí correndo. O Lauro não. Sempre meio lerdo pra pensar, ficou parado que nem um poste. A Roseli pegou ele pelos cabelos, começou a gritar e bater na cara dele. Fomos parar na diretoria. Ele disse que tinha tido uma ideia, que era para eu ficar calmo. No final do sermão, quando já seríamos liberados, ele teve a cara de pau de dizer que nós tínhamos entrado no banheiro sem querer. A gente se confundiu, diretor; ele disse. Por causa da mentira deslavada, o diretor ficou ainda mais bravo: moleques cínicos! Tomamos duas semanas de suspensão. Era época de prova, nós dois reprovamos. Pois é. Lauro e as suas ideias geniais, como essa tatuagem agora. Que bosta. [Lauro] Eu não me importo com a opinião do William. O que ele entende de tatuagem? O cara não tem o mínimo senso estético. É um ogro. Ele achou feia? Foda-se. Eu devia ter feito uma tatoo com o nome 22
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dele. Talvez eu faça, aqui no ombro esquerdo para todo mundo ver, só para fazer ele morrer de vergonha, só para ele ver o que é bom. Já pensou se eu fizesse um negócio desses? Nossa, ia ser engraçado. Acho que vou fazer. Se não doesse tanto...
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