Copyright ©2016 Luciane Costa. Todos os direitos reservados. Editor: Neto Bach Editoração: Alternativa Books Revisão: Eliéser Baco Capa: Márcio Mendes
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7/5880 _______________________________________________________ B118s Costa, Luciane. Presenças / Luciane Costa. -- São Paulo : Alternativa Books, 2016. 240 p. : 14x21 cm
ISBN: 978-85-68125-01-4
1.Literatura brasileira. 2. Ficção brasileira. I. Título. II. Título : revelações
CDD B869.3 ______________________________________________________ Índice para catálogo sistemático: 1.Contos – Literatura brasileira 2.Ficção brasileira
Impresso no Brasil em Agosto de 2016
Rua Francisco Escobar, 116, Imirim Cep: 02541-010 – São Paulo – SP. Telefones: (11) 2236-2420 / 99590-7330 editorial@alternativabooks.com.br
Dedico este livro à minha mãe Helena Maria e à minha irmã Liliane Costa que sempre me apoiaram em todas as escolhas. E a você, meu amigo, que é parte desta história.
ROTINA
Dia 25 de março 2014 Terça-Feira
Era estranho... Apenas estranho... O som da noite em nada atra-
palhava meus pensamentos... Sempre me acostumei a ficar acordada até tarde: hora em que a consciência toma conta de nossos pensamentos e não temos para onde fugir... Na cama, deitada, é impossível evitar que eles venham. Sinistros... Arrepiando minha nuca, brincando
com meus medos, chamando, procurando meus arrependimentos... Mas não! Eu não estou arrependida de nada, não tenho medo de morrer, sei o dia, sei a hora, me contaram... E daí? Tudo muda, tudo é mutável... O meu medo, o maior deles, é não o reencontrar antes que isto aconteça.
H.J.
Dia 27 de março 2014 Quinta-feira
As coisas que eu vejo nem sempre são bonitas, nem sempre agra-
dáveis. Muitas vezes parecem querer me matar antes da hora. Dá medo,
arrepia, sofro, sinto muito frio, a sensação sufocante do peso em minhas costas, o medo de estar sendo seguida o tempo todo, o tempo todo...
Entretanto, se eu tivesse escolha, não mudaria em nada as minhas opções, ainda assim escolheria esse dom. Ou seria uma maldição? H.J.
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Helena acordou assustada. Mais uma vez os pesadelos irrompiam a madrugada. Outra noite mal dormida. Isto já havia se tornado rotina, afinal de contas, desde que tudo começou era assim sempre, sempre... Arrepios, sensações estranhas, peso nas costas, braços dormentes. E o pior: ninguém acreditaria se ela contasse. Desde pequena sempre foi diferente, estranha para os outros. Não destituída do grupo, apenas mais quieta, menos risonha. Brincava, sim, adorava brincar, praticava atividades normais, como todo mundo. Mas por seu interior vagavam sentimentos e sensações que muitos não experimentam durante toda uma vida. Tirou conclusões estranhas a respeito disto. Quando a noite chegava, porém, jamais dormia com facilidade. Permanecia por horas lendo ou escrevendo. Normalmente escolhia livros para adolescentes ou até para adultos. Avançou um pouco além da sua idade na leitura, contudo, lia gibis e contos infantis também, quando queria se distanciar do que achava ser ‘a realidade da vida’. Em algumas noites, ler era melhor do que tentar dormir. Assim, acostumou-se desde criança a escrever seus sentimentos. Mantinha diários anuais e um caderninho sem data de início e de fim, para as ocasiões onde seu diário não estivesse presente. Sentia, desde muito jovem, um vazio enorme dentro de seu peito. Mesmo quando estava feliz, uma pontada estranha e insistente a lembrava de que alguma coisa estava faltando. Parecia ter um buraco aberto no centro de seu corpo que retorcia suas bordas como um alerta. Ficava inquieta. Aquilo lhe causava falta de ar. Por vezes imaginou se essa dor que a corrompia seria totalmente dela. Era como se o sofrimento de várias pessoas diferentes a invadisse sempre que encontrava uma brecha e, então, rasgava as bordas do buraco e fazia-o aumentar e aumentar e aumentar... E na medida em que ele se abria, dores mais fortes submergiam. Inúmeras noites jazia por tempo além do normal sentada e quieta. Deste modo, podia vê-lo parado em sua frente: o garoto. Um ou dois anos mais velho, provavelmente. Era difícil deduzir. Entretanto, mesmo tão perto, parecia muito, muito longe de estar no mesmo mundo, na mesma dimensão. Ele nem mesmo tinha sido o primeiro a encará-la pela noite. Mas era por quem mais ansiava ver. Já vira coisas piores antes, que a amedrontavam só de lembrar. No entanto, ele era diferente. Somente a observava, como se estivessem separados apenas por uma questão de tempo e espaço.
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Cresceu assim, sentindo-se desigual, um pouco especial ou amaldiรงoada, talvez. Escolhida para algo que nรฃo tinha ideia do que seria, mas com a certeza de que seria imensamente importante.
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HOJE
Acordou cedo. Como era difícil acordar cedo! Levantou meio sonolenta, depois de desligar o despertador pela sétima vez... Ainda bem que sempre colocava para despertar horas antes do preciso. Afinal, sabia que desligaria um tanto de vezes além do normal para qualquer outra pessoa, antes que se levantasse de verdade. Ainda meio tonta, correu para o banheiro e quase com roupa e tudo cambaleou para debaixo do chuveiro, às pressas. Era tarde. Não podia chegar atrasada no dia oficial de testes do fim do ano letivo. Odiava estudar pela manhã. Para Helena, sempre fora uma tortura acordar cedo e sair. Preferia ficar horas e horas vendo a noite se transformar em dia. Sempre funcionou melhor à noite. Não que não gostasse do dia, adorava ver o Sol nascer sempre que possível, adorava passar manhãs em parques andando de bicicleta, ou aproveitar um dia de sol na praia. Mas acordar era difícil. E dormir, mais difícil ainda. Após se vestir, agarrou seu ipod que estava sobre sua escrivaninha e correu para a cozinha pensando se comeria algo em casa ou esperaria até a hora do intervalo. Bom, era melhor pegar qualquer coisa que a mantivesse viva e saudável para aguentar a tortura da prova que estava por vir. Pegou uma maçã. Pouco óbvio que ajudasse, porém era melhor que nada. Além de escrever, uma das coisas que movia sua vida era a música, em cada lugar, em todos os momentos, acompanhada de um sentimento, havia uma canção. Não saberia viver se lhe privassem do sentido da audição. Ao sair de casa, sempre colocava os fones e deixava que a trilha sonora do dia a guiasse pelas ruas, como se seus passos estivessem sempre seguidos de uma música 10
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que revelasse que o mundo era nada mais que um filme, seguido de uma boa trilha. Fazia sol em São Paulo, em meados de novembro. Era o fim do ano letivo e o calor do verão já se pronunciava, algumas vezes até seguido por pancadas rápidas de chuva. Um bom dia. Mesmo que chovesse, ainda poderia aproveitar toda a parte da tarde, já que sairia mais cedo da escola. Helena odiava acordar cedo, mas apreciava estar na escola. Não era a aluna mais popular do recinto, mas também não passava despercebida. Estatura mediana, não muito magra, pele morena, cabelos crespos e volumosos, carregado de cachos e espalhados em camadas soltas até quase chegar à cintura. Sua bela boca parece que foi desenhada, seus olhos escuros são grandes e desconfiados. O nariz é afunilado, mas se alarga na área das narinas. Bem, é uma bela garota. O esquema de popularidade funciona de maneira diferente nas escolas mundo afora. Em São Paulo, assim como na maioria das escolas do Brasil, é mais fácil fazer amizades com os alunos de sua própria sala, já que a turma permanece unida em todas as aulas e, muitas vezes, os mesmos alunos continuam unidos até o fim do ensino médio. Deste modo, fica menos complicado lidar com o quesito ‘popularidade’. As pessoas se agrupam seja por afeição, por gostos parecidos, tipos de músicas, por serem amigas de infância, por morarem perto e, até mesmo, por se sentirem excluídas do resto do mundo. No caso de Helena, havia uma mistura de tudo. Tinha espaço para se sentir bem e tinha muito espaço para se sentir insegura e rejeitada, de acordo com suas escolhas. Era observadora, um tanto introvertida a princípio. Observava bem o ambiente que adentrava antes de fazer parte de algum grupo, mas podia interagir sem medo após um tempo de convívio. Caminhava diariamente até a escola, já que a distância era insignificante para tomar um ônibus ou metrô. Mesmo tendo acordado atrasada, apertou o passo e se arriscou a correr um pouco para chegar antes de soar o sinal e fechar os portões. Algo a estava incomodando nestes últimos dias: além do normal de sua rotina nada normal, um cansaço mental começou a brotar. Não era algo físico, não significava que ela estivesse de saco cheio de seus amigos. Não. Apenas, uma necessidade estranha de mudança. Uma sensação de que as coisas não podiam permanecer do jeito que estavam. Não Presenças
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depois do sonho, não depois daquele aviso. Os anos passavam numa velocidade relâmpago e logo a data que guardara para si desde seus oito anos de idade estaria se aproximando mais e mais. A prova começaria em minutos, ela tinha que correr se quisesse entrar na sala no horário. No caminho, ao virar o corredor à sua direita, rezando para que o professor Marcos ainda não tivesse distribuído as provas, distraiu-se enquanto procurava uma lata de lixo próxima para se livrar do que sobrou de sua maçã e, nem mesmo percebeu o quão perto estava de trombar com alguém em suas manobras arriscadas pelo corredor. E pronto! Lá se foi o restante de sua maçã voando direto para dentro da pasta semiaberta do professor de história, Marcos, que vinha a passos apressados do lado oposto do corredor. Não deu tempo nem de ficar vermelha de vergonha, mas a raiva subiu em espiral por seu corpo ao perceber o culpado por sua obra: Lucas, colega de classe e um dos garotos mais bonitos e cobiçados da escola. Ele estava se deslocando a passos largos e tão distraído quanto Helena. Os dois só se deram conta da supertrombada que estava a caminho quando já era tarde demais para evitarem a colisão. Ainda assim, ele agiu mais rápido. Tendo visto o percurso que o resto de sua maçã fazia pelo ar indo direto ao encontro da pasta de seu professor, para aterrissar exatamente no maço de provas que este retirava às pressas de sua pasta, Lucas prensou Helena contra a parede ao lado da porta e pressionou rapidamente, mas com cuidado, o dedo indicador em seus lábios. Helena percebendo o desastre iminente de um pedido de desculpas ao professor àquela altura, arregalou seus olhos, num misto de indignação, culpa e reprovação e deixou-se ficar encostada na parede, parecendo entretida com seu colega. A proximidade dos dois era constrangedora. Era possível sentirem a respiração e hálito um do outro. Apesar disso, os dois conseguiram ouvir a surpresa do professor ao entrar na sala: — Nossa! Antigamente as maçãs vinham inteiras para os professores e eram entregues em sua mesa, e não jogadas anonimamente em suas pastas — ele resmungou num misto de indignação e divertimento, mas não pareceu notar os alunos esquecidos ao lado de fora da classe. Ali, encostados na parede e tão próximos, a tensão permanecia e os deixava imóveis. — Não precisa ficar bravinha. Foi apenas uma colisão sem maiores consequências — Lucas sussurrou em seu ouvido, quebran-
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do o gelo. — Agora, é melhor esperar que ele entre, assim, vai pensar que a gente estava fazendo algo mais interessante do que jogando restos de maçã mordida em nossas provas. Se bem que poderia ser um sinal de protesto. Até esse momento, Helena mantivera-se calada, sem conseguir atribuir aos seus olhos um tamanho normal de abertura, devido a sua indignação. Entretanto, não havia olhado realmente nos olhos de seu colega, preocupada com as possíveis desculpas que inventaria pelo seu atraso na aula. Mais uma vez, deixou que a inércia comandasse seu corpo e lentamente desviou o olhar para o rosto muito próximo de seu amigo: — Ah, Lucas!... Se eu perder essa prova, eu... O garoto encostou o dedo indicador nos lábios da colega para impedi-la de fazer um escândalo, e nesse momento, para ele, tudo mudou. Seus olhos se encontraram e como se fosse a primeira vez que a olhasse, naqueles breves segundos ele teve a visão mais clara de sua curta vida até agora. Primeiramente, pensou há quantos anos eles se conheciam. Depois, em como era o relacionamento deles até então. E, em seguida, mais demoradamente, ficou analisando seu rosto e imaginando o porquê nunca havia reparado nele verdadeiramente até aquele momento. Isto bastou para que o dedo encostado nos lábios da garota à sua frente afrouxasse e seu braço escorregasse, pesado, de encontro a seu corpo. — Lucas? Lucas? — Helena sussurrou. Não havia palavras a serem ditas, mas a única certeza que tinha, era que estava ferrado na prova. — Lucas! — sibilou Helena, agora num tom acima do que queria, mas que se fazia necessário devido ao transe do garoto. — Cara, a gente vai perder a prova se você ficar como uma samambaia na minha frente! Isso bastou para que a realidade voltasse a seus olhos. Fez uma careta e a puxou para mais perto da porta enquanto sussurrava rapidamente: — Ai!... Calma Helena, a gente entra como quem não quer nada, dá para ouvir daqui que ele não distribuiu as provas ainda, e, com sorte, vamos encontrá-lo de costas escrevendo as regras idiotas de seus testes na lousa. — É, pode ser... — ela resmungou sem vontade, o seguindo. O plano tinha tudo para dar certo. O professor Marcos estava Presenças
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tão concentrado em escrever as regras gerais para a prova na lousa, que não se deu o trabalho de olhar para os alunos atrasados que entravam rapidamente na sala. Mas, apesar do esforço para não fazer barulho, os dois não conseguiram passar despercebidos. No decorrer da aula, Helena concentrou-se apenas nas questões. Não eram tantas, nem ao menos estava difícil como ela imaginava. Isto era bom, sobraria tempo para abrir o seu caderno, já que uma necessidade imensa de escrever havia percorrido seu corpo de repente. Terminou as questões mais cedo do que o horário permitido para dispensa e considerou se abrir seu caderno de anotações ali chamaria muita atenção. Melhor não arriscar, afinal, já havia esgotado boa parte de sua sorte diária após acertar uma maçã nas provas e ainda entrar atrasada sem ser notada. “Prova idiota! Ainda bem que o ano está no fim! Não aguento mais essa rotina! Por mais que eu goste de estudar, preciso de um tempo! Que saco! Que saco! Eu preciso escrever. Eu preciso, eu ...” Até este momento, ela se encontrava com a cabeça apoiada nos braços cruzados em cima de sua mesa, esperando impacientemente. Duas agonias: queria escrever e queria ouvir música. Estava tão envolvida em seus pensamentos, que não percebeu os olhares constantes de Lucas em sua direção. Enquanto, para ela, os minutos restantes de seu calvário passavam quase imperceptivelmente, para ele, o tempo havia parado. Sentado em sua carteira, quatro fileiras à esquerda de Helena, Lucas observava o nada, o vazio, preenchido totalmente por seus pensamentos, e por várias vezes se pegava encarando a garota com olhares examinadores. “Idiota! Como eu nunca percebi o quanto ela é bonita? Tantos anos estudando juntos e nunca reparei nisto? Impossível! Não é só beleza, tem algo mais, tem alguma coisa ali... Credo, Lucas! Parece até que você nunca ficou com uma garota da sala. Para de olhar seu babaca, ela vai acabar percebendo. Mas é que... Ah!!! Saco! Prova idiota! Quanto tempo falta para acabar essa aula? Caramba! Estou ferrado, estou ferrado!” No instante em que Lucas se voltava para sua prova, procurando responder o maior número de questões possíveis, Helena, ainda perdida em seus pensamentos, levantou a cabeça para olhar o relógio de parede pendurado acima da lousa. E lá estava. Parada ao lado do seu professor, a figura de uma mulher. Suja, com olhos vermelhos e bordas arroxeadas e hematomas pelo seu corpo. Seus
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cabelos castanhos embaraçados pairavam na altura de seus ombros e suas roupas eram retalhos do que outrora poderia ter sido uma saia azul na altura dos joelhos e uma blusa creme com estampa de flores, dificilmente decifrável nestas condições. Tudo aconteceu muito rápido, por um segundo elas se encararam, olhos nos olhos, o desespero da mulher à sua frente, refletido e transmitido através de um longo arrepio congelante, diretamente para seu corpo. Passaram menos de seis segundos entre olhar, reparar e gelar, contudo, em certos casos, o tempo é completamente relativo, devido à intensidade das emoções. Helena abaixou novamente a cabeça num reflexo, fechando os olhos e fazendo um barulho maior do que o que pretendia ao bater na mesa. “O que foi aquilo? Droga! Até aqui! Não, não é possível! Eu devo estar sonhando acordada. Sabia que não devia ficar até tarde sem dormir... Eu sabia... Ai!... A quem eu quero enganar? Eu sei muito bem o que eu vi. Aliás, isto nem deveria me assustar mais... só que... tem algo diferente naquele olhar... Agora eu tenho que abrir os olhos, preciso olhar de novo. Preciso...” Imersa como estava em suas suposições, não percebeu o olhar atento de seu professor que clamava por atenção. — Helena! Helena! Devagar, lutando com seus olhos, para que estes se abrissem, e com seu corpo, para que este a obedecesse, levantou um pouco a cabeça encontrando o olhar reprovador de seu professor. E percebeu claramente com sua visão periférica, os olhares curiosos do restante dos alunos. Ninguém se encontrava ao lado dele. “Ilusão, é claro”, pensou, tentado se enganar mais uma vez. — Helena, vejo que você está entediada com a espera da liberação. Tomara que suas respostas sejam tão boas que justifiquem o atraso no início da aula e este descaso comigo e com os seus colegas. Agora, se você não percebeu, já passa da metade do tempo de prova. Já pode sair e esperar no pátio, se te incomoda tanto permanecer aqui. Ah, e da próxima vez que quiser me oferecer uma maçã traga a inteira e não tente me assassinar atirando restos na minha cabeça. — Desculpe... — ela murmurou mais para si do que para que ele ouvisse, de tão envergonhada que ficou. “Droga! Ele não deixa escapar nada.” Esta parte chamou atenção especial de Lucas. Presenças
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Foi a única coisa que conseguiu murmurar enquanto corava e recolhia seu material. Podia ter passado sem esta, foi seu último pensamento durante esses segundos. Rapidamente, antes que qualquer outro pretexto a prendesse ali, saiu da sala como uma flecha e foi direto, a passos largos, procurar seu banco favorito no pátio da escola. Era a semana oficial de testes, o que significava que, logo mais, o pátio estaria forrado com os alunos que terminavam suas provas mais cedo e esperavam pela seguinte, entre uma matéria e outra. Para sua sorte, o pátio ainda encontrava-se vazio e não foi difícil se dirigir até seu lugar favorito e depositar seu material ao lado. Pegou seu ipod e sua agenda na mochila. Colocou os fones e ligou o som em um volume bem alto, o suficiente para deixar as lembranças daquela figura horrível ao lado de seu professor esquecida por alguns minutos. Abriu sua agenda e descarregou seus pensamentos: Dia 10 de novembro 2014 Segunda-feira
Droga! Isso não pode estar acontecendo! Acabou a minha paz de
novo. Estava tudo tão calmo e agora... A cada dia aumenta o número
de minhas visões! Pensei que estivesse livre por um tempo... Acho que não... As coisas estão acelerando em tempo recorde.
Tanta coisa na minha cabeça hoje... Cheguei aqui pensando mil
coisas, procurando uma mudança na minha vida. Não sei o que fa-
zer, não parece certo reclamar da minha vida, mas, parece certo que eu tente ao menos melhorar o que não está me agradando. Isso é fato!
Nossa! O que deu no Lucas? Aquele besta me paga! Me fez pagar
o mico de jogar uma maçã no professor e ainda fica como um tonto me
segurando no corredor! Que ódio! Pior ainda foi ele ficar olhando pra minha cara como se tivesse perdido alguma coisa... Bom, pensando por
esse lado, não é tão ruim também... A cena pode ter sido estranha, mas se foi vista por alguém, deve ter despertado a ira das menininhas da escola. Afinal, não que seja do meu interesse, mas o Lucas é realmente o menino mais cobiçado do recinto...
Aquela mulher... era pior do que a última que apareceu... Mas
ela sabia... Ela parecia saber...
Ainda bem que a prova foi relativamente fácil, mas mesmo as-
sim, não quero ‘bombar’ na prova do meu querido professor que deve me odiar agora...
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Não estou escrevendo nada com nada... Como pode a minha ca-
beça estar tão longe, tão avoada. Por que eu não posso ser normal como qualquer adolescente fútil preocupada em combinar o cinto com o
sapato e a bolsa? Tá certo, sem preconceitos, nem todo mundo é assim...
mas é que... eu não consigo, hoje, nem ao menos expressar o motivo de tanta angústia! Ah... Parece que o mundo está se fechando ao meu redor. O Tempo é curto e eu quero que aconteçam tantas coisas diferentes...
Esse vazio está me incomodando novamente. Estava bem por
esses dias, mas agora que tudo voltou... a urgência do preenchimento voltou também.
Dobradinha de história hoje... que bom, mais tempo livre para
divagar sobre tudo isto... volto a escrever se tiver alguma pista. H.J.
Enquanto fechava seu caderno percebeu que o pátio já não estava mais tão vazio assim, os alunos que finalizavam suas provas mais cedo estavam se acumulando em grupos e isoladamente ao longo do pátio. Alguns comentando sobre os possíveis resultados do primeiro teste do dia, outros aproveitando o tempo vago para estudar, outros, por sua vez, conversando amenidades sem se preocuparem com o restante das provas. Helena olhou ao redor, pensou em como poderia ter o pátio enchido tanto sem que ela notasse, depois mergulhou em seus pensamentos novamente. A imagem da mulher aflita e assustadora ao mesmo tempo, ao lado de seu professor, voltava nitidamente a sua cabeça. Ao contrário de assustá-la, porém, fez com que ingressasse numa viajem no tempo, lembrando a primeira vez que figuras assustadoras ou não permearam sua vida. Na verdade, não conseguia se lembrar com certeza se havia sido a primeira vez, mas sabia perfeitamente que era a que mais se lembrava. Se viu com seus oito anos novamente, sentada no seu quarto, sozinha, à noite, esperando que o sono chegasse. Quando se deitou e fechou os olhos, decidida a dar uma chance a Morfeu1, lá estava ela, loira, linda, os cabelos lisos caindo ao longo de seu corpo e repousando em sua cintura, com olhos azuis imensamente claros e grandes, revelando um olhar com um misto de angústia e resignação. 1
Da mitologia grega, conhecido como o deus dos sonhos, filho de Hipnos, deus do sono.
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Ainda deitada, sem coragem para abrir os olhos, Helena sentiu o colchão afundar um pouco ao lado de seu braço direito, parecia que a garota estava se sentando ali. Ela esperou sem se mover. E então, ouviu um grito pavoroso, alto e fino que saía diretamente de dentro de seus ouvidos. Algo estranho a envolveu como num abraço, só que mortalmente apertado. Começou a sentir dores no peito, seguidas de um arrepio que percorria todo seu corpo. Ficou imóvel. Helena não conseguia respirar, não conseguia gritar, nem chamar por socorro e, qualquer tipo de movimento estava fora de seu alcance, pois seu corpo não respondia a nenhum dos seus comandos. Sentindo que não haveria solução, apenas pensou nas palavras sem tentar reagir. “O que você quer comigo? Eu não tenho medo! Eu não tenho medo! Está me... me machucando.” A resposta veio em seu pensamento, contudo, estava claro que não era a sua própria voz. Para uma criança sempre é mais simples acreditar no sobrenatural. Helena escutou pacientemente, travando uma conversa sem som e com olhos fechados. Muito mais corajosa do que deveria ser naquela idade, ainda assim estava cautelosa e com a sensação de que aquela menina estranha que falava em sua cabeça não iria machucá-la, mas precisava escutá-la. “Helena, eles não sabem onde estou. Eu vim para te avisar. Eu vim porque senão você vai ser igual a mim. Eu não quero ninguém igual a mim. É ruim. Dói. Mas você precisa se lembrar de tudo que eu te disser.” “Eu... eu estou ouvindo.” “Quando você crescer eles virão ao seu encontro, assim como fizeram comigo. Só que eles não esperaram tanto. Meu tempo foi mais curto e agora eu posso entender. Não podia ter os deixado chegar, mas eu era tão pequena. Minha mente cresceu tanto, mas meu tamanho não se parece em nada com o que sinto...” “Quem virá? O que vão fazer comigo?” “Eu só preciso que você guarde uma coisa. A data. Eu te direi o dia e a hora e você vai me prometer não sair de casa nesse dia, e, principalmente, não entrar em nenhuma igreja.” “Eu não entendo. Quem é você? De onde...” “Escute. Não há tempo para mais explicações. Eles estão chegando. Eu não posso ficar aqui, não é seguro para você. Apenas guarde a data. Eu sei que você não irá esquecê-la.” “Mas...”
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“Desculpe. Você está confusa, eu sei. Mas não há tempo. Apenas se lembre de tudo que eu lhe disser. Apenas escute.” Helena escutou, apenas escutou sem se mover. Cada palavra sussurrada pela menina em sua cabeça causava novos arrepios em seu corpo e ela não tinha como reagir. Realmente, ela nunca mais se esqueceu do que fora dito. Qualquer criança normal pensaria se tratar de um pesadelo e deixaria passar, seguiria sua vida, esqueceria tudo na manhã seguinte, gritaria por seus pais. Não Helena. Quando a figura da garota em sua cabeça começou a sumir às pressas, o aperto em seu peito diminuiu, ela sentiu que a mobilidade de seu corpo voltava aos poucos e sua voz também parecia se recuperar da mudez repentina. No entanto, ela permaneceu ali, parada, sem gritar, sem chamar ninguém, sem duvidar de nada. Sempre soubera que não era uma criança normal. Havia planejado cada passo de sua vida desde os seis anos de idade, porém tinha a sensação contínua de que algo sairia dos padrões, de que algo maior estava reservado para ela. Não, não era o pensamento de alguém que se achava extremamente bonita, ou extremamente importante. Esse era o pensamento de quem se achava demasiado diferente para pertencer a um mundo tão normal. Por um tempo essas informações a assombraram diariamente. Depois, decidiu que a melhor coisa a fazer era guardar para ela toda informação recebida e aproveitar sua vida até que o momento dito estivesse próximo, só assim poderia decidir o que fazer. Vivia uma vida normal na maior parte do tempo. Vez ou outra se lembrava da ‘conversa’ ocorrida anos antes e um arrepio sinistro percorria seu corpo. Era inevitável, era simplesmente inevitável o arrepio. Por mais que não admitisse seu medo, uma sensação estranha sempre permeava seus pensamentos. Ao longo do tempo acostumou-se a ver ‘pessoas’ quando ninguém mais as via, mas não comentava com ninguém. A sensação de corpo preso, não poder falar e a falta de ar durante o sono ocorria frequentemente, tais quais os pesadelos constantes. Talvez por isto mantivesse a preferência pela vida noturna. Mesmo sabendo que estava sujeita a ver qualquer coisa que se escondesse além da visão de outras pessoas. E também havia o garoto... O mesmo todas as noites depois daquela primeira visita sobrenatural. Mas ele era diferente. Apenas sorria ou a encarava. Ela sorria de volta. Presenças
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Esperava por ele muitas vezes, os anos passavam e ele parecia crescer também, mas nunca deixava de aparecer. Este fato fazia com que acreditasse que este garoto era diferente. Algo existente, algo próximo. Realmente não era como as outras aparições. E com tudo isto, ainda existia o vazio. Agora estava ali, imersa em pensamentos, sem ao menos perceber que o pátio da escola lotara neste momento e faltavam apenas poucos minutos para o início da segunda prova do dia. Não saía de sua cabeça a estranha sensação de que algo maior estava por acontecer dessa vez. Neste meio tempo, Lucas a observava a distância, se perguntando o que a teria entretido tanto, já que seus olhos não pareciam enxergar as pessoas ao seu redor. Era nítido como ela estava imersa em pensamentos, ausente. E isso, não sabia o porquê, o preocupava. O sinal para a próxima aula soou e por fim Helena foi retirada de seus pensamentos para a realidade a sua volta. Levantou-se num impulso, recolhendo seu material e se colocou a caminho da sala de Inglês. Por sorte só haveria duas provas por dia, e como era uma das melhores alunas em inglês, já que frequentava também um curso em uma escola especializada em idiomas fora do horário escolar, não se preocupou em revisar a matéria. Ao final deste exame teria o resto do dia livre para fazer suas considerações. Enquanto andava foi chamada por Camila, sua melhor amiga e frequentadora da mesma série. Era uma garota sempre animada que fazia todos ao seu redor se sentirem mais positivos e conseguia sempre alegrar o ambiente onde estava. Helena, muitas vezes, se perguntava como poderiam ser tão amigas, sendo as duas tão opostas. Ela carregava consigo eternamente aquele lado sombrio, por mais que mantivesse uma conversa amigável com muitas pessoas e não tivesse problemas em fazer amizades. Apenas não tinha tanta paciência quanto sua amiga. Contudo, este era mais um daqueles fatos inexplicáveis da vida. As duas simplesmente se compreendiam mais do que com qualquer garota da escola. Parou assim que ouviu seu nome e esperou que sua amiga a alcançasse. Era visível que as notícias eram boas, um sorriso radiante, como sempre emanava da face de Camila, só que com um brilho a mais. — Helena! Helena, Heleninha! Diz que sim! — Hã... Por quê? — Porque eu sei que você não tem compromissos no sábado à noite, eu sei.
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— Tá! Que banda, onde e quem vai? —Jura mesmo que seu irmão ainda não te contou? — Contou o que? Camila você está começando a me irritar. Se meu irmão fosse tocar em algum lugar, com certeza eu saberia. Além de Camila, seu irmão, Caio, um ano mais velho, era seu melhor amigo. Os dois mantinham uma amizade sem segredos, exceto pelo fato ocorrido há tantos anos. Sempre se ajudavam em suas conquistas e torciam pelo sucesso um do outro. Também saíam muito para baladas e mantinham o mesmo círculo de amizade. Parecia até mentira. Era difícil crer que dois adolescentes que moravam na mesma casa e se conheciam desde sempre pudessem se dar tão bem. Mas em sua vida nada era mesmo convencional. — Não, bobinha, não é ele quem vai tocar. São os amigos dele. Daquela banda nova, como é mesmo o nome? Ah! ‘The Dudes’. Nome estranho, mas acho que vai pegar bem. Enfim, eles vão tocar e você sabe como eu morro pelo vocalista, o amigo do seu irmão, você sabe, né? Então, você vai comigo? Vai? — Camila disparava as palavras com seu enorme entusiasmo, deixando à Helena pouco tempo para refletir. Logo, ela deduziu que não teria como escapar do tal evento, e na verdade, nem queria. Adorava sair pra dançar, não gostava muito de perder o fim de semana em casa sem nada pra fazer. Parecia tempo desperdiçado e, desperdício em sua vida era tudo que ela temia. Por fim, após ouvir as considerações tão incisivas de sua amiga, respondeu: — Claro! Você sabe que sim! Só não entendo porque o Caio ainda não me falou nada. — Dá um desconto pra ele. Acho que nem deu tempo ainda. Mas depois você pergunta onde vai ser, como faz pra chegar e todos os detalhes, OK? OK? OK? — Tudo bem! Agora vamos entrar logo, porque eu não quero ‘pagar outro mico’ como o da aula de História. A professora de Inglês, Marta, ainda não havia chegado e então as garotas puderam continuar a conversa por mais tempo. — É mesmo, garota! O que foi aquilo? Você acertou uma maçã podre no professor ou o quê? — Não, sua besta! — Helena xingou esboçando um sorriso. — Ele estava vindo na minha direção, mas o tonto do Lucas vinha na frente e eu estava procurando uma lata de lixo e quando percebi, a maçã já havia voado, e eu estava presa na parede sem poder falar. Presenças
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Achei mesmo que o professor Marcos não tivesse percebido, mas depois saquei que não dá pra esconder nada daquele homem. — Ah, que confusão! A parte do ‘presa na parede’ eu não entendi direito. Nesse instante a professora Meredith entrou na sala com cara de limão azedo, deixando pouco espaço para que a conversa continuasse. — Credo, o que deu nessa mulher? — Camila comentou entre dentes. Ela é sempre tão sorridente... — Acho que hoje não é um bom dia para professores — Helena concluiu num suspiro. — E nem para os alunos. Não é? Camila não obteve resposta. Helena deixou-se ficar pensativa, esperando que o teste começasse, mas, internamente, concordou com a amiga, rendida, de que aquele dia estava sendo bem estranho para ela também. Além do fato de que, dia de prova nunca é um bom dia para os alunos em geral. O teste ocorreu tranquilamente. Novamente, antes do tempo limite para ser liberada, já havia terminado e estava contando os minutos para que pudesse sair por aí e fazer suas suposições. Uma necessidade muito grande de escrever percorria seu corpo. Era em seu diário que depositava qualquer segredo mais íntimo e que podia fazer suposições e considerações sobre qualquer assunto, por mais confuso que fosse. Assim que a Sra. Marta dispensou os alunos que haviam terminado o teste, recolheu rapidamente seu material e cochichou para Camila, que estava sentada ao seu lado: — Não vou poder te esperar hoje, querida, tenho que resolver umas coisas em casa. Depois a gente se fala. Um esboço de reação começava a brotar em sua amiga, só que Helena não esperou. Saiu como um raio da sala de aula e caminhou o mais rápido que pode até sua casa. Nada passou despercebido pelos olhos de Lucas.
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Luciane Costa
FORTALEZA
Ao chegar em casa, correu para seu quarto sem ao menos observar se havia alguém presente. Enfim estava em sua fortaleza preferida. Com o privilégio de apenas um irmão em uma casa com três dormitórios, Helena fazia de seu quarto o seu país de refúgio. Nele, ela podia ser quem era o tempo todo. Independentemente dos espíritos ou aparições que resolvessem visitá-la. Trancou a porta, ligou seu computador e abriu os arquivos de música. Era um dia para Dave Matthews Band2, com certeza as letras a fariam pensar. Então pegou seu diário e deixou que as palavras corressem soltas como lágrimas pelo papel. Dia 10 de novembro de 2014 Segunda-feira (tarde) Não pensava que estaria aqui , escrevendo sobre dor tão rapidamente . Estava tudo bem até ontem, mas acordei com este nó, este vazio mais uma vez. No caminho para a escola mantive os pensamentos em como preencher um pouquinho deste vazio que se prolonga . Mas nem sinal de resposta . Na verdade , a falta de respostas tem se tornado constante ultimamente . Eu esperava ficar bem logo, aproveitar o dia que está bonito lá fora ... mas aí ... a angústia inexplicável ... Que droga de hormônios adolescentes! Será que só eu percebo que essa constante variação de humor pode enlouquecer qualquer um??? 2
Banda norte-americana criada em 1991 por Dave Matthews (cantor, compositor
e guitarrista).
Presenças
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Estou me sentindo estranha . A sensação de que algo está chegando, cada vez aumenta mais. E hoje , aquela visão. A angústia no olhar da mulher me trouxe um excesso de lembranças que me atormentam diariamente . Parece que estou carente também... Mas a necessidade não é de qualquer um que me satisfaça momentaneamente . Essa sensação é mais forte . É a sensação do inesperado. Carência do que está por vir. E eu nem ao menos sei do que se trata. O dia se aproxima a cada segundo. Há um tempo que não pensava nesta situação como sendo iminente . Mas agora... Agora que está mais perto a cada ano, de repente me pego pensando no porquê daquele aviso. Será mesmo que algo tão perigoso está no meu caminho? Ou será algo grande , inimaginável até para mim, que tenho a imaginação tão fértil? Sei lá... H.J.
Helena parou de escrever. Sentada em sua cama, apenas deixou que sua mão segurasse a caneta. Seu diário pendia para o lado de sua perna cruzada na cama, que estava posicionada diretamente em frente à janela, de modo que a visão do céu fosse possível ao se deitar. O sopro singelo de uma brisa entrou pela janela aberta fazendo seus cachos soltos balançarem para trás. Ela apenas fechou os olhos e deixou que a sensação tomasse conta de seus sentidos. De repente, lágrimas começaram a percorrer seus olhos, sem motivos, apenas rolavam e caíam em seu colo. Não era normal, para ela, chorar assim, do nada. Ou talvez, tivesse motivos aos montes. No entanto, a sensação a confortava de uma maneira estranha. Aproveitou então aquele momento para descarregar qualquer agonia que aquele dia frustrante havia deixado em seu interior. Tudo veio à tona com aquele gesto. Pensou em como estava se sentindo incompleta por esses dias. Pensou no porquê de uma dor tão forte começar a invadir o seu espaço, sempre tão cuidadosamente preparado para não cometer erros. Pensou se estava realmente feliz com o curso de sua vida e ao mesmo tempo se achou ingrata por tudo que tinha para agradecer. Imaginou que tudo fosse reação de hormônios adolescentes e esboçou um leve
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Luciane Costa
sorriso, mesmo continuando a chorar. Muitas imagens se passaram por sua cabeça: escola, amigos, baladas, uma garrafa de vinho, músicas, músicas que tocavam diretamente em sua alma. Parou para prestar atenção na letra da música que tocava no momento. A canção falava sobre a luta de uma garota para preencher o vazio dentro dela e como tudo parecia cinza com esse sentimento. Achava incrível como as letras de suas canções favoritas tocavam sua alma com tanta intensidade nos momentos mais precisos. Era exatamente assim que se sentia: cinza. Feita de cinzas, colocada em pé meramente por hábito, mas a ponto de se desfazer. E esse choro, essa angústia, era maior do que o devido para sua pouca idade. Mas sempre fora mais madura do que a maioria das garotas que conhecia, logo, sua angústia, não era de estranhar que fosse maior. Não soube por quanto tempo ficou chorando, de olhos fechados, silenciosamente. Quando os abriu novamente, o dia estava sumindo, o céu ficava com tons azuis mais escuros, a noite não demoraria a chegar. O tempo estava bom, sem trovões nem céu fechado. Só a brisa que soprava em seu rosto molhado, nada mais. Foi surpreendente perceber que havia fechado os olhos há tanto tempo e que tivesse tanta coisa para chorar. Pegou novamente o seu diário, precisava relatar suas últimas impressões antes que secassem como as lágrimas que caíram. Me sinto como um incenso: completamente feita de cinzas, mas em pé . Me queimando por inteira, purificando o ar. Tentando passar algo de bom para os que estão à minha volta. Me queimando por inteira: completamente cinza, mas sem deixar de exalar meu perfume .
Não precisava se preocupar com coerência ou em editar alguma informação. Quando escrevia as palavras fluíam automaticamente, quase com vontade própria de dentro dela. Sentimentos. Poesias. Indignação. Tudo tão simples de expor ali. Tudo tão difícil de contar para alguém. Minha calma cedeu lugar ao sono O sono, por sua vez, cedeu lugar ao mau humor Do mau humor, de volta à calma
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Estou quieta por fora , Fervendo por dentro! Sentindo cheiro de fumaça Ora com tantos pensamentos embaralhantes Que me deixam desnorteada, Ora com a cabeça vazia. É estranha a sensação de não ter em ‘quem’ pensar. Porém, é boa! Estou pensando... Mesmo sem saber como expressar meus próprios pensamentos. É difícil de entender... Pior ainda de se sentir... A fumaça de ainda a pouco deve ser devido ao fogo que derreteu meu cérebro. Estou tão confusa que não consigo organizar meus pensamentos! Só quero um pouco de paz. Que ao mesmo tempo, maior impossível...
Largou a caneta novamente, percebendo que havia funcionado. Apesar de toda inquietação de alguns instantes, agora estava mais calma. Um pouco mais aliviada. Olhou para o céu. Será que seu irmão estava em casa? Precisava perguntar as informações sobre a balada de sábado e depois informar todos os detalhes à Camila, que, por sinal, deveria ter estranhado seu comportamento na escola. Levantou-se e foi direto para o espelho. Precisava camuflar sua cara amassada de tanto chorar antes de falar com seu irmão. Não pretendia dar maiores explicações. Não estava tão mal quanto pensava. Apenas enxugou o restante das gotas remanescentes em seus olhos, já que estes não estavam mais vermelhos. Saiu do quarto ainda com o pensamento um pouco longe da Terra. Não sabia ao certo o que a agoniava daquele jeito. O que quer que fosse, estava por vir, isso podia sentir claramente.
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ELE
Início de Setembro de 2014 Nada o afligia quando se tratava de garotas. Era fácil conseguir o que queria, quando queria. Se estivesse interessado realmente em querer alguma coisa. Mas não, apenas sorria para as tentativas frustradas de suas amigas e colegas de conquistá-lo. Uma sensação de que ninguém o completava sempre permeava sua cabeça. Era estranho pensar, naquela idade, que não deveria existir ninguém no mundo capaz de preencher uma parte de seu ser que estava reservada para alguém que ainda não fazia parte da sua vida. Nem ao menos sabia se essa pessoa existia. Entretanto, era preciso acreditar que fosse verdade. Não que fosse uma pessoa supersticiosa, mas sonhos recorrentes desde que era um garotinho o deixavam com a impressão de que ela era real. “Que bobagem!” — se pegava pensando muitas vezes. Mas no fundo ainda mantinha a esperança de que não fossem apenas sonhos a recorrente visão daquela garota linda que crescia com ele toda noite, apenas acenando, apenas sorrindo, mas nunca perto o suficiente para que ouvisse o som da sua voz. Seu melhor amigo o achava excessivamente romântico. Era impossível conceber que, com tantas garotas ao seu redor, nenhuma era boa o suficiente para ele. Muitas vezes o considerava esnobe. Não era essa a intenção. Sempre foi muito educado e procurava não magoar os sentimentos de nenhuma garota. Mas também não era feito de ferro e, por vezes, ficava com alguma menina, por algum tempo, mas logo perdia o interesse e procurava maneiras de dispensá-la educadamente. Não que obtivesse muito sucesso, já que a maioria das garotas dispensadas sofria tanto que chegava Presenças
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a odiá-lo por vezes, deixando qualquer intenção de rompimento amigável longe de se concretizar. Agora, se encontrava em frente seu computador, pesquisando mapas por satélite. Queria ter uma visão mais ampla do lugar onde estaria em algumas semanas. Uma viagem inesperada, mas que vinha muito a calhar. Há algum tempo sentia que precisava respirar outros ares, antes de entrar de vez na empreitada profissional que se abria para ele no momento. Sabia que depois disto, com o início das gravações não teria mais tempo para nada. Era preciso aproveitar agora e, por isto, estava grato pela oportunidade de conhecer um novo país. Seu pai, vice-presidente de uma grande empresa multinacional, conseguira a oportunidade de subir de cargo, tornando-se presidente da filial no Brasil. Não era o seu país preferido, tinha até muitas dúvidas sobre a integridade das pessoas que encontraria no chamado ‘terceiro mundo’. Contudo, não estava em condições de arriscar seu emprego perdendo essa promoção. Embarcariam em duas semanas. Ele aproveitaria a primavera e o verão no novo país, mas depois voltaria para sua casa. Tinha planos e assinara um contrato importante em sua carreira. Sua mãe havia decidido ficar um tempo com seu pai em São Paulo, tentaria se adaptar ao novo país, mas havia deixado claro que se não conseguisse voltaria para casa o mais cedo possível, sem ligar para promoção ou qualquer coisa que a impedisse. Parou de navegar por uns instantes e abriu os arquivos de música do seu computador. Fez uma seleção e deu o comando de ‘reproduzir’. Era mais fácil fazer as coisas enquanto ouvia músicas. Ainda estava apreensivo sobre o que aconteceria quando voltasse do Brasil. Mas isso não era nada comparado às decisões que ele nem imaginava que precisaria tomar antes de voltar para sua casa.
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Luciane Costa
CAIO
Caio era apenas um ano e alguns meses mais velho do que Helena, sendo a garota, o resultado de uma gravidez pós-parto inesperada para sua mãe e seu pai, porém, sem arrependimentos. Ele estava com dezoito anos, recém-completados, enquanto a irmã completaria dezessete em poucos dias. Era um garoto charmoso, simpático, sorridente, do tipo que fica cada vez mais bonito à medida que se conhece. Estatura mediana, cabelos negros, levemente ondulados, mais comprido na frente, formando uma franja que cai insistentemente em seus olhos verdes. O que gerou um tique de soprar a franja e jogá-la para trás o tempo todo. Ao contrário de Helena, tão bronzeada, ele possui a pele branca, quase transparente e um rosto quadrado e anguloso, com algumas sardas. A boca grande e o sorriso largo fazem sucesso entre as garotas. Caio conhecia a escola inteira, o bairro todo, a cidade até. Tinha amigos em todas as partes do mundo, era extremamente animado e muito palhaço. O tipo de pessoa que todos querem por perto. Helena e Caio eram tão diferentes que, à primeira vista, ninguém desconfia do parentesco dos dois. Mas, apesar das diferenças físicas, a cumplicidade dos irmãos é imensa, um sempre procura saber o que o outro precisa para ficar bem. Essa diferença física e de personalidade que se dava entre os irmãos era obra do bonito casal que seus pais formavam. Dona Ana, branca, cabelos escuros de fios grossos, volumosos e levemente ondulados, rosto redondo que ostentavam olhos negros, profundos e desconfiados. Corpo cheio e curvilíneo. Possuidora de um sorriso sincero e largo como o do filho, mas dona de um poder de dedução incrustrado na sagacidade de seu olhar, como o da filha. Já Seu Jorge era alto, magro, com a pele dois tons mais escura que a da filha. Presenças
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De rosto comprido e anguloso, nariz largo e imponente, cabelos finos, castanhos claros, crespos e encaracolados. Olhos de um tom verde, tão claros quanto os de Caio, que transmitiam a serenidade das pessoas que procuram o lado bom de todas as coisas e sempre enxergam o copo meio cheio. Helena bateu levemente na porta do quarto de seu irmão. O som estava ligado, sinal de que ele estava em casa. A porta não estava trancada, Caio respondeu às batidas da irmã com voz distraída: — Entra! — Oi! — Fala, Lê! Não te vi na saída. Foi bem nas provas de hoje? — Foi tudo bem, tirando o ‘mico que paguei’ com o professor Marcos e a maçã mordida. — O quê? — Depois te explico. Você parece preocupado hoje. — Sua voz ficou cautelosa de repente. Será que era o dia do sofrimento mundial? — Algum problema, Caio? — Normal, só estou preocupado com o lance do vestibular. Cara, como é difícil escolher a profissão que vai te escravizar para o resto da vida! — Deixa de ser bobo! Você só vai ser escravo se escolher algo ruim demais, ainda assim, tem sempre como mudar. — Você fala isso porque já sabe quer ser escritora desde que nasceu. — Sua voz parecia um pouco indignada, mas continha um fundo de admiração pela determinação da irmã e um tom de brincadeira. — Como se eu já não fosse aberração o suficiente. — Tá louca? Quem está sendo boba agora? Você sabe como é difícil aguentar os comentários maldosos de alguns amigos por ter uma irmã bonita e gostosa? Segundo eles, é lógico... hahahaha! — Tonto! Sério mesmo? Bonita e gostosa? — Esquece! Me fala o que você quer logo. “Bonita e gostosa! Quem será que...?” — Ah, tá! Então, a Mila falou da balada de sábado, a banda nova dos seus amigos... preciso informar a ela todos os detalhes, ela está interessadíssima no vocalista e quer ir também. — Sei... — Uma pontada de desapontamento pareceu cobrir a face de Caio, diminuindo o volume da sua voz. Mas ele se esforçou para parecer casual e desinteressado ao continuar. — Tudo bem!
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Eu te passo as informações. Se vocês quiserem carona eu levo, você sabe. Não sei por que ela está tão interessada em tantas informações se vai acabar indo no meu carro. — Provavelmente porque ainda somos menores e ela vai ter que informar tudo isso para a mãe dela, como sempre — Helena respondeu com uma pitada de irritação na voz. Ela não tinha deixado passar o tom de descaso forçado na voz de seu irmão. Há algum tempo vinha desconfiando do interesse dele por sua melhor amiga. Não sabia ao certo o que esse sentimento causava nela. Seria bom, ou seria o fim da amizade entre eles caso algo saísse errado? Afastou esse pensamento antes que se tomassem parte na montanha de outros tantos que a estavam incomodando neste dia estranho. — Ah é! Crianças! — Caio! — Ahahahahahahaha! Odiava ser chamada de criança, ainda mais quando tinha tanta convicção de suas opiniões a respeito de tantas coisas. Mas não estava brava com seu irmão. Apenas canalizou sua ira para o travesseiro mais próximo e o arremessou de encontro à cabeça dele, que não teve tempo nem de esboçar reação. Após a travesseirada, ele simplesmente jogou sua irmã na cama e atacou com sua arma mais poderosa: cócegas. — Não é criança não, né? Vê se isto é coisa de uma senhora tão madura? — Para Caio! Para! O telefone tocou interrompendo a luta. Caio atendeu a extensão ao lado de sua cama. Era Camila, que, não aguentando esperar a ligação de Helena se adiantou para saber o que estava acontecendo. — Sua amiga, nada criança, e tão madura — Caio sibilou com uma pontada de cinismo após atender ao telefone e verificar quem era. — Atendo no meu quarto. E o senhor, querido irmão de meia-idade, faça o favor de não ficar ouvindo a nossa conversa — Helena provocou enquanto saía do quarto do irmão. Voltou para seu quarto o mais rápido possível e antes de fechar a porta gritou para que ele desligasse sua extensão. — OK, senhoras, tenham uma boa conversa sobre os homens maduros que vocês escolhem gostar... — ouviu a voz do seu irmão ao telefone antes que ele desligasse para dar privacidade às garotas. Presenças
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Caio permaneceu um tempo segurando o aparelho desligado nas mãos. Pensava em Camila, a melhor amiga de sua irmã que não fazia parte de suas conquistas. Ao contrário, ela parecia nunca o ter olhado de maneira diferente. Não que ele se preocupasse com isto há muito tempo. Somente há alguns meses esse fato tornou-se importante. Mesmo tendo visto Camila crescer em sua casa ao lado de sua irmã e dele próprio, só percebeu o quanto ela havia mudado quando um de seus amigos fez um comentário sobre sua beleza. Naquele instante, virou-se sem dar muita importância para olhar a amiga que conversava animadamente com uma multidão ao mesmo tempo, se desdobrando em onze e sem deixar ninguém de fora. Ficou em transe. Parecia que era a primeira vez que a olhava de verdade. O contorno do rosto, os cabelos longos, o sorriso enorme que fazia parte inerente de sua expressão. Nada daquilo antes tinha importância, mas agora... até o aroma que ficava no ar quando ela passava era importante para ele. Não sofreu, nem chorou. Em seus dezoito anos já havia se apaixonado inúmeras vezes. Jamais havia deixado uma conquista pela metade. Era impossível resistir a seu jeito largado e casual. Ele tinha plena consciência disso. Mas com Camila era diferente. Era proibido para ele atravessar a fronteira da amizade, arriscando a começar uma guerra. Com este pensamento prevalecendo em sua cabeça, limitou-se a observá-la de longe, mantendo a amizade como era, sem deixar que ela desconfiasse de seus sentimentos. Entretanto, era impossível não se indignar com suas escolhas para namorados. Ela parecia ter o dedo podre para isso! Como era possível ser tão legal com todo mundo e só ficar com os caras errados? Assim, de longe, também cuidava para que ela não se machucasse demais em consequência dos garotos tortos que escolhia. Mantinha-se sempre pronto a travar uma batalha com qualquer um que machucasse seus sentimentos. Só precisava manter este estado de prontidão para si. Em breve estaria na faculdade. Conheceria pessoas novas, novas namoradas surgiriam. Com certeza essa paixão proibida sumiria com o tempo. Estava certo de que mesmo assim permaneceria um carinho maior do que o normal pela garota sardenta que era atualmente a causadora de seus suspiros. E amizade. Nada mais. Assim, deixava que estes pensamentos se sobrepusessem a qualquer outro desejo de aproximação.
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Luciane Costa
Colocou o fone de volta à base no criado mudo ao lado da cama, afastando com um gesto os pensamentos insistentes sobre sua amiga e voltou para os cadernos. A semana de provas era longa e ele não era nenhum gênio para ignorar isso como sua irmã costumava fazer. Voltou sua atenção para os livros, mas a concentração não vinha facilmente. A imagem de Camila, tão próxima e tão longe, vagava em sua cabeça insistentemente. Procurou pensar na faculdade. Precisava afastá-la de sua cabeça. Deu um tempo nos estudos e se concentrou nos papéis de universidades. Era bom escolher uma bem longe, que desse espaço para esquecer, que fosse boa para libertar.
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O SONHO
A noite adentrou completamente o céu através da janela aberta do quarto de Helena enquanto ela ainda estava com Camila ao telefone. A conversa tinha sido proveitosa. Além de ajudá-la a se distrair, ainda ficou sabendo que Lucas havia perguntado dela para a menina, no fim da aula. Achou estranha a preocupação do garoto, mas, sabendo como estava estranha desde o início da primeira aula, não era anormal que ele perguntasse alguma coisa. Afinal, eles se conheciam desde o primário. Muitas vezes estiveram na mesma balada. Só não mantinham uma aproximação muito grande. O que não significava falta de carinho com uma amiga. Desligou o fone ainda com estas suposições na cabeça e voltou a olhar para o céu. Era uma de suas manias mais recorrentes. Sempre olhava para o céu. Como se ele pudesse trazer a solução de seus problemas. Ou simplesmente o alívio para suas dores. Percebeu que deveria ser muito tarde, estava completamente escuro. Lembrou-se então, ao ouvir o ronco de seu estômago, que não havia comido nada, além da maçã ‘assassina’ do café da manhã. Nem na hora do intervalo não se lembrou de comer. A fome veio rasgante e de repente. Desceu para procurar alguma coisa. Sua mãe e seu pai chegariam muito tarde. Dificilmente haveria um jantar tradicional, os dois já deveriam ter jantado na rua e Caio, provavelmente, comeu um lanche. Geralmente, quando ficavam a sós e com tempo, um dos dois cozinhava e os dois comiam. Realmente o dia tinha sido bem estranho... Pensou em algo simples e fácil e procurou por um macarrão instantâneo no armário. Não era sua melhor opção, mas a mais rápida e não queria perder muito tempo com isto. 34
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Luciane Costa
Engoliu o macarrão sem sentir muito o gosto e depois de alguns minutos já estava de volta ao seu quarto, com os dentes escovados e o pijama colocado. Só então se deu conta de que estava com sono. Olhou no relógio de seu celular. Eram onze e quinze da noite. Cedo para seus padrões, mas estava realmente cansada e achou que seria um bom sinal. Provavelmente dormiria tão pesado que não sonharia com nada até a hora da escola. Com este pensamento em mente, se deitou, deixando o computador ligado para que as músicas embalassem seus sonhos. Algum tempo depois, estava em um quarto estranho. Não sabia onde, nem de quem era. Tudo que via era um monte de roupas jogadas em cima de uma grande cama e duas malas abertas ao lado. O quarto estava imerso em sombras, ficava difícil distinguir todas as formas ao longo das paredes, mas pelo cheiro amadeirado que vinha do cômodo, parecia ser o quarto de alguém do sexo masculino. A porta estava semiaberta. A curiosidade foi maior que o medo e Helena deixou-se guiar para além dela chegando a um corredor escuro. “Devo estar sonhando”, pensou. Mas não tinha certeza. O cheiro era tão real e podia sentir o barulho de seus passos ecoando em meio à névoa de um corredor comprido, com curvas e mais curvas, ela se viu dentro de um labirinto que parecia infinito. Pelo pouco que conseguia vislumbrar, percebeu que as paredes eram escuras até a metade e davam lugar a algum tipo de papel de parede. Mas, em meio à névoa e escuridão, pouco ou quase nada conseguia decifrar. Tateou às cegas de encontro à parede. Era mais seguro que andasse com um apoio. Temia que em seu sonho maluco despencasse de uma escada e acordasse com o braço quebrado. E se não fosse sonho? Pior ainda. Nada bom um braço quebrado na semana de provas. Um pescoço então... nem pensar! Encostou o máximo possível de seu corpo na parede à sua direita e seguiu pelo corredor à procura de outra porta, sempre cuidando para que não tropeçasse em algum degrau. Alguns passos adiante, sua mão esbarrou em algo que parecia ser uma maçaneta. Helena agarrou-se ao contorno do objeto redondo para ter certeza e então girou sem se questionar sobre o que haveria por trás daquela porta. A porta abriu lentamente com um rangido peculiar de filmes de terror. Um arrepio percorreu sua espinha, entretanto, era impossível voltar daquele ponto. Entrou. Presenças
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Estava em outro quarto. Parecido com o anterior e tão imerso em sombras quanto ele. Parecia vazio. Com seus olhos um pouco mais acostumados à escuridão, notou uma antessala aparentemente luxuosa e um tanto sinistra na entrada do aposento. Entrou, atravessou a antessala, foi de encontro à enorme cama que se localizava no meio do aposento e percebeu que algo não estava normal. Uma claridade cinza estava se apoderando do ambiente. As coisas entravam em foco aos poucos e com horror ela pode constatar o que estava acontecendo: Deitado na enorme cama jazia um homem loiro de meia-idade. Havia uma quantidade enorme de sangue espalhada por sua camisa e pela colcha. A expressão do cadáver era de extremo espanto, com a face retorcida de pavor. Ao seu lado, um homem um pouco mais novo, cujas formas pareciam incertas, um pouco translúcidas fitava tristemente o morto. A garota congelou. O arrepio de outrora em nada se comparava ao gelo que envolvia seu corpo. A sensação de falta de ar novamente, o sufoco. Tudo era conhecido, mas ela sabia que jamais se acostumaria com isso. Deixou-se ficar ali, sem poder se mover esperando que algo a tirasse do transe que a envolvia. Nesse instante o homem ao lado do corpo que parecia não ter percebido qualquer mudança no ambiente levantou os olhos e a encarou. Helena constatou assombrada que os olhos deste estranho ser que a encarava eram totalmente brancos, desprovidos de qualquer pigmentação que os deixassem mais humanos. A falta de ar aumentava em velocidade recorde e continuava impossível emitir qualquer som. Tentando desviar da imagem à sua frente, a garota fez um esforço para que seus próprios olhos se fechassem, mas foi em vão. Não havia como comandar seu próprio corpo. Então ela ouviu, dentro de sua cabeça, nítida, a voz daquele ser estranho que a fitava com tristeza: “Ajude-o! Não deixe que isso aconteça. Por favor!” E foi só. Helena se levantou num rompante. Molhada de suor, com o coração aos pulos. A janela de seu quarto permanecia aberta e, para seu desespero a madrugada parecia estar longe de dar lugar ao dia. Olhou para seu celular e constatou com angústia que ainda eram três e vinte da manhã. Seria mais uma longa noite sem dormir e um longo dia cansativo para enfrentar os testes.
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Luciane Costa
Já que estava acordada, decidiu que a melhor coisa a fazer era estudar um pouco. Teria logo mais os testes de matemática e português. Gostava das matérias, principalmente de português, mas não seria demais revisar o conteúdo do ano. Procurou afastar os pensamentos que traziam à tona o estranho pesadelo que tivera. Entretanto, uma coisa a deixava curiosa: Por que, além da sensação de algo tão real, havia agora a sensação de que ambos os rostos, do morto e do ‘fantasma’, pareciam estranhamente familiares? Deixou o tempo guiar suas ações revisando a matéria sem muita vontade. Volta e meia pensava novamente no seu pesadelo e procurava novamente não se impressionar. Afinal, com tantos pesadelos recorrentes, nada mais a assustava tanto. Apenas irritava veementemente. Quando deu por si já havia amanhecido. Estava na hora de se aprontar para ir à escola. Não pôde deixar de se sentir agradecida desta vez, por ter que levantar cedo e sair de casa.
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LUCAS
Lucas também não dormiu bem à noite. Não porque havia tido pesadelos como Helena. Ao contrário, seus poucos momentos sonhando tinham sido ótimos. Inquietantes, mas ótimos. Assim que pegou no sono viu Helena novamente em sua frente. Seus cabelos longos e cacheados, armados, se espalhando no rosto da garota que estava distraída olhando para baixo. Logo, seus olhares se encontraram. Ela parecia indignada. Ele perdeu o chão. Não porque a proximidade entre os dois era intimidante. Mas sim, porque havia algo a mais por trás de seus olhos escuros, como se o seu olhar escondesse mistérios gigantes e indecifráveis. As imagens se confundiam em seu sonho. Helena indignada, uma maçã voando. Lucas agarrando a maçã no ar. Salvando a garota do mico que passaria a seguir. Helena sorrindo para ele. Ele se aproximando mais e mais. Os olhos fechados de Helena. O beijo iminente... Acordou, segundo seus pensamentos, na melhor parte do sonho. Era um pouco cedo para se preparar para sair. Então, deixou-se ficar na cama, com os braços cruzados atrás da nuca apenas se lembrando das cenas reais e das cenas de seu sonho. Já havia gostado de algumas garotas, mas nunca o bastante para se dedicar inteiramente a qualquer uma delas. Neste caso era diferente. Helena o havia impressionado de tal maneira que não saiu de sua cabeça durante todo o dia. Passou pelas provas sem realmente se dedicar. Esperava conseguir ao menos o mínimo necessário para não ter que fazer os exames substitutivos, mas não tinha tanta certeza. A imagem de Helena o desafiando com seus grandes olhos negros o seguiu ao longo do dia. Foi difícil se concentrar em qualquer coisa que não fosse observar suas reações. 38
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Luciane Costa
“Por que Helena? Ela nem ao menos faz parte do fã clube das garotas da escola que tentam ficar comigo. Eu poderia escolher a dedo qualquer menina daquele lugar e duvido que alguma se negasse a me beijar. E vou logo encasquetar com a mais estranha!? Tudo bem! Tudo bem! Não é o fim do mundo. Eu apenas tenho que arquitetar uma maneira de chegar nela o mais rápido possível. Aposto que assim o encanto passa de uma vez e eu volto a ser o ‘galinha’ de sempre. Preciso manter minha fama.” Um sorriso cínico brotou em seus lábios com esse pensamento. Não era mau caráter, mas sabia o quão bonito e atraente sua figura branca, alta de cabelos castanhos e olhos claros facilitava o acesso às meninas da escola. Tinha consciência de sua beleza e se aproveitava disto para impressionar as garotas ou conseguir favores, sem muitas consequências. Realmente acreditava que a súbita falta de vontade em ficar com alguém que não fosse Helena passaria assim que conseguisse um tempo a sós com ela. Ainda assim, pretendia fazer tudo de maneira discreta, pois era amigo de seu irmão e não pretendia se indispor com ele. Parecia que tudo correria perfeitamente conforme o planejado. Para ele era fácil pensar em soluções simples. Ficaria com a garota, descobriria seus mistérios e voltaria para sua vida perfeita. Onde poderia escolher a dedo com qual garota sair, aproveitar os amigos e ir bem na escola sem maiores problemas. Um enorme alívio brotou em seu rosto sempre confiante e ele ficou um tempo maior esperando o Sol raiar para começar os preparativos de seu dia. O excesso de confiança de Lucas não deixava espaço para a elaboração de outras possibilidades. Logo, ele não contava com o fato de Helena não se parecer em nada com as garotas que geralmente se deixavam levar por seus encantos. Sendo assim, ele não imaginava que poderia se apaixonar verdadeiramente por essa garota misteriosa, causar e sofrer dores inimagináveis, caso não fosse correspondido.
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VIAGEM
No decorrer de setembro de 2014 Ele estava sentado em seu quarto encarando suas malas. A bagagem estava pronta em sua cama há dois dias. Ao longe podia ouvir seus pais discutindo os detalhes finais da viagem. Ainda não tinham casa. Ficariam hospedados em um hotel ao menos no primeiro mês. Claro que a empresa cobriria as despesas de hospedagem dos três, mas seu pai intencionava comprar um apartamento o mais rápido possível, pois sabia que sua mãe odiava ficar em hotéis. Ela acreditava ser muito impessoal. Sempre fora uma ótima dona de casa, além de excelente profissional e tinha gosto por arrumar cada cantinho de sua casa a seu modo. A campainha soou. Ele já sabia quem era e esperava por isto. Estava um pouco ansioso, mas no fundo sentia alívio com a tão próxima finalização que daria a essa história. Não se moveu. Ouviu ao longe a garota cumprimentar seus pais e perguntar por ele. Em seguida escutou seus passos pela escada, em direção à porta de seu quarto. A porta estava semiaberta e ela entrou sem bater. De costas, como estava, ficou. Esperou que ela desse a volta no quarto para encará-lo de frente sem se mover. — Então você vai mesmo? — Érica disse ao encará-lo. Seu olhar era duro, continha muita dor e descrença. Mas ele não esboçou pena ou qualquer outra reação. Sabia que era difícil terminar um relacionamento, mas se perguntava o quanto estivera comprometido até ali. Érica era uma boa garota e merecia alguém que a amasse de verdade. Ele não poderia ser desonesto com ela se esforçando para passarem o tempo juntos, sabendo que, em algum 40
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lugar do mundo a garota de seus sonhos esperava um encontro. E não era qualquer garota, destas que povoam a imaginação da maioria dos jovens. Era realmente a garota com quem vinha sonhando desde que tinha nove anos de idade. E, tão certa quanto a viagem que faria em um dia, era a convicção que tinha a respeito de encontrá-la. — Vou, querida. Mas eu volto logo. Tenho um contrato para cumprir, se esqueceu? — E como ficamos? Respirou fundo. Era a hora. Teria que finalizar esse assunto de uma vez. Havia adiado este momento por mais tempo que desejava. Odiava magoar as pessoas. Infelizmente seria impossível neste caso. — Acho que ficamos como amigos. — Seu tom pareceu casual e um meio sorriso surgiu em seu rosto. — Como amigos... — As palavras pareciam cortá-la ao meio, mas manteve sua postura por mais alguns segundos. — Então ficamos como amigos. Você já se decidiu, não é? — Já! Me desculpe, Érica! — E quando você voltar? Como será? — Continuaremos amigos. — Você não tem mesmo a intenção de voltar pra mim... — Isto foi mais uma constatação do que uma pergunta. — Me desculpe. Espero que possamos manter nossa amizade. — Não sei. Não sei se quero você apenas como amigo. — Por quê? — Seu espanto era real, sua curiosidade também. — Acho que não estou preparada. Boa viagem! — Não precisa ser assim... — Para mim, precisa! Adeus. A garota saiu do quarto às pressas, antes mesmo que ele pudesse detê-la. Pensou ainda em segui-la, mas achou que o melhor era deixar como estava. Pouco depois de ouvir a porta bater a campainha soou novamente. Novos cumprimentos foram dirigidos a seus pais e novos passos se direcionaram à porta de seu quarto. Desta vez, virou-se para receber seu amigo. Billy entrou trazendo sua melhor cara de sarcasmo e se jogou em cima dele. — Ah! Eu não acredito que você esteja indo embora! — Por pouco tempo Billy, por pouco tempo. Eu tenho um contrato para cumprir, você se esqueceu? — Ainda assim, quando voltar, estaremos em cidades diferentes. — Mas será bem mais simples de nos encontrarmos. Presenças
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— Vou sentir sua falta. E se você repetir isso para alguém, é melhor que não volte mesmo, se quiser manter seus dentes intactos. — Idiota! Os dois conversaram sobre outros assuntos por mais algum tempo. Ao final da tarde, Billy se despediu ainda com seus comentários inconvenientes: — Então, vê se traz uma brasileira bem gostosa pra mim, OK? — Cala a boca! Billy deixou o quarto sorrindo. Esta foi a última imagem que guardou de seu melhor amigo. Logo mais, no início da madrugada, eles partiriam. Ficou pensando sobre como era difícil um rompimento. Em uma mesma tarde, deixou para trás sua namorada e seu amigo, além de inúmeros parentes que já haviam se despedido. Chegou à conclusão que toda forma de separação carrega consigo um nível de dor. Lembrava nitidamente dos olhos reprovadores de Érica e do sorriso de Billy. Em cada caso era inevitável que alguém saísse magoado. Sentiria muita falta de seu amigo. Porém, mesmo se achando um monstro no momento, constatou que, da ex-namorada, em um curto espaço de tempo, provavelmente nem se lembraria. Várias horas depois, estava desembarcando de um avião em uma cidade desconhecida para ele, em um país que sempre lhe conferira certa curiosidade. Uma gama de possibilidades estava se abrindo à sua frente, pensou. Exploraria ao máximo o que esta viagem tinha para lhe oferecer. Era uma oportunidade única passar tanto tempo em São Paulo sem precisar se preocupar com estudos ou trabalho. Adoraria conhecer o país inteiro. Mas o Brasil era imenso e seu tempo era curto. Em março era preciso retornar para Los Angeles, onde havia assinado contrato para seu próximo filme. Agora como protagonista. As gravações demorariam mais que o planejado pela equipe responsável, pois se tratava de uma adaptação meticulosa de um livro. Claro, para ele, isto constituiu uma vantagem. Já conhecia o livro e agora ainda tinha a oportunidade de encarar quase quatro meses de férias antes de começar a trabalhar. Tomou isto como um presente e resolveu que tudo, decididamente, deveria estar acontecendo por uma boa razão em sua vida. A recepcionista da empresa onde seu pai fora nomeado presidente estava à espera no aeroporto. Depois de se assegurar que era a família certa, a moça dirigiu-se aos três, um pouco cautelosa e
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ofereceu as boas-vindas em inglês. Um carro os aguardava na saída do aeroporto e ele observou, desapontado, o tamanho do congestionamento que os aguardava. Os carros se movimentavam a passos de tartaruga e não parecia sobrar espaço sequer para respirar entre um veículo e outro. Soltou um longo suspiro imaginando como seria dirigir seu próprio carro nestas condições. Melhor nem pensar. Chegaram ao hotel após uma hora no tráfego. A recepcionista, sempre simpática, estava otimista quanto ao tempo do percurso, dizendo que, no horário de pico, como estavam, geralmente o tempo dobrava e eles haviam tido sorte. Durante o percurso, ele mal prestou atenção na conversa entre seus pais e ela. Sentado no canto direito do banco traseiro, deixou seu olhar atento a tudo que passava ao seu alcance. Carros, motos, pessoas, prédios, lojas. Era decididamente um caos. De um modo fantasticamente intrigante e envolvente. Ao descer do carro, uma repentina sensação de ‘estar em casa’ o invadiu. Como se aquela cidade estranha, naquele país estranho, estivesse esperando por ele todo esse tempo em que esteve imerso em suas buscas. Talvez isso fosse apenas uma ‘válvula de escape’, mas o constante sentimento de que algo o esperava por trás do caos e dos enormes arranha-céus que se encontravam à sua frente não o abandonou. Ficou ainda um tempo perdido nesses pensamentos, sem perceber que atrapalhava o tráfego das pessoas que entravam e saíam do hotel. Ele poderia até não notar, mas a sua presença chamava atenção dos funcionários e hospedes ao seu redor. Tal como a presença de seus pais. Os três eram loiros, extremamente brancos e com olhos azuis. Seus pais mantinham uma beleza clássica. Preferiam se vestir com roupas formais e previsíveis: paletós, ternos, camisas, gravatas, vestidos, saias, trajes sociais, etc. Ele, por sua vez, não se parecia em nada com seus pais no modo de se vestir. Obviamente, se a ocasião pedisse, como inúmeros coquetéis e jantares que fora obrigado a participar por conta do elevado cargo de seu pai na empresa, ele saberia como se vestir e como se portar. Mas intimamente, achava todo tipo de formalidade uma besteira. Gostava de ficar largado em seus jeans rasgados e confortáveis, usava camisetas comuns, sem estampas, algumas mais agarradas em seu corpo, o que deixa o contorno do tórax perfeitamente musculoso e sem exagero de tamanho bem visível. Em qualquer traje que se dispusesse Presenças
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a aparecer, era impossível que não fosse notado. Era muito alto. As pessoas olhavam para cima, literalmente, quando se dirigiam a ele. Além disso, seus cabelos loiros compridos, quase chegando a sua cintura chamavam muita atenção. Ele acreditava que ter cabelo o diferenciava de muita gente, embora também o deixasse rotulado como outra porção. Gostava de cuidar dos seus cabelos e mantê-los limpos e brilhantes. Era o mínimo que poderia fazer, já que a cabeleira sempre foi motivo de desgosto para seus pais. Porém, constava com tristeza que mais cedo ou mais tarde haveria que se livrar do excesso de cabelos em prol de algum personagem que viria a interpretar. Por sorte, em seu próximo filme o cabelo fora um dos fatores que mais contaram para conseguir o papel. Agora estava lá, imóvel, imerso em seus pensamentos enquanto seus olhos observavam atentos tudo ao seu redor e seu corpo bloqueava a passagem dos transeuntes apressados. — Daniel! Virou-se de imediato ao ouvir seu nome. — Você está atrapalhando o tráfego de pessoas, meu filho. Só então se deu conta de onde estava. Deu alguns passos apressados para sua direita e deixou o caminho livre. — Vamos — seu pai continuou. — Tenho a sensação de que esta mudança promete! — Eu também, meu pai! Eu também.
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JEFFERSON
A semana de provas parecia infinita e a única coisa que motivava Helena era saber que, ao final, seria recompensada com uma ótima balada com seus amigos. Parecia um pensamento fútil, mas ela se consolava ao lembrar que precisava mais do que tudo de uma noite dançante para relaxar. Os pesadelos eram frequentes. O que tornava toda e qualquer noite mal dormida, além de prejudicar seu desempenho nas provas. Na verdade, ela não estava se importando tanto com isto. Pela primeira vez em toda sua vida estudantil deixou-se relaxar da tentativa desesperada de conquistar as melhores notas, para se perguntar o que faria no ano seguinte. O Futuro. Tão próximo e que era tão incerto. Alguns fatores pareciam inexplicavelmente curiosos: Camila continuava a trazer as notícias de tudo e de todos com o seu sorriso que mal cabia no rosto. Numa dessas ocasiões disse à Helena que Lucas a tinha procurado na entrada da sala de espanhol para perguntar por ela. Certamente, Camila estranhara o fato, mas como se tratava de um dos garotos mais bonitos e mais cobiçados da escola, fez sua melhor cara sociável e se abriu para qualquer solicitação. Ele desconversou, apenas dizendo que tinha achado estranho o comportamento de Helena no início da semana e que não tivera oportunidade de conversar com a garota ainda. Claro que, para os olhares atentos de Camila, que não deixavam escapar nem um suspiro em ritmo alterado, aquilo era conversa furada. Havia muito mais por trás desse comentário do que ele queria revelar. Mas ela não tentaria forçar o garoto a se abrir. Sua arma secreta, a persuasão, funcionava discretamente e sempre que preciso. Era um tiro certeiro, que, quando percebido pela vítima, já era tarde. Todos os seus segredos mais íntimos estavam sobre poder de Camila. Entretanto, ela sabia Presenças
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guardá-los com carinho e reservava espaço suficiente em seu cérebro para arquivar os nomes e segredos de cada membro do seu gigantesco círculo de amizades. Helena não se espantou tanto com o fato de Lucas ter perguntado por ela. Realmente, naquela segunda ela estava mal, logo, poderia o garoto ser um pouco sensível e ter se preocupado com o seu estado, oras. Riu sozinha desta conclusão. Isso era bem improvável. Seja como fosse, não tinha importância, apesar de ser um lance curioso. Na verdade, para Lucas, a curiosidade por Helena estava tomando proporções gigantescas. Muito mais do que ele havia planejado. No decorrer da semana, passara horas à espreita de seus atos, observando seus movimentos, se perguntando no que ela estaria pensando, em como seria sua rotina fora da escola e se havia um interesse maior de sua parte por ele ou por qualquer outro garoto do planeta. Tal bombardeio de questões o irritava profundamente, todavia não tinha como fugir dos fatos, ele estava curioso e ansioso para que tivesse logo uma oportunidade de atacar a garota com seus encantos. A semana passou nesse ritmo. Entre fofocas e olhares curiosos, entre alunos desesperados com suas notas e alunos que comemoravam antecipadamente o fim das aulas. Nesse meio tempo, Helena quase não tocou em seu diário. Somente na sexta-feira, véspera da balada, após o término das provas é que pôde se dedicar um pouco à arte que tanto amava: a escrita. Sentada em sua cama, como de costume, pegou seu diário para fazer um resumo da semana. Era tarde, poderia passar a noite investindo nisto, já que no sábado não haveria compromissos de horário. Dia 14 de novembro de 2014 Sexta-feira Resumo da semana: Provas, provas e mais provas. Enfim acabou a semana de tortura! Sábado chegando!!!! Balada!!! Estou precisando desesperadamente de uma balada . É bom ter um irmão mais velho ‘super 10’ que te leva para qualquer lugar e ainda fica como responsável por suas loucuras.
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Neste ponto posso dizer que sou privilegiada. Meu relacionamento com o Caio é simplesmente maravilhoso! Conseguimos ser cúmplices, amigos e ainda manter nossa privacidade sempre que possível . Pouco comum para nossa idade , pouco comum para muitas idades. Por falar em Caio, ainda não engoli essa história dele ficar estranho cada vez que surge o nome Camila em uma conversa ... hum!... A quem ele quer enganar??? O lance da privacidade tem sua parte ruim, afinal ... E essa agora do Lucas?! O que deu nesse garoto pra perguntar por mim? Bom, é claro que eu fiz cara de ‘nada a ver ’ pra Mila, mas até que pensando bem, estou um pouco curiosa pra saber qual é a dele . Imbecil! Até parece! O que não falta pra ele é opção. Chega , chega de pensar em coisas fúteis. Até parece que eu sou uma adolescente normal de dezesseis anos escrevendo em seu diário... O que tem me intrigado, na verdade , são os sonhos atuais. Pela terceira vez nesta semana eu vi o mesmo homem, o mesmo homem de olhos vazios me encarando. Primeiro foi no quarto. Depois, repetindo o mesmo sonho ele me encontrou no corredor. E ontem... aff... ontem foi mais assustador. Tive a impressão de que ele estava tão perto... aqui , nesta cama. Agora nada me tira da cabeça que não se trata apenas de uma interligação de sonhos. Desde o começo da semana , junto com essa necessidade imensa de mudança , as ‘coisas’ seja lá o que elas forem, começaram a me encarar. Sinto como se o tempo estivesse estreitando ao meu redor. Como se perdesse as pistas de alguma informação importante . Mas também pode ser apenas um sonho. A sensação de aperto no peito permanece . Mesmo tendo as cordas afrouxado um pouco, ainda sinto o desconforto desse sentimento de ‘vazio interior ’. É complicado viver sufocando. Espero que tanto desconforto tenha um objetivo maior. Preciso tomar providências. H.J.
Após estas últimas considerações, Helena fechou seu diário e pegou um livro de poesias em sua estante. Escolheu um que reunia Presenças
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autores clássicos e abriu em uma página ao acaso, para ver no que dava. Havia um soneto de Augusto dos Anjos na página escolhida. Coincidentemente um dos seus preferidos: O Morcego Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede: Na bruta ardência orgânica da sede, Morde-me a goela ígneo e escaldante molho. ‘Vou mandar levantar outra parede’ — Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho E olho o teto. E vejo ainda, igual a um olho, Circularmente sobre minha rede! Pego de um pau. Esforços faço. Chego A tocá-lo. Minh’alma se concentra. Que ventre produziu tão feio parto?! A consciência humana é este morcego! Por mais que a gente faça, à noite, ele entra Imperceptivelmente em nosso quarto.
Ficou entretida em sua leitura por mais alguns minutos e depois decidiu tentar dormir. Na verdade, sempre que pensava em dormir, sentia como se estivesse lutando contra uma regra básica e inerente que jamais seria mudada. Tão certa quanto ter que morrer, era óbvio que ao dormir teria que sonhar e, inevitavelmente, sonhar significava ter pesadelos. Sentia como se o morcego do soneto de Augusto dos Anjos a visitasse todas as noites para lembrá-la de que algo estava à espreita, observando, aguardando, fazendo com que ela se lembrasse de que não era como as outras, mesmo que fingisse, ela não era normal. Deitou-se meio a contragosto, levada pelo cansaço mental e físico acumulado durante a semana toda. Meio minuto depois estava
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imersa num estágio pré-sono quando sentiu a presença de alguém no quarto. Abriu os olhos num reflexo e viu o vulto de um garoto alto, todo vestido de preto, que desapareceu na mesma velocidade com que tinha aparecido. Fechou novamente os olhos prometendo a si mesma que teria uma noite tranquila de sono. Isto, é claro, não ocorreu. Acordou no fim da manhã, cansada, juntando as partes de seu sonho como um quebra-cabeça. A história havia se repetido. O mesmo homem loiro de outrora, com olhos brancos e que parecia tão familiar, apareceu clamando por ajuda. Aquilo estava ficando irritante. Ao mesmo tempo em que tentava desconsiderar esses pesadelos com medo de perder a sanidade mental, tinha, no fundo, uma grande impressão de que se tratava de algo importante. Mas não fazia ideia de por onde começar uma investigação. Afastou esses pensamentos durante o dia, Camila ligou logo cedo, avisando que chegaria com a bagagem toda para passarem a tarde juntas. De certa forma, essa notícia em nada a surpreendia, contudo, aliviava seus pensamentos obscuros. Sua amiga sempre fora uma ótima companhia para qualquer momento de depressão. Era completamente impossível não sorrir a seu lado. Como prometido, Camila chegou trazendo todos os componentes necessários para as investidas que pretendia realizar no vocalista da banda que assistiriam logo mais. Depositou tudo no quarto de Helena e foi ao de Caio para cumprimentá-lo e agradecer antecipadamente pela carona. — Caio? — chamou cautelosamente batendo à porta. — Já acordou? Sim, ele estava acordado há algum tempo, mas permanecia deitado, viajando através de seus pensamentos e despertou bruscamente de seu sonho consciente ao ouvir a voz de sua amiga na porta. “Caraca! Eu deixo ela entrar assim como estou? Parece até provocação do destino! Poxa, se tem alguém aí em cima, realmente está de brincadeira comigo, né?” — Enquanto ponderava estas questões, olhava através da janela de seu quarto encarando o céu como quem espera uma resposta. — “Eu tento fazer tudo direito: poupar a garota, ir para a faculdade, não brincar com os sentimentos de ninguém e o Senhor, com todo o respeito, está zoando com a minha cara. Deve ser mesmo muito engraçado visto daí. Eu deitado na cama de cueca samba-canção enquanto a garota dos meus sonhos bate à minha porta... Aff!” — Caio? Presenças
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Ele sabia que não teria forças para fingir que dormia. Rendido, apenas consentiu que ela entrasse. — Estou acordado sim, Mila, pode entrar. Mas não se assuste. Ela não esperou ouvir mais nada e entrou no quarto sem a menor cerimônia. Como se ainda estivesse no quarto de sua melhor amiga, sentou na cama do garoto, que, constrangido, e tentando fingir normalidade, se jogou rapidamente na outra extremidade puxando o lençol mais para perto do seu corpo. Sem ao menos perceber essa reação, ela se aproximou e se inclinou jogando os braços ao longo do pescoço do garoto, o envolvendo em um abraço inesperado e dando um beijo em sua bochecha. Ele, nada mais fez do que se deixar levar e corresponder ao abraço. Entretanto, em seu interior, desejava que aquilo durasse para sempre, que pudesse esquecer qualquer barreira lógica que o impedia de se declarar para aquela garota e puramente levar os seus lábios para perto dos dela, mudando o beijo que recebia na bochecha para um logo beijo na boca. Acontece que desejos são como sonhos, e, nesse caso, ele só poderia sonhar. Camila demorou uns segundos a mais do que o normal com o abraço. Inconscientemente. Em seguida, soltou o garoto não se dando conta de seu embaraço e encostou a cabeça em seu ombro deixando-se ficar ao lado dele. — Ah, Caio! Me assustar com o que, seu tonto? Até parece que eu nuca te vi de cueca antes! Afinal, nos conhecemos desde que assistíamos Pokémon — ela disse enquanto juntava sua mão esquerda com a dele na altura de seus rostos. Esse gesto os deixou conectados, Camila sentiu uma onda percorrer seu corpo, abaixou a mão constrangida, mas nada disse. Caio sentiu o mesmo e procurou mudar de assunto. Realmente era impossível um momento de seriedade com essa garota. Com o ambiente mais descontraído eles engrenaram uma conversa. O garoto tentava parecer desinteressado, mas achou que era uma ótima oportunidade para, ao menos se inteirar das intenções de Camila a respeito de seu amigo. Já ela, parecia extremamente interessada em descobrir as preferências do seu mais novo interesse. — Caio, valeu mesmo por levar a gente no seu carro hoje. — Ah, conta outra! Como se eu nunca levasse vocês. Fala sério! Quem é o cara? — Credo! Assim até parece que eu estou te sondando para descobrir alguma coisa.
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— Desde que éramos do tamanho das nossas mãos. Você mesma disse. — Está certo! Você me pegou! O Thiago, vocalista. Namora? Mesmo já sabendo previamente através de sua irmã, a confirmação do interesse da garota por outro garoto rasgou seu interior como uma faca. Novamente, fingindo desinteresse ele respondeu: — Na verdade, não. — Sabia que doeria profundamente vê-la com outro cara, mas o Thiago era bacana, melhor com ele do que com algum aproveitador. — Ótimo! Preciso de todas as informações que você puder soltar. Qual o tipo dele, o que ele gosta de fazer além de tocar... A garota disparava sentenças como uma metralhadora distribuindo tiros, ele, apenas ouvia e respondia com o mínimo de comentários possíveis. Enquanto esta conversa ocorria no quarto de seu irmão, Helena desceu para preparar o almoço. Seus pais tinham saído cedo e pelo fim de semana todo ficariam fora. Para eles, não era difícil confiar a seus filhos a responsabilidade de ficarem sozinhos em casa. Os dois eram anormalmente responsáveis para a idade. Seu Jorge e Dona Ana tinham combinado de pegar a estrada para o litoral com alguns amigos. Logo, só voltariam no domingo à noite. Helena acreditava que seus pais deveriam curtir a vida ao máximo e nunca se importou com a ausência dos dois por períodos prolongados quando sabia que estavam se divertindo, ou trabalhando. Abriu a geladeira pensando no que fazer. Estava de bom humor para cozinhar para três, logo se decidiu por fazer fuzzili ao molho branco. Simples, mas eficaz. Separava os ingredientes meticulosamente quando ouviu passos atrás de si. Virou-se achando que encontraria seu irmão ou sua amiga, mas não havia ninguém. Um arrepio insistente e conhecido percorreu sua espinha por três vezes seguidas. Então, deduziu que havia silêncio demais no ambiente e correu até a sala para ligar o aparelho de som. Cozinhar com música alta era bem mais divertido. Algum tempo depois, ouviu as vozes de Camila e Caio se aproximando por cima de uma pausa entre as canções. Os dois desceram e a encontraram na cozinha finalizando os preparativos para o almoço. — Caraca, Lê! Você nem falou se precisava de ajuda — Caio comentou enquanto pegava os pratos no armário. Presenças
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— Hum... não quis atrapalhar... — ela respondeu cinicamente, procurando pescar algo diferente nas reações dos dois. Mas eles se fizeram de desentendidos e Camila desviou o assunto de volta para a comida cujo aroma já se espalhara pela casa. — Nossa!!! O cheiro está ótimo!! Adoro quando você cozinha! — Valeu! — foi seu único comentário ao perceber que não conseguiria descobrir nada de especial naquele momento. Deixaram o assunto morrer, pois a fome os invadiu com maior intensidade do que esperavam. Assim, se reuniram sem ao menos estranharem o fato de terem pulado do café da manhã direto para o almoço e fizeram a refeição juntos. Os três passaram o resto da tarde conversando e ouvindo música na sala. Por volta das sete horas da noite Caio recebeu o telefonema de um de seus amigos e foi atender em seu quarto. As meninas resolveram subir também para iniciarem as etapas de decisões sobre o que vestiriam para saírem. Helena optou por um jeans azul e um top de alças finas, completando o visual com seu All Star preferido. Mas Camila não se contentou com a roupa da amiga e insistiu para que ela usasse uma saia. Como não queria discutir e fazia muito calor, Helena deixou-se render e experimentou a minissaia jeans da amiga, sem ao menos escolher uma opção entre as suas próprias. Notando que o visual estava mais legal do que o originalmente planejado por ela, decidiu que usaria isto mesmo e completaria com um par de brincos e seu anel preferido: a metade de um sol prateado que parecia fazer parte de um conjunto e desde que o adquiriu passou a usar no dedo indicador da mão esquerda todo o tempo. Já Camila, que estava indecisa entre suas opções, ficou de escolher entre um vestido preto soltinho e um roxo mais agarrado. Para a sorte ou azar de Caio, ele bateu à porta do quarto de sua irmã exatamente no momento em que ela experimentava o vestido preto, trazendo um comunicado à Helena. — Lê! — começou, mas sentiu-se incapaz de pronunciar qualquer coisa ao ver Camila se virar para ele. — Hein? — Não... eu... bem... é que... — Ah, Caio, já que você apareceu de supetão, me diga. Este vestido fica bom para hoje? — Claro. Você está linda! — revelou num impulso. A seguir, porém, sentindo que havia ultrapassado o limite do que era seguro,
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retomou: — Hum... digo. Está ótimo! Helena?! — Desviou o olhar rapidamente para sua irmã. — O Lucas acabou de me ligar dizendo que vai hoje com a gente. — Quê? (Quê?) As garotas perguntaram ao mesmo tempo, enquanto se olhavam trocando pensamentos. — Algum problema? — Imagina — disse Camila. — É que faz algum tempo que ele não sai com a gente — Helena limitou-se a dizer, tentado disfarçar o espanto. — OK! — Caio sibilou um pouco desconfiado e saiu do quarto. As garotas esperaram ouvir a porta do quarto dele bater para dispararem seus comentários. — O Lucas, com a gente?! — Foi Camila quem iniciou as especulações. — Tem coisa aí! — Eu sei! — Helena não sentiu necessidade de disfarçar a curiosidade, afinal, era com sua melhor amiga que falava agora, e com ela, quase não tinha segredos. — Lê, tenho certeza de que ele está afim de você. Não pode haver outra explicação! — Para. — Sério! — Para. — Certeza... Camila estava convicta e certa, como geralmente suas intuições indicavam. Helena esboçou um meio sorriso enquanto procurava motivos para acreditar na afirmação da amiga. Mas na verdade, estava quase concordando com ela. Era estranho ele parecer tão preocupado esta semana e de repente, depois de um tempo querer sair de novo com seu irmão. “Será mesmo? O Lucas? Com todas aquelas garotas em cima dele? Será que fez uma aposta, ou apenas está tentando me colocar na prateleira de troféus dele? Para Helena! Chega de se diminuir. E daí? Qual a surpresa? Ha-ha-ha... qual a surpresa? Fala sério!” As duas levaram algum tempo cuidando das roupas, cabelos e maquiagem. Por volta das dez horas da noite Caio voltou ao quarto das garotas e avisou que estava pronto. Claro, como se fosse simples assim. Ele ainda teve que esperar cerca de vinte minutos para que elas definissem o restante dos acessórios e depois saíram. Esta noite pedia perfeição. Presenças
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Trinta minutos depois chegaram ao clube onde aconteceria o show. O lugar não era muito amplo, mas as pessoas podiam se dividir entre o piso térreo, o mezanino e uma pequena área ao ar livre no fundo do recinto que continha várias mesinhas e até algumas árvores, com intuito de dar ao local um ar tropical e aconchegante. Tinha seu charme. A pista de dança ficava de frente para o palco no piso térreo e ocupava a maior parte deste andar. Helena avaliou a pista por alguns minutos, não era muito grande. Estava na cara que encheria rapidamente e ela teria que dançar espremida como uma laranja na caixa. Contudo, valia a pena. Foi com a cara do lugar. “Tem uma boa vibração” — concluiu respirando profundamente. — “Gostei daquelas árvores!” Caio a trouxe de volta à realidade avisando que seus amigos haviam reservado uma mesa na extremidade do palco no piso térreo. Os três se dirigiram até lá para cumprimentarem o pessoal que os aguardava. Para surpresa das garotas, Lucas já se encontrava sentado conversando com todos enquanto bebericava um refrigerante. Seus olhares pareciam ansiosos à procura de algo e abriu um largo sorriso ao avistar os três se aproximando. Todos se cumprimentaram mutuamente e ele se demorou um pouco mais ao cumprimentar Helena com um beijo na bochecha. Nenhum detalhe passou despercebido pelos olhares de esguelha de Camila, mesmo enquanto ela cumprimentava o seu alvo, o vocalista Thiago, que se apresentaria com sua banda logo mais. Após os cumprimentos, as duas correram para a pista de dança que ficava extremante perto da mesa da turma e com vista privilegiada para o palco. Na medida em que as horas se aproximavam da meia-noite, o salão começava a lotar. As duas dançaram por algum tempo. Helena estava grata por não precisar passar esta noite em casa, lutando com o morcego de sua consciência ou enfrentando pesadelos repetitivos. Pouco depois, o DJ anunciou a banda que se apresentaria a seguir. No momento em que a música parou para dar espaço à banda, ela viu de relance alguém muito próximo de sua face direita que parecia pronunciar qualquer coisa indecifrável em seu ouvido. A garota piscou uma vez e voltou a olhar. Constatou que não era nada e continuou esperando o show. Alguns minutos depois a banda iniciou sua apresentação. Helena divertia-se com as canções, mas, o mais divertido no momento era observar os gritinhos histéricos de Camila para Thiago, no palco.
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A banda fez sua apresentação por cerca de quarenta minutos. Terminado o show, Helena olhou ao redor e constatou que o salão estava lotado. Até então ela não havia se dado conta de como estava espremida no meio da pista, pois a adrenalina percorria seu corpo de tal maneira quando dançava, que somente sentira algumas cotoveladas das pessoas ao seu redor. E desta vez, nem isso a tinha afetado. O calor começou a tornar-se insuportável e ela preferiu voltar à mesa de seus amigos para beber um pouco de água. Camila, ao contrário, ficou na ponta do palco esperando Thiago com a desculpa de querer cumprimentá-lo pelo show. Enquanto Caio, por sua vez, observava a distância toda e qualquer alteração no comportamento dos dois. Chegando à mesa, Helena preferiu não se sentar e encostou-se na parede para relaxar um pouco. Melhor do que se estivesse sentada, ela preferira entrar em contato com os tijolos frios do salão. Procurou acomodar o máximo possível do seu corpo de costas para a parede fria e estendeu os braços horizontalmente com as palmas das mãos viradas para dentro. Vista como estava, se alguém além de Lucas a estivesse observando pareceria completamente louca. Entretanto, em uma balada cheia de jovens, comportamentos estranhos tornam-se rapidamente normais. A garota deixou-se ficar ali, respirando o ar condicionado que vinha do teto, por algum tempo. A sensação de estar livre de qualquer preocupação enchia seus pulmões. Dançar era complemento perfeito para ela que amava ouvir músicas. Tão bom quanto escrever. Tão bom quanto respirar. Estava aliviada, despreocupada e por alguns minutos se sentiu até mesmo em paz. Sua alegria durou pouco, porém. Sentiu um forte cutucão no seu braço direito e em seguida a sensação de dormência. Abaixou rapidamente o outro braço e abriu os olhos, procurando quem haveria a cutucado. E para seu desespero constatou que seu braço direito permanecia na posição horizontal, dormente, formigando e imóvel. Tentou mover o braço, mas ele não obedecia ao comando de seu cérebro. Tentou novamente. Estava preocupada que alguém viesse perguntar o que havia de errado e descobrisse que realmente ela era insana. Ordenou em silêncio para seu braço empedrado: “Vamos, abaixe. Abaixe!” E nada! Para sua sorte, ninguém a observava naquele momento e Lucas, o único que não desgrudara os olhos dela no decorrer da noite, estava ocupado na fila do banheiro masculino. Mas ela não sabia disto. Presenças
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Olhou ao redor mais uma vez. Parecia não estar chamando atenção. Resolveu fechar os olhos novamente para ver se seria mais fácil comandar seu braço desta maneira. Mas, no momento em que seus olhos se fecharam, uma falta de ar aguda começou a ferir seus pulmões. Tentou respirar profundamente e isto ajudou um pouco. Imaginou que estivesse voltando ao controle e permaneceu imóvel. Neste instante, alguém se colocou inesperadamente ao lado do braço endurecido e sussurrou bem próximo ao seu ouvido: “Oi! Posso falar com você?” Aquele som, saído direto de sua cabeça a fez congelar. Sabia agora perfeitamente do que se tratava. Respirou profundamente mais uma vez e esperou. Então, ouviu novamente a pergunta: “Oi! Posso falar com você?” “Pode!” A resposta veio mais rápida do que desejava, apenas em sua cabeça, mas era o suficiente. “Quem é você? O que você quer comigo?”, prosseguiu. “Meu nome é Jefferson. Desculpe se a assustei. Não tive intenção. Apenas preciso que você me escute.” A gentileza naquela voz parecia sincera. Apesar do tom cordial e moderado, estava apreensivo. Entretanto, continha certo encanto que ela não pode deixar de notar. “Tudo bem! Mas por que eu não consigo mover meu braço?” “Ah! Me desculpe por isto. Eu não sei direito como funciona. Talvez se eu relaxar um pouco você consiga se mover.” “Então tente, por favor!”, implorou. “Devo parecer maluca para quem olha.” Helena certamente estava se achando maluca. Estranhamente, aquela voz não lhe dava medo, nem a deixava apreensiva como tantas outras. Sem saber bem o porquê, continuava de olhos fechados travando uma conversa com algo ou alguém que nem sabia ao certo do que se tratava, mas que lhe causava certa curiosidade. Aos poucos começou a prestar atenção à sensação que isso lhe trazia. Ainda no escuro sentiu que era alta a pessoa ou espírito que se encontrava ao seu lado. Decidiu, então, abrir seus olhos e se virou para encarar o que quer que fosse que lhe falava ao ouvido. Para seu espanto, imóvel ao seu lado, com um certo ar de impaciência e apreensão, encontrava-se um rapaz extremamente alto, magro, com longos cabelos negros e pele muito branca, que contras-
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tava com sua vestimenta de cor preta. Calça, camiseta do Metallica, botas, tudo preto. Ele era assustador, mas, inexplicavelmente, lhe transmitia paz. “Que diabos este espírito está fazendo com uma camiseta do Metallica”, ficou devaneando antes de voltar a si, sentir seu braço amolecer aos poucos e conseguir se mover. Tinha em sua cabeça a imagem nítida do rapaz que vira a seu lado e a certeza de que apenas ela podia vê-lo. Permaneceu assim, encostada na parede, os olhos ainda fechados, sem saber ao certo quanto tempo havia se passado. Deveriam ser segundos, mas poderiam ter sido horas inteiras. Voltou a ouvir sua voz, mas agora um pouco mais firme. ”Eu tenho vinte e quatro anos de idade, estou nesta situação há pouco mais de dois meses e preciso que você me ajude.” “Como seria?” “Na verdade, eu preciso ajudá-la para ser ajudado.” “Como assim? Não estou entendendo.” “Se você permitir, eu vou passar um período de tempo com você. Como um amigo. Fazendo visitas.” “Que tipo de visitas?” “Olha! Eu não tenho como explicar muito agora. Estou tentando entrar em contato contigo há algum tempo e só hoje consegui sua atenção. Volto a falar com você mais tarde. Precisamos conversar, e muito!” Tão rápidas quanto surgiram, todas as sensações sumiram. Helena olhou em volta e não viu nada de anormal, somente pessoas felizes dançando e conversando. Tudo como deveria ser. Considerou por alguns instantes o que havia acontecido. Não era justo que fosse interrompida em seus raros momentos de paz. Se contasse para alguém o episódio que há pouco lhe ocorrera, provavelmente seria chamada de louca. Mas ela sabia, ela sentia que não tinha perdido o juízo. Novamente a sensação do caos que se anunciava invadiu seu interior. Olhou para a mesa, vazia, já que a turma se espalhara pelo salão e, a primeira coisa que avistou foi uma garrafa aberta. Não era a melhor solução, pensou. Mas, seja lá o que contivesse, talvez a ajudasse a desanuviar os pensamentos nebulosos que mais uma vez a invadiam. Deu dois passos em direção à mesa à sua frente e despencou pesadamente na primeira cadeira que estava ao seu alcance. Segurou a garrafa para examinar seu conteúdo e constatou um pouco aliviada de que era vinho. “Tudo bem, é alcoólico, mas não faz tanto mal Presenças
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assim...”, procurava se convencer. Deu uma última olhada ao redor tentando avistar seus amigos. A maior parte deveria estar espremida na pista ou aos beijos com alguém nos cantos do salão. Conseguiu ainda localizar Camila, encostada no palco conversando com Thiago. Nem um segundo depois, os dois estavam aos beijos, confirmando suas previsões. Deixou escapar um sorriso quando pensou que ela era realmente infalível. Mais adiante, conversando com uma bela garota encontrava-se seu irmão. A garota parecia derretida com seus encantos, entretanto, por mais que ele também parecesse interessado, Helena percebeu que alguns de seus olhares eram desviados em direção à sua amiga, frequentemente. Suspirou. Era realmente uma pena que ele não assumisse o interesse por ela. Adoraria se os dois ficassem juntos, mas isso não era da sua conta. Afinal, ele também se arranjaria com a garota à sua frente em poucos minutos. Disso estava certa. Voltou sua atenção para a garrafa que continuava em suas mãos. Hesitou por alguns segundos e depois virou o gargalo em seus lábios. Bebeu a goles grandes, mal sentindo o gosto. Não era muito, mas o bastante para alterar seu estado de espírito, pensou. E tornou a beber até que o líquido tivesse se esgotado. Lucas retornara do banheiro minutos após esse episódio. Havia enfrentado uma fila e tanto antes que pudesse se aliviar. Este era um dos males inerentes aos bares populares da cidade. Quando distinguiu sua mesa, percebeu que Helena estava só e com o semblante um pouco ausente. Imaginou que seria a oportunidade perfeita para ‘atacá-la’ com seu charme irresistível e se dirigiu até ela. Buscou uma cadeira ao seu lado e a observou. Helena estava tão absorta em algum devaneio que nem pareceu notar o garoto. Tomou a iniciativa para quebrar o silêncio: — Lê! — chamou usando sem o menor constrangimento o apelido da garota. — Você está legal? A garota se virou para ele como se ouvisse um chamado de muito, muito longe. Seu corpo estava leve, vazio. Havia uma desconhecida sensação de segurança total em suas ações. Parecia não haver limites possíveis em sua vida. Uma vontade imensa de sorrir a invadiu. Tentou ainda controlar esse impulso intencionando parecer sóbria. Contudo, tinha plena consciência de que seu estado fora alterado. No seu íntimo havia um pouco de culpa por ter bebido e seu lado racional pensava em como seu irmão reagiria
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ao vê-la daquele jeito e nos possíveis micos que poderia pagar: talvez vomitasse, talvez caísse, talvez... não importava. Nada importava naquele instante porque ela se sentia leve, leve como uma pluma. Mais uma vez, vindo de muito longe ouviu chamar seu nome. Ainda considerando a possibilidade de cair ou vomitar em cima da mesa virou-se para a direção da voz e explodiu em uma gargalhada. Lucas não estava preparado para aquela reação. Sabia que a garota era estranha. Mas ela parecia alterada. Aproximou-se mais e com cuidado tentou descobrir o que havia acontecido. Vendo garrafas vazia em cima da mesa, ponderou que ela deveria ter bebido, só não saberia dizer o quanto. Fitou Helena demoradamente enquanto ela se torcia de tanto rir e esperou. Assim que a gargalhada começou a perder intensidade e a garota voltava a ficar em silêncio procurou chamar sua atenção novamente: — Lê! Está tudo bem? O que você bebeu? Com um riso frouxo ainda morrendo em seus lábios a garota parecia mais consciente de que alguém a estava chamando. Olhou então para Lucas e cuidadosamente, porém muito mais lentamente do que desejava e deixou que os sons saíssem de seus lábios para formular uma resposta: — Bebi? Hã... Vinho. — Quanto? — Não contei. — A pergunta parecia tão idiota para ela naquele momento que voltou a gargalhar. — Meu, o que o seu irmão vai fazer se te ver nesse estado? Não sai daí. Eu vou comprar uma Coca-Cola pra você. Ela não se moveu. Lucas atravessou o salão o mais rápido que pôde, se acotovelando com os outros ocupantes, fazendo malabarismos para chegar ao bar logo. Pediu o refrigerante ignorando os gritos das pessoas que se amontoavam no balcão primeiro que ele e, por sorte, a garçonete ao notá-lo, fez o mesmo com as outras pessoas e o atendeu primeiro. No mesmo ritmo ele voltou a se acotovelar e empurrar as pessoas em seu caminho numa tentativa de chegar rápido à mesa. Pensava que poderia encontrar Helena caída, ou vomitando. Pouco importava. Tinha que levar logo o refrigerante. Quando chegou notou que a garota permanecia imóvel, parecia até nem ter percebido sua ausência. Aproximou mais sua cadeira Presenças
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da dela, abriu a latinha e após passar o braço em volta de seus ombros, numa tentativa de conforto e pedido de atenção, estendeu para ela a bebida num comando: — Beba! Ela apenas olhou para suas mãos e nada disse. Pegou a lata e bebeu. Nem notou o que era. Nem ao menos percebeu que estava sendo abraçada por Lucas. Ele observou enquanto ela tomava alguns goles do refrigerante. Quando um mínimo de sanidade pareceu brotar novamente em seus olhos se sentiu confiante para tentar uma conversa decente. — Está se sentindo melhor? Ouvindo a pergunta, Helena notou que estava, sim, melhor. Embora soubesse que ainda era cedo para dizer-se totalmente sóbria. — Estou. Obrigada. — Agora você vai me contar o motivo exato da bebedeira? — Não sei se estou sóbria o suficiente para isto — deixou escapar. — Tudo bem, eu não ligo. Se você quiser, encho a cara também. Então ficamos os dois bêbados esperando que seu irmão nos mate. Ela sorriu novamente. Bom sinal. — Acho que não seria uma boa ideia. Afinal, se eu vomitar ou tropeçar, vou precisar que alguém me segure. E se meu irmão me matar, precisarei de uma testemunha também. Esse lado totalmente descontraído e bem-humorado dela era novidade para ele. Tudo bem que se conheciam há anos. Porém, nunca havia observado tanto a garota que praticamente sustentava em seus braços quanto nesta última semana. Sorriu com a resposta de Helena e, mesmo sabendo que ela não se encontrava totalmente ciente de suas ações, decidiu que não haveria melhor oportunidade para acabar com a obsessão que vinha sentindo até agora. — Bem — ponderou o que diria para não assustá-la. — Então talvez possamos fazer algo que possa nos livrar de qualquer um desses perigos. — O quê? — Vejamos... “Será que é o momento ideal?”, hesitou. Num piscar de olhos toda a sua segurança estava em xeque. Não, o Lucas que conhecia não se sentia inseguro nunca. Voltou sua atenção para a garota. — Podemos nos beijar e ficar aqui, sentados e seguros, até que seu estado volte ao normal. Esta última parte da conversa quase trouxe Helena de volta à realidade. Talvez porque não estivesse acostumada com bebidas
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alcoólicas em grandes quantidades, não conseguiu voltar à sobriedade por completo. Contudo, um choque rápido percorreu seu corpo e ela voltou seu olhar na direção do garoto: — E quem te protegeria do meu irmão? — perguntou com um tom de sarcasmo e desafio. Imaginou que dificilmente o desafiaria assim se estivesse menos bêbada. — Não se preocupe. Eu me viro. Com este último comentário, Lucas segurou o rosto de Helena com sua mão esquerda trazendo o mais para perto, enquanto a abraçava com mais intensidade. Ficaram muito próximos e ele a beijou sem ao menos hesitar por um instante. Pela sua cabeça, imaginava que aquele beijo daria fim ao seu comportamento obsessivo nesta semana. Constataria mais tarde estar totalmente enganado. O beijo, mesmo para uma garota semibêbada, era melhor do que qualquer outro que já havia experimentado antes. Ficaram juntos pelo restante da noite. Quando se encontrou de volta em seu quarto, meio sem saber direito a trajetória da noite até ali, Helena teve que encarar o bombardeio de perguntas de Camila. Seu estado alterado devido ao álcool já era quase inexistente, resultando em uma leve dor no fundo de sua cabeça. Então, tentou colocar em ordem todos os acontecimentos da noite. Várias coisas embaralhavam seus pensamentos: Pedaços de conversas. Um homem de preto ao seu lado. Seu braço dormente. O abraço de Lucas. Um refrigerante. Seu beijo. — Ah, não! — exclamou num impulso. — Eu fiquei mesmo com ele, né? Camila, que até então estivera concentrada em falar sem parar, fazendo comentários sobre sua conquista e disparando mísseis de perguntas sobre a conquista da amiga, parou arregalando os olhos numa expressão de descrença. — Não entendi o tom. Você acabou de pegar um dos caras mais cobiçados da escola e está preocupada com alguma coisa que não seja aproveitar? — Não é isso. Que droga! — Se era para ter se explicado, esquece! — Mila, eu nunca em toda a minha experiência escolar me imaginei ficando com o Lucas. Agora... e se... e se for uma aposta ou qualquer coisa do tipo? Como eu vou aguentar a situação na segunda-feira? Droga! Droga! Bebida idiota! Presenças
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— É tarde para reclamar. Ficou, agora aguenta. Ainda acho que você está fazendo uma tempestade em copo d’água. Se ele escolheu ficar com você é porque você é linda e encantadora, oras! Que mania idiota que você tem de se diminuir. — Eu não estou me diminuindo. Apenas... — revirou os olhos e desistiu de continuar a discussão. Camila lançou novos comentários sobre a noite e pareceu esquecer-se das cismas da amiga. Helena aproveitou o ganho para se ‘ausentar’ em seu corpo que apenas concordava vez ou outra com algum comentário da garota, e deixou-se ficar imóvel enquanto o quarto parecia girar a seu redor. Logo, as duas já estavam trocadas e deitadas. Helena preparou para Camila um colchão reserva que ficava embaixo de sua cama, ótimo para tais ocasiões. Se fosse inverno, as meninas até considerariam dispensar o colchão e dormiriam na mesma cama, sem problema algum. Mas no verão era impossível ficar a menos de meio metro uma da outra sem suarem em bicas. Continuaram a conversa por algum tempo mais, passava das quatro quando Camila se rendeu ao sono e adormeceu. Helena ficou acordada por mais uns minutos ruminando suas ações no escuro antes de decidir se dormiria. Aos poucos o sono começou a invadir seu corpo. Uma sensação de calma e dormência subia dos pés à cabeça e ela concluiu que não haveria como escapar. Queria olhar pela janela. Adorava fitar o céu antes de adormecer. Esperava que com isso pudesse assegurar bons sonhos, mesmo sabendo que quase nunca dava certo. Quando voltou seus olhos em direção a lua, deu de cara com o vulto parado à sua frente. Mesmo no escuro, agora saberia identificá-lo. Era Jefferson, nome que ouvira mais cedo, quando ele imobilizara seu braço direito no bar, a encará-la com o semblante preocupado. Não fechou os olhos como de costume. Não tentou piscar para fazer a visão sumir. Apenas esperou. Em sua cabeça pôde ouvir sua voz novamente. “Durma! Eu falo com você em seus sonhos.” “Está bem!” Não tentou nem argumentar. Virou-se de bruços na cama, era sua posição favorita para dormir. Em seguida sentiu uma pressão enorme sobre suas costas, como se alguém a estivesse pressionando com seu próprio corpo e, por fim, respirar foi ficando mais e mais difícil... E para sua surpresa, se pudesse pensar nisto conscientemente, veria que adormeceu em menos dez segundos.
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Agora, já não estava mais em seu quarto. Encontrava-se sentada no quintal de sua casa, encostada em sua árvore preferida, com Jefferson sentado à sua frente. Não fez nada além de esperar que ele começasse as explicações devidas. Tinha plena certeza de que estava sonhando, embora a sensação fosse tão real que considerou por alguns segundos o que poderia acontecer se tocasse no ser ali parado. Mandou seus pensamentos embora, achando graça de como pudera tirar proveito de uma situação tão incomum para fazer piada. Nem ao menos teve tempo para soltar o riso que segurava quando ele começou a falar. Diferentes de outrora, agora seus lábios se moviam e os sons chegavam até ela como em qualquer outra conversa que já tivera na vida. — Bom! É melhor que eu comece... — ele iniciou com uma ponta de sarcasmo em sua voz. — Concordo! — Helena devolveu no mesmo tom. — Gosto de você, sabia? — ele continuou como se fossem um casal discutindo a relação. — Desembucha — ela soltou, impaciente. De repente, se deu conta de que segurava seu diário em suas mãos. Achou aquilo um tanto inconveniente. Parecia que estavam invadindo a privacidade de seus segredos. Porém, nada fez além de continuar encarando o moço à sua frente. Nesse meio tempo, em que o silêncio entre os dois prevalecia, pôde reparar melhor em tudo o que já havia gravado em sua memória mais cedo. Jefferson aparentava mais que seus vinte e poucos anos, tinha o rosto retangular e era muito branco, além de bem alto. Até mesmo sentados suas alturas eram visivelmente desproporcionais. “Até que ele poderia ser bonito, se não fosse tão sombrio”, pensou. Em seguida fez uma careta de desgosto, ao imaginar se o espírito, ou sei lá o quê, parado à sua frente teria ouvido esse comentário. Jefferson, por sua vez, parecia não ter pressa para continuar e a encarava de volta com a mesma preocupação que transpareceu em frente à sua cama. “Como poderia alguém parecer preocupado e paciente ao mesmo tempo?”, era o que Helena se perguntava quando ele resolveu retomar o assunto. — Como eu disse anteriormente, me chamo Jefferson. Tenho, ou melhor, tinha vinte e quatro anos quando morri. Aquela palavra, dita assim, teve o efeito de uma bala de gelo atravessando sua espinha. Constatou que nunca se acostumaria com certas coisas e continuou ouvindo sem interrompê-lo. Presenças
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— Não estou aqui para atrapalhar sua vida. Pretendo, na verdade encontrar uma forma de ajudar você e alguns de seus amigos. — Como você morreu? — A pergunta saiu normalmente de sua boca. — Talvez um dia eu te conte. Você vai ter que confiar em mim. — Não é justo me pedir confiança quando acaba de se negar a responder uma pergunta. — Tenha paciência, por favor. Estou aqui para ajudá-la, é só o que posso garantir neste momento. Sei que foram minhas escolhas que me trouxeram até você. Muitas delas foram, digamos, equivocadas, mas não alcancei um nível de santidade suficiente para me arrepender ainda, se é o que você quer saber. Acontece que, quando me vi num buraco profundo e sem saída, outros como eu falaram comigo. Pediram para que eu procurasse um meio de canalizar a minha raiva e entender o que havia acontecido. Depois de algumas tentativas sem sucesso, concordaram que era melhor que eu tentasse outra coisa. Nessa altura eu já havia entendido o que tinha acontecido, só não estava conformado. Então a alternativa para obter ajuda e sair do buraco onde me encontrava, era ajudar outras pessoas que ainda têm tempo para saírem do buraco primeiro. Nem tudo o que ele dizia fazia sentido para Helena, mas se tratando de um sonho, ela não esperava por melhores resultados. — Helena, eu quero simplesmente que você me aceite como amigo. Eu sei que você já foi atormentada por espíritos que não eram agradáveis. Prometo que não serei em nada parecido com eles. Pode parecer um pouco egoísta da minha parte dizer que vou te ajudar para me ajudar, mas é a verdade. Eu não sei ainda do que se trata. Você apenas passou por mim no momento em que vagava a procura de alguém, e então eu soube imediatamente onde deveria estar. Quando me dei conta, já estava no seu quarto. — Então você é, tipo assim, um ‘encosto’? — Não sei bem, acho que posso ser chamado dessa forma, mas não me agrada em nada — ele respondeu sem conter um sorriso. — Hum... — ela vacilou com sua cara de má, deixando escapar um muxoxo. — Tem mais uma coisa que você precisa fazer antes que acorde — falou, retomando sua voz séria. — Escreva em seu diário exatamente o que vou lhe dizer.
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Agora ficava claro para ela o motivo do diário aparecer em sua mão. Como em qualquer sonho normal, percebeu também que, além do diário, estava segurando uma caneta em sua mão esquerda, a que usava para escrever. — Escreva o seguinte: “Sempre olharei por você.” — O quê? — Apenas escreva. Sua voz soou tão séria que não sentiu coragem de protestar. Apenas abriu seu diário e escreveu as palavras exatamente como lhe foram ditas. Tinha plena convicção de que ao acordar já haveria esquecido a metade de toda essa conversa, inclusive o que escrevera em seu diário, mas era melhor não criar caso. Que o sonho fosse completo, então. Sem despedidas ou mais instruções, assim que terminou de escrever, as formas que a envolviam começaram a desaparecer. Tudo ficou cinza por um longo período de tempo. O restante de seu sono correu vazio, sem sonhos nem pesadelos.
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Ao acordar, Helena se surpreendeu ao perceber que havia registrado todos os detalhes da conversa que teve com Jefferson durante o sonho. Girou sobre seu corpo para alcançar seu diário em cima do criado mudo. O Sol estava alto por sobre a janela aberta. Provavelmente passava do meio-dia. Notou que Camila ainda dormia. De certa maneira, a balada havia sido cansativa para as duas. Abriu seu diário e pegou a caneta que ficava encaixada na borda. Ficou imóvel por alguns minutos. Com os olhos fechados, queria lembrar-se de todos os detalhes do seu sonho. Sem saber o porquê, ao contrário de todos os outros espíritos que invadiam seu espaço desde que era apenas uma menina, este lhe inspirava confiança. Sabia também que ele era totalmente diferente do garoto que via quase toda noite antes de dormir. Aquele garoto não poderia ser um espírito, afinal, ele crescia com o passar dos anos, tanto quanto ela. Por um momento considerou a possibilidade de estar ficando louca. Foram tantos acontecimentos em uma única semana, e tantos outros para uma vida toda. Reconsiderou. De repente, não estava ficando louca, apenas se tratava de uma pessoa com a imaginação muito fértil. Quem sabe estas coisas não renderiam uma boa história no fim das contas? Poderia escrever um livro e se dedicar à profissão que mais amava. Enfim, deixando de lado qualquer consideração, abriu os olhos. Queria registrar em seu diário as últimas palavras de Jefferson. Porém, quando olhou para a página em que o caderno estava aberto tomou um choque de proporções indescritíveis. No papel, jazia a frase que jamais esqueceria, escrita com sua própria letra: “Sempre olharei por você.” Não teve tempo para refletir. No colchão ao lado de sua cama, Camila estava despertando. Simplesmente fechou seu diário e o 66
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atirou de volta ao criado mudo. Em seguida, voltou-se a deitar de lado, e se inclinou na direção da amiga sorrindo para ela. A garota devolveu o sorriso, sempre tão bem-humorada ao acordar, ao contrário de Helena. Antes que abrissem a boca, um aroma vindo do primeiro andar invadiu o quarto. Certamente, Caio estava cozinhando. Não conseguiu identificar do que tratava. Talvez os seus sentidos não estivessem funcionando direito ainda. — Comida! — gritou Camila, levantando-se num salto. — Esfomeada! — Helena retrucou fazendo uma careta. Depois de alguns minutos, as duas se juntaram a Caio na cozinha para saborear a gloriosa ‘Omelete vai tudo’ que ele acabara de criar. Quando questionado sobre o nome da comida, ele simplesmente respondeu: — Vai tudo que tiver na geladeira, ué! Melhor não perguntar mais nada. O sabor estava tão bom quanto o cheiro, então as garotas comeram sem parar para pensar no que seria o ‘tudo que estiver na geladeira’. Durante esse período, Camila não parava de tagarelar sobre a festa da noite anterior. Fazia comentários apaixonados sobre Thiago, para desespero de Caio, e colocava muitas questões em pauta sobre o comportamento de Helena e Lucas, não deixando que a garota esquecesse, nem por um mísero segundo, que no dia seguinte teria que encontrá-lo na escola. Nesse meio tempo, Helena agradeceu aos céus, silenciosamente, por lembrar que as férias estavam chegando. Mas seu conforto durou pouco, pois em seguida, se lembrou, aflita, de que Lucas frequentava o mesmo círculo de amizades que ela, quando queria. No dia seguinte, Helena se levantou como de costume: mal-humorada e atrasada. Outra vez se arrumou às pressas e caminhou até a escola. Sentia uma necessidade iminente de permanecer na cama. Todavia, com o fim das provas, ela precisava ir à escola para verificar suas notas. Para contribuir com sua angústia, Helena se sentia intrigada com o fato ocorrido na manhã de domingo. “Como é possível as palavras exatas do sonho com Jefferson aparecerem escritas em meu diário?” Tantas coisas rodopiavam em sua cabeça ao mesmo tempo, que decidiu que, após o término das aulas e do curso de inglês, tomaria um tempo maior para analisar todos os fatos relacionados àquela semana tão intensa. Com os pensamentos um pouco mais Presenças
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organizados, assim acreditava ela, entrou na escola um pouco menos preocupada com a reação que teria ao encontrar Lucas. Nenhuma das possibilidades que imaginou, sequer chegou perto da reação do garoto ao encontrá-la. Na madrugada anterior, após se despedirem, Lucas voltou para casa com alguns de seus amigos. Estava quieto, pensativo. No caminho, os rapazes fizeram alguns comentários sobre as garotas que encontram na noite. Algumas considerações eram extremamente maldosas e, geralmente, em outras ocasiões, ele também faria seus comentários, riria e participaria da conversa. Naquela ocasião, porém, não sentira vontade alguma de compactuar com seus colegas. Ao chegar em casa foi direto para o banho. Deixou que a água do chuveiro corresse por seu corpo como se pudesse lavar os pensamentos infelizes e comentários maldosos que outrora tivera a respeito das garotas com quem saíra. Estava se sentindo extremamente culpado por ter se aproveitado do estado alcoolizado de Helena. Ao contrário do que previra, em nada o beijo deles diminuiu a curiosidade latente que vinha sentindo pela garota na última semana. Pior: aumentou. Lembrava-se de cada detalhe de suas conversas, do carinho que sentiu ao perceber que ela poderia passar mal, da necessidade enorme que teve em ajudá-la, das risadas que deram juntos... Por fim, antes de se deitar pensou no que faria ao encontrá-la na escola. Como reagiria? Será que ela ainda se lembrava da noite anterior? Será que o trataria com indiferença? Tentou não fazer mais considerações. O mais sensato era esperar o dia chegar para descobrir como reagiriam. Quando acordou, porém, Helena ainda povoava seus pensamentos. Recordava cada momento que passaram juntos como a cena de um filme bom e quando chegava a hora da despedida, voltava para o começo e revia, em sua cabeça, o filme todo novamente. Queria telefonar. Queria perguntar como ela estava. Saber se estava mal por conta do vinho. Saber se gostaria de sair com ele. Não teve coragem suficiente. Deixou que suas vontades fossem tomadas por uma necessidade ridícula de se manter em segurança e assim passou o dia. Agora, na escola, encontrava-se sentado em sua cadeira, impaciente. A todo o momento espiava o corredor, esperando que ela aparecesse. Conhecia de longe o mau hábito de Helena com relação
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a acordar cedo, então, imaginou que não seria de se estranhar que ela chegasse em cima da hora ou atrasada. Mas isto só o deixava mais ansioso. Cansado de esperar sentado e com a vantagem de seu professor de História ser tão atrasado quanto ela, decidiu parar um pouco na porta da sala para analisar melhor o movimento dos alunos. Parecia a coisa certa a se fazer. Levantou-se num pulo e andou até a porta tentando parecer casual. Não conseguiu enganar nem a si mesmo com esse fingimento, então, após constatar que ninguém estava reparando nele, apressou o passo e quase chegou a correr até a porta. Não teve tempo de parar antes de sair da sala, e para sua surpresa, Helena vinha de encontro a ele a passos rápidos, sem ao menos levantar a cabeça. Como num déjà vu, os dois se encontraram no meio do caminho com uma forte trombada. Ela ficou um pouco revoltada com sua falta de jeito e levantou os olhos, hesitante, para ter certeza de que não atropelara o professor Marcos, que já a tinha na lista negra por arremessar o esqueleto de sua maçã no maço de provas da semana anterior. O que encontrou, porém, foram os olhos de Lucas, que, corando impressionantemente, os baixou, fitando os próprios pés. Helena não conteve o alívio e deixou que as palavras escapassem de seus lábios sem moderação: — Ah, Lucas! É só você?! Ainda bem. Pensei que fosse o professor Marcos. O garoto olhou para ela com uma careta de espanto e corou ainda mais. Só então ela percebeu o que estava realmente acontecendo: Lucas estava sem graça com alguma coisa. Primeiramente, pensou que fosse um modo dele demonstrar arrependimento pela noite de sábado, depois, achou que ele deveria ter tentado ignorá-la, mas foi pego de surpresa pela colisão, o que o deixou embaraçado. E, por último, percebeu que não dava a mínima para qualquer que fosse a opção. Ela estava perfeitamente bem encarando o garoto parado à sua frente. Sem pressa, como se sua cabeça pesasse mais do que o normal, ele retomou a posição vertical e cumprimentou a garota. Depois soltou uma de suas piadas, como se nada constrangedor tivesse ocorrido: — Quer dizer que além de tentar assassinar os professores com restos de frutas, agora você também investe contra os colegas? — Besta! Presenças
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— Vamos sair daqui! Também não quero arranjar confusão com o professor Marcos, que, aliás, está batendo o seu recorde em atraso hoje, Helena! Helena espumou de raiva. Odiava quando lhe diziam que era atrasada. Ninguém conhecia o real motivo de sua insônia. Ninguém jamais imaginaria o porquê de seus atrasos. Não permitiria que fizessem piadas com isso. Marchou até seu lugar e atirou sua mochila com força em cima da mesa. Ignorou as risadinhas vitoriosas de Lucas e se sentou. Retirou seu caderno emergencial do bolso da mochila, pegou uma caneta no seu estojo e começou a escrever sem levantar a cabeça. Ironicamente, todo este episódio de estresse súbito de Helena encorajou Lucas. O garoto não pôde esconder um leve sorriso ao presenciar a cena da garota. Parecia que o controle de seus atos voltava aos poucos para seu corpo. Helena mal teve tempo de colocar a data no início da página, pois alguns segundos depois o professor Marcos adentrava a sala a passos rápidos com as bochechas rosadas e gotas de suor escorrendo por sua testa devido ao esforço. Consigo, trazia o diário escolar contendo uma lista com os resultados das avaliações. Ele observou a sala por alguns segundos. Todos pareciam muito ansiosos, então decidiu que era melhor começar a distribuir os resultados o quanto antes. Na medida em que distribuía as notas dispensava os alunos aprovados. Lucas confirmou suas suspeitas de que não tinha feito um bom teste na semana anterior e ficou entre os alunos que fariam a prova substitutiva. Helena constatou com prazer que, mesmo após uma sucessão de desastres no dia da avaliação, suas respostas foram perfeitas. Isto levou seu professor a esboçar um sorriso indecifrável em sua direção ao revelar a nota da garota. Neste ritmo, menos de dez minutos após o início da aula, Helena já havia sido dispensada, como boa parte dos alunos. Os que não alcançaram nota suficiente para serem aprovados permaneciam na aula para sanarem qualquer dúvida com o professor, ou fazerem uma pequena revisão da matéria. A garota agradeceu aos céus por poder sair mais cedo da sala. Sua mão formigava com a necessidade de escrever em seu caderno. Já estava mais calma em relação às gracinhas de Lucas quando se sentou no seu lugar favorito. Depositou sua mochila ao seu lado,
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retirando apenas seu caderno e uma caneta e começou a relatar os acontecimentos. Dia 17 de novembro de 2014 Segunda-feira Não tenho tido tempo suficiente para me dedicar às minhas suposições. Imaginei muitas maneiras de como seria esse momento. Mas não cheguei nem perto do que aconteceu. Pensei que ficaria nervosa , embaraçada, revoltada, sei lá... Quanto mais perto estava de entrar na sala, mais meu estômago doía. Estava certa de que não deveria ter saído da cama. Um medo enorme se apoderou de mim. Tinha medo da humilhação. Mesmo sendo amiga e irmã das pessoas mais populares da escola, não sei se os outros me poupariam das gracinhas caso Lucas tivesse feito realmente uma aposta ou qualquer coisa parecida . Afinal de contas, não sou, nem de longe , uma garota sociável . Eu estava me aproximando mais e mais da sala de aula e ... BAM! Aquela cena novamente: Lucas e eu ali , parados e com cara de bobos. Que raiva me deu! Por um segundo, pensei que fosse o professor Marcos e pude imaginar a satisfação dele ao me colocar para fora da sala pelo atraso. Mas não. Lá estava ele . Corado, de cabeça baixa... realmente ... embaraçado. Lucas ficou sem graça ao me ver. Claro, eu poderia ter imaginado que essa seria uma reação pós-arrependimento e ficado puta da vida com ele . Mas não, não fiquei . Eu não senti nada. E ele ... Bem, ele não parecia realmente arrependido de alguma coisa que não fosse do mal jeito. Lucas... Ai Meu Deus!!! H.J.
A semana após as avaliações finais era tão atípica quanto a semana de testes. Cada professor distribuía as notas dos testes finais e dispensava imediatamente os alunos aprovados para as férias de Presenças
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verão. As crianças que não conseguissem obter o conceito mínimo exigido teriam uma nova chance com a prova substitutiva que ocorreria na semana seguinte, antes de serem encaminhadas para o programa de recuperação. Por conta disto, os alunos ficavam com mais tempo livre entre as aulas. E se acumulavam em grupos no pátio conversando, estudando, combinando o que fariam nas férias etc. Distraída em suas considerações, Helena mal percebeu que o pátio havia enchido. Agora, grupos e mais grupos de adolescentes se formavam ao longo do espaço comemorando suas conquistas ou lamentando seus fracassos. Sentiu que alguém se aproximava e mal teve tempo de fechar o seu caderno antes que Lucas, saído não sabia de onde se sentasse ao seu lado cautelosamente, abrindo um sorriso enigmático. Helena questionou por alguns segundos se o garoto não teria tido tempo de ler seu nome no caderno antes que ela pudesse fechá-lo e o sangue subiu até sua face antes que ela tivesse chance de tentar se acalmar. Lucas não pareceu perceber alteração alguma na garota no momento em que puxou assunto. — Lê, eu queria te pedir um favor... — começou cauteloso. Não tinha certeza de qual seria a reação de sua amiga, sempre tão imprevisível, mas não presenciando nenhum olhar repressor por parte dela continuou: — Será que você poderia estudar comigo para as provas substitutivas de História e Português? Eu me ferrei em História e, mesmo não sabendo o resultado, tenho certeza de que fui mal em Português também. “Então era assim! O tempo todo era isso que ele queria.” Helena sentiu a revolta tomar conta de seu corpo. Segundos atrás havia acreditado na possibilidade de Lucas sentir alguma coisa por ela, nem que fosse apenas uma curiosidade, uma atração. E agora, isso. Ela acreditava que ele havia planejado tudo cautelosamente. Que queria se aproximar, conquistar sua confiança apenas para pedir ajuda. “Ah, não!”, ela pensou. “Ele não precisava ter ido tão longe. Provavelmente se viu em situação de risco e não teve tempo de planejar outra estratégia. Mas é sacanagem demais.” A garota estava tão agitada que nem percebeu o quão irracional suas conclusões eram. Seus pensamentos se embaralhavam e fortes ondas de arrepios percorriam seu corpo como impulsos elétricos. Sentiu uma vontade enorme de esmurrar o garoto que a encarava. Não soube dizer por quanto tempo ficou imóvel en-
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quanto o ódio se apoderava dela. Ainda sem responder, começou a olhar ao redor. Então, percebeu que grupos e mais grupos de garotas pareciam soltar olhares questionadores na direção dos dois. Um dos grupos mais próximos nem ao menos disfarçava a curiosidade de saber o porquê da proximidade de Lucas com uma menina tão diferente das que realmente faziam seu tipo. As garotas olhavam e comentavam, olhavam e comentavam mais uma vez, esperando o que aconteceria a seguir. Esse evento apenas aumentou mais sua raiva. Ainda por cima, pensava ela, seria motivo de fofoca entre as garotinhas que morriam de amores pelo idiota ao seu lado. Mas se quisessem, podiam tê-lo inteiro para elas. Já estava cansada de tanta palhaçada. Não bastava descobrir que ele simplesmente a usara, teria que dividir o seu showzinho com a plateia curiosa a sua volta. Sem pensar em mais nada, soltou um longo suspiro de indignação, juntando forças para começar a falar. Achou que as palavras sairiam com dificuldade, mas logo ao emitir o primeiro som, suas acusações escaparam num jorro furioso. — Olha Lucas, se você queria ajuda com as provas, não precisava ter planejado tão meticulosamente como chegar até aqui. Bastava ter pedido, no início da semana passada, quando você começou com o seu plano. Não sei por que demorou tanto. Nem era tão difícil assim! Você pedia e eu ajudava! Pronto! Nada de planos mirabolantes. Não precisava se fingir de solícito no bar, muito menos ter ficado comigo! Lucas ficou boquiaberto! Aquelas palavras o feriram dolorosamente. Então era essa a imagem que Helena tinha dele. Parou um instante para digerir tudo o que escutara. Notou em seguida os curiosos que assistiam a cena. Só aí percebeu que não era sua culpa. Ela entendera tudo errado, mas ele nunca havia realmente parado para pensar em como as pessoas o enxergavam. Até aquele momento era natural que fosse cobiçado. Era natural para ele ser bonito e conseguir tudo o que queria. Mas nunca, nunca teve a intenção de magoar Helena. E agora era tarde. Magoara a única garota que lhe despertara o sentimento mais forte de sua curta vida amorosa até então. Demorou mais alguns segundos sem dizer nada. Seu coração estava aos pulos e seu peito doía como se estivesse sendo esmagado Presenças
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pelas mãos de um lutador de boxe ‘peso pesado’. Então, decidiu que provaria a ela e a toda a plateia interessada que estavam enganados a seu respeito. — Helena, você entendeu tudo errado! — Lucas não sabia como continuar. Encarou o olhar de reprovação da garota e logo entendeu o que deveria dizer. — Essa imagem que você ou qualquer menina daqui faz de mim está completamente errada. Eu posso não ser o cara mais inteligente da escola. Mas também não sou nenhum estúpido. Você acha que toda e qualquer ação que eu apresente em relação às garotas é por puro interesse? Você me ofende. Helena tentou reagir, mas ele continuou, sem dar espaço para que ela começasse a falar. — E tem mais! Você deve pensar que eu conseguiria sair com qualquer menina desse recinto e então se perguntar o porquê de tê-la escolhido. Pois eu vou te dizer o porquê. Você é a garota mais estranha que eu conheço. Mesmo sendo amiga e irmã das duas pessoas mais sociáveis do mundo, simplesmente se isola com um ipod e um livro em um canto, isso quando não está escrevendo em seu caderno. Chega atrasada todos os dias na primeira aula, sempre correndo para entrar na sala antes dos professores. E ainda assim, supera a todos nós com suas notas perfeitas. Além de linda e misteriosa, é a pessoa mais inteligente que eu conheço. E a mais insegura, também. “Droga! A parte do ‘estranha’ eu deveria ter pulado”, pensou. Novamente ela tentou reagir. Abriu a boca para retrucar, mas antes que fosse possível qualquer reação, Lucas a envolveu num abraço forte a puxando para perto dele. As garotas que assistiam à cena, curiosas, chegaram a soltar gritinhos indignados. Então ele continuou falando. Estava tão perto de seu rosto, que ela mal pode conter um estremecimento. — Você não acha que está na hora de se dar um pouco de crédito também? Agora ela entendia. Por mais que tivesse duvidado de tudo. Mesmo que não se considerasse a pessoa mais insegura do mundo, como ele havia dito, na verdade, era sim, uma garota insegura por não ter acreditado que alguém pudesse manifestar um interesse sincero por ela. E ele estava ali, muito próximo de lhe beijar, esperando que ela reagisse. Voltou seu olhar para a plateia ao redor. “Bom, elas terão que se contentar em apenas assistirem, pelo menos por enquanto”, pensou. Uma mistura de orgulho e satisfação
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passou por seus olhos. Que todos a consideravam estranha não tinha dúvidas. Agora, porém, era a estranha quem estava ali com o cara mais gato da escola esperando para beijá-la na frente de todos. Decidiu que era o momento de aproveitar. Esse turbilhão de pensamentos ocorreu em poucos segundos. Tempo suficiente para que Lucas se aproximasse mais e mais, encostando seus lábios no dela e apertando os braços ao redor de seu corpo. Mesmo após o início do beijo, Helena manteve os olhos abertos para encarar a multidão que assistia à cena dos dois horrorizada. Sorriu levemente como um aceno na direção delas. Lucas não pareceu perceber, então, ela fechou os olhos para aproveitar o momento.
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PROVIDENCIAS
Início de outubro de 2014 Duas semanas se passaram desde que Daniel chegou ao Brasil. Ele aproveitava maior parte do seu tempo conhecendo os locais históricos de São Paulo. Visitando museus, parques, construções, restaurantes. Havia se rendido totalmente aos encantos da metrópole e se impressionado imensamente pelo leque de variedades que encontrava em cada esquina. Já conhecia algumas estações do metrô e até alguns ônibus e, mesmo podendo andar de táxi, sempre preferia tomar o metrô para se locomover. Vez ou outra se perdia no caminho desta cidade gigantesca e quando isso acontecia procurava o ponto de táxi mais próximo para voltar ao hotel. Uma de suas primeiras providências ao chegar à cidade foi procurar por uma escola de idiomas. Encontrou uma bem-conceituada que ensinava diversos idiomas, e tinha um curso de português intensivo para estrangeiros. Se matriculou e passou a frequentar as aulas diariamente. Não foi seu primeiro contato com a língua. Como sempre teve certo interesse pelo Brasil, chegou a estudar português on-line por um tempo. Com isso, sua adaptação ao país se tornou muito mais fácil. Já sua mãe, a senhora Cassidy Thompson, estava com dificuldades em permanecer no hotel. Por maiores que fossem as comodidades, ela tinha a necessidade de viver em uma residência própria, onde tivesse a liberdade de decorar os ambientes e até mesmo cozinhar, que não era sua preferência, tornou-se motivo para se mudarem. Em vista disto, seu pai pediu à sua secretária que procurasse bons apartamentos perto da sede da empresa, em uma área bem 76
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localizada da cidade. A moça apresentou algumas possibilidades para compra e aluguel, mas nenhuma satisfez a vontade de sua mãe. Então, os dois, mãe e filho, passavam parte dos dias visitando apartamentos em diversos bairros em busca do lugar ideal. Em uma destas visitas, descobriram um prédio recém-construído, no bairro de Pinheiros, próximo ao renomado clube de mesmo nome e também de um dos shoppings mais caros e chiques da cidade. Um bairro nobre e aconchegante que ficava perto de tudo e englobava todos os quesitos presentes na lista da Sra. Cassidy. Havia vários restaurantes, muitas praças, teatros e estações de trem e metrô. Além da vantagem de ser o mesmo bairro onde se encontra a empresa atualmente administrada por seu marido. Pensaram ter descoberto o local perfeito para eles. Todavia, ao contatarem os responsáveis pela venda e locação do imóvel, descobriram que existiam apartamentos vagos, mas apenas para venda, e que as chaves só seriam entregues em três ou quatro meses, pois teriam que terminar os últimos detalhes antes da inauguração do edifício. Os dois consideraram a possibilidade de procurar uma outra locação próxima. Mas ao entrarem em um dos apartamentos modelo, levados pela curiosidade, tudo mudou. Sua mãe se encantou tanto com o lugar que foi impossível fazê-la mudar de ideia. Os cômodos eram amplos e claros, a vista da cidade era maravilhosa. Daniel não pôde deixar de imaginar como seria viver ali, ao menos quando viesse visitar seus pais. Comprar um apartamento não era bem o plano do Sr. John Thompson, mas com a insistência de sua esposa, as vantagens do contrato e o local privilegiado, ele se sentiu tentado a conhecer o lugar. Instantaneamente se encantou tanto com o local quanto ela e seu filho. Sabia que suas economias cobririam a maior parte do valor e poderia quitar o restante em pouco tempo com o bom salário que ganhava agora na presidência da empresa. Além disso, sempre aplicara parte de suas economias em ações, o que vez por outra lhe rendia bom retorno. Conversaram um pouco sobre o assunto e decidiram que ficariam com o imóvel. Afinal, por mais que não pretendessem viver no Brasil por toda a vida, um imóvel é sempre um investimento valioso. Assim, fecharam negócio e ficaram ansiosos para iniciarem dali a alguns meses a reforma do lugar. Daniel não se importava em ter passado tardes e mais tardes com sua mãe em busca de um local para morarem. Ao contrário, Presenças
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achava que era um modo bem interessante de conhecer várias localidades e residências. Sempre que visitava um novo apartamento se perguntava quem teria vivido ali, como seriam os futuros inquilinos, qual seria a história das pessoas que deixaram suas marcas nos locais. E, além disso, era o tradutor oficial da Sra. Cassidy, que quase nada sabia dizer em português até o momento. Com o fim desta missão ele agora teria mais tempo livre para vagar pela cidade e com isso sentiu a necessidade de ter seu próprio carro. Sua nova missão agora seria convencer seus pais dessa necessidade, já que ambos se sentiam mais seguros com o filho andando de táxi e não dirigindo no trânsito caótico de São Paulo. ☼ Daniel perambulava pela cidade à toa, aproveitando o dia ao máximo e retornava para o hotel quando considerava perigoso permanecer sozinho na rua. Havia encontrado pessoas legais no seu curso, mas não tentou estreitar laços de amizades com nenhuma delas até então. Não é que não quisesse fazer amigos, mas até o momento ele não se deu ao trabalho de procurar uma companhia para sua empreitada de desvendar os mistérios de São Paulo, tão entretido que estava na procura do apartamento certo para seus pais. O que Daniel não sabia, nem tampouco imaginava, era o fato dele ter se tornado alvo de todas as fofocas da escola que frequentava. Tanto por sua estonteante beleza, quanto pelo seu jeito tão simpático e reservado, ele atraiu os olhares desejosos das garotas e curiosos dos rapazes que cursavam as diversas modalidades das aulas de verão. Aproveitando o tempo extra, resolveu se dedicar um pouco ao estudo on-line e se dirigiu para o laboratório da escola. O lugar estava quase vazio, exceto por um garoto, que se aplicava praticando algumas sentenças em inglês com um microfone, a uns dois computadores de distância. Daniel navegou pela internet durante alguns instantes, procurou sites de compra e venda de carros, pesquisou alguns modelos, apenas para ter uma ideia dos preços. Entediado, lançou outro olhar ao rapaz ao lado e decidiu puxar assunto. Chamou-o em português, mas o garoto não pareceu ouvir. Tentou mais uma vez. Nada. Só então se deu conta de que o rapaz
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estava usando fones de ouvidos e entendeu que teria que chegar mais perto. Saiu de sua cadeira e foi até lá. Parou ao lado do garoto que parecia bem entretido em seus estudos, ansioso demais, até. — Olá! — disse tentando usar seu português com perfeição. — Opa! Desculpe! Você está falando comigo há muito tempo? — o garoto, extremamente simpático, respondeu no susto. — Na verdade, esta é a terceira tentativa. Meu nome é Daniel Thompson, prazer em conhecê-lo! — respondeu sorrindo. O rapaz retribuiu o cumprimento e disse seu nome. Daniel então continuou: — Meu português não é perfeito. Espero que você consiga me entender. Estou na cidade há duas semanas, mas estudo há um tempo maior. Vou ficar por aqui por uns meses ainda... — parou, um tanto incerto, sem saber como continuar. Felizmente, Caio, o simpático brasileiro, parecia ter assunto de sobra e continuou a partir daí. — Que legal! De repente, a gente pode estudar junto. Eu tenho mesmo que melhorar meu inglês, também posso te ajudar com seu português se você quiser, é claro. Daniel abriu um largo sorriso e a tensão, comum em qualquer abertura de conversa, se dissipou completamente. Os garotos continuaram a conversa, meio lá meio cá, inglês e português na medida do possível. Daniel expôs sua vontade de comprar um carro e Caio, empolgado com o tema, o ajudou em sua pesquisa. Depois disso, conversaram sobre tudo e mais um pouco. Trocaram telefones, e-mails e no fim da tarde pareciam se conhecer há séculos. De um modo estranho, Daniel sentia que aquele moço lhe era familiar, como se fossem amigos há muito mais tempo do que somente algumas horas.
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PERTO
Caio saiu da aula e entrou no laboratório de estudos. Havia terminado mais uma aula do curso intensivo de inglês e ele pretendia praticar um pouco mais antes de precisar ir embora. Como de costume, no último mês, encontrou Daniel estudando com um headfone em um computador no fundo da sala. Andou até ele e deu uma batidinha em seu ombro para chamar atenção. Desde que se conheceram, havia se tornado rotina estudarem juntos no laboratório após a aula. Se encontravam quase sempre no laboratório, sem precisar combinar. E passavam um tempo conversando, hora em português, hora em inglês, tirando dúvidas, aprendendo gírias. Caio sentia que essa troca havia melhorado rapidamente seu nível de inglês e também percebia melhora na pronuncia do colega. Os dois engrenaram em uma conversa animada quando Caio reparou que o amigo pesquisava sobre a vida noturna da cidade na tela de seu computador. Só então lhe ocorreu que, talvez, o rapaz não tivesse muitos amigos em São Paulo e pudesse se sentir isolado ou solitário algumas vezes. E com isso ele poderia ajudar. — Ei, tô vendo que você tá procurando alguma balada pra ir — disse sem preocupação de parecer intrometido. — Balada? — Ops... é, balada, casa noturna, boate... enfim. Algum lugar pra sair, dançar, conhecer gente... garotas... — Ah! — o rapaz soltou um risinho que tanto poderia ser enigmático ou constrangido. — Na verdade estou mesmo. Ainda não consegui conhecer a vida noturna da cidade. Caio encarou o amigo com um olhar malicioso e seu sorriso de ‘vendedor experiente’ e disse calmamente: 80
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— Meu amigo, seus problemas acabaram! Você vai conhecer a ‘vida noturna’ de São Paulo, com a melhor festa do ano. A da minha galera, no próximo sábado. ☼ 27 de novembro de 2014 Quinta-feira Amanhã! Estou ansiosa , nem sei ao certo porquê ... Serão os brinquedos perigosos? Será Lucas? Serão as férias? Às vezes sou mesmo uma adolescente boba com problemas fúteis... E é tão bom... H.J.
Helena colocou a caneta no meio do caderno e o fechou apressadamente. Apertou o botão de parada um tanto desajeitada, desceu do ônibus e seguiu direto para a sua antiga escola de idiomas. Havia terminado seu curso de inglês um ano antes, mas tinha marcado de se encontrar com seu irmão na porta do estabelecimento. Depois, seguiriam de carro até um restaurante, onde jantariam com seus pais. A escola ficava apenas a alguns metros de um ponto de ônibus e de uma estação do metrô. Ela costumava alternar entre um percurso ou outro, mas dessa vez preferiu ir de ônibus. Assim que chegou na escola, entrou e foi direto cumprimentar as recepcionistas, sempre tão simpáticas. Todas a conheciam de longa data. Estudara ali por anos. E, curiosamente, ao contrário da maioria das pessoas de sua escola regular, não estranhavam seu comportamento isolado. Havia um rapaz parado na recepção, tentando pedir algumas informações em português para uma das recepcionistas. O garoto parecia se esforçar bastante numa tentativa de aproveitar ao máximo o que aprendera do idioma. Helena achou graça e ficou prestando atenção enquanto se aproximava da recepção. Ele estava de costas para ela, com as mãos apoiadas no balcão. Ela não pôde Presenças
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deixar de notar o quão chamativo ele era: loiro, branco e muito, muito alto. Estava vestido casualmente com um bermudão jeans largo e rasgado e uma camiseta branca um pouco colada ao corpo, o que deveria definir todos os seus músculos peitorais, ela imaginou, já que suas costas pareciam perfeitamente delineadas, tais como seus braços fortes, mas não exagerados. Seus enormes cabelos loiros caíam como uma cachoeira ao longo de suas costas. “Uau!”, pensou, mesmo sem conseguir ver seu rosto de onde estava. Ele ainda permanecia de costas, conversando com a recepcionista. Helena se aproximava a passos lentos, curiosa. Queria olhar o moço de frente. Imaginava como seria seu rosto, já que de costas ele parecia ser perfeito. Estava agora a meio metro do rapaz. Foi quando viu: ali em sua mão direita, apoiada na beirada da mesa da recepção, um anel. Exatamente igual ao seu. A metade de um sol prateado que parecia encaixar perfeitamente com o que a menina usava em seu polegar esquerdo. Uma sensação de falta de ar apertou o seu peito, arrepios e mais arrepios percorriam seu corpo e seu coração acelerou. A garota congelou onde estava sem saber o que fazer. Agora, já não era apenas a curiosidade que a movia. Havia algo mais. Ela queria chamá-lo, mostrar o seu anel, perguntar alguma coisa que estava engasgada, mas não sabia o quê. Pensou por alguns segundos em que desculpa daria para abordar o rapaz assim, sem sentido algum, e não encontrou nada. Respirou profundamente sem tirar os olhos do anel do garoto e continuou andando. Quando estava prestes a tocá-lo, porém, ouviu a voz de seu irmão a chamando da porta de saída: — Helena! Vamos! Ela se virou instintivamente e avistou o garoto na porta, quase do lado de fora a esperando. Imaginou por onde ele deveria ter passado já que não o viu na entrada. Mas isto agora não tinha importância. Ela precisava olhar para o rapaz, agora atrás dela, mas não teria mais tempo. Hesitou por um segundo, parada, olhando para seu irmão que a encarava. “Droga! Eu estava tão perto...” Automaticamente, caminhou na direção do seu irmão e ainda o viu acenar para alguém que se encontrava dentro da escola, antes de cruzar a porta de vez. Não olhou para trás. Estava revoltada consigo mesma. — De onde você saiu? — perguntou sem conter a decepção.
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— Estava no carro guardando meus materiais. Achei que você demoraria mais um pouco. — Ah!... Vamos então. Os dois se dirigiram ao carro em silêncio. Helena estava revoltada por não ter tido coragem suficiente para tocar o rapaz à sua frente antes de sair, e Caio não pareceu notar nada de diferente em seu humor. ☼ Dentro da escola, algo parecido aconteceu com Daniel. No momento em que chamaram por Helena, ela girou seu corpo imediatamente na direção da voz e ele, num reflexo, sem saber o porquê, também se virou para olhar. Aquele nome, dito assim, do nada, o deixou paralisado. Um estremecimento de proporções indescritíveis percorreu seu corpo e ele sentiu seu estômago se revirar. Mãos fortes pareciam apertar seus pulmões o impedindo de respirar. Não entendia tais sensações e, quando se virou, a viu ali. Parada, de costas para ele, a menos de meio metro de distância. Parecia hesitante. Seus longos cabelos escuros e cacheados estavam soltos como um cobertor em suas costas. Ela usava uma blusa frente única, presa por uma fitinha amarrada em seu pescoço, de acordo com o que pôde avistar através dos seus cabelos. Uma calça jeans escura e um par de tênis All Star, também roxo, completavam seu visual. Seus braços estavam caídos ao longo do corpo e ele pôde ver, em sua mão esquerda, no polegar, o anel. Conhecia bem aquele anel. Usava um no seu polegar direito o tempo todo. Por muito pouco não tocou a garota para fazê-la se virar. Só então o avistou parado na porta. Recebeu um cumprimento e acenou de volta, decepcionado. Helena seria sua namorada? Nunca chegaram a conversar sobre isso. Aquela hipótese o deixou irritado. Não entendia. Nem ao menos havia visto seu rosto. Entretanto, se lembrou de que teria uma oportunidade. Notou que deixara a recepcionista, tão solícita, a espera de uma resposta e voltou-se para ela, sorrindo fracamente. Após tirar todas as suas dúvidas retornou ao hotel. Não parecia o melhor lugar para ir, porém, aquela sensação estranha de um enorme vazio em seu corpo o deixou sem disposição para sair. No caminho, recordou-se de um parque muito bonito que ficava a poucos metros de onde estava hospedado e caminhou até lá. Presenças
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Procurou um lugar onde pudesse se isolar do mundo e deitou-se na grama perto de um lago cheio de patos. Ficou ali por horas, imaginando quem seria aquela garota que esteve tão próxima e tão longe de seu alcance ao mesmo tempo. “Helena...” Era só o que sabia sobre ela. E ela tinha um anel... O anel. ☼ Helena desceu do carro em silêncio. Mal abriu a boca em todo o trajeto, limitava-se a responder algumas perguntas de seu irmão, apenas. Estava pensativa. Queria perguntar a ele sobre o rapaz, mas achou melhor não entrar neste assunto. Não saberia dizer se ele desconfiou de suas intenções quando a chamou. Mas Caio nada comentou. Esta suposição a deixou um pouco mais aliviada. Encontraram seus pais esperando na porta do restaurante. Era uma cantina Italiana aconchegante que costumavam frequentar. Sua mãe perguntou por Camila. Como as duas não desgrudavam, achou possível que Helena a tivesse convidado para o jantar. Camila era como parte da família e não precisava de convites insistentes para se juntar a eles. Caio fez uma careta disfarçada, à menção do nome da garota. Há duas semanas que Camila não desgrudava de Thiago, o que o deixava completamente irritado. Mas ele prometeu a si mesmo que só interferiria na relação dos dois se o rapaz oferecesse algum perigo. Helena respondeu a sua mãe distraidamente, dizendo que havia se esquecido de chamar Camila, pois passou o dia todo na rua. E então mudaram de assunto. O jantar correu bem. Seus pais estavam animados com as possibilidades de Caio para o ano seguinte. O garoto não havia decidido para qual universidade iria caso tivesse muitas possibilidades, mas insistia em querer sair do país, do estado, ou pelo menos da cidade, para desespero de sua mãe que o queria por perto. Nenhum dos três pareceu perceber a ausência de Helena na conversa. Como sempre foi muito calada, para eles, ela parecia estar no seu normal. Embora um pouco mais quieta. A garota passou o jantar inteiro pensando nele. Em sua cabeça via e revia aquela mão branca com pelos finos e dourados (porque
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até nisso ela tinha reparado) apoiada na mesa e, no polegar, o anel. Exatamente no polegar, como o dela, só que no oposto... — Helena! Helena! — sua mãe a tirou do devaneio. — Você quase não comeu, querida. Há algo de errado com seu prato? — Não, mãe. Está uma delícia! Estou comendo sim — tentou disfarçar com um tom animado na voz. Sua mãe a observou desconfiada e em seguida voltou-se para o assunto da noite. Seu pai, porém, interrompeu seus pensamentos novamente, antes mesmo que tivesse tempo de voltar para aquela tarde, que agora já lhe parecia tão distante. — Lê! Você não acha que é exagero da sua mãe não querer que o Caio vá para outro país? — Hein? — O Caio, Helena! Com essa ideia de intercâmbio... Imagine! Perder um ano de faculdade para estudar inglês em outro país. Então para que pagamos o curso que vocês frequentam há tanto tempo? Aquela informação pareceu interessá-la e logo passou a prestar mais atenção à conversa. — Bom, mãe, eu não gostaria de ficar longe do meu irmão. Mas a senhora sabe que é muito importante falar inglês fluentemente, e se ele conseguir uma família ou um local fora do país para ficar... — hesitou. A ideia de ficar longe de seu irmão doía, mas entendia que era melhor para ele. — Bom, quem sabe eu vá junto!? — Ah, não! Agora terei que perder os dois? Nem pensar mocinha! Você ainda tem um ano de ensino médio para cumprir. — Que exagero mãe! Me perder... — Caio retrucou às gargalhadas. Pedaços da massa que mastigava quase saíram por seu nariz. — Tá bom! Eu entendo a importância de tudo isto e blá, blá, blá... Mas não gostaria de ficar longe do meu bebê. Caio fez uma careta. Helena e seu pai desataram a rir. O clima descontraído fez com que ela se animasse um pouco. Entretanto, nem por um momento conseguiu se esquecer daquele rapaz enorme, de costas, com o anel em seu polegar direito. Sua curiosidade por ele chegava a doer. ☼ Chegaram em casa mais tarde do que o habitual. A noite estava linda e o céu forrado de estrelas. Helena foi direto para seu Presenças
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quarto em busca do seu caderno. Sentou-se no banco acolchoado encostado na janela, que era na verdade a tampa de um baú que tomava toda a extensão de sua janela, e olhou para o céu. Havia pedido a seus pais que construíssem aquele banco sob medida em um dos seus aniversários, pois sempre desejou ter um lugar assim, como via tanto nos filmes estrangeiros. Era um dos seus lugares favoritos em toda a casa. Com seu diário em mãos deixou-se fitar o céu por vários minutos sem nada escrever. A noite estava convidativa. Queria poder voar naquele momento. Fechou os olhos por alguns minutos imaginando que saia do seu corpo e atravessava as árvores do seu quintal. Em seguida, se viu voando por cima das casas de seu bairro e depois voltando para sua janela, entrando novamente em seu corpo. Como seria bom voar, esquecer de tudo o que não sabia como solucionar... Abriu os olhos na direção do céu. Estava realmente lindo. Então se voltou para o caderno em suas mãos, puxou a caneta da borda, o abriu e escreveu somente: Dia 27 de novembro de 2014 Quinta-feira Ainda... O anel ... ele tinha o anel ...
Helena ficou ali, sozinha, olhando o céu enquanto revivia as estranhas sensações de seu corpo ao avistar a joia no dedo do garoto sem rosto. ☼ A muitos bairros de distância, Daniel também fitava o céu. Havia retornado tarde para o hotel e nem se lembrou de comer. Estava agora sentado em seu quarto, olhando a noite escura e estrelada à sua frente. Dali, tinha uma visão privilegiada de vários pontos da cidade. Era linda. Milhares de luzes coloridas que se estendiam por quilômetros incontáveis. Pessoas andando lá embaixo. Carros e mais carros nunca paravam de passar. E os sons. Mesmo à noite, sempre era possível ouvir os sons de São Paulo. Imaginou que por dentre aquelas luzes, em alguma casa, em algum lugar, ela também 86
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poderia apreciar o céu. “Talvez ao lado de Caio”, constatou com desgosto. Revirou os olhos e mirou o céu novamente. “Poderiam ser irmãos. Mas são tão diferentes... E o anel... Por que essa garota estranha não sai da minha cabeça?” Tentou deixar esse pensamento de lado, mas foi sem sucesso. Ainda pensava nela. Ainda pensava no anel. E então, subitamente uma possibilidade quase absurda passou por sua cabeça: “E se for ela? E se seu rosto for aquele rosto?” Naquela noite não dormiu. Desejava mais que tudo que o sábado chegasse. Rápido.
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VOAR
Helena havia passado muito tempo com Lucas nas duas últimas semanas de novembro. Ajudou o garoto a estudar para suas provas substitutivas, de bom grado, e se arrependeu de ter imaginado interesses baixos vindo dele. Por isso queria recompensá-lo. Para sua surpresa e deleite de Camila, ela admitiu que a companhia dele era extremamente agradável e que os dois se divertiam muito juntos. Para Lucas, o tamanho do que sentia por Helena havia se multiplicado por mil em questão de dias. Tinha a sensação de que nunca antes apreciara a companhia de alguém como apreciava a da garota. Descobria coisas novas a cada momento e adorava tentar decifrar seus mistérios. Conversavam como jamais imaginara poder conversar com alguém. Era sincero, podia ser ele mesmo sem precisar manter uma pose de galã ou algo do tipo. Estava radiante com a relação dos dois. Tudo parecia perfeito. Na manhã seguinte ao episódio dos anéis, Helena levantou-se agitada. A turma havia combinado um passeio ao parque de diversões mais badalado da cidade para darem início às comemorações do fim das aulas. Ainda era sexta-feira da semana de provas substitutivas, porém, a maioria de seus amigos havia se livrado delas. Passara a noite experimentando diversos tipos de sensações. Muitas questões insistentes vagavam em sua mente e ela não conseguiu dormir. Entretanto, não se sentia cansada. Apenas ansiosa. A vontade de voar que sentira na noite anterior era fator dominante em seus pensamentos. Decidiu, então, que voaria. De alguma forma ela voaria. Após tomar um banho e se arrumar, resolveu descer para tomar café com sua família. Haviam alguns sons vindos da cozinha, no 88
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andar de baixo, então deduziu que todos já deveriam estar acordados. Seus pais sairiam cedo para o trabalho e Camila já deveria estar chegando para pegar carona no carro de seu irmão até o parque. Encontrou-os conversando alegremente. Enquanto sua mãe e seu pai se encarregavam de preparar o café, Caio colocava alguns pratos e talheres no balcão da cozinha, estilo americano. Ele parecia cansado, algumas manchas arroxeadas se formavam embaixo de seus olhos, o que não era comum. Helena se questionou se ele também passara a noite em claro, mas nada disse. — Bom dia, Lê! — seu pai cumprimentou imediatamente ao vê-la se aproximar. — Que bicho te tirou da cama tão cedo? — É mesmo, Lê! Pensei que precisaria te acordar aos chutes hoje — Caio provocou. — Vocês querem parar! Eu sou uma pessoa responsável, que não se esquece dos compromissos. — A garota riu com a ironia de seu comentário, sem conseguir manter a expressão de seriedade que desejava. Todos caíram na gargalhada. Mas ela não se enfureceu como de costume. — Ah, sim! Quando compromisso significa diversão... — seu irmão insistiu na brincadeira. Nesse instante tocaram a campainha. A fisionomia de Caio mudou instantaneamente. Ele parecia apreensivo. Helena correu para atender, já imaginando se tratar de Camila, e não estava enganada. Camila adentrou a cozinha, sorridente como sempre, e ao notar os quatro pratos e copos no balcão protestou, divertida. — Como assim! Esqueceram de mim? Caio, ouvindo essa reclamação, abriu rapidamente o armário para providenciar os utensílios que faltavam. Ela, percebendo o quão prestativo ele fora soltou um de seus comentários tão espontâneos: — Ah, Caio! Por isso que eu te amo. O garoto corou tão intensamente que foi se sentar ao lado oposto do dela para disfarçar. Como não poderia deixar de responder ao comentário, pois todos perceberiam seu constrangimento, apenas retrucou: — Você também é minha chatinha preferida! Pensou que o assunto morreria, mas a garota continuou: — Então, se é assim, posso te pedir um favor do tamanho do seu coração? Presenças
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— Ih, Caio! Pegou pesado agora — seu pai comentou. Camila soltou um sorriso em sua direção. Helena observava curiosa. Caio tremeu, mas esperou. — Você seria meu par hoje no parque? O garoto congelou. Podia sentir as batidas aceleradas do seu coração. Agradeceu em silêncio por estarem em lados opostos do balcão e nada disse. Ela continuou: — Bom, eu ficaria com o Thiago, mas ele não vai poder ir hoje. Não queria abusar da sua boa vontade. Se você já tiver combinado com alguém tudo bem. O nome de Thiago trouxe Caio de volta à realidade. Ninguém ali, com exceção de Helena, pareceu notar os momentos de tensão que aterrorizavam o garoto. Ela o observava cautelosamente. Teve vontade de dizer para sua amiga maneirar nos comentários, mas lembrou-se de que Camila nem desconfiava dos sentimentos de seu irmão por ela e conteve sua indignação. “Quem sabe a proximidade ajude os dois”, pensou enfim. Ainda travado, Caio sentiu um aperto no peito. Por que ele, sempre tão controlado, teve que se apaixonar por uma amiga, era o que se perguntava. Isso não importava agora. Todos pareciam esperar uma resposta e ele, congelado ali, não sabia nem dizer quanto tempo havia se passado. Lutou com a dor arrebatadora que o invadiu ao ouvir Camila dizer o nome de outro e respondeu, sempre mantendo seu sorriso tão cativante: — Claro, ‘minha chatinha’! O que eu não faço para evitar algumas lágrimas? Mas saiba que terei que decepcionar uma dúzia de garotas que aguardam na fila para serem meu par hoje... — retrucou convencido. — Ah, vai mesmo! — Helena saiu em sua defesa. — Um perfeito cavalheiro! Como eu te ensinei! — seu pai comentou sorridente. — Ah, claro! — Dona Ana não deixou passar despercebida sua ironia. Mas concordava com o marido quanto ao cavalheirismo do filho. — Então eu serei privilegiada! — Camila não perdia o jeito. Terminaram o café conversando sobre outros assuntos. Seu Jorge e Dona Ana se despediram algum tempo depois e saíram para trabalhar. Antes, ainda perguntaram para seus filhos se precisavam de algum dinheiro e, como obtiveram um ‘sim’ caloroso em
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resposta, os dois abriram suas carteiras e distribuíram algumas notas, advertindo para que tomassem cuidado no passeio. Mais alguns minutos se passaram até que por fim, os três também deixaram a casa e se encaminharam para a frente da escola, onde a turma estaria reunida aguardando. Lucas já se encontrava lá, esperando por Helena. Mal a garota saiu do carro, ele a puxou de encontro a si. Ela nem teve tempo de cumprimentar o restante do pessoal, surpreendida pelo beijo ansioso do rapaz. — Eu estava morrendo de saudades! — ele sussurrou em seu ouvido. — Mas só não nos vemos há um dia! — ela respondeu normalmente, sem emoção. Aquele comentário pareceu não agradar o garoto, que deixou seus braços afrouxarem um pouco ao redor da menina. Ela, por sua vez, aproveitou o momento para direcionar cumprimentos aos demais do grupo. Não queria parecer mais antissocial do que já era. Todos levaram algum tempo para decidir como fariam a divisão dos carros e quem teria que ir de metrô para o parque. Parecia injusto deixar que alguns garotos tivessem que tomar uma condução até lá. Contudo, poucas pessoas da turma tinham carro, então não havia como escapar deste impasse. Distribuíram-se pelos seis carros que tinham e uma boa parte ainda sobrou para ir de metrô. Após todos terem tomado seus lugares, puderam prosseguir com a viagem. No carro de Caio estavam Camila no banco do copiloto com ele ao volante e Helena, Lucas e Alessandra, uma das garotas indignadas por saber que Camila havia lhe tomado a oportunidade de ter Caio como par no passeio, no banco de trás. O percurso até o parque foi demorado. Era manhã de sexta-feira e a cidade estava parada, como sempre, por causa do enorme tráfego diário de veículos. Mas como já esperavam que fosse assim, haviam combinado de saírem bem cedo, para sobrar mais tempo de aproveitarem o dia, mesmo com tanto trânsito no caminho. Chegaram ao parque já perto do horário de abertura e a turma se reuniu novamente na fila de entrada. Todos estavam extremamente alegres com o fim das aulas. Faziam comentários sobre os brinquedos que iriam primeiro e vez ou outra também falavam sobre a festa que aconteceria no dia seguinte. Lucas pareceu um Presenças
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pouco triste ao ouvir alguns comentários. Estava segurando Helena em seus braços, com a cabeça encostada em seu ombro esquerdo esperando sua vez na fila em silêncio. Helena, de costas para o garoto, sentia que algo estava estranho e resolveu perguntar o que era: — Há alguma coisa errada? — perguntou ainda de costas para ele. — Não... — ele hesitou por um momento. — Bem... é apenas uma notícia ruim. — Me conte! — Vou ter que viajar hoje à noite. Problemas de família. Tentei escapar, mas não tive como — suspirou. — Amanhã não poderei ir à festa de fim das aulas. — Ah... — soltou a garota demonstrando pouca emoção. Depois, arrependida pelo seu descaso repentino tentou amenizar. — Aconteceu alguma coisa grave com alguém? Alguém doente? — Ele negou. Assim, um pouco mais aliviada por saber de que não se tratava de doenças familiares, tentou animá-lo. — Poxa! Quer dizer que vou ter que passar a noite segurando vela da Camila ou do meu irmão? Lucas sorriu. Parecia apreensivo. Estava prestes a pedir algo e não sabia como fazê-lo. Se fosse com qualquer outra garota teria certeza de que seria ouvido. Mas com Helena tudo era tão irregular para ele. Tomou coragem e continuou: — Lê! Eu quero te pedir um favor. Não vá à festa sem mim. — O quê? Helena virou-se para ele se livrando do abraço. Seus olhos pareciam soltar relâmpagos de raiva. — Calma, Lê! É que eu não gosto de saber que você estará rodeada por garotos sedentos enquanto eu não estarei por perto. — Ah, Lucas! Você jamais deveria ter me dito isso. O garoto pôde sentir no tom da voz de sua namorada que se arrependeria amargamente de ter feito aquele pedido. Helena estava praticamente espumando de raiva. — Então, vou resumir, pois não pretendo perder tempo com isso. Primeiro: é um pedido inútil. Segundo: eu vivi dezessete anos da minha vida sem que nenhum garoto tentasse atravessar a barreira do permitido pela minha integridade e não vai ser agora que isso acontecerá. Terceiro: coloque na sua cabeça de uma vez por todas que eu não sou como as garotas solícitas que caem de favores aos seus pés sempre que você pede. E, por último, mas não menos
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importante: eu vou fingir que esta conversa nunca aconteceu, pois pretendo, decididamente, aproveitar muito o meu dia e se você quiser, está convidado a aproveitá-lo comigo, assim que se esquecer da bobagem que me disse. O menino ficou boquiaberto. Sabia que ela estava certa. Se fosse com outra garota, teria seu pedido atendido rapidamente. Por que Helena tinha que ser tão diferente? Seu charme não a afetava em nada? Não teria como argumentar. Era melhor disfarçar e seguir o dia, senão, brigariam feio e ele provavelmente perderia qualquer oportunidade de tê-la novamente quando voltasse de viagem. — OK, me desculpe! Eu realmente não quero brigar. Helena não disse mais nada. Lucas a puxou de volta para junto de seu peito e permaneceu assim por algum tempo. Ela deixou-se ficar ali, com a cabeça encostada em seu ombro, pensando. Mais e mais uma vontade louca de sair voando a invadia. Não queria parecer ingrata ou infeliz. A companhia de Lucas era realmente importante, mas faltava algo e ela não sabia o quê. Voltava, agora, sensação do buraco se abrindo em seu estômago e o aperto no peito. Uma tristeza súbita e repentina que não lhe pertencia tentava penetrar em seu corpo e em sua mente. E para piorar, não conseguia parar de pensar no garoto do anel. Tentou afastar esses pensamentos. Queria realmente aproveitar o passeio. Os portões do parque se abriram e milhares de pessoas de todas as idades adentraram o espaço euforicamente, correndo para tomarem lugar na fila de seus brinquedos favoritos. Helena queria ir direto ao Elevador: uma torre de cerca de setenta metros de altura de onde as pessoas despencavam, sentadas e totalmente seguras, simulando uma queda livre por três segundos infinitos. Lucas não parecia muito animado com a altura do brinquedo, mas a seguiu até a fila. Também com eles, seguiram Caio, Camila e um grupo de umas sete pessoas da turma. O restante se dividiu em busca de outras atrações. O parque ainda não estava lotado, o que permitiu a eles tomarem um bom lugar na fila. Tiveram que aguardar apenas por alguns minutos antes de chegarem suas vezes. Helena estava ansiosa. Aquilo parecera, até o momento, o mais perto de voar que teria ali. Se não, ao menos seria uma queda livre. Sentou-se entre Caio e Lucas, Camila estava mais à sua esquerda ao lado do seu irmão. As doze pessoas tomaram seus lugares, tendo antes que deixarem Presenças
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tênis, sapatos, mochilas ou qualquer outro acessório que pudesse cair, diretamente no chão. Todas as travas se abaixaram e eles mal podiam se enxergar através delas. O Elevador subia e subia cada vez mais. Quanto mais alto, mais bonita a vista da cidade se tornava. Helena não sentia medo. Observava a cidade a quase setenta metros de altura esperando ansiosamente pela queda. Ao seu redor, podia ouvir os gritos apavorados das pessoas nos vários brinquedos espalhados pelo lugar. Isolou sua audição se concentrando na vista à sua frente. O Elevador continuava sua subida. Parecia não ter fim. Cada vez que pensava ter chegado num limite, percebia que não devia estar nem na metade do percurso. Era lento e torturante. Ela ansiara tanto por aquilo. Queria cair logo. Queria sentir seu corpo livre, esquecer de tudo e de todos. Simplesmente, não ouvir mais ninguém. De repente, um barulho absurdamente alto a tirou de seu devaneio. Com o susto, pensou que já estivesse caindo, mas percebeu em seguida, que se tratava de uma trava do brinquedo se encaixando em um suporte no topo. “Agora, a qualquer momento...” Não sobrou tempo para concluir qualquer suposição. Sem aviso prévio o Elevador despencou. Todos gritaram. Helena sentiu que seu corpo se erguia. Não tinha controle algum sobre ele, suas pernas balançavam para cima e para baixo desgovernadas e seu braço se soltou das travas. Não fechou os olhos, mas tentou gritar. Compreendeu, estarrecida, que o ar que saía dos seus pulmões não era suficiente para emitir som algum. “Queda de três segundos...”, pensou. “Quem foi que disse essa besteira?”. O tempo parecia não ter fim. Ela caía e caía e caía. E então, num baque surdo, subiu novamente. Depois desceu, lentamente até o chão. Havia acabado. Seus três segundos de queda livre se esgotaram. Saiu do brinquedo e foi de encontro a seus tênis, tentando recuperar sua coordenação motora. Estava tonta, mas feliz. Aquilo não tinha sido, nem de longe, semelhante com o que ela imaginara sobre voar. Mas ao menos lhe dera a ideia do que seria cair. Cair e apenas cair no vazio, sem ter com o que se preocupar. Ao seu lado, Camila tentava consolar Caio, ele estava mais zonzo do que qualquer um, xingando Helena aos berros por tê-lo feito entrar ali. Todos riram de suas reclamações mal-humoradas. Lucas parecia bem. Assustou-se a princípio, mas depois voltou ao normal. Camila abraçou Caio ao saírem, ele não se deixou resistir, sentindo que precisaria recuperar suas forças. Ela se aproveitou
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do momento para brincar com o amigo enquanto todos se dirigiam para uma das montanhas russas do parque. — Ah, Caio! Será que eu vou ter que segurar a sua mão no ‘Túnel do Terror’ também? Não seria nada romântico ter que te pegar no colo caso um monstro resolvesse nos seguir. Ele fez uma careta e depois abriu um largo sorriso. A ideia dos dois de mãos dadas o agradava. E ela estava ali, tão próxima, com as mãos ao redor de sua cintura enquanto ele a abraçava na altura do ombro. Podia sentir o calor de seu corpo, seu cheiro e até seus batimentos cardíacos ele jurou que ouvira, em seus devaneios. E por que Camila havia mencionado romantismo? Eles nem mesmo estavam juntos de verdade. Eram apenas amigos muito próximos que estavam fazendo companhia um ao outro. Mas e se ela, de repente estivesse usando a ausência de Thiago como desculpa? Não, não era o perfil de Camila. A garota era direta demais para usar joguinhos bobos em suas conquistas. Voltou a terra desiludido. Então, decidiu aproveitar ao máximo a proximidade da moça nas poucas horas que restavam do passeio. E para não deixar passar seu comentário, ainda retrucou: — Você é forte Camila, aposto que se o monstro se assustasse com você, poderia carregar nós dois ao mesmo tempo. — Idiota! Camila deu-lhe um tapa no ombro com a mão que estava livre e ele devolveu o gesto de maneira diferente: envolvendo-a pela cintura e apertando de encontro a si. Ela tentou se livrar do aperto com um safanão, mas Caio a beijou na bochecha e afrouxou o abraço casualmente. Helena observou durante todo esse período com olhos e ouvidos atentos. O restante da turma não pareceu notar qualquer coisa estranha no comportamento dos dois. Chegaram à fila da montanha russa em alguns segundos. Helena sentia que ainda faltava algo, não havia sido suficientemente libertador, para ela, despencar de setenta metros de altura. Estava distraída ao lado de Lucas, que conversava animadamente com seus amigos, quando sentiu que seu braço adormecia. Como já conhecia a sensação, não se assustou, apenas esperou curiosa. Jefferson não aparecera nas duas últimas semanas. Então o que haveria de errado agora? Poderia ser outro. Entretanto, ela sentia que não, era ele. Mas por que agora? Ele simplesmente se posicionou ao lado de seu braço direito e sussurrou em seu ouvido, com a voz que ela reconhecia e ninguém mais poderia ouvir: Presenças
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“Olá! Você está tentando se matar?” “Deixe de ser tonto! O que deu em você para aparecer agora?”, ela perguntou em seu pensamento. “Pensei que estaria sempre me observando.” “E estou.” Ela ficou sem reação. Desde que encontrara escrito em seu diário a frase ordenada por Jefferson em seu sonho ele não havia aparecido. Tudo parecia vazio e distante até aquele momento, mesmo que jamais houvesse esquecido qualquer detalhe daquele domingo. Helena havia se distraído com Lucas nos últimos dias e depois tivera o rápido encontro com o rapaz do anel na tarde anterior. Tantas coisas rodopiavam seus pensamentos que ela duvidara da promessa de Jefferson. Por um momento chegou à conclusão de que se ele realmente decidira ajudá-la, teria tido oportunidades suficientes, pois o confronto interno que vivia era tão intenso que nem ao menos sabia por onde começar. Mas ele não aparecera nem sequer uma vez, e, agora, com ela tentando realmente se divertir ele surgia como se nada tivesse acontecido! Tentou ficar indignada, mas a força de sua resposta, simples e curta não deixava margem para dúvidas. Se ele realmente estivera ao seu lado, por que não dissera nada desde então? “Se você esteve o tempo todo tão perto, então porque não me impediu de subir naquele brinquedo suicida idiota?”, perguntou usando o melhor tom de cinismo que seus pensamentos podiam conter. “Você tem livre arbítrio para fazer o que quiser com sua vida. Eu não tenho forças para impedi-la de se jogar de uma altura de setenta metros, se é o que quer saber. Estou aqui apenas para alertar e aconselhar. E, aliás, eu gostei muito da resposta atravessada que você deu para seu namoradinho sobre a festa.” “Isto não faz o menor sentido!...” “Sim, faz! Se você tivesse aceitado o pedido dele de não ir à festa eu teria que intervir.” “Por quê?” “Entre outras coisas, porque vai contra sua natureza independente.” “E o que mais?” “Sem mais detalhes. Mas e a queda? Foi suficiente para aplainar sua dor?”
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“Como ele sabia?”, se perguntou. Depois, se dando conta de que ele provavelmente ouvira repetiu a pergunta diretamente a ele: “Como você sabia da minha dor?” “Conheço você mais do que parece. E também já passei por isto. Nada em minha vida parecia estar completo. Para dizer a verdade, ainda não parece. Eu sinto o vazio frequentemente. Só que com outra proporção. Quanto mais a observo mais me identifico com suas atitudes e com os seus sentimentos. A sua dor dói em mim também. Nossa ligação está mais forte.” Helena sentiu um nó se apertando na garganta. A vontade que sentia de voar aumentara. Certamente, uma queda livre de setenta metros de altura não fora suficiente para acalmar sua dor. Porém, a presença de Jefferson a deixava mais calma. Não entendia a causa, mas sabia que poderia contar qualquer coisa a ele, falar sobre tudo que ele acreditaria. Isso a consolou. “Sabe, não foi suficiente o Elevador. Eu tenho vontade de fazer algo maior. Sinto que tem algo me esperando, grande, mas eu não sei o que é.” “Olhe ao seu redor. Você ainda tem algumas opções — ele sorriu enigmaticamente. “Algumas opções...” — Helena ficou pensativa. Suspirou profundamente e olhou ao redor. O parque tinha inúmeras atrações, porém nenhuma lhe sugeria a ideia de voar. Voltou-se para Jefferson e perguntou: “Você vai ficar aqui comigo?” “Não nesse brinquedo.” A garota olhou para a fila e percebeu que sua turma seria a próxima a tomar lugar nos carrinhos da montanha russa. Quando olhou novamente para direção de Jefferson ele havia sumido. Helena deixou escapar um sorriso. Será que ele tinha medo de altura? Será que mortos podiam temer altura ou velocidade ou qualquer coisa que não mais danificasse seus corpos? Achou tudo muito estranho, tentaria descobrir algo mais tarde. Sua risada alta e inesperada chamou atenção de Lucas que ainda se distraía conversando com os amigos. Ele se virou para Helena e perguntou o motivo. — Não foi nada, Lucas. Está chegando a nossa vez. Como está o Caio? A menina se virou a procura do irmão. Para sua surpresa, ele e Camila pareciam entretidos em uma conversa duradoura, sem prestarem atenção ao que acontecia com as demais pessoas Presenças
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da turma na fila. Caio estava de pé de frente pra Camila, os dois conversavam alegremente quando ela pediu: — Caio, me ajuda a sentar no gradil. Ele estremeceu. Já havia passado por emoções demais naquela manhã. Tocara Camila mais do que o necessário quando passara mal no brinquedo anterior e teve que andar abraçado com ela. Agora isto. Pegar Camila no colo! Teria que fazer um esforço enorme para se conter e não a agarrar. Ele se aproximou mais da garota. Deixou seu rosto a centímetros do dela. Queria se testar. Ela ficou muda. Pela primeira vez, parecia que Camila estava embaraçada. Caio olhou diretamente em seus olhos por alguns segundos. Ela não desviou o olhar, mas corou levemente. Ele colocou suas mãos na cintura da garota e a ergueu de uma vez, deixando-a praticamente sentada no gradil. Ela agarrou-se ao ferro que formava o gradil de proteção da fila e firmou o seu corpo ali. Por uns segundos, Camila sentiu seu corpo amolecer com o toque de Caio. Um arrepio leve percorreu sua pele e seu rosto enrubesceu com o olhar fixo do rapaz. Ela não entendeu o porquê disto tudo. Nunca havia ficado sem graça na frente do amigo. O conhecia desde sempre. Achava-o lindo, maravilhoso, um ótimo companheiro. Mas nunca invejara as garotas que eram escolhidas por ele, nem ao menos tentara algo a mais. De repente, aquele olhar, tão profundo parecia abrir uma janela na alma do garoto. Ela o enxergou por dentro, e ele lhe pareceu extremamente sensual e carinhoso ao mesmo tempo. Tentou esquecer esses pensamentos. Nestes poucos segundos em que Camila pensava em Caio ainda tentando se firmar sentada no gradil, ele a viu enrubescer em sua frente. Tinha certeza. Certeza de que algo acontecera nos mínimos instantes em que a teve nos braços. Mas sabia que o melhor era desconsiderar qualquer reação. Rapidamente saltou para o gradil e se sentou ao seu lado. Camila saiu do transe ao ver que o rapaz sentara ali tão repentinamente. Os dois se olharam por uma fração de segundo, em silêncio. Em seguida retomaram a conversa normalmente. Parecia que nada havia ocorrido até então. Como não podia deixar de ser, Helena vira tudo. Era incrível como sempre pegava os momentos importantes entre os dois. Ela percebeu nitidamente a química que rolou entre eles. Como era possível que não tivessem se tocado disto? Para ela seria extremamente interessante ter a melhor amiga como cunhada. Entretanto,
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extremamente perigoso também. Ficaria confusa se alguma coisa acontecesse entre os dois que lhe pedisse uma tomada de lado. Não seria capaz de se decidir entre eles. Teria que ser cuidadosa. Eles que se entendessem. Esse pensamento a deixou indigesta. Decidiu não se intrometer mais na história, a menos que pedissem sua ajuda. Voltou-se para Lucas, um turbilhão de pensamentos rodopiava em sua mente agora. Fechou os olhos e viu, nitidamente, o anel. Enquanto isto, Camila e Caio ainda conversavam sentados no gradil de divisão da fila. Enquanto a vez deles no brinquedo não chegava, os dois nem sequer pareciam se lembrar do restante da turma. A conversa rolava tranquila, não havia dificuldades em encontrar assuntos entre eles. Camila desafiava Caio a ir novamente ao Elevador. Ele, indignado, tentava dar uma desculpa convincente sem querer parecer medroso para ela. — Caio, vamos! Três segundos. Nada mais. Você pode contar. É muito rápido! A gente nem vai sentir. — Seu tom era de quem implora por algo, contudo, seu olhar não conseguia esconder o desafio implícito no pedido. — Ora, Camila! Se gastarmos tempo em repetir os brinquedos, vamos perder muita coisa — disse tentando mostrar-se sensato. Este parecia ser o argumento perfeito para escapar da proposta da menina. — Tá! Você tem medo de altura. E daí? Prometo segurar a sua mão o tempo todo que eu conseguir... — A garota baixou a voz e chegou mais perto de Caio. Falou como brincadeira, mas estava provocando-o além do limite, sabia disso. Só não entendia o porquê. E mais, por que esta provocação a atraía tanto? Caio não tinha mais nenhum pelo de seu corpo no lugar. Estavam todos completamente eriçados com as provocações de Camila. Aquela aproximação, sua voz, mesmo seu desafio o deixava tonto. Sabia que, antigamente, nada disso teria efeito. Porém, desde que admitira a si mesmo seus sentimentos por ela, ficava difícil resistir a qualquer coisa que a menina pedisse. O que o irritava, todavia, era o fato dela não perceber o que fazia com ele. Ela não tinha ideia de como cada provocação, cada pedido, cada abraço era doloroso para ele. Ou será que sabia? Igualmente, ele resolveu que deixaria a coisa rolar, ao menos para ter certeza se ela estava consciente do que causava agindo daquela maneira, ou se eram provocações inocentes de amigos. Lutava consigo mesmo a cada segundo para não a agarrar ali, na frente de todos. Então propôs: Presenças
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— Vamos fazer o seguinte: Eu não quero ir a uma atração repetida, mas aceito o desafio de ir a qualquer outro brinquedo que você propor, com duas condições. A primeira é que você vá comigo. A segunda, é que você aceite um desafio proposto por mim também. Os olhos dela brilharam, era perfeito! Um desafio por outro. Que mal haveria, afinal. Ela não tinha medo de nada. Então aceitou de imediato, sem ponderar as consequências. — Aceito! Ele apenas sorriu, charmoso como sempre, e os dois continuaram a conversar. Helena agora estava impaciente. A cada minuto uma emoção diferente passava por ela. Jefferson não voltara ainda e seriam os próximos no brinquedo. Lucas, ao seu lado, notara alguma diferença em sua atitude desde que se encontraram na frente da escola. Agora observava de esguelha, enquanto conversava com outras pessoas, sem nada dizer. Aproveitou um momento em que o assunto esfriara com seus colegas e voltou-se para a namorada que aparentava estar distante. — Helena! Helena! — Não obteve resposta. Abraçou-a forte por trás e sussurrou em seu ouvido: — Helena! Você está viajando! O que aconteceu? Ainda com raiva de mim? Esta pergunta fora temerosa. Lucas não saberia dizer qual seria sua reação diante de um rompimento de Helena. Havia passado apenas três semanas desde o início de seu interesse por ela. Entretanto, seus sentimentos eram tão intensos. Sua proximidade era indefinidamente importante. E preocupava-se imensamente com a garota à sua frente. Sentia um impulso de protegê-la dos outros meninos. Sabia como eles agiam, ele também fora assim. Não queria que Helena sofresse com qualquer comentário enquanto ele não estivesse por perto. Somente não conseguia entender o porquê de ela ser tão teimosa. Helena voltou para a terra após ouvir o sussurro de Lucas em seu ouvido. Estava realmente viajando por outros planetas, por outras vidas e, principalmente, por outros sóis quando Lucas a chamou. Sua história nunca fora regular, mas as três últimas semanas a estavam pirando de vez. “Pareço uma louca”, pensou. “O cara mais gato da escola todinho para mim e eu viajando nas minhas loucuras. A plateia adoraria um showzinho. Sabe Deus quantas mocinhas solitárias estão esperando que a fila ande para mim neste momento.
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Mas eu não vou dar esse gostinho. Ainda não.” Deixou os pensamentos de lado e procurou fazer uma cara despreocupada que fosse convincente. Em seguida buscou responder casualmente ao namorado, mas nem ao menos lembrava qual tinha sido a pergunta. — Oi! Viajei um pouquinho sim, bobinho. Mas não por sua causa — foi só o que conseguiu dizer. — Você está com raiva pelas coisas que eu disse, não? — Não. Já passou, juro. Se você não disser mais bobeiras vou esquecer daquilo rapidinho — disse num tom manhoso. Em seguida virou-se para ficar de frente para o namorado e o beijou carinhosamente. Lucas a abraçou pela cintura enquanto retribuía o beijo. Para ele, seus beijos eram o paraíso. Apertou-a fortemente de encontro a seu corpo. Desceu sua boca em direção ao seu pescoço e a beijou ali. Helena sentiu cócegas, se moveu sorrindo, mas deixou que ele continuasse. Acariciou os cabelos do namorado com uma das mãos, a outra deixou em suas costas. Estava ficando arrepiada com as carícias de Lucas. Ele realmente sabia como fazer uma garota ficar zonza. Abriu os olhos por um momento e deixou-os vagar pelo parque. Examinou os brinquedos ao acaso. Lucas passeava as mãos por suas costas e beijava sua orelha discretamente. Pousou a cabeça em seu ombro por um momento e a apertou fortemente. Em seguida, tornou a beijá-la. Beijou seu ombro, cada pedaço que estava exposto, e foi subindo pelo seu pescoço mais uma vez. Helena continuava a olhar os brinquedos. Suas mãos ainda acariciavam as costas e os cabelos de Lucas. Aproveitava o momento distraidamente, quando viu: estava ali o tempo todo. Agora saberia como voar. Levantou a cabeça e beijou o garoto nos lábios. Suas duas mãos estavam em volta de sua nuca. Lucas a abraçou com uma das mãos pelo ombro e a outra na cintura. O beijo era interminável. Os dois se distraíram completamente. Algumas das garotas da escola que não gostavam nadinha da ideia do namoro deles estavam por perto, observando. Num dado momento, toda a turma pareceu notar. Mas eles nada percebiam. Até que, por fim, Helena sentiu um cutucão nas costas, enquanto Lucas levava um tapa, de leve, mas intencional de Caio, nas costas dele. Ela percebeu que Camila a cutucou e que tanto ela quanto seu irmão e o restante da turma olhavam curiosos para eles. Caio quebrou o silêncio: Presenças
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— Então minha querida irmã e meu futuro ex-cunhado morto — brincou, deixando que um tanto de seriedade sobressaísse em sua voz —, o carrinho está esperando, o moço está chamando e todo mundo está olhando. Vocês vão deixar passar a vez? Os dois olharam ao redor. Seus amigos os encaravam com expressões sarcásticas. Helena corou de vergonha e abaixou a cabeça. Haviam chamado muita atenção, ela nunca se permitiu tal distração, nem jamais se entregara a um beijo desta maneira. Estava muito ruborizada. Ao mesmo tempo pensava: “Bando de adolescentes recalcados. Por que não cuidam de suas vidas ou vão procurar a quem beijar? Até parece que são mais inocentes do que eu.” Lucas, por sua vez, estava calmo. Não tinha problemas em chamar atenção. Achava até bom que algumas pessoas tivessem notado como as coisas entre Helena e ele tinham se tornado fortes. Não que quisesse expor a garota. Mas queria marcar território de alguma maneira, para que os demais meninos do grupo não tentassem nada com ela. A única preocupação que lhe ocorreu, contudo, foi a reação de Caio. Com ele não queria problemas. Quando falou, procurou mostrar-se despreocupado: — Desculpe Caio! Não quero que você tente soltar minha trava na montanha russa. Não mesmo. Prometo ser amigo. Caio sorriu. Não havia ficado bravo. Estava apenas fazendo tipo. Como era de seu costume. Todos correram para dentro do brinquedo e tomaram acento nos vagões do trem. Helena e Lucas se sentaram na quarta fileira, Camila insistiu para ir na primeira com Caio. Ele topou, mas ela disse que este ainda não era o desafio e que ele não tentaria escapar depois. Ele concordou como um cordeirinho obediente. O brinquedo entrou em movimento. Uma subida inicial de tirar o fôlego se iniciou. Em seguida viria a descida. Muitas curvas, alguns loopings, mais subidas e mais descidas. Todos gritavam, abanavam os braços ou seguravam firmemente nas travas. Lucas estava com os braços levantados ao lado de Helena, ela também levantou os seus. Os dois deram as mãos. Gritaram. Helena aproveitou para gritar. Queria gritar até sua garganta secar. Num dos loopings o trem parou. Fazia parte do suspense do brinquedo, todos sabiam. Mas era assustador. A garota olhou para baixo, de ponta cabeça, de mãos dadas com o namorado. Imaginou que sua vida se parecia com isso: uma
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porção de coisas em desordem que ela teria que encaixar aos poucos. Os dois se olharam e sorriram. Ele a beijou rapidamente como pôde, naquela posição. O brinquedo começou a se mover. Gritaram mais. Algumas voltas depois, pararam. Muitos desembarcavam tontos. Outros alegres, planejando voltar para fila, outros se arrependiam amargamente. Sua turma estava bem. Caio e Camila haviam se divertido bastante no brinquedo. Lucas gostara, Helena também. Havia libertação na velocidade, pensava, e ao mesmo tempo, muito perigo. A tarde correu neste ritmo, de brinquedo em brinquedo, com uma pequena pausa para lancharem. Helena e Lucas aproveitavam bastante. A garota tentou desencanar um pouco de suas preocupações para aproveitar o dia. Vez por outra, Jefferson aparecia ao seu lado para fazer um comentário sobre algo ou alguém. Ela não se continha e ria. Ria porque estava conversando com um fantasma e ria porque ele era extremamente engraçado quando queria. A presença dele fazia bem. Não podia definir se estava certa em aceitar essa aproximação. Mas estava gostando. No seu mundo de loucuras internas, conversar com um fantasma amigo não era das piores. Embora já tivessem explorado o parque e passado por quase todas as atrações, ela ainda guardava uma carta na manga. De vez em quando olhava na direção do que queria. Como se o brinquedo fosse sair do lugar. Estava deixando mais para o fim da tarde, já que teria que convencer o seu irmão a deixá-la ir. Camila e Caio continuavam se provocando e pareciam se divertirem muito com isto. Num determinado brinquedo, ele teve a oportunidade perfeita para ‘zoar’ com a cara da garota que ficou tonta ao rodopiar de ponta cabeça por cinco minutos numa altura de uns trinta metros. Mas quando chegaram ao chão, Camila estava tão pálida que teve pena. Sustentou-a em seus braços até que chegassem a um banco e se sentou com ela. Helena se aproximou às pressas, os dois perguntaram a Camila o que poderiam fazer: — Camila, você está mais branca do que papel — Caio falou assustado. — Vou te levar até a enfermaria. Ele se preparou para pegar a garota no colo, mas ela recusou. — Nem pense nisso! Eu não vou pagar esse mico! — Camila, você precisa ir, amiga. Olha só como você está! — Tudo bem, eu admito que fiquei um pouco mal, Helena, mas, só preciso de uma garrafa de água gelada ou de uma bebida isotônica Presenças
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para repor o sal, caso seja uma queda de pressão. Pelo menos foi isso que meus pais me ensinaram a fazer nesses casos. Caio estava contrariado com a negação da garota em ir até a enfermaria. Ponderou por alguns segundos em levá-la à força, mas mudou de ideia. Correu para comprar água e uma bebida isotônica, como a menina orientou. Antes, advertiu que se ela não melhorasse em cinco minutos a levaria de qualquer modo até a ala da enfermaria do parque. Camila concordou vagamente. Lucas aproveitou para ir rapidamente ao banheiro, deixando Helena e Camila a sós, já que o restante do grupo que se encontrava com eles optou por continuar se divertindo nos brinquedos, como Camila insistira. Haviam se preocupado com ela também, mas vendo que estava em boas mãos, decidiram seguir com o passeio, deixando os quatro para trás. Helena aproveitou o momento de solidão com a amiga para perguntar: — Você está se divertindo bastante com o meu irmão? Camila ficou um pouco constrangida. Que tipo de pergunta era esta? Ainda mais vindo de sua melhor amiga! Desconfiou. Entretanto, relaxou a seguir. Por se tratar de sua melhor amiga, sabia que poderia lhe contar qualquer impressão que tivera até ali. Respondeu um pouco evasivamente: — Na verdade, amiga, estou me divertindo muito, muito mesmo! — Eu percebi. Nem parece sentir falta do Thiago, Cá! Helena não tinha o sexto sentido de Camila para avaliar o caráter das pessoas, contudo, por mais que ela lhe dissesse que Thiago era ótimo, ele não havia lhe causado tão boa impressão. Constatar que a garota não parecia sentir falta dele ali, para ela era um alívio. Talvez tivesse essa má impressão por conhecer os sentimentos de seu irmão pela garota, talvez não. Mas preferia Camila longe dele, não sabia o porquê. — Ah, Lê! Não sei! São coisas completamente diferentes! O Caio é meu amigo. Quase um irmão! Eu sempre me divirto com ele. É uma companhia perfeita para um parque. Cavalheiro, não me deixou nem pagar o meu lanche. Seu irmão é raro, você sabe. Ele me faz rir, é um cara bacana. Todos o adoram. E algumas garotas vão me odiar por tê-las privado de sua companhia. Mas é só. — Ficou pensativa por uns segundos. Sabia que estava omitindo informações da amiga. Ainda não entendia o arrepio que sentira quando Caio a ergueu na fila. — Bom, com o Thiago é diferente. Puro fogo. Ele não
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fala muito, mas beija demais. A gente mal conversa. Eu assisto aos ensaios e depois temos um tempo a sós. Ele, bem, ele é meio abusado. Mas é gente boa. Ela parou de falar e ficou pensativa. Helena notou cada mudança em seu olhar. Havia algo ali. Mas não queria perguntar mais nada. Fizera a amiga falar além da conta, já, ela ainda estava tonta e pálida. Era melhor não forçar. Camila, entretanto, carregou sua metralhadora de perguntas e disparou em Helena: — Mas e você, hein!? Dona Helena, arrasando corações! E deixando um exército de meninas atormentadas e sedentas pelo seu sangue. O que foi aquele agarramento todo na fila da montanha russa? Helena fez uma careta. Não queria comentar sobre aquilo no momento. Sabia que não poderia escapar de Camila, só pretendia adiar o assunto um pouco. Mas a insistência da amiga não deixou saída. — Olha, Mila... nem eu mesma sei o que aconteceu. Acho que me deixei levar. Lucas tem um charme difícil de resistir. Agora entendo porque as garotas estão com ódio mortal de mim. Ele é bom! As duas sorriram. Camila quase engasgou. Ainda estava enjoada e tentou ficar quieta. Caio já se aproximava. A garota fez um gesto para a amiga que significava que a conversa continuaria depois. — Está aqui, querida. Sua água e a bebida isotônica que pediu. A enfermeira disse que eu não deveria... — Espera aí! Você foi até a enfermaria? — perguntou surpresa. — Fui. Não fique brava. Eu só... — Não estou brava, bobinho, estou achando meigo! Camila sorriu, ainda meio pálida, em seguida, pegou a garrafa de isotônico e bebeu aos goles. Por último, bebeu mais água, pura, só para garantir que não enjoasse com a bebida. Teria que ficar quieta por alguns minutos para deixar fazer efeito. Porém, sua pressa por falar era tanta que desencanou dessa parte e voltou-se para o garoto: — Você está sendo perfeito comigo hoje, Caio. Melhor do que qualquer um seria. O garoto enrubesceu imediatamente. Tentou disfarçar o rubor olhando para baixo. Helena assistia a tudo calada, esperando por Lucas, que deveria estar enfrentando uma longa fila no banheiro. Presenças
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Caio estava ajoelhado de frente para Camila olhando para seus pés. A garota permanecia no banco, tomando sua água a goles grandes. A cor começava a voltar para sua face. Ela percebeu o ligeiro constrangimento do amigo e se culpou. Será que passou do limite de alguma coisa? Ele era seu amigo, não deveria se constranger assim. Largou a garrafa no banco e puxou o rosto do garoto para si. Em seguida, beijou-lhe a testa docemente como agradecimento. Caio permaneceu ali, de olhos fechados, nos poucos segundos que durou o beijo da amiga. Para ele pareciam horas. Abriu os olhos lentamente quando sentiu que sua boca se afastava e a encarou. Sentia-se cada vez mais incapacitado de resistir aos encantos da garota. Sentou-se ao seu lado e colocou os braços ao redor de sua cintura puxando-a para si. Camila deixou-se ficar encostada em seu ombro até se sentir melhor. Lucas retornou do banheiro e abraçou Helena, puxando-a para um banco ao lado de onde estava o casal. Ela não ofereceu resistência e se sentaram lá em silêncio. O garoto a beijou mais uma vez. Emaranhou uma de suas mãos em seus cabelos e com a outra tocou seu rosto suavemente. Ficaram assim por algum tempo. Caio e Camila, em silêncio, observavam os dois. Ele deixou sua mão direita escorregar do ombro, onde repousava agora, ao longo do braço da garota. E repetiu o movimento para cima e para baixo lentamente. Aproveitando cada centímetro de pele. Ela experimentava um arrepio diferente a cada toque, mas nada falou. Levou alguns minutos até que Camila se sentisse totalmente recuperada. Então eles retomaram o passeio. Começaram pelos brinquedos mais leves para garantirem que a garota não passaria mal. Depois enfrentaram alguns mais perigosos. Passava das sete horas da noite quando Helena decidiu que era tempo de enfrentar o irmão. Estava claro, o horário de verão já entrara em vigor há mais de um mês. Passaram em frente ao brinquedo e ela parou. Deslumbrada. Os três pararam ao seu lado. Lucas olhou desacreditado com a expressão da garota. Caio gemeu. Camila entendeu tudo. À frente deles, uma espécie de arco de mais de cem metros de altura que carregava em sua ponta cabos de aços e elásticos para prender as pessoas e atrás tinha um terceiro pilar para sustentação. Formando um corredor aéreo que se iniciava no topo do pilar e atravessava o arco e depois fazia um vai e vem. As pessoas eram
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puxadas para cima pelo pilar traseiro e lançadas para frente, percorrendo o corredor aéreo que causava a sensação de voo. Ficavam ali vagando no alto, voando, verdadeiramente. Agora ela saberia como voar. Helena sentiu o braço adormecer. Jefferson parou a seu lado com uma expressão indecifrável. Falou em seu ouvido: “Realmente não bastou o Elevador?” “Realmente, não!” “Então você vai mesmo...?” “Então, se eu puder eu vou...” “Você é maluca, Helena. Maluca!” “Alguma contraindicação?” “Você é livre para alçar seus próprios voos.” “Vem comigo?” “Não sei se consigo.” “Ao menos tente.” “Tudo bem.” Silenciaram suas mentes. Helena voltou-se para seu irmão. Notou que os três estavam boquiabertos, olhando aterrorizados para as pessoas que se arriscavam a “voar”. Camila parecia conter algo a mais em seu olhar. Era excitação. Ela pôde notar. Pensou que este era o caminho. Camila convenceria Caio. — Caio... — começou meio sem jeito. — Vamos? — Ah, não! Não, não, não. O rapaz estava assustado. Era impossível para ele, conceber a ideia de uma verdadeira queda livre, de uma altura de mais de cem metros. Olhou para a irmã, indignado. Será que Helena havia perdido o juízo? Primeiro foi o Elevador e agora isso? Por sorte, sabia que ela precisaria de sua autorização para embarcar numa loucura tão grande e ele estava disposto a não permitir que isto acontecesse e resoluto em não aceitar nada que o fizesse mudar de ideia. Lucas olhou para Helena, curioso. Ela parecia mais estranha a cada dia, mas agora era demais. Virou-se para ela e disse simplesmente: — Eu tô fora! Prefiro mil Elevadores a isto! — Será possível que vocês homens são um bando de covardes? — ela bufou, indignada. Neste momento, Camila, que permaneceu calada até então, com seu olhar enigmático, voltou-se para Caio com um sorriso imenso no rosto e disse alegremente: Presenças
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— É isso! Este é seu desafio, Caio. Ele ficou horrorizado. Rajadas de arrepios percorriam seu corpo da ponta dos cabelos à unha dos pés. Sentiu-se tonto. Agora era ele quem passaria mal e “pagaria o mico” de ir para a enfermaria carregado, pensou. Nunca havia imaginado o quanto temia lugares altos até então. Não era sua primeira vez no parque, mas foi a primeira vez que enfrentou o Elevador. Para ele, isso já havia sido um grande desafio, e agora isso. Ela queria que ele saltasse. E o pior: ele prometeu não negar. Sentiu um soco na boca do estômago. Procurou por ar para encher seus pulmões antes de responder qualquer coisa à amiga. — Ah não, Camila! Você está de brincadeira comigo, né? — Não, eu falo seríssimo. — A menina sentiu uma pontada de culpa ao ver a reação de medo do rapaz, mas não tinha como voltar atrás. Helena acompanhava a conversa em silêncio. Seu irmão estava pálido. Camila continha um brilho no olhar, que chegava à beira do sinistro. Ela imaginou se a amiga queria torturar seu irmão. Mas depois chegou à conclusão de que ela simplesmente estava se divertindo, de uma maneira estranha, com esse desafio. — Caio, você prometeu! — Eu sei, mas pensei que você gostasse de mim. Por que está querendo me matar? — ele falou com uma careta de horror e tons de desespero em sua voz. — Para de fazer drama. Nós vamos voar. — Voar... ou morrer? Por que, Camila? Por que você insiste em me torturar? A garota respirou fundo, olhou em seus olhos e disse calmamente: — Porque este é o tipo de desafio que eu só encararia com você ao meu lado. O muro que se erguera ao redor de Caio desmoronou. Não tinha mais volta. Segundo as regras do desafio que ele propusera, primeiro ela escolheria, mas iria com ele, depois ele escolheria e nenhum dos dois poderia recusar. Logo, ela não queria torturá-lo, apenas precisava de sua companhia para enfrentar a queda. Por alguns segundos ficou sem chão. Em seguida, reunindo forças e tentando demonstrar uma segurança inexistente, respondeu: — Beleza! Nós vamos então.
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Helena deu pulos de alegria ao seu lado. Caio voltou-se para ela. Havia se esquecido das pessoas ao redor. Nem ao menos se lembrara de que sua irmã havia feito o primeiro pedido. Olhou-a meio constrangido com o seu showzinho com Camila. Ela pareceu entender. Lucas estava quieto, porém decidido. Camila aguardava sorridente. O coração de Helena parecia querer saltar de seu peito rasgando-o, tão forte eram suas batidas. Os quatro se encaminharam silenciosamente até a fila de inscrição. Cada qual com seus anseios. Ao chegarem, Caio se informou sobre como autorizar as garotas menores de idade a praticarem o voo. Para sua surpresa, não houve muita burocracia e ele pôde rapidamente assinar uns papéis e pagar o preço estipulado na tabela para um voo triplo. Helena ficou em dúvida. Será que seu irmão não gostaria de voar sozinho com Camila? Ela não queria atrapalhar o momento mágico ou cômico dos dois. Então puxou seu irmão de lado, para que Lucas e Camila não pudessem ouvir o que dizia, e fez a proposta: — Caio, você não acha melhor eu pagar um voo sozinha para mim? Você vai com a Camila. Ele olhou desconfiado. Por que esta proposta inesperada? Será que Helena sabia de algo? Ele estava sendo assim tão indiscreto com seus sentimentos? A ideia de um voo solitário com Camila era tentadora, mas não passou por sua cabeça, nem por um segundo, abandonar sua irmã. A companhia dela jamais estragaria qualquer evento. Respirou profundamente. Sorriu seu sorriso tão cativante e então respondeu calmamente: — Helena, nem por um segundo eu pensei em abandonar você sozinha nesta loucura! Não sei o que se passa em sua cabeça totalmente insana no momento, mas, para qualquer desafio que eu venha a enfrentar, sua presença só me deixaria mais tranquilo. Você sabe que eu te adoro demais para não desejar sua companhia, não sabe? Então, a menos que você queira enfrentar isto sozinha, contarei com cada uma das duas ao meu lado para nosso primeiro voo. Voaremos os três juntos. Ou morreremos de medo, sei lá. Helena sorriu, rendida. Seu irmão parecia de mentira. Como era possível ter tanta sorte de ter uma criatura tão doce e tão perfeita ao seu lado, em meio a tantas coisas estranhas que rondavam sua vida? Caio era um anjo, um presente de Deus com o qual ela foi beneficiada também. Queria, sim, fazer um voo sozinha. Embora Presenças
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soubesse que não estaria totalmente só. Contudo, os argumentos de seu irmão a desarmaram. Ele poderia enfrentar aquilo com Camila, mas queria a presença dela também. Então, ficariam juntos, os quatro. Sim, porque Jefferson prometeu tentar participar também. — Não, Caio. Eu prefiro ir com vocês desta vez. Com tudo decidido tiveram que aguardar. Havia dois grupos a frente deles. Teriam que assistir a dois voos triplos antes de serem chamados. Permaneceram a maior parte do tempo em silêncio. A cada minuto, medo e excitação cresciam. Em cada um, a ideia de voar causava um impacto diferente: Helena sentia liberdade. Queria se sentir livre nos poucos minutos em que estaria no ar, com os braços estendidos como um pássaro. Caio estava aterrorizado. Mas não daria o braço a torcer, agora que já aceitara o desafio. Sua barriga doía. Se não os chamassem logo, teria que trocar o voo por um lugar no banheiro. Camila estava ansiosa ao extremo. Tanto pelo desafio quanto por sentir que aquele seria um momento importante de sua vida. Como algo que deve ser feito enquanto há tempo para loucuras. Lucas, por sua vez, achava que os três haviam pirado. Chamaram por Caio. O momento chegara. Bolhas explodiam no estômago de Helena. Caio sentia seu lanche subir e descer pela sua garganta. Camila respirava profundamente. Lucas agarrou Helena antes que ela pudesse seguir os outros para ser amarrada. — Escuta aqui sua maluca — disse misturando advertência e divertimento —, eu vou ficar aqui e filmar tudinho. É melhor a senhorita não ‘pagar um mico’ muito grande, senão eu coloco na internet. A garota gargalhou e começou a se afastar. Ele a segurou e puxou de volta, beijando sua boca suavemente. Continuou, sussurrando em seu ouvido: — E vê se volta inteirinha para mim. Helena se soltou e caminhou de encontro aos dois que já a esperavam vestidos. Vestiu a roupa protetora junto com eles. Era um tipo de vestimenta tripla, como se dividissem o mesmo pijama. Em seguida foram amarrados aos cabos que os levariam para o alto. Ouviram algumas instruções e então começaram a subir. Antes, Helena sentiu um pequeno formigamento em seu braço. Estava à esquerda de seu irmão. Um peso repentino em suas costas a incomodou, mas ela sorriu. Jefferson apenas disse em sua cabeça: “Você me paga!”
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Era uma subida em posição horizontal, os três, lado a lado. As pessoas diminuíam lá embaixo. Aos poucos, Lucas tornou-se apenas um ponto, tamanha a altura em que se encontravam. O silêncio era apavorador. Podiam ouvir as batidas dos corações dos três ali, ansiosos e excitados. Caio quebrou o silêncio: — Só mesmo as duas pessoas mais malucas que eu conheço para me fazerem passar por isto! Vocês me devem uma! Principalmente se voar alguma coisa além de nós lá embaixo. As duas soluçaram de tanto rir. Havia de ser assim. Caio nunca perdia uma piada. Este era seu jeito mais puro de agir. Quando a corda chegou ao limite e eles perceberam que não tinha mais volta, Helena e Camila se olharam enigmáticas. Cada qual deu um beijo rápido na bochecha do garoto e responderam em sincronia: — Por isso que nós te amamos... Voaram. A sensação fora indescritível, gritar era incontrolável enquanto seus corpos seguiam em direção ao chão numa velocidade recorde. Pensaram que não poderiam parar. Iriam cair de cabeça, mas ainda estavam longe. De repente, sentiram um arremesso para frente. Não iam mais em direção ao chão, balançavam agora para a frente e para trás com os braços abertos numa distância enorme. O chão parecia bem distante agora. E eles voavam. Para frente e para trás, gritando, sentindo o vento no rosto e um turbilhão de pensamentos na cabeça de cada um. Caio estava radiante. Conseguira superar o desafio melhor do que pensava. Além disso, a sensação era completamente nova, indescritível e maravilhosa. Estava voando com duas das pessoas mais importantes da sua vida ao seu lado, e saber que era a primeira vez delas nesta experiência o fazia se sentir importante. Camila estava feliz. Feliz por ter Caio e Helena como companhia neste momento. Se sentiu completa. Não havia tontura, enjoo ou dor. Era um momento perfeito. Como algo que pudesse ser riscado do seu caderninho de coisas para fazer nesta vida. Helena olhou para o céu. O Sol estava se pondo atrás de algumas montanhas ao longe. O claro do azul dava lugar a um tom de turquesa mesclado com o branco das nuvens. Tudo começava a parecer azulado lá embaixo. E à sua frente, o Sol era uma bola laranja escura avermelhada, se escondendo aos poucos. Se sentiu mais próxima dele. Lembrou-se do seu anel. Lembrou-se dele. Estava aquecida e realizada. Ouviu em sua cabeça a voz de Jefferson: Presenças
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“Está satisfeita?” “Confesso que esta experiência aqueceu um pouco o buraco cinza que mora dentro de mim. Nunca me senti tão conectada ao céu que amo tanto, quanto agora.” “Fico feliz por você!” “Obrigada por conseguir fazer parte disto comigo!” “Também estou feliz por isto.” Começaram a puxá-los de volta para o solo. Lucas aguardava ansioso. Havia gravado tudo com a câmera de seu celular. Queria conhecer os detalhes das sensações de cada um. Embora as caretas que gravara eram suficientemente engraçadas para dar-lhe uma ideia. Os três se encaminharam para ele gesticulando ao mesmo tempo. Palavras como: “Nossa”, “Foi Maravilhoso”, “Eu faria de novo” etc., saíam aos montes. Eles tinham os olhos brilhantes e realizados. Logo ao descer, Caio agarrou Camila e ergueu-a do solo. Ela o abraçou fortemente e não disseram nada. Rodopiaram assim por alguns segundos. Em seguida a colocou no chão e se voltou para Helena. Ela atirou-se nos braços de seu irmão piscando para ele e deu-lhe um beijo estalado na bochecha. Depois abraçou a amiga. Parecia um sonho realizado. Por mais que fosse apenas uma simulação, era perfeito. No momento em que estavam no alto puderam esquecer-se do mundo e se dedicaram aos pensamentos mais puros de suas mentes. A palavra era esta: purificador. Lucas agarrou Helena e a beijou sofregamente. Segurava ainda seu celular em uma das mãos e a contou que gravou tudo. A garota gostou da notícia, embora a ideia de ver suas caretas não fosse lá tão animadora. — Ainda bem que você voltou para mim inteira, maluquinha — ele disse beijando cada pedaço de seu rosto. — Deixa de ser bobo, você não sabe o que perdeu! Foi uma das melhores coisas que eu já fiz na vida! — Da próxima vez eu também vou — mentiu. Seguiram conversando animadamente. Faltava menos de uma hora para o fechamento do parque e eles ainda puderam aproveitar algumas atrações. Após o anúncio oficial de encerramento das atrações, encontraram-se com o restante do grupo na frente da bilheteria e dividiram-se nos carros para voltar para casa.
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Apesar do trânsito estressante da cidade, a viajem transcorreu tranquila. Todos estavam com o espírito aplacado após descarregarem tanta energia. Queriam descansar. Afinal, no dia seguinte haveria uma festa de grandes proporções para comemorarem o fim das aulas. Caio conversou quase o tempo todo com Lucas. Era bom que ele se mantivesse atento e os dois tinham muito assunto. Camila adormeceu rapidamente no banco do passageiro. Alessandra, a garota que foi com eles, entrou na conversa dos meninos. Helena, entretanto, sentou-se perto da janela e fitou o nada por muito tempo. Estava longe. Cada vez que piscava, se via no céu. Olhando o Sol se pôr, com os braços estendidos ao seu lado. Voou, sim! Este havia sido o seu primeiro voo! Sorriu sozinha com seus pensamentos.
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Daniel estava acordado, mas conservava os olhos fechados. Deitado de barriga para cima com um braço cobrindo seu rosto e o outro repousando sobre sua barriga à mostra, ele esperava. O Sol brilhava através da janela aberta de seu quarto. Não dormiu nada. Ficou a noite inteira imaginando quem seria aquela garota do anel. Ainda era sexta-feira e teria que esperar um dia mais para matar sua curiosidade. Estava ansioso. As horas passavam tão lentamente que era possível contar cada milésimo de segundo. Não sentiu vontade de sair do quarto hoje. Queria ficar ali, parado, esperando o tempo passar até que o sábado chegasse. Mas não teve esta opção. O telefone tocou, ele se virou de lado para pegar o aparelho no criado mudo. Atendeu. Ligação internacional. Estremeceu. Deveria ser a respeito do filme. Era estranho que não o tivessem procurado ainda em duas semanas. Conversou por alguns minutos com um dos produtores encarregados do elenco. Queriam saber como ele estava, se pesquisara algo a respeito do personagem, se tinha feito alguma mudança no visual etc. Depois informaram sobre o andamento dos contratos de locação e da adaptação do livro para o roteiro. Tudo corria bem. Foi bom ter notícias do andamento da produção do filme. Ao mesmo tempo lembrou-se que sua passagem pelo Brasil seria curta e ele precisava aproveitar mais. Ou pelo menos encontrar aquela moça de novo. Ainda assim, teria que esperar até o dia seguinte. Sua cabeça estava confusa. Decidiu se deitar novamente. Voltou a cobrir o rosto com um dos braços, como se com isto pudesse afastar qualquer pensamento a respeito daquela sensação. A sensação de que conhecia aquela garota, Helena, de algum modo. De algum sonho. 114
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Bateram à porta. Ele achou que poderia ser o serviço de quarto e se sentiu tentado a mandar embora, porém, antes que tivesse chance, ouviu a voz de seu pai o chamando. — Daniel, está acordado, meu filho? — seu pai falou em inglês. Daniel pensou por alguns segundos mais se responderia ou fingiria dormir, contudo, decidiu responder. Talvez seu pai precisasse de ajuda em algo, e seria bom ter alguma distração para aguentar a sexta-feira, que já lhe parecia tão comprida. Respondeu ao chamado de seu pai, também em inglês: — Estou acordado pai, espere um minuto, já abro pra você. Seu pai esperou em silêncio. Menos de dez segundos depois o garoto abriu e ele entrou lentamente. Daniel correu para o banheiro para escovar os dentes e seu pai o seguiu até a porta. Ele observava cada movimento do filho meticulosamente, como era de seu costume. — Você estava dormindo até agora, garoto? Ou nem dormiu esta noite? Parece preocupado. Algo o incomoda? — Sr. John questionava o filho ainda o analisando com cuidado. Daniel deu um pequeno sorriso que o fez espirrar a espuma do creme dental de sua boca na pia. Conhecia bem o seu pai para saber do que se tratava o interrogatório. Toda vida foi analisado desta maneira. Seu pai nunca perdeu a mania de tentar mapear todos os seus passos. Analisava o seu comportamento, olhava-o de cima a baixo procurando por detalhes que revelassem cada movimento seu, cada pensamento, cada atitude. Mas ali, naquele momento, ele sabia muito bem a intenção de seu pai. Havia chegado tarde na noite anterior. Estava há duas semanas em São Paulo, uma cidade forrada de lindas e interessantes garotas. Com toda a certeza estava procurando por pistas que revelassem se ele havia encontrado alguém na noite anterior. Mesmo com todo o zelo e procura de seu pai para acompanhar os movimentos do filho, os dois conversavam abertamente sobre garotas, ou qualquer outro assunto que se sentissem à vontade. Sr. John, sempre muito reservado, iniciava deste modo: analisava o filho procurando algo que chamasse sua atenção. Quando não encontrava iniciava uma conversa normalmente sem preocupação. Apenas procurando se manter inteirado da vida do rapaz. Quando suspeitava de qualquer coisa, porém, era mais cauteloso. Rodeava o filho observando atentamente qualquer reação e em seguida o bombardeava com perguntas singelas, porém específicas. Logo, aquele Presenças
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comportamento analítico estava especificamente ligado à quando seu pai achava que ele estava fazendo algo errado. Com estes pensamentos o rondando, Daniel limitou-se a menear sua cabeça, ainda de costas para seu pai. Não queria entrar em detalhes sobre o dia anterior. Imaginava que se contasse algo, seu pai diria que ele estava louco, agindo como uma criança apaixonada, ou qualquer coisa do tipo. Além disso, lhe daria uma lição de moral, pacientemente, e pediria que focasse mais nos seus compromissos com o filme. Sabendo de todo esse processo, ele não queria ouvir o sermão, mas, ainda assim, sabia que teria que contar a seu pai sobre a festa do dia seguinte para evitar preocupações. Entretanto, procuraria adiar este momento o máximo de tempo que fosse possível. Resolveu, por fim, ouvir cuidadosamente o que seu pai queria, imaginando que isto talvez facilitasse a conversa seguinte. Sr. John não se deu por satisfeito com o simples movimento de cabeça do filho, contudo, decidiu deixar de lado suas preocupações com Daniel, ao menos por um tempo, até que dissesse o que veio fazer no seu quarto. — Filho, eu não o encontrei ontem, acho que quando você chegou eu já estava dormindo. Anteontem aconteceu o contrário, você já devia estar dormindo quando eu cheguei. Tenho trabalhado demais nestes dias e mal nos vimos nos dois últimos. Creio que sua mãe se esqueceu de mencionar, mas, hoje acontecerá um coquetel na empresa. Um evento pequeno, porém, de grande importância para os negócios e para mim. Gostaria muito que você e sua mãe comparecessem comigo. “Droga! Coquetel na empresa é tudo que eu não precisava neste momento”, pensou Daniel. Mesmo com estes pensamentos, o garoto sabia que não teria como fugir do compromisso. Era preciso apoiar seu pai nesta empreitada tão grandiosa de sua vida. — Claro, pai — respondeu forçando um meio sorriso. — O senhor sabe que eu não o deixaria na mão. Mas eu pensei que a cerimônia oficial de sua apresentação só aconteceria em duas semanas. — Ah, sim! Mas esta não é a cerimônia oficial. Apenas uma prévia. Só contaremos hoje com a presença de algumas pessoas importantes da empresa. Oficialmente, a cerimônia acontecerá no dia planejado. — Entendo. E o que eu vou ter que vestir? — Daniel perguntou, escondendo uma careta que se formava em sua face. Não gostava
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muito de roupas formais. Mas sabia que era preciso usá-las em diversas ocasiões. Passou por seu pai que ainda se encontrava parado na porta do banheiro e se jogou de volta na cama. Sr. John acompanhou o filho e sentou-se numa das beiradas do móvel, de modo que ficasse de frente para o rapaz. Respondeu, então, a pergunta que lhe fora feita, sorrindo sarcasticamente. Sabia bem que o estilo de se vestir de seu menino era totalmente oposto ao seu. — Bem, Daniel, você não precisará de nada além de terno e gravata hoje. Porém, para a cerimônia oficial, não poderá escapar de vestir um smoking completo — disse, se levantando rapidamente e caminhando até a porta do quarto. Agora Daniel não conteve a careta de desgosto. Seu pai abriu a porta e se posicionou mantendo parte do corpo fora e parte dentro do quarto. Segurou a maçaneta, deixando a porta entreaberta, de modo que não fosse possível para qualquer pessoa que passasse no corredor espiar dentro do cômodo. Antes de sair ainda fez um convite: — Escuta, filho. Eu tenho algum tempo ainda antes de ir para o escritório. Estou descendo para tomar café. Sua mãe vai me encontrar lá embaixo em quinze minutos. Por que você não veste algo decente e se junta a nós? Você pode não gostar de ternos, mas descer de cueca vai ser um tanto quanto revolucionário, não acha? Daniel soltou uma longa gargalhada. Nem ao menos se dera conta de como estava vestido, ou não vestido, melhor especificando. — OK, pai. Desço em quinze minutos — disse por fim. Sr. John saiu fechando a porta atrás de si. Gargalhando também. Seu sorriso, no entanto, durou pouco. Em seguida, se lembrou que o filho havia chegado tarde na noite anterior e ele não conseguiu arrancar do rapaz a respeito disto. Voltou para seu quarto um pouco preocupado. Daniel examinou seu corpo por alguns segundos. Ainda gargalhava quando seu pai saiu do quarto. Não havia se dado conta, até aquele momento, que estava apenas com roupa de baixo. O calor de São Paulo era intenso neste fim de primavera. Nem mesmo as pancadas recorrentes de chuva amenizavam o clima. Imaginou-se vestido com terno e gravata logo mais. Ferveria dentro da roupa, seria um forno ambulante no coquetel. Não gostou desta imagem. Levantou-se rapidamente e correu de volta para o banheiro. Tinha quinze minutos apenas para tomar uma ducha rápida e se arrumar antes de descer. Fez o que podia com o tempo. Tomou um banho Presenças
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em cinco minutos, se trocou nos outros cinco, sem nem reparar muito bem no que vestira e desceu. Seu pai não tolerava atrasos de qualquer tipo. Encontrou-os esperando em uma mesa no restaurante do hotel. Os dois, como sempre, vestidos conservadoramente, e ele, com uma calça rasgada e uma camisa branca e tênis. Seus cabelos molhados estavam soltos ao longo de suas costas. Um tanto despenteados pela pressa. Ainda assim, no seu estilo, era perfeitamente lindo, não precisava de esforços para chamar atenção. Ao adentrar o restaurante, muitas cabeças viraram em sua direção e os olhares o acompanharam até a mesa. Seus pais o olharam com um pingo de reprovação. Mesmo hospedado num hotel cinco estrelas e com contrato assinado para protagonizar um filme em Hollywood, o garoto não tomava jeito. Enfim, artistas são estranhos mesmo, os dois pensaram em conjunto. Ele se aproximou de sua mãe repentinamente e a abraçou por trás, beijando sua testa. Seus cabelos molhados voaram por cima da senhora, respingando água em sua camisa creme e estragando um pouco seu penteado, tão bem arrumado. Ela fez uma cara de profundo desgosto e afastou o rapaz. Em seguida virou-se para ele e retribuiu o beijo, reclamando: — Filho! Você está me bagunçando toda! Será que é tão difícil assim secar os cabelos antes de descer? Já não basta o seu estilo tão peculiar de se vestir? — Bom dia pra senhora também, mãe! A senhora continua linda, ainda que pareça uma medusa molhada. E, não. Realmente não dá para secar essa juba quando se tem apenas cinco minutos para descer... — Fez este comentário juntamente com cara de cachorro pidão e sentou-se em frente aos dois. Ela não aguentou e sorriu para ele. Não conseguia ficar brava com o filho. — Bom dia para você também, criança malcriada! Seu pai, porém, não gostou muito do comentário de Daniel sobre o tempo e retrucou severamente: — Quinze minutos seriam mais que suficientes se você já estivesse acordado quando o chamei. — OK, pai! Eu desci a tempo, não? — disse um pouco contrariado. Em seguida, achou melhor puxar outro assunto enquanto o garçom não os atendia. Continuou: — Pai, a que horas eu devo
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encontrar o senhor na empresa? — perguntou forçando maior interesse do que realmente tinha. Seu pai não percebeu a urgência em sua voz e iniciou a nova conversa animadamente. — Como eu disse, filho, é um evento pequeno, apenas alguns dos ocupantes de cargos de confiança e suas famílias. O evento vai ter início lá pelas cinco horas da tarde. Então, não precisa se apressar. Eu sei que você está ansioso para cumprir esta formalidade, principalmente para colocar terno e gravata, não está? — perguntou ironicamente encarando o filho. — Claro, pai, como o senhor quiser. — Daniel fingiu não entender a brincadeira. Preferiu evitar que o assunto voltasse para o modo como ele se vestia normalmente. — Só preciso saber se terei que levar a mamãe, ou ela vai mais cedo com o senhor? — Ela irá mais cedo comigo. Sua mãe, que estava quieta até então, lembrou-se de um detalhe importante sobre o traje, que ele tanto evitava, e advertiu: — Filho, preciso que você verifique o estado dos seus ternos. Se não estiverem bons, precisaremos comprar alguma coisa para hoje. — Mãe, o papai disse que o evento começa à tarde. Então, eu posso me virar com o que tenho. Para a grande apresentação dele a gente pensa em algo mais elaborado, não se preocupe. Ela não pareceu se contentar muito, mas deixou o assunto por aí. O garçom chegou para tomar nota do pedido de cada um. De repente, não havia mais mesa, pais ou café da manhã, Daniel se pegou novamente pensando nela, a garota que viu no curso de inglês, aquela que possuía o anel igual ao seu e não saíra de seu pensamento desde então. — Daniel, querido! O garçom está esperando. Voltou a si e se deu conta de que não estava com fome. Apesar da noite não dormida, de todos os pensamentos que rondavam sua mente, o anel e a garota, Helena, na maioria deles, não estava com fome. A conversa até ali o havia distraído, agora, ela voltava insistente, de costas, com seus cabelos cacheados e o anel na mão esquerda. Tentou abduzir qualquer coisa que o distraísse novamente naquele momento. Contudo, um bolo se formou no seu estômago e subiu até sua garganta. Uma dor física, profunda, invadia seu centro. Como era possível pensar em comer quando tudo que ele queria era vê-la? O que era comer comparado àquela angústia repentina? Presenças
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Era estranha a velocidade do pensamento! Num momento você está bem, e, no segundo seguinte, uma lembrança repentina faz o seu mundo desmoronar. Decidiu que pediria um suco, apenas para não chamar atenção de seus pais para sua mudança de humor repentina. Fez o pedido, desatento, e em seguida ficou em silêncio. Precisava cuidar do assunto anterior e queria ser cauteloso ao adentrá-lo. Sua cabeça estava tão confusa que precisou de alguns minutos para organizar novamente sua linha de raciocínio. Claro que para seus pais, a mudança em seu semblante não passou despercebida. Assim que o garçom saiu, sua mãe iniciou o interrogatório: — Não está com fome, querido? Você parece um pouco abatido hoje. Aconteceu alguma coisa? — Realmente, eu concordo com você. Perguntei para ele mais cedo se havia algo errado — seu pai acrescentou. Daniel temia aquele momento. Não queria conversar com seus pais sobre algo tão incerto. Principalmente, não queria ter que explicar a sensação que teve ao avistar Helena, mesmo de costas. Menos ainda acrescentar a certeza que tinha de já conhecê-la. Pior, achariam que ele perdeu a cabeça se contasse das visões que tinha desde criança, ou do anel. O garçom voltou trazendo os pedidos dos três e quebrando o silêncio que parecia não ter fim. Daniel aproveitou esse momento para voltar ao assunto do coquetel e distrair seus pais de sua angústia aparente. Continuaram essa conversa até o término do café. Depois seu pai se dirigiu à empresa e sua mãe e ele subiram para o quarto. Ela decidiu verificar pessoalmente o estado das roupas do filho antes do coquetel. Ele, claro, nem tentou se opor. Ficaram examinando as roupas e acessórios do garoto por quase uma hora. Nesse meio tempo, conversavam sobre amenidades, descontraidamente. A Sra. Cassidy, enfim, havia contratado uma professora para lhe ensinar português. Teria aulas particulares no hotel, já que seu marido tomava aulas particulares no próprio escritório, diariamente. Ela ainda não se sentia pronta para encarar uma escola, como seu filho. E ele havia insistido para que se matriculassem juntos. Também estava ansiosa com a entrega das chaves do apartamento novo. Demoraria um tempo ainda, mas ela contava cada dia em sua angustiante espera por ter uma casa sua novamente. Havia tomado
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uma última decisão: queria trabalhar. Voltaria a exercer sua profissão, decoradora de interiores, por isso a pressa em aprender o idioma local. Daniel ficou copiosamente alegre com as resoluções de sua mãe. Ele havia insistido tanto, mesmo antes da viagem, para que ela se inscrevesse na mesma escola que ele e que retomasse sua vida profissional no novo país, sem medo. Mas ela ficara apreensiva, perdida, sem saber como lidaria com a nova experiência. Agora estava decidida. E como a conhecia bem, ele sabia que, a partir do momento em que tomava alguma decisão, ela cumpria à risca. Conversaram por mais alguns minutos, depois Cassidy, convencida de que as roupas do filho serviriam ao menos para o coquetel da tarde, deixou o quarto e foi se preparar para conhecer a sua nova professora de português, que chegaria em instantes. Antes, advertiu o filho que fariam compras, naquela semana, para o traje da festa oficial. Daniel se deu por satisfeito. Ao menos escapara de ter que sair para as compras hoje. Ele não se considerava assim tão largado quanto seus pais diziam. Era ator e músico. Um artista. E como todos os artistas, tinha um estilo próprio de se vestir. E também, mesmo que desconhecesse, possuía a enorme vantagem de ficar bem em qualquer trapo que lhe coubesse. Na verdade, sempre andava arrumado, a seu modo. Limpo, perfumado, com roupas que combinavam com seu estilo e sugavam o ar de todas as garotas ao seu redor. Após a saída de sua mãe do quarto, pensou no que faria aquela tarde. Teria algumas horas livres antes de precisar se arrumar para o coquetel. Caminhou até a sacada de seu quarto suavemente. A conversa com seus pais o havia distraído por algum tempo. Porém, sempre que se encontrava sozinho a dor de estômago voltava. Revivia a angústia e ansiedade, tão estranhas e tão presentes. Olhou para o céu, primeiramente. Fazia calor nesta sexta-feira. O dia estava lindo, o céu azul e limpo. Algo estranho para São Paulo! Em seguida olhou para baixo, avistou a piscina, enorme, convidativa. Se tivesse asas pularia dali mesmo, diretamente até ela. Mas não tinha. Embora quisesse muito saber voar naquele momento. Sentiu que se pudesse voar, também seria capaz de afastar toda a apreensão que o atormentava. Afastou-se da sacada rapidamente e andou em direção ao seu armário. Apanhou uma sunga discreta, preta, tipo shorts, vestiu-a em segundos e saiu. Tomou o elevador em direção à área da piscina. Presenças
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No momento em que o elevador começou a descer se sentiu um pouco tonto. Sua cabeça girava, como se a velocidade de descida do elevador tivesse acelerado mil vezes. Encostou-se na parede para se recompor. Em poucos segundos toda aquela estranha sensação sumiu. Imaginou que poderia ser resultado do café da manhã tão precário que tomara. Mas ainda não sentia fome. Saiu do elevador se sentindo melhor e caminhou às pressas para a piscina. O dia estava realmente impressionante. Teria tempo para aproveitar a água. Ao adentrar o recinto foi novamente contemplado com vários olhares curiosos em sua direção. Ele nem ao menos se deu conta, preocupado como estava em mergulhar. Parou na beirada da piscina por alguns segundos. Mulheres de todas as idades tremeram com a visão daquele deus nórdico, perfeito parado à beira da piscina. E, claro, alguns homens também. Em todo tempo que estivera no hotel, não havia se dedicado ainda a um momento de relaxamento como este. Aproveitava cada dia para conhecer algo diferente, e sabia que a cidade oferecia muito mais do que ele teria tempo de conhecer. Talvez por isto não permanecesse no hotel por tempo maior do que o necessário para dormir, comer ou se trocar. Provavelmente, por este mesmo motivo, atraíra tantos olhares curiosos. Sua aparição na área de lazer havia sido nula até ali. Procurou por um lugar livre na piscina e mergulhou espirrando muita água para os lados. Parecia um ser do mar daquele jeito. Era um perfeito peixinho debaixo d’água. Nadou de uma extremidade à outra da piscina por minutos seguidos. Parando apenas para respirar, algumas vezes. Queria ocupar cada músculo do seu corpo, afastar sua mente de qualquer pensamento e seu físico de qualquer dor. De repente, lembrou que não passou protetor nenhum em sua pele, e, por mais desencanado que fosse, não podia se descuidar, com um contrato para um filme vigente. Saiu da água e caminhou para uma das lojas de cosméticos do hotel. Compraria um bom protetor e iria no banheiro para aplicar. Chegando à loja, a vendedora o atendeu prontamente, muito solícita e educada. Conversaram por alguns segundos enquanto ela lhe indicava o melhor protetor. Era uma garota bonita, provavelmente da mesma idade que ele. Trabalhava na perfumaria do hotel, mas apenas porque pretendia permanecer perto do seu objetivo, que era trabalhar na área de hotelaria, em cargos mais altos. Para isto, cursava Turismo e Hotelaria em uma faculdade local. Os dois se
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distraíram conversando. A moça parecia encantada com o charme do rapaz e ele, como sempre, era educado e esforçado para entender o português dela. Ela, por sua vez, estava tentada a pedir permissão para passar o protetor no rapaz. Mas, como boa funcionária, se conteve e deixou o assunto correr ao redor de outras coisas. Daniel aproveitava o momento para estudar. Cada vez que tinha a oportunidade de conversar com alguém diferente, se aplicava ao máximo para melhorar seu português. Repentinamente ela ficou em silêncio por alguns instantes. Em seguida o encarou com surpresa e disse: — Claro! Eu conheço você. Já assisti a alguns filmes em que você fazia parte. Ele não pode deixar de sorrir. Era seu primeiro reconhecimento explícito em outro país. Havia se sentido bem no anonimato até então. Afinal, não tinha protagonizado um grande filme até agora. Mas tivera participações marcantes em alguns. Embora o visual atual fosse um pouco diferente, com os cabelos tão longos. — Sim, pode ser que tenha me visto em alguma produção. — Nossa, que legal! Eu estou acostumada a receber hóspedes famosos no hotel, é claro, mas, você é bem mais simples do que a maioria das pessoas que eu conheci. — Obrigado — disse sinceramente, sem encontrar melhor palavra. — Por nada, imagine! Bom, se você precisar de um guia turístico, me avise. Não se esqueça de passar aqui para me dar um autógrafo antes de ir embora, hein! Ele assentiu com a cabeça e se afastou. Fora bom ser reconhecido. Fazia-o se lembrar de que era um ator profissional em ascensão. E de que tinha muitos objetivos pela frente. Independentemente de qualquer obstáculo que transpusesse seu caminho. Ao mesmo tempo, o trazia de volta para a realidade de que aquela viagem teria um fim. E Helena ficaria para trás como tudo por aqui. A dor voltou. Ele retornou à piscina, absorto em seus pensamentos. Nem ao menos se lembrou de ir até o banheiro para passar o protetor. Procurou uma cadeira vazia e começou a espalhar o produto por seu corpo, alheio a qualquer pessoa ao seu redor. As garotas suspiravam em volta. Cada movimento de suas mãos espalhando o produto através de seu corpo musculoso e seminu as deixava loucas. Vez por outra alguma delas, mais corajosa, se Presenças
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oferecia para ajudar com o produto. Mas ele recusava educadamente. Soltando o seu sorriso encantador e avisando que já terminara a empreitada. Voltou para a água pouco depois. E ali permaneceu por mais algumas horas. Ainda ausente, ainda distraído, procurando esquecer-se de qualquer coisa racional. Apenas sentindo a água refrescante bater em seu corpo enquanto dava largas braçadas de uma extremidade à outra da piscina. Algumas horas depois, estava de volta a seu quarto, tomando um banho demorado para se preparar para o coquetel. Saiu do banho e encontrou sua roupa preparada em cima da cama. Vestiu-se com cuidado: calça cinza, camisa branca e blazer cinza. Amarrou os cabelos em um rabo de cavalo alto, para trás, depois de penteá-los bem. Por fim calçou as meias e os sapatos e se perfumou. Mirou-se no espelho antes de sair. Estava bem, por mais que rejeitasse qualquer coisa muito chique. Saiu do quarto e foi bater à porta do quarto de sua mãe. Ela atendeu prontamente. Como seu pai, era muito pontual e detestava atrasos: — Nossa, meu filho, você está lindo! Não sei por que não usa mais este tipo de vestimenta! — exclamou enquanto media o garoto de cima a baixo. — Só falta um detalhe — disse estendendo uma gravata cinza chumbo, que segurava já preparada para o filho. Ele sorriu sem jeito. Mães. Sempre tão exageradas. Pegou a gravata sem retrucar, sabia que não escaparia dessa de maneira alguma. Em seguida, retribuiu o elogio com franqueza: — A senhora também está uma gata, mãe. Aposto que não haverá ninguém mais bonita no coquetel. — Menino exagerado! — sua mãe retrucou, vaidosa, fazendo os últimos ajustes na gravata do filho. Desceram para tomar o táxi que já os aguardava na rua. Conversaram durante o trajeto até a empresa. Sua mãe estava ansiosa, pouco normal para seu comportamento, sempre tão sereno. Daniel se deu conta de que estava curioso. Como todo ator, qualquer experiência extra serviria como laboratório para futuros personagens. Desembarcaram em frente à sede da empresa. Um arranha-céu enorme, situado no bairro de Pinheiros, próximo do futuro apartamento da família e, atualmente, uma das áreas mais nobres da cidade. Onde toda e qualquer construção que era iniciada buscava superar a anterior no formato mais moderno e chamativo.
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O porteiro os direcionou para a recepção e de lá migraram para o elevador. O coquetel aconteceria na cobertura. Subiram em silêncio. Quando a porta do elevador se abriu, outra recepcionista os aguardava. Desta vez, para encaminhá-los até seu pai. Ele, por sua vez, os aguardava em frente à porta do terraço. “Meu Deus! Tudo isto somente para chegar até meu pai”, Daniel pensou, espantado. Estavam sendo muito bem tratados, mas, se havia tanta cerimônia para adentrarem o recinto, ele não queria imaginar o que estaria acontecendo lá dentro, menos ainda o que ocorreria na cerimônia oficial, em alguns dias. Por fim encontraram o Sr. John, elegantemente vestido, à espera dos dois. Ele abraçou a esposa discretamente, beijou seus lábios rápida e suavemente e depois sussurrou em seu ouvido: — Você está perfeita, como sempre. Ela sorriu enrubescendo um pouco e baixou os olhos. Em seguida deram as mãos como um casal de namorados e ele se direcionou ao filho um olhar de aprovação dizendo: — E você está muito elegante. — Eu disse que não o decepcionaria. Mas é claro que mamãe ajudou a escolher a roupa. Cassidy sorriu agradecida, mas nada disse. Seu pai deu-lhe um tapa nas costas com a mão que estava livre e retrucou: — Você nunca me decepciona, filho. Os três adentraram a festa. John iniciou as apresentações, passeando com o filho e a esposa e parando para cumprimentar as outras pessoas. Como não podia deixar de ser, as pessoas se impressionavam com a beleza e elegância de Daniel. Havia, certamente, mais de cinquenta pessoas no recinto. Muito, para uma festa pequena, pensou ele. Todas se viraram para olhar quando os três passaram e na medida em que avançavam cumprimentando os demais, ele recebia elogios calorosos e contidos dos presentes. Após ser liberado por seu pai para circular um pouco, vagou pelo terraço, solitário. Vez por outra, alguém se encaminhava até ele para puxar assunto e ele, como de costume, respondia educadamente, aproveitando para melhorar o seu português. Contudo, sempre que podia, escapava de uma conversa para passear pelo local, sozinho. Aceitou uma taça de vinho branco que o garçom trouxera. Não costumava beber, mas gostava de tomar uma taça de vinho com sua Presenças
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família, vez por outra. Era maior de dezoito e seus pais não implicariam com ele por tomar uma taça da bebida. Afinal, mesmo sabendo que em seu país de origem a idade mínima para beber era de vinte e um anos, estava no Brasil, onde era permitido beber com dezoito e resolveu abraçar essa cultura, por interesse próprio. Perambulou pelo salão segurando a taça em uma das mãos e deixando a outra no bolso. Estava distraído e pensativo como ocorrera o dia todo. Seu pai o chamou novamente e ele virou-se em direção à voz. Quando o avistou atrás de si, viu que ele não estava só. Ao seu lado encontrava-se um casal e uma moça. Mais ou menos de sua idade. Muito bonita. Cabelos ruivos, levemente encaracolados na altura dos ombros, pele clara, coberta por pequenas sardas e olhos vivos e grandes, de um verde escuro chamativo. Estava elegantemente trajada, como os demais. Porém, carregava no olhar uma expressão muito conhecida, que ele mesmo sustentara inúmeras vezes: era o semblante de alguém que já estava farta de coquetéis e recepções chiques. Mas que mantinha a classe, cumprimentando polidamente os demais e sobrevivia a mais um evento ao lado de seus pais. John iniciou as apresentações, sofrendo com seu português um tanto precário, mas suficiente: — Daniel, estes são o Sr. Marcos Motta, sua esposa, Ângela Motta, e sua filha Lisandra Motta. Aliados de extrema importância no segmento de telecomunicações. — Muito prazer! — ele cumprimentou-os educadamente estendendo a mão para um aperto, a cada um deles. A garota o encarou timidamente, encantada com sua beleza. Ele sorriu para ela, singelamente, curvando os cantos dos lábios. Era um sorriso de cumplicidade. Como se a moça pudesse entender que ele já passara por tantos eventos quanto ela. Lisandra enrubesceu instantaneamente. Daniel continha um charme de tirar o fôlego de qualquer garota. Para ele, a expressão ‘parece um artista de Hollywood’, era literal. O rapaz saiu, deixando seu pai conversando com o casal, em inglês, e com Lisandra, que não fazia parte da conversa, e continuou andando pelo salão, a esmo. Parou encostado no muro da sacada e olhou para a cidade à sua frente. Imensa, começando a se iluminar com o fim da tarde. Os carros lá embaixo, buzinavam, corriam, ultrapassavam uns aos outros na medida do possível, para um trânsito tão carregado. Era
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um caos. Realmente. Um caos sincronizado. Buzinas, ônibus, metrô, pessoas correndo de um lado a outro. Luzes acendendo, barulhos, músicas. Tudo ao mesmo tempo. Da altura em que se encontrava não podia ouvir todo o barulho produzido pela hora do rush, mas o sentia. “Um caos”, pensou mais uma vez. Caos pelo qual ele estava completamente apaixonado. Lembrou-se do carro que compraria. Logo, se viu fazendo parte de toda aquela bagunça. Perdido pelas ruas da metrópole, sem saber voltar para o hotel. Esta visão o arrepiou por inteiro. “Terei que comprar um aparelho de GPS”, concluiu. Pronto, problema solucionado, ao menos esse. Mirou as luzes dos prédios novamente. A perder de vista, elas acendiam enquanto o céu escurecia. Pensou em Helena. Era a segunda vez, em dois dias que pensava nela ao avistar as luzes da cidade. Ficou em silêncio, observando a paisagem de pedra à sua frente. Lentamente Lisandra se aproximou por trás e se colocou ao seu lado, um pouco cautelosa. Ele a encarou e sorriu levemente. Ela retribuiu o sorriso com outro, dez vezes maior. Foi o que bastou para diminuir um pouco sua timidez. Iniciou a conversa em inglês, pois queria facilitar para o garoto. — Bonita, não? Ele não se surpreendeu por ela tentar puxar assunto em sua língua natal, então, respondeu também em inglês. — Linda! Eu não me canso de olhar! — Ficou em silêncio por alguns segundos, depois completou: — Podemos conversar em português, se você preferir. Estou tomando aulas e pratico em qualquer oportunidade. Ela sorriu, mas ignorou o pedido e fez outra pergunta, ainda em inglês. — Por que tenho a impressão de que o conheço de algum lugar? Ele fez sua melhor cara de inocente e respondeu a ela em português: — Não faço a menor ideia... Mas Lisandra não se deu por vencida. Examinou o rosto do rapaz por alguns segundos cuidadosamente, depois, como se um click estalasse em sua cabeça, falou admirada: — Mas é claro! Você é ator! Eu te conheço de vários filmes. Meu Deus! Daniel sorriu abertamente. Já eram duas, num mesmo dia! Seu ego de ator se manifestou e ele ficou contente com o reconhecimento. Presenças
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Entretanto, achou exagerado e engraçado o jeito como a garota se surpreendera com a descoberta. Acenou para ela confirmando suas suspeitas, depois seguiu dizendo: — Nem tantos filmes assim. Mudando de assunto... Ele realmente queria mudar de assunto naquele momento. Não que não gostasse de falar de sua carreira, apenas sentiu a necessidade de compartilhar outras informações com a menina. — Eu também estou de ‘saco cheio’, acho que é esta a expressão por aqui, de todos esses coquetéis, recepções e festas. Mas não sei se disfarço tão bem quanto você. Ela ficou roxa de vergonha. Tanto esforço para transparecer serenidade e ele a desmascarara em menos de cinco minutos. Como um cara que ela mal conhecia — embora nem ligava para esse detalhe, se tratando de um ator de Hollywood — a desvendava assim tão facilmente? Mirou-o nos olhos e desviou o olhar o mais rápido que pôde. Ele era estonteante! Então, respondeu com sinceridade: — Eu realmente acreditava que estava indo bem. Mas você entende, depois de um tempo, tudo fica tão monótono e chato. — Respirou profundamente. — Acho que fica mais difícil disfarçar. Ele sorriu, compreensivo. Seguiram conversando, ora em português, ora em inglês. Era uma boa distração falar com alguém que entendia o tédio do evento tanto quanto ele, enquanto o dia parecia não terminar. De repente, um arrepio subiu pelos seus pés e percorreu seu corpo até chegar a sua cabeça. Daniel parou de falar, virou-se de frente para o muro e ficou imóvel. Olhou para o céu que agora continha tons diferentes de um azul mais escuro e algumas nuvens com o fim da tarde. Sentiu que o ar lhe escapara dos pulmões e ele não conseguia recolocar. Suas pernas tremeram. Ele segurou com uma das mãos no muro. A outra ainda segurava a taça que agora pendia perigosamente em seus dedos moles. Uma tontura repentina tomou conta dele por alguns segundos. Fechou os olhos. Era como se estivesse caindo, caindo infinitamente. A taça escorregou de seus dedos, despencando terraço abaixo. Nada pode fazer para segurá-la, pois nem sequer percebeu esse movimento. Seus joelhos dobraram e ele agarrou-se fortemente ao muro do terraço com as duas mãos. Era estranho. Sabia que não era possível, mas parecia... Parecia estar voando. Deixou que esta sensação tomasse conta de seu corpo e pode relaxar um pouco. Ficou assim por tempo indeterminado, sem se lembrar de que havia pessoas ao seu redor. Era como se não
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estivesse ali. Abriu os olhos e tudo que via à sua frente era o céu. Azul escuro de fim de tarde. Lisandra assistia a tudo imóvel, assustada, sem saber o que fazer. O rapaz, tão coerente até ali, parecia ter entrado em um tipo de transe. Soltou um gritinho agudo quando ele deixou escapar a taça e correu para o muro para olhar. Graças aos céus não atingira ninguém lá embaixo! A garota pensou em chamar os pais de Daniel. Olhou ao redor e percebeu que não haviam chamado atenção de ninguém, mesmo após a taça cair. Decidiu que era melhor assim. Temia que o rapaz tivesse um ataque mais sério, um infarto, sei lá. Mas preferiu chamá-lo somente. Se fosse só um transe estranho ele voltaria a si. Amedrontada, começou a chamá-lo: — Daniel! Daniel! Você está me ouvindo? Daniel? Ele nada dizia, apenas contemplava o vazio. — Daniel! Você está me assustando. Você está bem? Precisa de ajuda? Quer que eu chame alguém?... — Deixou o som morrer no final da frase. A garota estava começando a se apavorar. Olhou ao redor novamente. Ninguém notou nada ainda. Considerou mais uma vez a possibilidade de chamar por seus pais. Mas não o fez. Passado mais alguns segundos, Daniel olhou em sua direção. Sua expressão continha um misto de espanto e prazer. Ela nada entendeu, mas ficou aliviada ao perceber que ele provavelmente não teria um ataque do coração na sua frente. Ele voltou a si lentamente. Voara, sim, não sabia como, nem por quê. Mas tivera a sensação de que o muro à sua frente se rompera e ele sobrevoara a cidade sem medo. Como se olhasse através dos olhos de outro alguém. Seu corpo estava ali, mas sua mente se distanciara por alguns instantes. Olhou para Lisandra, ainda parada, com uma expressão aterrorizada. Sentia que lhe devia uma explicação. Contudo, nem ele mesmo a tinha. Mais alguns minutos se passaram e ela ainda o encarava, silenciosamente, com a mesma expressão de terror. Examinava o garoto como se pudesse tirar disto alguma conclusão. Ele desconhecia o tempo de sua ‘ausência’ e agradecia a Deus por ela não ter entrado em pânico maior e chamado seus pais. Então, decidiu começar a falar de alguma maneira: — Sinto muito! Eu não sei o que aconteceu. — Preferiu iniciar em inglês. Parecia mais seguro tentar explicar algo desconhecido em sua Presenças
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primeira língua. — Por um momento eu tive a sensação de estar voando... Eu sei que pode parecer absurdo. É assim que parece para mim também! Nunca senti isto antes, se é o que você quer saber. E espero realmente que você não fique tão assustada a ponto de sair correndo. Ela desabou. Toda a expressão aterrorizada que mantivera até então se desfez aos poucos. Por mais assustada que ainda estivesse, ele era demasiado encantador para deixá-la com medo. — Foi algo realmente aterrorizante, para falar a verdade — comentou também em inglês. Seria melhor que ele não forçasse muito a cabeça depois disso tudo, ponderou. — Tive medo de que você tivesse um ataque do coração, bem aqui na minha frente. Ele sorriu, divertido. Deveria ter sido demasiado estranho para uma garota que mal o conhecia ter que encarar algo tão anormal assim. Imaginou qual seria sua reação em caso contrário. Não encontrou respostas. — Daniel, eu te chamava e você não me ouvia. Nem a taça você tentou segurar. Nem percebeu quando ela caiu. Só então ele se deu conta de que não segurava mais a taça em suas mãos. Olhou para o chão à procura de cacos. Em seguida, como um estalo, imaginou a taça caindo terraço abaixo e acertando a cabeça de alguém. Correu para o muro para olhar. Lisandra encostou ao seu lado, olhando para baixo e disse calmamente: — Não, você não acertou ninguém. Graças aos Céus! Mas eu me desesperei bastante com essa possibilidade também. Daniel suspirou aliviado. Ao menos não cometeu um homicídio sem intenção. Todos estes acontecimentos simultâneos eram por demais bizarros. Ainda assim ele conseguira tirar algum prazer e um pouco de humor da situação. Quando os nervos se acalmaram pôde completar seu raciocínio. — Bem, Lisandra, ao menos desta vez, você não poderá acusar seus pais de trazê-la para mais um evento monótono. Eu lhe dei material suficiente para uma semana de pesadelos, você não acha? Ela soltou uma gargalhada chamativa. O episódio havia sido assustador, sim. Mas como alguém tão lindo poderia pensar em causar pesadelos a ela? Com toda a certeza teria sonhos maravilhosos, pensava. Como seus olhos podiam ser tão penetrantes? Assim azuis, da cor do mar. Uma tentação! — Eu certamente terei que agradecer meus pais por me trazerem. Afinal, nunca vi algo tão bizarro em minha vida!
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A garota se arrependeu um pouco do que falara. Será que ele não entenderia seu comentário de maneira errada? Agora era ele quem gargalhava! Bizarro, era exatamente o que ele pensara. — Espero que não fique com medo de mim — disse usando o seu tom mais inocente e sedutor, ao mesmo tempo. — Impossível! — Ela mal conseguiu pronunciar a palavra, seduzida como estava com aquele sorriso tão lindo. — Nunca me diverti tanto em um evento tão chato! Ah... desculpe, esqueci que estamos aqui por causa de seu pai. — Não precisa se desculpar, eu te entendo perfeitamente! Daniel se deu conta de que, mesmo inconscientemente, acabara de flertar com a moça. Sem nenhuma intenção, contudo. Ela era bonita e simpática, mas não o atraía fisicamente. Estranho. Outrora poderia tê-lo atraído. Era o tipo de garota que atrairia qualquer um no local. Entretanto, no momento, apenas compartilhavam o martírio de terem que fazer parte de eventos chatos e monótonos. Ainda assim, retinha um pouco de culpa pelo episódio de ainda há pouco. Como se o acontecido fizesse a cumplicidade aumentar. Como um segredo que guardavam em silêncio. — Se você acha este evento chato... espero que compareça à festa oficial. Aí sim teremos motivos para achar tudo muito chato. Ela não se conteve no chão. Levitou por instantes. Seria este um convite para que se encontrassem novamente? Ela sairia com um ator hollywoodiano? Era demais! Demais! — Se você quiser, podemos nos ver antes disso. Dar uma volta pela cidade que te encanta tanto... As palavras escaparam por entre seus lábios antes mesmo que pudesse contê-las. Retorceu a boca um pouco arrependida. Era direta quando queria, mas não pretendia assustar o rapaz. Ele não pareceu surpreso. Acenou em sua direção suavemente com a cabeça e então respondeu: — Certamente! Vai ser divertido. Lisandra se sentiu nas nuvens. “Uau! Demais!”, foi só o que conseguiu pensar. — Tenho uma ideia! Que tal se nós descermos escondidos para olhar o estrago que a taça causou na calçada? — Ótimo! Os dois passaram sorrateiramente pelos convidados, procurando não chamarem nem um tipo de atenção. Entraram no Presenças
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elevador rapidamente, para não dar tempo de serem interrogados e desceram. Uma vez na rua, procuraram pelos cacos deixados pela taça de cristal. Não foi difícil calcular a direção de onde estavam quando ela caiu. E lá estava o que restou dela. A delicada e caríssima taça de cristal jazia na calçada em milhares de pedaços. Foi impossível para Daniel conter o cinismo em sua voz quando comentou: — Acredito que deixei alguém mais pobre. Ambos riram do comentário sarcástico do garoto. Agora, de onde estava, ele pôde olhar para cima. A visão da taça estilhaçada, tal qual a distância de onde estavam para o terraço lá longe, o fez estremecer. Neste instante, se deu conta de que, poderia não ter sido só a taça a escorregar de lá. Um deslize qualquer e ele também haveria caído. Estaria agora inerte ao lado dos cacos de cristal. Afastou relutante os pensamentos sombrios de sua mente. Lisandra pareceu perceber alguma coisa errada e tentou puxar um assunto qualquer. Ele mal compreendeu, mas respondeu educadamente. Caminharam para dentro do edifício e voltaram para a festa antes que fossem procurados. Os dois ainda conversaram por volta de uma hora, depois disso. Riram do episódio anormal mais uma vez. Embora, agora, ele não achasse mais tanta graça assim. Por fim, seu pai o chamou para voltarem para o hotel. Sentiu-se aliviado. Mesmo que a conversa estivesse interessante, outros pensamentos permeavam sua cabeça: seu corpo no chão ao lado dos cacos, a sensação de voar, o anel e Helena. Era tormento demais para um único dia. Ficou distraído novamente e pouco prestou atenção nas últimas palavras de Lisandra. Como não queria magoar a garota, achou que já estava na hora de voltar para o seu quarto e descansar um pouco. No caminho para casa se sentou encostado perto de uma das janelas traseiras do veículo e fitou o céu. Percebeu que o cansaço de uma noite não dormida o invadiu por completo naquele momento. Queria chegar logo ao hotel, precisava dormir um pouco. Mal conseguia manter os olhos abertos durante o trajeto. Cada vez que os fechava, porém, sentia o chão sumir sob seus pés. Bateu de leve com uma das mãos em sua perna com um solavanco do carro.
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Algo duro o incomodou. Levantou a mão e viu seu anel. Segurou-o com a mão livre e voltou a olhar para fora. A sensação de voar voltava. Ele ficava estranhamente leve e ausente e se via sobrevoando a cidade perto do entardecer. ☼ Longe dali, Helena desceu do carro de seu irmão. Observou o céu durante todo o trajeto, relembrando a sensação que teve ao ‘voar’ no parque. Correu para o seu quarto após cumprimentar seus pais. Não sentia fome. Sentou-se em frente à janela e continuou a fitar o céu em silêncio. Queria manter aquela sensação pelo maior tempo que fosse possível. De repente, uma ideia louca lhe passou pela cabeça: “Será possível, que, se existem almas gêmeas para todos, a minha esteja, neste instante, olhando o céu, em algum lugar, assim como eu?” Riu de suas considerações. Havia vivido um momento significante em sua vida. Sentia a necessidade de compartilhar com alguém, mas nem ao menos sabia quem. Neste instante, sentiu o anel em seu dedo. Segurou sua mão, apertando o objeto. “Que bobagem!”, pensou. Mas manteve a estranha sensação que precisava dividir suas sensações. Decidiu se concentrar novamente no céu. Pensar em almas gêmeas assim, do nada, era bizarro, concluiu. Seria informação demais para seu cérebro processar num dia tão complexo. Voltou a mirar o céu, agora repleto de estrelas, e reviveu seu voo mais algumas vezes.
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CAMILA
Camila estava confusa. Uma explosão de sensações a invadiu naquele dia. Não imaginava que um passeio tão simples a deixaria tão atordoada. Sentia-se ultra, mega, super, hiper (e tudo mais que fosse possível acrescentar) feliz com a loucura de ainda há pouco. Voar daquela maneira ao lado de duas pessoas tão importantes em sua vida foi uma experiência fantástica e inesquecível. Conseguia lembrar-se de cada detalhe, de cada momento. Desde a subida até a queda e depois o voo... Caio ao seu lado, olhando-a tão profundamente, tão lindo... Balançou a cabeça, desnorteada. Nunca havia pensado em Caio de outra maneira. Agora, voltando um pouco mais na tarde anterior, tudo que conseguia se lembrar era de que ele esteve ao seu lado o dia todo. Um perfeito cavalheiro. Pegando água quando ela passou mal. Não deixando que ela pagasse por seu almoço. Erguendo-a com tanta facilidade para que se sentasse no gradil. Segurando-a nos braços quando ficou zonza. Abraçando-a daquela maneira, como se a protegesse de algo, até que ela melhorasse para voltar aos brinquedos. E o desafio... O desafio! Ele aceitou sem pestanejar, e mesmo se borrando de medo enfrentou seus bloqueios e voou com ela e Helena. Camila sempre foi uma pessoa muito decidida. Era segura em relação à sua beleza. Sabia que era bonita e não tinha muitos problemas para manter a aparência sempre saudável. Gostava de se arrumar, pintar as unhas, usar maquiagem, comprar roupas novas, como toda adolescente comum. Como Helena, não ligava para nomes, marcas, grifes. Usava o que lhe caísse bem. E sempre ajudava a amiga com conselhos sobre roupas quando esta não se sentia muito 134
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inspirada. Embora soubesse que Helena mantinha um estilo próprio e raramente precisasse de ajuda. Usava sua beleza como artimanha para conseguir o que queria. Entretanto, o que mais chamava atenção era sua personalidade. Sempre tão doce e sociável. Era, sem dúvida alguma, a garota mais sociável da escola. Conhecia cada ser ali presente pelo nome e telefone. Havia um sorriso em seus lábios para qualquer pessoa que passasse por ela. Cumprimentava a todos alegremente. Muito intuitiva, gostava de avaliar as pessoas com o olhar, discretamente, é claro. Dizia, antes mesmo de conhecer bem, se alguém traria problemas futuros com sua amizade. Mas, mesmo que pensasse assim, não dispensava o desafio de tentar provar-se estar errada. Acreditava na possibilidade de todos estarem sempre em constante mudança. Quem sabe por isso não recusasse ninguém em seu incontável círculo de amizades. E o mais importante de tudo: não sabia ser falsa. Toda essa bondade, todos esses sorrisos, toda essa disponibilidade com as pessoas, era tudo sincero. Nesse ponto, se parecia muito com Caio. Os dois eram demasiadamente sociáveis e sinceros com as pessoas. Tal como a amiga, ele também era o cara mais sociável da escola, do bairro até. Um amigo com quem todos podiam contar sempre que preciso. Talvez por isso fossem tão amigos. Outro motivo óbvio era a amizade com Helena. Todos achavam engraçado como as duas pessoas mais amigáveis do colégio podiam ser amigas de uma garota tão séria. E assim a viam, por mais que não a conhecessem o suficiente para julgá-la. Camila tinha uma teoria: concluiu que Helena era responsável pelo equilíbrio em sua vida. A pessoa que a deixava calma e evitava que cometesse algumas loucuras que se passavam por sua cabeça. Provavelmente fazia o mesmo por seu irmão, já que os dois eram tão amigos. Contudo, a amiga também a auxiliava nos desafios, ouvia seus desabafos como ninguém em toda uma vida. E, por vezes, encorajava a cometer insanidades e participava delas, como na tarde anterior. Era incrível como as duas se entendiam bem. Camila sentia que por mais que tivesse uma coleção imensa de amigos que adorava, muitas vezes, não ficava à vontade para contar seus segredos. Guardava muitos segredos dos outros no coração. Tinha espaço para cada um deles, lealmente trancados e isolados para que não se misturassem nem a confundissem. Podia escutar as pessoas com Presenças
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interesse e vontade de ajudar, mas só conseguia fazer o mesmo com a amiga. Por isso a amava tanto. Mesmo que as pessoas a achassem estranha. Quando juntas, não tinha nada de estranha. Helena, Caio e ela faziam um grupo perfeito de amigos. Voltou a pensar em Caio. O garoto, apesar de seu comportamento cavalheiresco, tentou esconder algo que o incomodava. Como boa observadora, a menina não pôde deixar de notar a sombra de tristeza ou arrependimento que passou por sua face quando os dois se encararam, desconcertados, por alguns segundos. Ela ficou ruborizada, podia sentir, ainda agora, o sangue subindo pelo seu rosto e se espalhando por suas bochechas. Mas viu o mesmo na face do amigo, também. E isto a deixou intrigada. Por que Caio ficou tão sem graça perto dela? Será que ele havia sentido o seu corpo se arrepiando com o toque de suas mãos? Ela não pôde conter o arrepio. Foi inevitável, tal qual o rubor. Lembrava-se de suas mãos agarrando sua cintura com firmeza. Os olhos focados nos seus. Ele a erguendo com suavidade diretamente de encontro à grade para que ela se apoiasse... Suas pernas amoleceram naqueles instantes. Imaginou que, se não estivesse longe do solo, teriam falhado e ela cairia de joelhos, pagando o maior mico na frente de todos. Não seria bom! Esse pensamento a preocupou por alguns segundos. Deu graças por ter conseguido se manter firme para sentar-se no gradil. Não entendia por que, de repente, a possibilidade de cair na frente do amigo a incomodava agora. Afinal, passou mal na frente dele e ele se portou perfeitamente bem. Nenhum desses episódios, porém, fizeram com que ele mudasse sua atitude diante dela. Quando ficou da cor de um pimentão na grade, arrepiada e mole, levando alguns segundos para se recompor, ele sentou-se agilmente ao seu lado e retomou a conversa como se nada tivesse acontecido. Quando ela passou mal no brinquedo, ele foi à enfermaria, comprou isotônico e água, tudo que ela precisava, e ainda a abraçou e deixou que sua mão acariciasse seu braço suave e pacientemente esperando que melhorasse. E curtiu o voo tanto quanto Helena e ela. Agora podia entender perfeitamente porque ele era tão desejado pelas garotas. Assim como Lucas, o (quase) namorado de sua amiga, talvez ainda mais. Ela sabia diferenciar os dois com destreza: Lucas usava sua beleza e seu charme para conquistar o que
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precisasse. Caio, por sua vez, chamava atenção por seu carisma, por seu charme, por seu sorriso sempre tão presente quanto o dela, mas não usava isto a seu favor. Usava a favor do mundo. Estava sempre disposto a ser amigo, companheiro e isto potencializava sua imagem. Neste ponto, se tornava muito mais bonito do que o outro. Já Thiago... Não sabia nem o que pensar a respeito dele. Era tão bom no começo. Agora, notava a mudança em seu comportamento. Thiago se achava importante por ter uma banda. Acreditava que as pessoas deveriam se sentir gratas por sua companhia. Thiago era arrogante... Levou as duas mãos à cabeça e esfregou o crânio com sofreguidão. Quando parou, seus cabelos estavam totalmente desgrenhados, mas ela nem pareceu notar. Caminhou em direção ao seu aparelho de som e o ligou. Procurou aleatoriamente por uma estação de rádio que chamasse sua atenção. Como não obteve sucesso, colocou para tocar o CD que já se encontrava no aparelho. Imaginava como seria o beijo de Caio. Ficava desconcertada com esses pensamentos, mas era um tanto inevitável depois daquela tarde. O abraço havia sido fenomenal e não podia imaginar um beijo menor do que isso. Jogou-se na cama, revoltada, esfregando a cabeça novamente. Era preciso tirar esses pensamentos de sua mente. O garoto era seu amigo e provavelmente teria em suas mãos qualquer garota que quisesse. Além do mais, ela estava ficando com Thiago. Sua cabeça estava uma bagunça. Não queria complicá-la mais. Fechou os olhos e voltou a recordar a queda. Caio a encarando assustado, suas sardas tão próximas que poderia contá-las, a agitação, seu sorriso, o grito, o céu. Tudo foi perfeito. Rolou pela cama até alcançar a gaveta de seu criado mudo. Tinha uma mania que era desconhecida até por sua melhor amiga: guardava um pequeno caderno onde listara as coisas que gostaria de experimentar em sua vida antes de morrer. Era sinistro, pensava, mas necessário. Todo o tempo sentia como se uma urgência a levasse a viver tudo que fosse possível. Seus pais eram extremamente rígidos com seu comportamento, muitas vezes podando seus sonhos, preocupados com o que ela estava fazendo, com quem e a que horas. Tinham uma atitude excessivamente protetora que a irritava por demais. Na maioria das vezes, ela precisava insistir irritantemente para que a deixassem sair com os amigos. Outro ponto positivo para Presenças
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Caio, pois, como eram amigos dos pais dele e conheciam o garoto desde bebê, confiavam em seu caráter e aliviavam suas amarras quando sabiam que estaria com ele. Enfim, imaginava ser este um dos motivos que a levava a viver daquela maneira um tanto urgente. Aproveitava tudo o que podia. Distribuía sorrisos, ajudava os amigos. Era feliz. Sempre feliz. Tirava das coisas pequenas algo que a fizesse agradecer por mais um dia. E riscava de sua lista as que já havia experimentado. A lista, entretanto, aumentava na medida em que seus desejos cresciam. Agora, era o momento de diminuir um item. Pegou uma caneta e procurou, escrito, em uma das várias linhas enumeradas. Lá estava: “238: Voar”. Riscou ao lado do item com caneta vermelha, fechou o caderno e o guardou novamente. Sorriu. “A vida é bela”, pensou. “Tenho tanto a fazer que não há tempo para reclamar.” E quando pensava assim, pensava em todos, não apenas em si. Gostava das pessoas e queria encontrar uma forma de ajudá-las. Assim era Camila, sem muitas complexidades. Fazia o que queria, vivia com leveza e sorria além do normal. Ouviu sua mãe a chamar ao longe. Provavelmente queriam saber como fora o passeio. Ainda não havia decidido contar de sua maior aventura, mas desceu rapidamente. Outra de sua característica marcante a chamava com urgência agora: a necessidade de conversar e conversar e conversar...
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