J. C. Macedo
Barcelos ea Cerâmica Ibérica
Algumas Observações 2013
Barcelos e a Cerâmica Ibérica J. C. Macedo
“[...] pois é, e nesta banda galaico-portuguesa, da comida à louça vivemos uma cultura herdada dos fenícios, árabes e celtas com refinamento comercial romano.” – João Carlos Macedo, 1968.
“A cerâmica que temos é material que aprendemos a modelar e a queimar com os povos que civilizaram a Península Ibérica [...]. Tanto a louça como o galo, em Barcelos, são figuração de um povo que revela a sua alma com arte pura.” – João Macedo Correia, 1968.
Uma das atividades mais antigas da civilização que nos é berço é “a Cerâmica que, após experimentada, foi repassada de região em região pela migração dos povos, ora em busca de pastos ora em conquista de terras e escravos” [João Macedo Correia, 1968]. O que entendemos por cerâmica é a atividade artística e industrial para a produção de peças utilitárias ou figuração. Também podemos afirmar que “cerâmica é material (sílica, feldspato, argila, etc.) que após modelado e sob altas temperaturas [acima de 500ºC] resulta numa peça para ser pintada, vidrada ou não” [idem]. A cerâmica incorpora tecnologias de aplicação e, por isso, dividese a sua produção em função do material – a saber: a) Grês. Peça refratária, de tom cinza, que mistura argila, areia, quartzo e feldspato, sendo vidrada e nem sempre pintada; b) Terracota. Argila cozida a baixa temperatura e raramente pintada; c) Faiança. Uma pasta porosa queimada habitualmente a 540ºC. É com esta pasta que se produz a louça, que pode ser revestida com esmalte no qual se aplica a pintura; d) Porcelana. É uma massa dura composta por caulim (um tipo de argila), feldspato, quartzo e alabastro. Todas estas substâncias devem ser pulverizadas e misturadas com água para formar uma papa densa e leitosa que, sob temperaturas entre 1.250 °C e 1.350 °C, vira uma massa vítrea, dura, densa, branca, impermeável e translúcida que ressoa ao ser tocada. É interessante não esquecermos que “enquanto os povos antigos levantavam pedras grandes (menires) e com elas formavam círculos de fé pagã (cromeleques), já então trabalhavam principalmente a argila na produção de artefactos cerâmicos, paralelamente às casas neolíticas (dólmens) em toda a Península Ibérica” [Santos Simões, 1978]. Especializados na sobrevivência,
celtas e árabes difundiram no espaço ibérico técnicas e aplicações, de sorte que quando o Reino português foi proclamado já os gregos e os romanos também haviam introduzido as suas culturas; e Portugal, muito particularmente na região do Minho, bebeu todas essas influências, e mais ainda pela proximidade física com a Galiza, onde a olaria e a metalurgia do ferro tinham conquistado grande popularidade na passagem de fenícios e gregos. É a era das migrações da cultura indo-europeia que proporciona a industrialização dos povos ibéricos em torno do aproveitamento das águas, da roda d´oleiro, o cultivo de sementes, o vinho e o azeite. E se o ferro vai ao forno para virar utensílio, o mesmo é feito com o barro... Obviamente, a fundação das cidades-estados fenícias influencia o mundo de tribos que, subitamente, encara as próprias realidades socioculturais, e então os povos agem politicamente para assentarem as suas raízes. Todo o espaço ibérico sai da ignorância para o ciclo iniciático da urbanidade. E pelos artesãos árabes, inclui-se aqui o azulejo, enquanto a porcelana só surge ao olhar europeu durante as viagens marítimas para o oriente, mais de um milênio depois. Em cada peça cerâmica os povos dizem de si, mostram-se. Digase a verdade histórica: a roda d´oleiro fez o mundo girar em si mesmo para achar o lugar de cada povo. E lembro... “O meu avô está a estrear uma roda d´oleiro, hoje. Ele pega no barro que ficou n´água nos últimos dias, tira um pedaço e põe na mesa que gira, impulsionada pelo seu pé. Em poucos minutos as suas mãos moldam uma massa da qual um novo objeto vai surgir. Não sei se um galo, se um gato, se uma vasilha... Sei que toda a civilização que somos está resumida neste refazer a vida que gira na roda d´oleiro” [João Carlos Macedo, 1968]. O meu avô, o ceramista João Macedo Correia, filho do também ceramista e comerciante Joaquim Macedo, ensinou-me os primeiros movimentos para o desenho em perspectiva, ensinou-me que “uma alma não se muda, mas pode ser moldada na roda d´amor”, e
também punha o jornal diário na minha frente para me fazer ver (“com olhos de ler”, como dizia) o que o mundo tinha para me oferecer. Desce criança o mundo esteve sempre no meu olhar e aprendi a moldá-lo na roda da minh´alma, tal e qual a massa d´argila na qual aprendi a exprimir uma ideia, um sentimento. Ali mesmo, em Barcelos... A região denominada Barcelos, cujo topónimo, diz-se, vem de barca celi [q.s. barca pequena, utilizada na travessia do Rio Cávado, que corta a cidade] e também de barcellus [q.s. barquinho, este, utilizado na pesca da lampreia], recebe diretamente da Galiza a influência indo-europeia, uma vez que é ponto de passagem estratégico, quer militar quer comercial. Tanto que se diz, sem comprovação historiográfica, que Barcelos é uma vila fundada por Amílcar (o pai de Aníbal) em 230 antes do dito calendário da cristandade, por causa da sua geografia; e, pela mesma razão estratégica, o nome Barcelos vem a ser utilizado para fundar a primeira capital da Amazônia, no Brasil... Ora, de Barcelos fala-se do galo de barro, feito com tal engenho que parece falar! Por trilhas ideológicas que nunca se sabe por quem mais vai trilhá-las, o Galo de Barcelos transforma-se em figuração turística pelas mãos salazaristas do ideólogo António Ferro, que se havia iniciado no campo intelectual pela mão do poeta esotérico Fernando Pessoa, em sua Tipographia a Vapor, naquela Lisboa de sombras. Ele [Ferro] idealiza uma cobertura turística para as políticas do Estado Novo e aparece com o evento Aldeias de Portugal, e é neste período que o Galo de Barcelos passa a ser símbolo de Portugal no mundo. Como acontece?... “[...] O primeiro galo tinha sido modelado pelo Emílio do Parral, irmão do mudo do Parral, para o qual Francisco de Sousa, ainda muito novo, apenas abriu na roda o pedestal e o corpo” [João Macedo Correia, 1960]. Na verdade, Francisco de Sousa (o Ti Francisco do Monte) não se consola de ver os seus galos
quebrarem ainda no forno. A roda d´oleiro é a solução. Entretanto, a produção do galo de barro alcança outras famílias, como a de João Domingos Rocha, conhecida como dos Cotas e das Cotas. E é esta peça que encanta António Ferro e o faz exibi-la como ´trofeu´ de um povo sob o ideário do Estado Novo. Obviamente, a arte dos ceramistas barcelenses está além das questiúnculas ideológicas, e, saiba-se, o Galo de Barcelos é uma peça portuguesa com certeza! Como situar a olaria em Barcelos? A olaria passa a predominar em Barcelos já na “passagem dos povos celtas, cujos castros evidenciam uma civilização dotada de artífices de metalurgia e cerâmica” [Santos Simões, idem], o que continua com a passagem dos romanos que descem pelas serranias do Gerês e assentam a Bracara Augusta [Braga], e também pela Aquae Flaviae [Chaves] numa conquista que deixa marcas urbanas para o futuro Reino de Portugal. Não por acaso, Barcelos vem a ser o primeiro condado do novo reino ibérico. Quando o galo de barro começa a ser produzido, já toda a região ibérica possui uma indústria de olarias que abastece os mercados com objetos domésticos e decorativos. Entretanto, no Século XVI, surge uma história que agita a pacata Vila de Barcelos... Um crime ficou impune e esquecido, até que um peregrino galego, que se dirigia a Sant´Iago, parou para passar a noite em Barcelos. Enquanto ceava, reparou que alguém o observava fixamente, mas não fez caso e continuou a sua refeição. O observador saiu do albergue, dirigiu-se a casa do juiz e acusou o peregrino da autoria do crime. Preso, o galego não conseguia apresentar provas da sua inocência, e foi levado para as masmorras, julgado e condenado à forca. No dia do enforcamento, o peregrino pediu, como sua última vontade, que o levassem à presença do juiz. O juiz, que se preparava para trinchar um magnífico galo assado, recebeu o condenado, que mais uma vez se disse inocente. Vendo que o juiz
não se comovia, o galego invocou a ajuda de Sant´Iago e perante todos afirmou que era tão certo estar inocente como o galo assado cantar antes do dia acabar. Risada geral. Mas, supersticiosamente, não tocaram no galo. À noite, observaram com espanto que o galo se cobria de penas novas, levantava e batia asas para cantar com energia. Correram todos para o lugar da forca e encheram-se de espanto ao ver o peregrino vivo, com uma corda lassa à volta do pescoço, apesar de estar pendurado. Atemorizados pelo facto insólito, libertaram o galego, que seguiu o seu caminho. A figuração do galo na memória perpetua-se de tal maneira que não pode ficar fora da arte popular. Com uma pujança comercial razoável, as olarias de Barcelos carecem ainda de um objeto-padrão que lhes dê uma publicidade nacional. Por isso, o pensamento de Ti Francisco do Monte volta-se para a lenda do galo e percebe, logo com o primeiro galo de barro, que Barcelos tem na cerâmica a sua identidade cultural. Assim foi e assim é. Adelino Macedo, também neto de João Macedo Correia, médico de formação, mas com nata vocação para o artesanato, ao cursar Fotografia e Serigrafia, na Cooperativa Árvore, observa que “a cerâmica é tão importante que já foi base para a escrita suméria e agora é base para painéis decorativos de alto nível cultural, assim como já sinaliza (e temos o Galo de Barcelos como exemplo) uma identidade popular e até uma identidade religiosa (e lembro, como exemplo, o ´cristo´ de Rosa Ramalho)” [1981]. Ou seja: a matériaprima que é o barro transforma-se na plataforma que carreia mensagens, ideias, culturas e regista obras artísticas. No caso de Barcelos existe uma particularidade: a olaria é parte da sobrevivência do povo, mas também é o meio que lhe permite dizer “eu sou quem trabalha e por este barro me anuncio a Portugal e ao Mundo”. É um facto que objectivamente sai do ponto localizado para se dispersar e ser encontrado para outros diálogos além Portugal. E não apenas, como antes, a Península Ibérica. E [a]noto: quando é apenas parte da cultura minho-galaico, o artesanato de Barcelos circula, a partir do Século XVI, nas mãos dos peregrinos que desembarcam no Cávado e seguem a pé para Sant´Iago de
Compostela, e no átrio da grande catedral as peças da figuração barcelense alcançam o mundo nas mãos de outros peregrinos cristãos. Entretanto é um negócio pequeno e nem chega a fazer frente à famosa feira franca que se realiza toda a semana na vila dos oleiros. E são ceramistas com visão de mundo, como Joaquim Macedo (sediado em Areias de S. Vicente) e o seu filho João Macedo Correia (em Barcelos), entre outros industriais, que iniciam transações internacionais a par do sucesso político do evento Aldeias de Portugal. A ibérica e galaica missão da olaria barcelense é o suporte cultural de um Portugal profundamente regional que se revisita em cada peça de barro. A cerâmica barcelense não é mais um foco do Portugal contido politicamente: é a raiz de Barcelos a dizer-se Portugal em embarques culturais e que encontra porto seguro em muitos outros países.
MACEDO, J. C. Poeta e Jornalista
Bibliografia A CULTURA QUE HERDAMOS – Joaquim Santos Simões. Palestra na Citânia de Briteiros no âmbito dos Encontros Minho-Galaicos. Guimarães/Portugal, 1978. Anotações de J. C. Macedo, que participou também da palestra proferida pelo mesmo professor no Museu Martins Sarmento, em Guimarães, sob a égide do Cine-Clube de Guimarães. A NOSSA CIVILIZAÇÃO ATRAVÉS DA CERÂMICA – João Carlos Macedo. Trabalho escolar [premiado pelo Rotary Club] com base em entrevista concedida pelo ceramista João Macedo Correia. Guimarães/Portugal, 1968. AS LOUÇAS DE BARCELOS – João Macedo Correia. Museu Regional da Cerâmica. Portugal, 1965. ACHEGAS PARA O ESTUDO DAS LOUÇAS DE BARCELOS – João Macedo Correia, in Boletim informativo do Museu Regional da Cerâmica, pp. 45-55. Barcelos/Portugal, 1968-1969. CERÂMICA & CULTURA – João Carlos Macedo, in artigos p/ jornais O Povo de Guimarães e Barcelos Popular, 1981. Obs.: Adelino Macedo montou a base tecnológica, com o irmão Toni Macedo, da empresa de decoração em azulejo, dirigida pela mãe Maria Helena, em Guimarães. O SALAZARISMO E A FARRA DO GALO – J. C. Macedo. Artigo in ´site´ noetica.com.br, 2011. PORTUGAL, O GALO E EU – J. C. Macedo. [Ensaio sobre a essência de uma Nação profunda em cada Alma portuguesa.] Opúsculo mimeografado no Q-G do Exército, três dias depois do golpe de 25 de Novembro e distribuído a partir da ´República dos Cágados´ entre militares, estudantes e professores. Coimbra/Portugal, 1975.