Centro de Estudos do Humanismo Crítico Portugal & América Latina
Grupo de Estudos Noética
PALAVRAS ESSENCIAIS Volume 13 / 2017
MULHER
Um Manto Gilânico De Humaníssimo Aconchego
Lillian & Manuel Reis, Joana d´Almeida y Piñon, Carlos Firmino, Carlota M. Moreyra, Johanne Liffey, Fê Marques, João Barcellos, Celine Abdullah e Rosemary O´Connor
Índice Arte de Viver Humanamente Um Manto Gilânico Sobre Nós Bárbara. Um Nome e uma Mulher Leopoldina: a Mulher e a Imperatriz nos Estudos de João Barcellos Leo: era uma vez uma princesa... Na Modernidade Ocidental (sob a bandeira da conquista e dominação hegemônica do mundo): Filosofia em Foco! Cecília Meireles: a Materna Linguagem da Vivência Um Estilo Maternal Na Frente Republicana do Brasil
Obs. Editorial: 1- imagens pinçadas da web s/ restrição p/ publicação livre e imagens do banco de dados de TerraNova Comunic e grupo de debates Noética. 2- Alguns textos conservam a ortografia original portuguesa fora do acordo ortográfico lusófono.
As malhas que os impérios tecem, ao longo da História das civilizações, inalteravelmente pautadas pelos padrões do ‘Homo Sapiens tout court’, pela fatal Violência guerreira, e pela sempiterna Cultura do Poder-Dominação d’abord, que dura, patriarcalmente, há cinco milénios e meio, e pôs termo à GILANIA dos quatro milénios anteriores, onde os Humanos (homens e mulheres) eram capazes de conviver, harmoniosamente, respeitando a Igualdade (jurídica) entre os dois Sexos distintos. REIS, Manuel _ filósofo. Portugal, 2016
Arte de Viver Humanamente
Carlota M. Moreyra
É verdade que “a humanidade nem sempre conteve a arte de viver no feminino”, lembra-nos Jonana d´Almeida y Piñon. Durante muito tempo, bem antes de se inventar o deus único (por que não uma deusa única?!) e o poder puramente patriarcal, a mulher, e o seu instinto de vivência no e pelo todo, era o polo do desenvolvimento, e nem por isso deixou de vivenciar a humanidade com o instinto patriarcal. Foram “tempos de humanismo a gerar a solidária civilização”, como gosta de enunciar o poeta e jornalista J. C. Macedo ao falar do “tempo gilânico” e buscando suportes em Sócrates e Manuel Reis. Ao ler o breve, mas profundo, ensaio “Um Manto Gilânico Sobre Nós”, de João Barcellos, logo lembrei o “Nova Humanidade, Nova Sociedade”, de Reis, porque as ideias/ideais convergem pela urgência de uma ordem mundial que não interfira nas comunidades regionais e respeite a ascensão sociopolítica e empresarial da mulher. Além de que “a mulher é o ventre do todo humano”, como sublinham Rosemary O´Connor e Céline Abdullah. Trazemos neste 13º volume da coletânea “Palavras Essenciais” o olhar diferenciado de Johanne Liffey e Fernanda (Fê) Marques, enquanto celebramos Lillian Reis pelo frescor intelectual do seu apoio às atividades do Centro de Estudos do Humanismo Crítico (cehc), sediado naquela Guimarães onde nasceu Portugal e que ora se espraia pela América Latina via Grupo de Debates Noética, com casa no Brasil. Lendo os textos compilados ressalto a unidade filosófica em torno do humanismo crítico no qual a mulher nunca deixou de ser referência civilizatória, celebramos também, in memoriam, Carlos Firmino, Maria Vidal, Elen O´Connor, Figuera de Novaes, Marc Cedron e Marta Novaes, gente como a gente empenhada na solidariedade humana em seu todo social.
Um Manto Gilânico Sobre Nós João Barcellos
O estranho naquilo que somos é na maioria das vezes não enxergarmos o manto que nos dá vida... Em tempos idos, falar de humanidade, i.e., nós, era falar de mulheres e de homens na mesma trincheira do desenvolvimento, fogueira após fogueira, filhote após filhote na sequência animal da espécie que se renova, roda após roda e, logo, um filosofar sobre a raça de inteligência diferenciada que em cada tribo se espelhava diante da natureza animal e vegetal. Pois é, logo após o carnaval deste inquieto e pouco criativo 2017 um político europeu a representar (...?) o povo polonês choca o mundo ao afirmar que as mulheres “são mais fracas, mais pequenas e menos inteligentes”. Este eurodeputado é Janusz KorwinMikke, logo combatido pela deputada espanhola Iratxe García, ora pois, tal afirmação não passaria em ´branco´... Mas, como ainda é possível um tal pensamento-ação? É possível, é verdade, e ainda temos que engolir isto porque a maioria é uma massa de gente instruída para acatar e não para agir, ou, agir sob ordens!
PARTE UM
Ponto 1 _ A questão deixou-me perplexo: em pleno Século 21 ainda existe quem ouse se achar mais do que outra pessoa. Na verdade, e vos digo, não é nem para ficar surpreso, pois, pessoas que se acham acima de outras é comum nesta sociedade que construímos, ou permitimos que construam por nós. Ora, a mulher é o outro elo da humanidade e sem ele o homem não vive, portanto, é preciso que mulher e homem se entendam na vida sociopolítica da mesma maneira que se entendem para procriar. Ponto 2 _ Esta questão é tão velha quando a humanidade em si... O velho Aristóteles filosofava pela crença de que “a mulher é o homem incompleto”, pois, para ele, tudo depende do sémen nela deixado pelo homem em satisfação de posse [animal]. Já o notável Platão, que em Sócrates bebeu uma filosofia aplicada à realidade humana e não somente à especulação, falava da importância da mulher na política republicana, e o próprio Sócrates na escrita platônica, manifestou a importância da mulher afirmando não existir diferença intelectual entre mulher e homem, por isso, a igualdade de gênero é uma questão de justiça social, ou, indo ao contemporâneo Manuel Reis, uma questão de humanismo crítico, um humanismo que se observa neste ´diálogo´...
“[...] meu amigo, não há nenhuma atividade no que concerne à administração da cidade que seja própria da mulher enquanto mulher ou do homem enquanto homem; ao contrário, as aptidões naturais estão igualmente distribuídas pelos dois sexos e é próprio da natureza que a mulher, assim como o homem, participe em todas as atividades [...]
uma filosofia que põe Sócrates como uma pessoa do nosso tempo, de todos os tempos, sendo que ele, assim como Jesus [o ´cristo´] na Palestina, peregrinava pela sua Grécia rodeado de mulheres [a semelhança de atitudes não é mera coincidência]. A divergência é filosófica e vem de um fundamentalismo que age contra a natureza das espécies na fronteira entre a animalidade e a humanidade: e digo naturalmente,
porque é um tipo de resistência que dá vida à especulação do eu-e-o-algo-além, sendo que aqui o algo-além é aquela religião que a pessoa carreia por não querer se definir como espécie. Sim, somos uma espécie entre espécies e isso não nos impede de cultivar uma fé cultuando o algo-além, o que nos transcende culturalmente. Nós somos o orago/oráculo de uma religião naturalíssima e a fé que cultivamos ajuda-nos a estabelecer um humanismo crítico com ponto [e retorno às palavras socrática e jesuana] na fraternidade entre a mulher e o homem pelo bem-estar republicano da espécie. Ponto 3 _ Para o absolutismo monárquico a mulher é objeto e máquina multiplicadora, enquanto o homem cumpre as funções de mando. Já na amplidão política da sociedade republicana a mulher e o homem, em tese, são partes de um todo comunitário, pelo que a fraternidade é a bandeira única a esvoaçar e sinalizar a conduta da humanidade.
PARTE DOIS
Ao esmiuçar a questão no que tange à história que nos ensina “o homem fez, o homem é”, logo lembrei de uma mulher que, não, não, lembrei de mulheres que... E é verdade: a história é contada como a história do homem, e não como a história da pessoa humana, i.e., da mulher e do homem que a constroem.
Ponto 4 _ Mulheres de notória ação sociopolítica estão por toda a parte. Como português em voo pelo mundo, logo lembro o nome de Ana de Osório, notável escritora e republicana, batalhadora pelos direitos de igualdade entre mulher e homem e que em 1907 criou um grupo de estudos feministas. E pouco antes, a Maria de Fontarcada – a Maria da Fonte, lá do norte minhoto – que levantou o povo contra as oligarquias que tinham Portugal como um mero quintal. E a rever em traço breve a historiografia lusófona, eis Bárbara de Alencar, que nos sertões do norte brasileiro ajudou a implantar uma precária República contra império da Casa bragantina...; e uma estrangeira ligada à lusofonia pelo escambo sexual: Leo, a imperatriz Leopoldina, cuja ação política determinou a ruptura do Brasil com Portugal, e Anita Garibaldi, também ela em luta por um Brasil republicano, cuja ação se estendeu, como o marido Giuseppe, à união republicana das terras italianas.
Ana, Anita, Bárbara e Leo
Maria da Fonte (revolta e estátua)
Entre estas mulheres que aqui cito a única que sai do traço ideológico republicano é Leo – assim ela gostava de assinar as suas cartas secretas para irmã, a esposa do Bonaparte – e porque ela, apesar de politicamente escravizada e mera reprodutora do imperador Pedro, sentiu-se obrigada pelo amor que lhe devotava em favorecer a coroa com os seus amplos conhecimentos acadêmicos, e assim, juntando-se a José Bonifácio, criou as condições políticas e psicológicas para obrigar Pedro a encarar a ruptura com aquele Portugal imperialmente cego e colonial, mesmo sabendo que poderia ser substituída a qualquer momento por Domitila, a prostituta social que ele tinha nos braços. Ao trazer a este quadro o brevíssimo perfil da sofrida e atormentada Leo quero mostrar que a dimensão da dor feminina não tem medição ideológica, que é puramente humana e assim deve ser encarada, estudada. Além de que Leo teve um papel politicamente determinante nos ventos lusófonos do Século 19, quando a bandeira republicana já indicava o fim inexorável da monarquia absolutista.
Ponto 5 _ Quem não reconhece na mulher o elo fundamental da vida humana, o que faz por aqui?
Essa mulher lá do Minho que da foice fez espada há-de ter na lusa história uma página doirada E retomo às lusófonas com esta quadra do notável poeta e cantor Zeca Afonso, da sua composição As Sete Mulheres Do Minho, uma homenagem a Maria da Fonte, uma das heroínas do povo português na sua defesa pela integração nacional. E por que, então, diante de tanta ação feminina em prol da civilização e de tantas páginas doiradas, o homem continua a ver/ter a mulher como algo sob mando? Comunidades gilânicas – i.e., comunidades com chefia de mulheres existiram ao longo dos tempos e em todas as partes da Terra.
Gilania _ a saber: GI, do grego Gyne ou mulher; AN, andros ou homem, L de LYEIN, q.s. dissolução ou libertação do mando de alguém sobre outrem.
Assim como sempre existiram as comunidades androcráticas – i.e., comunidades chefiadas por homens. Eis que as amazonas não são uma lenda, representaram diversas comunidades e não de oposição ao homem, mas para repor a linha histórica e filosófica da fraternidade, logo, igualdade de sexos. E foram muitas e por mais tempo do que julgávamos: recentemente, no deserto do Novo México, em Pueblo Bonito, descobriu-se mais uma comunidade gilânica que, a juntar às europeias e orientais, demonstra um quadro humano bem diferente do que aquele apresentado tradicionalmente, e mostra, por outro lado, como a introdução do deus único egípcio na sociedade ocidental [judaísmo, cristianismo, islamismo] fortaleceu a ideia androcrática de mando sociopolítico e religioso. Este manto gilânico que às vezes surpreende o mando androcrático revela o quanto a humanidade precisa se ajustar em gêneros por práxis de evolução civilizacional, o que tem falhado sistematicamente na linha patriarcal das políticas públicas e religiosas. A amplidão da representação feminina na grandeza política e socioeconômica de Cnossos, por exemplo, mostra-nos como os povos mediterrâneos, e particularmente o grego, teve na mulher o elo e a chave para o progresso sustentável, uma sociedade que na sua contemporaneidade com a celta – e este é só um exemplo, entre outros – gerou um curso civilizatório interrompido pela ascensão da fé num deus único patriarcal e imperial. Nem podemos esquecer a importância da mulher portuguesa do norte que, nas comunidades, era o que os celtas designavam como a mãe e sacerdotisa na geração da ordem social. Eis porque não se pode interpretar fenômenos como Maria da Fonte e Bárbara de Alencar e Anita Garibaldi como fatos isolados do ato feminino nas políticas emancipatórias, pois, o manto gilânico está no nosso passado e se faz presente por um futuro de humanismo crítico na educação das novas gerações [retorno aqui a Manuel Reis e seus estudos]. A importância do manto gilânico no universo lusófono [as nações antes colonizadas e que hoje são um ultramar diverso na Língua portuguesa] está muito além da política e da religião. Já para o universo da cristandade, Maria Madalena supera toda a história ao se revelar como personagem central junto de Jesus e sobreviver a todo o terrorismo dos igrejistas
[membros de igreja-estado] para a retirar da vida daquele profeta. No caso budista, dizse que a mulher oriental passou a ter importância quando a madrinha do próprio Buda solicitou permissão para a fundação de uma ordem feminina, o que foi concedido, ou seja, também as mulheres poderiam atingir o nirvana...! No terreiro africano, outro exemplo, eis que a mulher nunca deixou de ser a ponte da vida social e mística com uma ação cultural de envergadura, particularmente no espaço mesopotâmico. Estes três exemplos sugerem que o patriarcalismo místico, em torno de uma divindade única, atropelou a diversidade cultural dos oráculos ancestrais e gerou uma atitude belicosa permanente nas sociedades de maneira a ter o homem sempre no mando pela fé absolutamente objetual de uma política repressiva contra a própria humanidade. Ora, torna-se óbvio que a mulher nossa contemporânea, e diante da história emancipatória fecunda, nem se rebela, pois, ela mesma representa na sua vivência a inexorável mudança do paradigma androcrático para o gilânico, e mesmo diante de um igrejismo imperialmente patriarcal. Cabe ao homem do nosso tempo perceber a evidência da realidade e calar de vez as vozes ultrapassadas como a de Janusz Korwin-Mikke, o eurodeputado ora tristemente célebre.
Terminando...
este manto que me toma embriaga minh´alma navega em mim um amor que na falta me dá dor ai, deixem livre minh´alma neste manto que me toma
Ora, termino com parte de um poema que escrevi ao conhecer e registrar a história de Bárbara de Alencar, nos certõens y mattos além do ryo Siará, uma homenagem à mulher de hoje que carreia o saber de ontem com o perfume da leveza que nos chama para o amanhã.
Março de 2017 gd Noética / CEHC
Notas Ana de Castro Osório [Portugal, 1872-1935], escritora republicana, com obras ligadas à literatura para jovens, jornalista e pedagoga, ativista feminista.
Anita Garibaldi [Ana Maria de Jesus Ribeiro. Brasil, 1821-1849], brasileira, companheira de Giuseppe Garibaldi nas lutas republicanas. Bárbara Pereira de Alencar [Brasil, 1760-1832], integrada na Revolução Pernambucana e na Confederação do Equador, liderou a primeira República do Brasil com o imperador Pedro. Carolina Josefa Leopoldina de Habsburgo-Lorena [Caroline Josepha Leopoldine von Österreich. Áustria, 1797-1826], ou, intimamente, Leo, imperatriz do Brasil. Maria da Fonte, chefiou revolta popular na primavera de 1846. Uma mulher do povo chamada Maria, natural do lugar dito Fontarcada [daí Maria da Fonte], foi quem levou a maioria das mulheres do Minho contra as oligarquias políticas e religiosas de então.
Bibliografia Anita & Giuseppe Garibaldi: a mulher e o homem na batalha civilizacional – J. C. Macedo. Palestra e opúsculo [arquivos de Johanne Liffey, London-UK], Coimbra/Portugal, 1976. A Política – Aristóteles, várias edições. A República – Platão, várias edições. As Mulheres na República Portuguesa – J. C. Macedo. Palestra e opúsculo (ediç mimeografada). Guimarães, Barcellos e Aveiro, 1972; e Braga, 1973. As Sete Mulheres Do Minho – Zeca Afonso. Canção do álbum ´Fura-Fura´. Portugal, 1979. Diálogos – Platão, várias edições. Leopoldina: Imperatriz & Escrava – Johanne Liffey [sobre ensaio de João Barcellos], in Pessoas & Humanidade (2ª ediç, coordenação de Maria C. Arruda), Ed Edicon + Centro de Estudos do Humanismo Crítico + gd Noética. Portugal e Brasil, 2016. No Altar Com a Espada – João Barcellos. Palestra no ciclo “Mulher & Homem: Humanidade”, grupo de debates Noética e Centro de Estudos do Humanismo Crítico; Embu das Artes e Cotia /SP, 2016; Barueri/SP, Brasil, 2017. Nova Humanidade, Nova Sociedade – Manuel Reis. Ed Edicon + Centro de Estudos do Humanismo Crítico. Portugal e Brasil, 2016. O Cálice e a Espada: A Nossa História, o Nosso Futuro – Riane Eisler, 1989. Sobre a Gilania e o Mundo “Novo” do Pensamento Único Androcrático – João Barcellos. Palestra no ciclo “Mulher & Homem: Humanidade”, grupo de debates Noética e Centro de Estudos do Humanismo Crítico; Embu das Artes, Brasil, 2015; Florianópolis/SC, São Roque / SP e Curitiba/PR, Brasil, 2016.
Bárbara. Um nome e uma mulher.
Céline Abdullah
Bárbara. Um nome e uma mulher. É nesta mulher que se regista uma das primeiras acções políticas contra a monarquia imperial brasileira chefiada pelo regente João e o príncipe Pedro. E com ela toda a família. E toda a vila do Crato, no coração pernambucano. Empresária rural abastada, mãe, letrada e leitora das circunstâncias sociopolíticas e econômicas do seu tempo, Bárbara de Alencar torna-se a força ideológica do movimento que fica conhecido como Revolução Pernambucana, iniciado em Recife a 6 de Março de 1817, com Frei Caneca, Domingos José Martins e Antônio Carlos de Andrada e Silva (este, enquanto jornalista assina ´philagiosetero´ e é irmão da José Bonifácio, o patriarca da independência para a Casa de Bragança); o seu filho José Martiniano é quem, a 3 de Maio, em plena missa dominical na igreja do Crato, proclama a República. Apesar de uma estrutura básica, a força da matriarca era social e política, não é militar, e assim, a primeira mulher-presidente de um ato republicano no Brasil é aprisionada e arrastada, com os demais, para a masmorra em Fortaleza... 600 quilómetros em um mês sob o impiedoso sol nordestino. Por 3 anos ela conhece diversas prisões. A senhora do Crato, apesar das dificuldades, tem forças para se envolver directamente em outro levante republicano: a Confederação do Equador. E então, estão com ela novamente os filhos, que vê serem mortos: só um escapa com ela. No ano 1832, a senhora da República do Crato morre sem ver o ideal realizado, porém, a sua acção perpetua-se no imaginário popular e político.
no coração e n´alma a senhora do Crato levanta a Liberdade em essência e com ela vai a democrática emergência da coisa pública para um povo grato que com ela lava a alma perpetua-se no povo a chama revolucionária da senhora do Crato [Barcellos, João – in Poemas à Senhora do Crato, 2011]
Nascida nos idos 1760, Bárbara de Alencar prova que a mulher não é um objecto social no enquadramento patriarcal, mas a pessoa que pensa e age pelo bem comum e nisso vira heroína. A sua fama de mulher que sabe repassar ensinamentos e ideais faz com que, anos depois, o imperador Pedro II tema que o escritor José de Alencar, neto dela, leve ao Senado aquele espírito republicano... Entretanto, enquanto a guerreira Bárbara avança o seu idealismo liberal nos sertões, a princesa Leopoldina vive o dilema palaciano de destruir o seu arruaceiro príncipe, ou manter a aparência reinol para lhe salvar a pele e a coroa.
um animalesco régulo estupra a princesa que superior lhe é e ela que vera mulher o é canta a vida em amor pela riqueza do gesto singelo [Barcellos, João – idem]
Na vivência de Bárbara, a ´senhora do Crato e presidente da res publica que afronta a monarquia´, o que existe é “um rei fujão e um filhote régulo sem consciência da gravidade sociopolítica do seu próprio tempo que acha ser a maçonaria o mesmo que o sexo fácil das meretrizes palacianas”. Esta definição de João Barcellos para o medroso regente João e o príncipe Pedro mostra como a ignorância machista dominou o Brasil e impediu, de facto, naquele tempo, a disseminação do ideal maçónico da liberdade. Não é “o tempo da inconfidência mineira, quando a maçonaria não era sequer uma ´loja´ na colônia, mas uma luz desembarcada nos cais cariocas a sugerir políticas precárias”, na opinião de J. C. Macedo. Eis a verdade. Entre o desajeitado ´tiradentes´ e a ousada e organizada senhora pernambucana existe uma diferença: a política feita de acções republicanas em prol da liberdade. O jeito maçon de organizar a praxe republicana, no Século XIX, passa pelo mercantilismo de uma burguesia que já é um poder paralelo ao dos reinóis. “Se o primeiro Pedro é um mero figurante salvo pela inteligência da princesa Leopoldina, o segundo Pedro é o déspota iluminado que percebe na divisão dos interesses dos maçons a estrada para os dominar” (Barcellos,
idem), por isso a conduta política de Bárbara de Alencar no primeiro período de regência brasileira é determinada pela captura de apoio popular e burguês, e não somente a interpretação de um ideal. Obvio, sem uma estrutura paramilitar mínima esse apoio não é o suficiente para salvaguardar a acção política. A escravatura machuca a humanidade, mas ela é fruto do negócio próprio à mesma humanidade, que prospera financeiramente e mata-se socialmente. Eis um ponto de reflexão comum entre Bárbara e Leopoldina. Mas isso é só. Nada mais. No início do Século XIX prevalece o androcrático mando mesmo entre liberais. Uma visão que atrapalha muito a acção republicana de Barbara de Alencar, pois, impede-a de avançar mais no que hoje designamos por gilánico espaço da sociedade, vivido a seguir por Maria da Fonte no norte de Portugal, enquanto a contemporânea Anita Garibaldi tem o mesmo problema e fica isolada no movimento político e militar do companheiro Giuseppe. Seja qual for o ângulo ideológico que se utilize para olhar e definir Barbara de Alencar ela surge como a primeira e genuína imagem da República Brasileira, retrato único. Moçambique, 2017 P.S.: Os meus agradecimentos a Johanne Liffey e Mariana d´Almeida y Piñon pelas ´dicas´ de história sobre o sertão nordestino do Brasil, que só conheço de passagem em minha visita à região do Crato via Recife.
Leopoldina a mulher e a imperatriz nos estudos de João Barcellos
Johanne Liffey
Leio sobre “a problemática social e política da mulher e imperatriz Leopoldina, aliás, Carolina Josefa Leopoldina Francisca Fernanda de Habsburgo-Lorena, [ou, Caroline Josepha Leopoldine Franziska Ferdinanda von Absburg-Lothringen] para nos dizer (ou para nos lembrar...) que a pessoa o é apenas quando conscientemente ocupa o seu espaço e faz o seu tempo”, e o que leio não me agrada – e não me agrada porque é um escrito de alguém que para chegar a tal veredicto foi lá bem no fundo da historiografia e, lá, a ´luz´ é uma ténue realidade só perceptível a quem pesquisa para falar/escrever da história como ela foi feita. E continuo a ler para saber que “a jovem vienense Leopoldina é ela mesma no desdobramento social (familiar) e político (realeza) cujo desempenho a fez amargar circunstâncias a tanger o ridículo da mera humilhação para defender a sua condição de esposa fiel e mãe. Leopoldina cresceu cercada de mimos e foi educada no castelo de Schonbrunn, de onde saiu para se casar com o príncipe Pedro de Alcântara de Bragança e ser a imperatriz do Brasil. Devotada a estudos sobre botânica e mineralogia, a jovem imperatriz passou a ser uma referência junto do imperador, pois, raramente a Corte recebia uma mulher ciente de seus deveres oficiais e disposta a zelar pelos mesmos. As princesas eram educadas para serem mães e acompanhantes, partes do cenário aristocrático da Corte. Casada por procuração, a jovem austríaca fez um estudo
sobre a sociedade portuguesa e optou por anexar Maria ao seu nome... Foi um jeito de acompanhar a maioria das infantas lusas que recebiam esse nome em homenagem à mãe de Jesus. A maestria política da jovem mostrou-a com bagagem sociocultural suficiente para enfrentar qualquer Corte imperial. Esse foi o aspecto mais precioso que Pedro soube capturar da mulher que se lhe entregou amorosamente e o defendeu politicamente, de tal sorte, que ela mesma governou o Império enquanto ele percorria Minas Gerais e São Paulo onde acabou por proclamar a independência contra Portugal, praticamente nos braços da amante...”. Este tipo de observação “é uma sentença histórica, porque é a crítica sociopolítica ao comportamento criminoso do homem que faz da mulher/esposa a escrava geradora e a mata lentamente enquanto vive alegremente nos braços de outra”, como escreveu a moçambicana Céline Abdullah a propósito. A observação foi feita na leitura de João Barcellos sobre um texto inédito de Gertraude Schultz Steigleder e, em outro, de Nicole Durr, ele diz-nos que “falar sobre a bela princesa austríaca Leopoldina implica na destruição da imagem de um imperador que a humilhou e a matou no fogo brando da loucura sociossexual prenhe da violência que é o poder da ignorância politicamente assente. E se a imperatriz soube carregar o fardo enquanto pilar da monarquia absolutista – ´sofrer, mas não perder a coroa´ [...] –, devese dizer, e digo, a maltratada ficou na história como tal enquanto o fidalgo ignorante e imperador posou de macho e de louco glorificado numa estória culturalmente obsoleta. E não é fácil ficar diante do desafio. O bandido, em sociedades onde prevalecem a ignorância e o culto da posse sexual, vira estátua e referência escolar!...”. O que leio deixa-me entre o encanto, pela resistência da princesa, e o desencanto, pela atitude bandida do imperador. O conhecido pesquisador de história lembra-nos, ainda e sobre os textos de Gertraude Steigleder e de Nicole Durr, que “O novo Brasil do imperador Pedro I não era tão independente como parecia, pois, a influência da Inglaterra era maçônica e politicamente vasta... E os ingleses não queriam perder o óptimo fruto colonial que colhiam na América do Sul, logo, ao tomarem conhecimento do ideal republicano que dirigia já algumas políticas locais decidiu juntar esforços com aliados tradicionais. Com o sangue monárquico nas veias, o Brasil não se apercebeu da armadilha e o imperador Pedro partiu em campanha para o sul na defesa da parte oriental do Império [parte do Uruguai], área estratégica de acesso aos rios Paraná e Paraguai, enquanto a imperatriz Leopoldina assumia o governo. Durante o processo, foi a imperatriz Leo [o poeta J. C. Macedo designou-a assim em dois momentos literários] quem governou a Independência do Brasil, ao lado e sob os conselhos do ´aliado´ José Bonifácio Andrada, para fortalecer a campanha militar. Foi em tal ação da mulher e imperatriz que o Brasil se fez Nação em si mesma. A chamada guerra cisplatina [q.s. acá de el plata] foi orquestrada e financiada pela Inglaterra e a aliança só não perdeu mais porque, no Rio de Janeiro, uma mulher e imperatriz soube cuidar dos negócios d´Estado como o imperador nunca tratou! Em ambos os lados ninguém tinha força militar e econômica suficiente para guerrear por muito tempo, e restou ao Brasil perder espaço político e econômico enquanto nascia a República Oriental do Uruguai. E se Leopoldina foi perfeita no comando do governo d´Estado, já o imperador Pedro I perdeu o pouco prestigio que tinha junto da população arruinada pelo peso dos impostos. Bonita e inteligente, Leopoldina não logrou a unidade familiar; a todo o instante o coro popular chegava-lhe aos ouvidos em denúncias de relações extraconjugais de Pedro, e pior, de uma amante paulista que já se fazia crer imperatriz... Ora, a Marquesa de Santos cimentou a falta de escrúpulos do imperador Pedro: a presença da marquesa na Corte criou um ambiente de humilhação aristocrática e pública que só uma mulher de caráter como Leopoldina poderia suportar em nome de si mesma e do Império”.
Pode-se dizer que “a imperatriz Leo foi-se sob a bota de montaria do imperador Pedro e o riso mercantil da amante Domitila”, como escreveu o poeta J. C. Macedo, porque entre uma gravidez e outra – e foram dois abortos (conhecidos) e sete filhos – a escrava real levou surras monumentais que a deixaram velha antes dos 40 anos de idade...! O que diz João Barcellos sobre isto? Vejamos: “A vida das aristocratas é, na maioria das vezes, um passeio sadomasoquista, mas conseguem, também às vezes, escapar desse inferno com criatividade. O drama de Caroline Josepha Leopoldine Franziska Ferdinanda von Absburg-Lothringen, a imperatriz brasileira passa por instantes que se relacionam historicamente com os da famosa Georgiana Cavendish, the Devonshire Duchess – a saber: a duquesa inglesa enfrenta o desafio de uma dama cujos filhos são ´presa´ do pai, e o fato torna-se chave para fazê-la amante do duque, já a imperatriz brasileira é confrontada com igual situação com a presença de Domitila de Canto Castro e Mello, uma prostituta social da elite que o imperador Pedro I fez sua amante em São Paulo ao tempo do grito d´Ipiranga. Este quadro demonstra como a política d´alcova foi a solução para muitos males e o fosso sexual onde caíram várias sociedades. Ontem e hoje o sexo é vivido na linha da lâmina que divide o crime e o amor, o ódio e a liberdade. A experiência vivida pela torturada Leo é uma lição e um alerta permanente”. Ao estabelecer um paralelo social e político nos ambientes de sangue azul que envolveram a famosa Georgiana, duquesa de Devonshire, e a imperatriz Leo, e é um paralelo culturalmente devastador, João Barcellos vai à raiz das políticas d´alcova que tantos interregnos causaram na história portuguesa e ibérica, mesmo que nos casos em leitura isso não tenha acontecido por não estarem no contexto da disputa pelo poder reinol. No caso de Caroline Josepha Leopoldine Franziska Ferdinanda von AbsburgLothringen, a imperatriz brasileira, o ´mundo´ desabou familiar e sexualmente sob a prepotência de um imperador barbaramente desligado da sociedade e a fazer jus à
fogosidade sexual e petulância política anti-portuguesa e anti-brasileira de Carlota Joaquina Teresa Cayetana de Borbón y Borbón... sua mãe. Em várias páginas inspiradas pela história brasileira, o poeta J. C. Macedo escreveu textos que serviram de base para palestras, e lembro, aqui, estes versos –
caída em terra amada a bela de Viena chora a triste sorte já a bota d´imperial insolência lhe diz de lenta e certa morte Leo é resistência vive com a estrela do sul em busca de um norte ninho de quem não é amada
versos que retratam “o infortúnio e o estupro da princesa danubiana em terras tropicais”, como escreveu Celine Abdullah. Quando li algumas das cartas enviadas secretamente pela imperatriz a sua irmã Maria Luiza, também esta forçada a casar com outro ditador – Napoleão, percebi os horrores que ela não escondia nas entrelinhas: aquarelas de uma tortura física e psicológica. A sua abnegação em defesa da Monarquia, via casamento aristocrático de arranjo econômico, teve uma definição ideológica no confronto ocasional com outra mulher: Bárbara de Alencar, a revolucionária defensora da República e, que no Crato, região cearense (nordeste do Brasil e, saiba-se, onde aportou na foz do Ryo Siará o capitão Sanches Brandão, em 1342), que foi Presidente republicana por alguns meses, até ser brutalmente detida e recolhida aos calabouços monarquistas. A imperatriz Leopoldina viu nesse episódio a possibilidade de outra história: o fim do absolutismo monarquista. E pior: percebeu que o imperador Pedro I estava a léguas da situação e ela mesma teria de agir com os conselheiros mais próximos. No estertor da Monarquia e diante de uma República que se instalava passo a passo no quotidiano brasileiro, entre maçons vermelhos (Diogo Feijó) e maçons azuis {José Bonifácio de Andrada), a imperatriz soube ser ela mesma ao entender a situação e defender o seu maior bem: os filhos. Mesmo hoje, quase dois séculos depois, a história da imperatriz Leopoldina deixa muita gente de boca aberta: é o espanto diante do insulto que foi obrigada a vivenciar em nome da aristocracia absolutista. Dublin/Ie, 2015
LEO Ou: era uma vez uma princesa... Da Correspondência Secreta Da Imperatriz Leopoldina Que Encantou Uma Nova Nação Debaixo Da Bota & D´Arruaça do Imperador Pedro
João Barcellos
Índice Apresentação 1 / Carlos Firmino Apresentação 2 / Mariana d´Almeida y Piñon Parte 1 Uma Princesa no Conselho d´Estado Parte 2 Da Independência do Brasil 2.1 Leo, a Princesa 2.2 Rio, Novo Mundo 2.3 Querelas Luso-Brasileiras & Brasil Parte 3 Estupro Político & Sexual de uma Princesa Parte 4 Acerca da Correspondência Secreta de Leopoldina Parte 5 Instituições, Anotações & Bibliografia
Apresentação 1
João Barcellos, a Imperatriz Leo e o Imperador Arruaceiro
Carlos Firmino
A perspectiva de João Barcellos sobre o contexto histórico e historiográfico que envolve a princesa e imperatriz Leopoldina, em textos já analisados por Johanne Liffey e pelo Grupo de Debates Noética, derrama o espectro da violência patriarcal sentida no cotidiano matriarcal, ou seja, mostra-nos que a civilização é tida como painel de realizações masculinas e que a mulher é um dos objetos desse painel no qual o todo é o homem. Nem sempre foi assim e “a mulher realizou-se social, política e culturalmente, até que chegou o deus único feito homem para subordinar a sociedade no curral masculino”, como lembrou o poeta J. C. Macedo em palestra memorável [Guimarães-Portugal, sindicato dos têxteis, 1973], e, continuou ele, “as cabeças coroadas passaram a ser representantes intocáveis da divindade cujos súbditos directos, os bispos, assumiram a santidade precária entre as pessoas comuns que lhes servem de apoio econômico, logo, a sociedade mercantil é o seu trono”. E assim, diz-nos João Barcellos, “reis, rainhas, príncipes e princesas, são peças de um jogo jogado entre elites e com linhagens continuadas nelas e com as igrejas. No caso de uma princesa, ela é preparada para ser a peça que no jogo obtenha resultados políticos e financeiros para perpetuar a casa da linhagem em representação”. E retornando ao poeta Macedo, “a princesa é a moeda de troca que favorece o trono e a casa, um produto em extinção desde que Napoleão comprou Maria Luiza e Antonieta perdeu a cabeça na guilhotina e, lembro, a irmã de Maria Luiza, Leo (a estuprada imperatriz do Brasil), que foi transformada em espantalho
social pelo imperador Pedro diante das amantes..., bem, o que não a impediu de proclamar institucionalmente a independência do Brasil, enquanto regente”. A ofensa machista de Pedro diante da princesa vienense é um quadro publicamente conhecido e tolerado socialmente, mas a aquarela palaciana dos jogos de poder transformaram-se numa tela de cores muito vivas que passaram a incomodar o olhar e o sentimento político e popular: na verdade, “o cotidiano da princesa e imperatriz Leopoldina é um estupro que ela aguenta por ter sido educada para isso mesmo e enquanto moeda de troca, mas até ela desaba sob a violência doméstica praticada pelo imperador e arruaceiro Pedro” [Barcellos, 2013]. A leitura historiográfica de Barcellos sobre a circunstância leopoldinense iniciou-se no Rio, em 1988, quando manteve diálogos com o professor Francisco Igreja e na Biblioteca Nacional, assim como no Paço Imperial (em Petrópolis), teve acesso a documentação raramente pesquisada, e depois, em 2001, nas instituições de Viena e de Lisboa. “Ler as cartas secretas de Leo é estabelecer parâmetros políticos e sociais sobre o Brasil do primeiro império e a sua precariedade ideológica diante dos interesses de maçons de várias cores, mas, sobretudo, é uma leitura que nos mostra uma imperatriz com ousadia intelectual para se dizer mulher”, diz ele, ao rever parte do material em textos inéditos de Nicole Durr e de Gertraude Schultz Steigleder. A sua palestra LEO – Ou: era uma vez uma princesa... // Da Correspondência Secreta Da Imperatriz Leopoldina Que Encantou Uma Nova Nação Debaixo Da Bota & D´Arruaça do Imperador Pedro deixou muitas pessoas de boca aberta, incrédulas diante da história nua e crua, em cidades como Cotia, São Paulo, São Roque, Embu das Artes, Fortaleza, Rio de Janeiro, etc., além de teleconferências com intelectuais de Viena, Lisboa, Madrid, Berlin e Buenos Aires, entre 2013 e 2015. E é esta palestra que me traz de novo a uma análise literária, porque, e assim espero, a palestra deverá virar ensaio em livro próprio ou em coletânea. É o meu jeito de homenagear o amigo e mestre João Barcellos, e faço-o, porque é um dos raros intelectuais (e o prof. Aziz Ab´Sáber já dizia isso dele, também) que vai a campo para retirar da poeira do tempo ensinamentos para entender o hoje que vivemos. Prof. Carlos Firmino Abril de 2015. G. D. Noética / CEHC
Nota do Autor O professor Carlos Firmino, que faleceu recentemente, foi um dos melhores colaboradores que o Grupo de Debates Noética (integrado ao Centro de Estudos do Humanismo Crítico / Portugal & América Latina) teve. A sua paixão por novos conhecimentos, enriqueceu o nosso trabalho lítero-historiográfico, inclusive, na elaboração das coletâneas Palavras Essenciais e Debates Paralelos.
Apresentação 2
Ódio e Humilhação na Corte Imperial Isolam uma Notável Aristocrata
Joana d´Almeida y Piñon
Violência, violência e mais violência. O que ganha a humanidade com isto? Nada. A paz é bem mais produtiva pela fraternidade que oferece em troca de bem-estar e de amor. O ódio é o mais bárbaro dos sentimentos que transportamos. E, às vezes, confundimos propositadamente ódio e má educação com alguma doença, o que não é verdade: ódio é ódio, ignorância é ignorância. E vamos ao assunto. Trata-se da vida e da não-vida de Leopoldina, princesa da Áustria e regente e imperatriz do Brasil, ao lado de Pedro I, o príncipe e imperador. É a vida, porque a princesa sabia dos tratados familiares entre monarquias para conquistar e preservar o poder; é a não-vida, porque ela não sabia o que a esperava no Brasil, quer no ambiente social e político, quer no ambiente conjugal, e quando começou a perceber que “(...) o reino era uma floresta exuberante cheia de escravos negros e nativos, e o marido um belo ignorante e machista violento, Leopoldina segurou-se aos princípios aristocráticos da mulher que chefia a família e nem sempre a alcova, politizouse, fez-se mulher além de mãe e esposa”, como anotou João Barcellos em uma de suas palestras via web.
Discordei sempre, e ainda no colégio, da maneira como Leopoldina era apresentada, porque eu percebia que havia nela uma história por contar à sociedade lusa e brasileira, e mais à sociedade austríaca. Até que em 2011, numa conversa com Carlota Maria Moreyra, em Paris, depois de assistir a uma de suas aulas, ela falou-me o que escutara de João Barcellos numa palestra dele em Petrópolis, no âmbito das ações literárias do grupo Cadernos Poesia, coordenado pelo saudoso professor Francisco Igreja, no Rio: “O mestre João Barcellos disse-nos, depois de várias pesquisas e da leitura analítica da correspondência secreta da imperatriz, que ela foi simplesmente estuprada politica e sexualmente, porque além de ter sido mercadoria de escambo ideológico e financeiro, foi tomada e humilhada por Pedro, um príncipe arruaceiro e violento”. Confesso que fiquei chocada. “Correspondência secreta da imperatriz?”, questionei. E escutei: “Sim, ela foi maltratada e isolada por Pedro e os seus capangas-espiões, a tal ponto que a maioria dos artistas e cientistas (e até o médico particular) que a acompanhavam foram embora, ou expulsos. Assim, Leopoldina teve que pedir dinheiro emprestado à irmã Maria Luisa enquanto descrevia a sua situação de perigo, já que foi chutada e socada brutalmente pelo marido e imperador várias vezes, e veio a morrer depois de, grávida, ser chutada novamente...”. E agora? Aconselhada pela amiga Carlota, entrei em contato com o mestre. Quero uma cópia da sua palestra de Petrópolis, aquela em que esteve a Carlota e você falou da ´sua´ Leo, pedi. E recebi. Ao ler (e eu sei que tem muito mais quando o mestre fala além das pesquisas registradas) o meu espanto foi maior e, ao mesmo tempo, a certeza da minha intuição quanto à estorinha que escutava no colégio sobre a imperatriz. João Barcellos fez várias palestras tendo a vida da ´sua´ Leo como referência para explicar que a violência rural e urbana contra a mulher não é uma questão de segmento social, mas que ela existe no todo societário, como diria Manuel Reis, das comunidades e das igrejas, porque viver e ser mulher é um desafio diante de tantas barreiras culturais e psicológicas. Eu só me dei conta da importância da correspondência secreta da imperatriz quando o próprio mestre, ao falar de José Bonifácio e de Diogo Feijó, ou seja, das maçonarias azul e vermelha, disse que “o Brasil imperial está retratado nas cartas de Leo que, secretamente, eram enviadas à irmã e, algumas, ao pai, e pode-se ler que ela segurou e salvou a Casa bragantina do Brasil como autêntica estadista, chegando a ser elogiada por Bonifácio”. Por isso, as palestras e os escritos de João Barcellos sobre este assunto são aulas que abrem espaços para mais leituras.
JAyP Houston/USA, 2015
Parte
1
Uma Princesa no Conselho d´Estado
Enquanto o príncipe Pedro viaja pela sempre inquieta e velha província de Sam Paolo dos Campi de Piratininga, e aqui conhece a santista Domitila, a princesa Leopoldina trata das coisas políticas assumindo a regência do Brasil. Paço da Boa Vista. Rio de Janeiro, 1822. Leopoldina é a chefe do governo, oficialmente nomeada por decreto real. Ao despachar no lugar e em nome do marido, ela convoca o Conselho de Estado no dia 2 de Setembro. Com o gabinete ministerial ela decide juntar-se aos que já propunham a criação de um Brasil independente, ao que ela mesma se opunha ciente da sua aristocrática posição. Adotando os termos estabelecidos pelo amigo e primeiro-ministro Joé Bonifácio de Andrada, junta carta ao marido rogando que ele se decida contra Portugal. O documento de libertação do Brasil é assinado pela princesa e a sua carta impulsiona o príncipe a dizer não às cortes portuguesas, o que já fizera o ousado deputado Diogo Feijó, em Abril, naquelas cortes e tendo que fugir, via Inglaterra, para não ser preso.
Leopoldina despacha com os ministros
7 de Setembro. Margens do Rio Ipiranga, São Paulo. Quando o padre Belchior lê o decreto ministerial isso causa insônia no príncipe, até porque não tem José Bonifácio na conta de seu amigo, mas como inimigo por ser próximo e conselheiro da princesa.
Entretanto, dá-se conta da importância e urgência política ao escutar as palavras da princesa e esposa:
Pedro, O Brasil é um vulcão prestes a entrar em erupção. Mesmo na corte agora se pode encontrar muitos revolucionários. Os portugueses começam a se rebelar contra nós, e seu parlamento ordena sua partida imediata. Ameaçam e humilham o senhor diante de todos. Nossos ministros pedem ao senhor que fique. Meu coração de mulher e esposa está cheio de pesar, pois é certo que se partirmos o Brasil tornar-se-á o retrato da miséria e do caos. Sabemos o que aconteceu a seus pais em Lisboa. O rei e a rainha não detêm poder algum e não mais reinam. São controlados pelo mando despótico das Cortes, e sofrem humilhação e perseguição. O Brasil o desafia, pois com ou sem o senhor, tornar-se-á independente. Meu caro esposo, a maçã está madura, é hora de colhê-la antes que apodreça. Siga o conselho de seus ministros se não quer seguir o de sua esposa e amiga. Pedro, este é o momento mais importante de sua vida. Antes de partir, já havia declarado o que pretendia fazer em São Paulo, agora faça-o, por favor! Toda a nação brasileira estará ao seu lado, apoiando-o. Contra a determinação de tantos os soldados portugueses no país serão desarmados e feitos indefesos. Abraço-o mil vezes. Aceite os doces cumprimentos de sua devotada esposa Leopoldina Percebe que ela tem as rédeas do poder e soube decidir politicamente pela independência. E eu aqui, às margens do Rio Ipiranga, perto da Villa jesuítica..., ah!, tenho de fazer algo..., deve ter pensado. Tudo menos deixar os louros da questão na cabeça de uma princesa estrangeira. Então, desembainha a espada, ergue-a, e grita: Independência ou Morte.
O que deveria ser um grito de exuberância ideológica não passa do berreiro de uma mente doente e educada no desassombro do poder pelo poder, o político e o sexual.
Parte 2 Da Independência do Brasil
Diante do absolutismo e da falta de pragmatismo da monarquia portuguesa no contexto da política ultramarina leva a província d´além-mar, refúgio da sempre covarde e feudal Casa bragantina em fuga sob o fogo de Bonaparte, a escutar o moderno posicionamento maçônico – quer com Feijó, quer com Bonifácio – e encarar a realidade socioeconômica própria, i.e., o Brasil é uma potência econômica que se basta enquanto Portugal precisa dos produtos brasileiros... Assim, abrir o Brasil ao mundo é criar uma Nação nova enquanto eixo aristocrático e expansão da cristandade esfomeada por espaço, apesar da maçonaria. Se o príncipe Pedro I é um ignorante político e uma farsa ideológica, até perante a própria aristocracia, ele tem como escudo aquela que trai, chuta e esmurra – não existem dados ou cartas que afirmem que a tenha chicoteado –, sim, aquela princesa austríaca que o amou à primeira vista apesar de ter sido ignorada logo durante a luade-mel e na presença da amante e femme fatale francesa Noémie Thierry e, depois, em
plena independência, trocada e humilhada pela santista Domitila de Castro Canto e Mello além da irmã desta, a baronesa de Sorocaba, Maria Benedita, entre outras.
2.1 Leo, a Princesa
Leopoldina em Viena, com 17 anos, e a sua chegada ao Rio.
Ao deixar o Castelo Schönbrunn, em Viena, a princesa Leopoldina não tem a mínima noção do que é o Novo Mundo e, menos, o Brasil dos portugueses que vivem de escravos nativos e africanos. No dia 5 de Novembro de 1817 a frota austríaca está na Baía da Guanabara e toda a tripulação percebe o engodo diplomático: o Rio de Janeiro é uma vila cujo único encanto é a exuberância geográfica, a flora e a fauna. Mas, a princesa, que já se apaixonara por Pedro no desenho que dele recebera em Viena, está extasiada e romanticamente perdida diante do príncipe luso-brasileiro: um garanhão sem rédeas. Carolina Josefa Leopoldina Francisca Fernanda Beatriz de Habsburgo-Lorena (ela adotaria no Brasil os nomes de Leopoldina e Maria Leopoldina), nasceu no Palácio de Schünbrunn, Áustria, em de 22 de Janeiro de 1797, filha de Francisco I imperador da Áustria e II da Alemanha (1768-1835) com Maria Teresa de Bourbon-Sicília (17721807), primos-irmãos e netos de Maria Teresa, a Grande (1717-1780), ilustre estadista do século XVIII. Diante das dificuldades financeiras, a Áustria busca bons partidos para as suas princesas e, em 1816, começam as negociações de política d´alcova para tornar Leopoldina esposa do príncipe herdeiro do trono português Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon. Filho de João VI (1767-1826) e Carlota Joaquina de Bourbon (1775-1830), Pedro nasceu em Portugal no dia 12 de
Outubro de 1798, fugindo com a família real para o Brasil, em 1808, então com 9 anos de idade. Quem é, de fato, Leo, a princesa austríaca? Uma menina irrequieta, sedenta de conhecimentos. Adora a natureza e é uma boa amazona – aliás, ao saber que Pedro monta em pelo e gosta de vivenciar a floresta, decide aprender a montar como homem e caçar –, a par da sua caça a insetos, minerais, etc. O casamento da irmã Maria Luiza, com Bonaparte, deixou-a socialmente prostrada, apesar de saber que “uma princesa é um produto d´alcova para escambo político e econômico entre as realezas, e só”, como escreveu o poeta J. C. Macedo acerca da questão. Mimada e com tendência para engordar, a menina bonita de Viena vive o momento de passagem a mulher numa lua-de-mel que é a posse da fêmea que irá parir o herdeiro do príncipe. Ela cumpre o destino reinol: dar continuidade à monarquia e à Casa austríaca. Começa a perceber que o destino napoleônico da irmã Maria Luísa foi uma alegria sem paixão, pois, ela – Leo, a princesa do Novo Mundo – já vivencia o tormento da traição e da humilhação social e sexual. A casa grande colonial, dita palácio, na Quinta da Boa Vista, não é o Castelo Schönbrunn, nem em sonhos seria possível comparar..., mas Leo adapta-se à circunstância carioca como menina-mulher que respeita o destino e o macho que lhe coube na roleta reinol.
2.2 Rio, Novo Mundo
Rio de Janeiro, Séc 19 / Rugendas e Plácio de S. Cristóvão
Rio de Janeiro. Calor e umidade. Falta higiene e há nuvens de mosquitos, baratas, formigas, ratazanas e um fedor de excrementos que corta a respiração. Escravos negros transportam as urgentes e naturais necessidades de senhores e senhoras em vasilhas emporcalhando riachos e a linda baía da Guanabara. “Os portugueses incorporam o Velho Mundo à geografia fantástica do Novo Mundo, mas lavam as mãos quanto à saúde pública: as políticas ultramarinas da corte lisboeta fazem do Rio uma lixeira a céu aberto. O que interessa aqui? Os produtos brasileiros e nada mais...” [Macedo, idem]. A princesa de Viena percebe agora o que é colonialismo; o que é escravidão; falta de humanismo. Mas, não deixa de ser a aristocrata e a esposa do senhor feudal.
A circunstância geossocial carioca impede Leo de ser a princesa no topo da moda europeia: ela adota uma vestimenta simples de amazona e de camponesa nos afazeres domésticos. E caça e fuzila melhor que o príncipe. Também, fica ela sabendo de algo que assusta e que foi segredo na contratação matrimonial: a pouca educação de Pedro e o seu estado epilético crônico. Em carta – a única que não teve envio secreto – à irmã Maria Luísa, de 1º de Março de 1818, diz:
Escrevo minha primeira carta do Brasil honrando nosso pacto fraternal. Sinto tanto a tua falta que meu coração chega a sangrar. Como tenho saudades de minha terra natal. Estou ao lado de meu esposo já há alguns meses e tanto já se passou. Quase três meses no Brasil me fizeram desconfiada e vejo o mundo com outros olhos. Se pensavas que ainda sou desatenta e descortês como em nossa terra, estás enganada. Estaria perfeitamente feliz não tivesse de sofrer as discussões com meu temperamental e desconfiado Pedro. Porque o amo tanto seu comportamento fere, mas apesar de tudo e acreditando em Deus, permaneço calma, paciente, e complacente. Meu sogro crê que tenho toda a melhor conduta para aliviar seus modos e rompantes, que são os de um jovem genioso e de maus modos. A tarefa a realizar não é simples, acredita. Não fosse a terrível doença demoníaca, a epilepsia! É assustador vê-lo sofrer as convulsões e nada posso fazer para aliviar-lhe a dor. Ele não lembra nada depois dos ataques, e não crê em mim. Acredita, é muito difícil lidar com seu comportamento injusto e bruto antes que sofra um de seus ataques. Tens algum conselho para tua irmã? Fazemos muitos passeios a cavalo pois sua vida diária é nos estábulos, caçando, e entre os escravos que, infelizmente, tortura impiedosamente. Para meu horror, usa da chibata com frequência. Ele e o irmão Miguel fazem jogos de guerra em que colocam os escravos em campos de batalha imaginários. Não tendo mais o que fazer, continuou criança. Sabias que o Brasil é o maior importador de escravos do hemisfério ocidental? Que horrível comércio de inocentes! É necessária muita paciência para cumprir o dever esperado de mim e transformá-lo em um ser humano educado e de bons modos, além de ser uma esposa carinhosa. É inacreditável, mas descobri que meu esposo nunca aprendeu a escrever corretamente em sua língua materna. Suas seis irmãs, exceto Maria Teresa, são praticamente analfabetas. Estou convencida de que o que primeiro lhe atraiu em mim foi a educação esmerada e a disciplina férrea. Pela primeira vez pôde ver uma mulher de outra maneira que não apenas um objeto de luxúria. Meus momentos mais felizes são quando tocamos música juntos. Pedro é um musicista muito talentoso e toca o clarinete, a flauta, o violino e o cravo. Canta lindamente e ponhome a sonhar apenas ouvindo sua voz. Algumas vezes visita a senzala com o violão e toca música brasileira com os escravos enquanto as escravas dançam desavergonhadamente. Só o acompanhei uma vez quando presenciei tais selvagens danças tribais e, acredita, nunca vi algo tão indecente. Tão embaraçada fiquei que suei em profusão. Meu esposo, ao contrário, não mostra embaraço algum e diverte-se tremendamente em tais circunstâncias. Dia a dia apaixono-me mais por nossa natureza maravilhosa. A terra é simplesmente um lindo jardim! Imagina todas as plantas exóticas que tínhamos em estufas em Schönbrunn, as mesmas crescem selvagens aqui no Brasil, e podes encontrar muitas mais neste solo fértil. Apaixonei-me pelos pássaros, os vivazes papagaios, os resplandecentes beija-flores, e os vibrantes tucanos. Fui conquistada pelos lindos macaquinhos que encontro ao cavalgar pela floresta tropical. Todos passeiam
livremente. Logo mandarei algumas de minhas aquarelas para ti. Vais gostar desta historieta: estou convencida que meu querido Papasito apaixonou-se por outro papagaio. Não imaginas o barulho que faz todo o dia! Cara irmã, o calor tremendo aqui no Brasil é brutal e me põe louca. É como se estivesses assando o corpo numa fogueira. Por causa do calor insuportável e da umidade me é difícil respirar. Como anseio por nosso inverno frio na Áustria ou simplesmente por um mergulho no límpido mar azul que nos cerca. Mas infelizmente nadar é estritamente proibido para mulheres; é considerado pecaminoso. Como de costume, meu Pedro não se importa, e mesmo outro dia pulou na água ‘puris naturalis’, na presença de todas as damas-de-companhia, criadas, e minha. Quando nos viu a todas embaraçadas e ruborizadas, riu-se a não mais poder. Outro incômodo são os insetos. Minhas pernas e braços estão marcados por incontáveis picadas de mosquito. As pulgas também são insuportáveis e as mordidas muito doloridas. Mas cara irmã, não te preocupes, apesar de todas as reclamações, estou muito feliz e não posso começar a dizer quanto admiro este país e estou impressionada com ele, tão diferente de tudo que já vi antes... A partida de nossos compatriotas fez-me mergulhar numa melancolia profunda. Todos os meus amigos e familiares estão de volta à Europa. Fui deixada para trás, só nesta terra estrangeira. Como podes imaginar, estou totalmente desanimada. E por favor não acredita em uma palavra do que lhe dizem sobre minha vida. Desde o primeiro dia no Brasil começaram a reclamar, desdenharam dos costumes locais, chamaram os brasileiros de bárbaros e tiveram a coragem de caçoar de meu esposo pelas costas. Não é surpresa que tenham perdido as boas graças da família real com tal comportamento, que me colocou em uma posição extremamente desconfortável. No dia de sua partida fui a cavalo até onde estavam hospedados para pedir-lhes que não viessem despedir-se de mim. Isso teria aberto novamente minhas feridas emocionais e criado mais desconfiança. Por favor, escreve-me logo, bem-amada irmã, pois és o remédio indispensável para minha crescente saudade de casa. Tua Leopoldina P.S. Por favor, perdoa-me por reclamar tanto, mas confio apenas em ti. Tu és meu anjo da guarda.
Reveladora e assustadora, eia a primeira carta da princesa Leo com destino à Europa. Um conteúdo tão intimista quanto desesperador. A princesa parece envelhecer anos em poucos meses. Mas é esta maturidade galopante que lhe permite observar o Brasil e reter para si uma oportunidade única: ser brasileira. Os primeiros tempos, apesar da lua-de-mel, são lhe repugnantes, tanto mais que Pedro a humilha expondo os casos extraconjugais publicamente. Com o seu chapéu de palha e trajes desalinhados de camponesa chique, Leo parece um espantalho guardando o próprio isolamento. Estou convencida de que o que primeiro lhe atraiu em mim foi a educação esmerada e a disciplina férrea. Pela primeira vez pôde ver uma mulher de outra maneira que não apenas um objeto de luxúria. [de uma das cartas secretas da princesa]
Ainda não perdeu totalmente o encanto da paixão com que se entregou a Pedro, mas sabe que a correspondência amorosa não existe. É o espantalho recluso no palácio cujo único luxo é a exuberância da natureza que o rodeia. Romântica, tenta buscar forças para entender as ações de Pedro, que está tão longe das obrigações políticas quanto das conjugais. E perdoa, perdoa, mesmo quando é covardemente esmurrada ou chutada com as botas de montaria por um esposo que lhe surge sob o espectro de um mero criminoso.
Pedro e Leopoldina
Outra carta, a primeira de uma série de escritos secretos, de Janeiro de 1819, a princesa deixa que a realidade engrosse a tinta que cai em gotas no bico da pena... Querida irmã, Nesta carta, falarei com toda a sinceridade. Vou dizer-te como realmente me sinto quanto à minha vida no Brasil, esperando que esta carta não caia em outras mãos que não as tuas. Tu és meu único consolo, meu anjo da guarda quando estou esquecida e tão horrivelmente distante de tudo. És a única que me ama e é para sempre minha melhor amiga. Deus é minha testemunha, pois só Ele vê as profundezas da minha alma e sabe que meu coração é só teu. Brasil, trono dourado ou canga de ferro? Agora me faço essa pergunta todo dia. Acredita-me, nesses poucos meses desde que fui deixada só, aprendi a ver a real natureza do ser humano. Em sua maior parte os primeiros meses de nosso casamento foram felizes, embora tenha havido episódios embaraçosos, desrespeitosos e, tenho de admitir, também
violentos. São tantos que teria de encher inúmeras páginas de lágrimas, melhor pouparte. Ainda espero que minha forte disciplina e orações guiem meu esposo para longe de tais comportamentos imorais e acalmem seus atos brutos. Os poucos momentos em que somos felizes são quando fazemos nossos passeios na natureza. Como meu esposo ama caçar, tornei-me uma boa amazona e também excelente atiradora. Saio a caçar todos os dias e trago trinta a quarenta animais... ...deixa-me contar uma historieta que te fará rir e mostrará outra face de tua irmãzinha. Após uma recente caçada, quando estávamos a almoçar, um enorme cervo entrou de repente na tenda e pulou sobre a mesa de madeira. Perigosamente agitado que estava, quebrou todos os copos e pratos de porcelana. A tenda era uma comoção só. Posso reportar com orgulho que fui a primeira a pegar o rifle e matei o animal com um só tiro. O orgulho de Pedro e seu abraço caloroso foram minha recompensa. Esses são os momentos passageiros que me trazem alegria. É uma batalha constante entre completa submissão e passividade, e outros momentos em que meu esposo pede meu envolvimento e quer que eu tome minhas próprias decisões. Submeto-me a todos os seus caprichos e seu patente egoísmo. É meu dever de esposa. Comportar-me de qualquer outro modo demonstraria a mente de alguém beligerante. Como a fundação de toda a minha vida é agora a confiança de Pedro, o esposo me dado por Deus, e o sagrado sacramento que nos une, não posso falar abertamente com ele. Ele mesmo é franco a não mais poder, e sempre diz o que pensa. Acostumado a total obediência, faz o que quer. Até mesmo eu tenho de suportar sua brutalidade. Quando vê minha dor, ele sente remorso e chora comigo. Estou convencida de que, apesar de sua impetuosidade e seu temperamento, no fundo ele me ama. São as contradições e a ira, tão pouco familiares para mim, acostumada com o comportamento calmo de nosso querido papai, o único homem que conheci antes de Pedro, que me preocupam profundamente e não me deixam dormir à noite. Passar tempo na companhia de meu sogro, entretanto, traz-me imensa alegria. Ele é generoso o suficiente para me fazer saber que ter-me por perto o deixa feliz. Compartilhamos nosso amor pela natureza, o que é maravilhoso! E ele também preza meus conselhos em assuntos políticos, o que infelizmente deixa meu esposo com ainda mais raiva. Tenho um grande favor para pedir-te e acredita, é muito difícil fazê-lo. Meu esposo não me paga a pensão mensal que me foi contratualmente prometida quando nos casamos. Mesmo que receba uma pequena parte de tempos em tempos, por vezes demais ele tem dívidas de jogo que sou obrigada a honrar. Se pedisse a meu sogro para dar-me o dinheiro, Pedro provavelmente me mataria. Minha querida Annony merece uma pensão em sua idade avançada. Ela me criou com muito amor e compreensão, devo isso a ela. Mas nesta situação encontro-me impedida de cumprir tal obrigação. Dói-me o coração. Poderias fazer-me um empréstimo e dar o dinheiro a ela antes que parta? Acredita, não é por esbanjar que sou forçada a pedir-te, é uma cruel necessidade. Não posso mais arcar com sentimentalismo, preciso pedir tua ajuda. Infelizmente, tenho outra tragédia a reportar. Recentemente a irmã de Pedro, Isabel, morreu da terrível epilepsia nas mãos desses charlatões incapazes. Imagina, tinha apenas minha idade! Infelizmente Isabel teve uma de suas piores convulsões quando grávida de oito meses. Os charlatões a tomaram por morta e cortaram-na como um animal para salvar a criança. A menina já estava morta e Dona Maria Isabel morreu de complicações. Espero sinceramente que permitam o doutor Kammerlacher a ficar um pouco mais comigo no Brasil.
Mas agora, nada mais de reclamações. Enche-me de alegria compartilhar contigo que carrego meu primeiro filho no ventre. Assim me mantenho ocupada, cheia de esperança e profundos sentimentos. Com deleite infantil vejo meu corpo mudar. No início de abril a criança deve ver a luz do dia. Espero cumprir meu dever e gerar o tão esperado herdeiro do trono. Tens minha imortal gratidão e, com grande amor fraternal, abraço-te, Tua Leopoldina P.S. Por favor não te esqueças de mim. Não demores a escrever!
A grande esperança da romântica Leopoldina é a vida que se faz em seu ventre. Para ela, um filho pode mudar tudo, e o tudo, aqui, é o comportamento de Pedro. A violência doméstica do príncipe e a sua falta de apoio às atividades sociais da esposa não estão nas entrelinhas, são realidade registrada com clareza. Enquanto isso, novos desafios políticos surgem no horizonte do Brasil e ocupam as mentes que têm de pensar e equacionar soluções administrativas e econômicas.
2.3 Querelas Luso-Brasileiras & Brasil
Desde o período pioneiro paulista da extração de ouro e prata, e depois ferro, com Brás Cubas e o ´velho´ Afonso Sardinha, o território ultramarino português vivencia um agudo testemunho de autonomia, e a linhagem mameluca indicia um talvez ´outro´ Portugal, mas a alma independentista já se encontra no foco da Guerra d´Iguape, entre o Bacharel da Cananeia e os reinóis – aliás, só isso explica o estabelecimento colonial serr´acima e nos sertões a oeste da vila jesuítica no planalto piratiningo, perto do rio Ipiranga. Cabe à Coroa defender o novo espaço continental, mas a Coroa não tem sequer noção do que é o Brasil ´aberto´ pelos portugueses na malha guarani do Piabiyu e, por isso, a cultura do escambo inicia entre Sam Paolo dos Campi de Piratinin, Asunción e Buenos Ayres, uma economia liberal que sustenta a província apesar das falhas governamentais reinóis, o que o Morgado de Mateus, no Séc. 18, tentou e conseguiu emendar na Capitania paulista. No entanto, a urbanização paulista criou vínculos emocionais a beirar [um]a ideologia nacionalista, aproveitada no Séc. 19 pelos maçons cada vez mais entrincheirados entre a nova burguesia urbana e nas câmaras municipais. A hora da mudança é pronunciada por Bárbara de Alencar nos sertões nordestinos e o Brasil começa a vingar com políticas republicanas apesar da monarquia... Mesmo porque as casas legislativas locais são repúblicas municipais desde o Séc. 16 elegendo políticos e criando cidadania contra o absolutismo monárquico e as criminosas inquisições a ele agregadas pela igreja católica. Com a revolução liberal do Porto, em 24 de Agosto de 1820, Portugal obriga João VI a retornar ao solo ibérico para forçar o chamado pacto colonial.
João VI regressa a Portugal em 1821, carrega os dinheiros do Banco do Brasil e deixa no Rio de Janeiro o filho Pedro, como regente. Os ecos políticos do movimento tripeiro só chegam ao Brasil em Outubro e têm logo consequências no Maranhão, na Bahia, em Pernambuco, etc., regiões onde os liberais e a maçonaria atuam em prol de um novo regime e da independência.
Pedro, se o Brasil se separa, antes seja para ti, que me hás de respeitar, do que para algum desses aventureiros
diz João VI, contrariando então as intenções lusas de retomada do domínio colonial. Quanto a Pedro, ser regente ou rei dá no mesmo: é o senhor da casa grande e da senzala. E se em Portugal o poder parlamentar é fato diante da monarquia absolutista, já a alterar os rumos políticos mundiais, o ideal não cabe no pensamento da Casa bragantina sempre avessa a mudanças desde os tempos do duque e regente Pedro – o Infante das 7 Partidas, avô do rei João II – e que, por isso, as gentes da Casa o assassinaram em Alfarrobeira... E como poderia o jovem Pedro, filho de João VI, ser igual àquele Pedro que abriu a primeira Universidade de Coimbra? Em nada. O jovem arruaceiro da corte luso-brasileira é regente, e quando se dá conta..., de uma casa grande e uma continental senzala!
Distante de Lisboa, a cidade da vida boa, a Baía da Guanabara e o seu casario é um cenário tropical belíssimo. O cotidiano carioca é movimentado pelos escravos e pequenos comerciantes, marujos e caixeiros-viajantes, mas é ainda uma cidade de maus cheiros, e alguns profissionais são ao mesmo tempo barbeiro, cirurgião e dentista, por falta de médicos especializados.
Rio de Janeiro / V. Frond
E aqueles especializados que aqui chegaram, na comitiva da então noiva Leopoldina, foram embora por falta de apoio institucional. Melhorar o quê?!, o próprio João VI e o filho Pedro questionavam e questionam. Para os reinóis absolutistas o que está é o melhor possível, e pronto, desde que eles continuem a jogar o jogo do poder. Outras tendências políticas surgem nos Estados Unidos da América do Norte, principal comprador do algodão das Minas Gerais e de Fortaleza, por exemplo, tendências republicanas impulsionadas pela nova burguesia industrial europeia, mas também o sucesso da formação da primeira nação negra no Ayiti [Haiti], a partir de 1808, e criando focos de revolta contra a escravatura também no Brasil. Existe um processo de reforma política que desconhece a monarquia como poder absoluto... Os portugueses da Península Ibérica não querem perder o quinhão ultramarino que lhes coube na sorte no acaso de 1342, quando o capitão Sancho Brandão, da marinha mercante de Afonso IV, ficou diante da foz do Ryo Siará e de uma imensidão de paude-tinta. Perder o Brasil é perder a pujança econômica e o império, pensam os políticos portugueses. Mas, os brasileiros, e muitos portugueses, também, sabem que essa pujança econômica oriunda da cana d´açúcar, do ouro, da prata, do algodão, etc., também pode ser a base para a formação de uma nova nação. A questão é: a) Com ou sem monarquia?; b) Monarquia ou República? A princesa, agora esposa do regente luso-brasileiro com trono no Brasil, está atenta e recusa ser parte do novo processo político republicano. Até porque uma mulher, Bárbara Alencar, no sertão nordestino, já havia proclamado uma república temporária sendo presidente até à sua prisão em Fortaleza, no Ryo Siará. Com a força das novas ideias políticas num ritmo galopante, de loja em loja maçônica, mas também de escravo em escravo, Leopoldina sabe que é preciso um ato público de grandeza ideológica para defender o trono e a Casa bragantina. Já sabe, porém, que Pedro se envolve com maçon, é verdade, entretanto, também ela recebe conselho e faz amizade com um deles: Bonifácio.
“ [ . . . ] infelizmente o feio fantasma do espírito de liberdade se apossou por completo da alma do meu esposo; o bom, excelente rei, tem todos os antigos nobres e autênticos princípios e eu também, pois me foram inculcados em minha tenra idade e eu mesma amo apenas a obediência para com a pátria, o soberano e religião” escreve ela ao pai, Francisco I, em 12 de Dezembro de 1820, acreditando que Pedro tenha compreensão ideológica suficiente para dialogar no trono que ocupa temporariamente, entre uma bebedeira e uma fornicação! Defender os princípios aristocráticos é, no pensamento da jovem princesa, a saída única para preservar a própria saúde mental, pois, sente-se desabar sob a crueldade e a ignorância de Pedro. É interessante notar que ela sente-se desabar, mas não esboça um gesto que indique a sensação de abrir espaço para sua própria liberdade, e quando o faz é muito tarde: a vida já tinha escapado deixando-a como hiato biológico no mapa reinol. E ela sofre. Estupidamente ignorante e socialmente criminoso, o jovem Pedro continua a humilhar Leo colocando até o reino em risco, tanta é a despreocupação que demonstra no trato do poder. Em outra carta secreta, de 21 de Setembro de 1821, ela não se reserva:
Querida irmã: Não tenho notícias tuas há tanto tempo. Por favor, escreve! Aguardo ansiosa para ouvir de ti. Desculpa-me a queixa, sei que comandar o ducado exige muito de ti e consome teu tempo, mas minha insuportável solidão cá no Brasil está a sufocar-me, e mais vezes do que gostaria me vejo em profunda melancolia. Tuas cartas são a única fonte de alegria nos meus dias quase sempre escuros. Por favor, não me entendas mal, encontro alegria na admiração de meu esposo e na educação das crianças, as quais estão desabrochando além das expectativas, graças ao bom Deus. Sou grata por ver meus ensinamentos caindo em solo frutífero. Meus filhos estão se desenvolvendo rapidamente e demonstram compreensão moral além de beleza física. Minha querida Maria da Glória é muito mais vivaz e briosa que o irmão, João Carlos, este um filósofo nato que está começando a falar francês. Acredito piamente que se deve ensinar línguas às crianças na mais tenra idade para que lhes fiquem gravadas no coração. Falando francamente, e não admitirei isto a ninguém mais senão a ti, estou cada dia mais certa de que uma pessoa é mais feliz se permanece sem se casar. Ultimamente tudo o que faço é lidar com tristezas e chateações que preciso engolir, já que reclamar faria tudo pior. Há dias em que penso que ele me ama, mas então suas ações me mostram o contrário, e provam que ele realmente não me ama. Meu senso de dever e responsabilidade me obrigam a suportar as humilhações diárias. Algumas vezes creio que seu mau comportamento e crueldade são movidos pela epilepsia. Deve ser terrível para um ser humano saber que a qualquer momento pode perder o controle de si. Infelizmente não há nada que os médicos possam fazer para ajudá-lo. Pode ser somente imaginação, mas observo que a maligna Epilepsia parece ser provocada por sol em demasia, álcool em demasia, ou outros de seus excessos. Seja como for, meu coração e minha alma estão exauridos. Espero meu terceiro filho para março. Estou com boa saúde, mas a melancolia exerce um grande poder sobre mim diariamente. Não é surpresa, se se pensar no tormento que
me aflige em casa. Apenas minha religião me traz paz e alento, saber que cumpri meu dever designado por Deus. Meu esposo se deleita em ser entretido com todo tipo de distrações agradáveis, mas aos que estão ao seu redor não é permitido rir, e devem viver como eremitas, sempre sob a vigilância da polícia secreta. Por dentro, sinto-me revoltada, mas devo permanecer em silêncio pois não faz sentido tentar lutar contra isso. Tolero seu desejo carnal constante por mim e outras mulheres. Fecho os olhos porque é muito mais simples fingir-me de ignorante e estúpida que arriscar a humilhação pública. Agora devo falar de um assunto que me causa dor e embaraço. Estamos cá com horríveis problemas financeiros, já que três mil dos mais ricos portugueses deixaram o país e levaram consigo toda a sua riqueza. As províncias deixaram de pagar tributos e o parlamento em Lisboa não mais paga meu esposo como o Príncipe Real. Há muito meu esposo não me paga minha pensão e usa o dinheiro em suas próprias despesas. Tudo isso forçou-me a tomar empréstimos. Agora aproxima-se a data de pagar a dívida, e ameaçam-me de criar um escândalo na corte se eu não pagá-la. Posso imaginar como Pedro reagiria! Devo pedir-te, com muito desgosto, para ajudar-me a sair dessa situação aterradora, especialmente depois de papai ter escolhido ignorar minha penúria e não me socorrer. Por favor, perdoa-me, mas és minha última esperança. Como esperei viajar de volta à Europa. O parlamento em Lisboa trata meu esposo, o governante deste país tão promissor, como um fedelho estúpido, sem modos e sem educação. Isso o enoja e enraivece, especialmente depois de seu pai ser tão maltratado quando retornou a Portugal, e alimenta pensamentos perigosos em sua mente. O honorável cidadão e grandemente respeitado senador José Bonifácio pediu-me que usasse minha influência junto a Pedro a favor do Brasil. Acredita, a ambiciosa ideia de Bonifácio de fazer dos dois países reinos iguais é um bom plano. O retorno de Pedro à Europa está fora de questão, e arriscaria a sobrevivência da monarquia brasileira. Sei que é nosso dever ficar no país. Como esperei abraçar-te novamente, mas esse sonho agora evaporou-se. Após minha desesperada resistência no início, agora posso ver claramente o panorama político, e usarei a influência que ainda tenho junto a meu marido. Em todos os aspectos, o Brasil é um país tão grande e rico, que é de suprema importância preservá-lo para a futura existência da monarquia e da Casa de Bragança. Por favor, peço que mantenhas em estrita confidência todas as informações nesta carta, que te envio por um portador de confiança. Deus Pai Todo-Poderoso reserva o melhor para seu povo. O bem geral deve vir em primeiro lugar, antes de meus desejos pessoais, não importa quão desalentada me sinta. Por favor, escreve-me! Tuas cartas são o que me salva! Um grande abraço fraternal Tua Leopoldina
Até a sua ´divina´ concepção, no âmbito das linhagens abençoadas pelo papado católico, não surte efeito. Não existe ´deus´ quando a humaníssima pessoa vira saco de pancada e é isolada do próprio mundo. A ainda jovem princesa está presa na promessa aristocrática de defender os princípios da linhagem – Deus, Coroa & Poder – e nem percebe a vida correr ao lado do espaço palaciano. O que lhe é vida? Por um lado, a prole imperial que, apesar da graça, esvazia a alma a cada parto; por outro lado, a herança familiar de lutar pelo que é. Depois que a
missão científica que a acompanhou foi praticamente chutada por Pedro, a frágil Leopoldina ficou sem defesas europeias e vive agora como estrangeira na própria alcova. Tão ´estrangeira´ quanto a novidade republicana que há alguns anos assola parte do Novo Mundo e já se instala com sucesso político e econômico. E eu?, e a Coroa?, e o Brasil?, questiona-se ela. Percebe, então, que batalhar prelo Brasil é batalhar por si mesma, e logo se certifica desta política nas primeiras conversas com José Bonifácio. Entretanto, de São Paulo a Pernambuco e Maranhão, movimentos contrários ao absolutismo, a maioria emergindo da maçonaria vermelha, como é o caso de Feijó, que se opõe à maçonaria azul, ou reinol, dirigida por José Bonifácio, pregam a independência do Brasil. Os dois lados maçons têm consciência da importância da libertação política e administrativa, e é José Bonifácio quem mais atua no interior do poder reinol para unir as duas coroas, e assim ele ganha a simpatia da princesa Leo...
“Seria a maior ingratidão e erro político crassíssimo se nosso empenho não fosse manter e fomentar a sensata liberdade e consciência de força e grandeza deste lindo e próspero reino, que nunca poderá ser subjugado pela Europa, mas talvez com o tempo possa fazer o papel de anfitrião”.
Registra ela em 8 de Agosto de 1822, na carta enviada ao pai a apresentar o projeto arquitetado pela maçonaria azul para a nova pátria. Até o ´seu´ Pedro vira ´maçon´ num ataque de tardio de ´sabedoria´, já que nem consegue ser sequer o déspota iluminado! E aqui ela já se situa como brasileira, como cidadã na demanda da Nação livre e independente. Já não vê o ´fantasma´ norteamericano nem francês, nem o haitiano, vê apenas o ´seu´ Brasil caminhando com os próprios pés. Assessorada por José Bonifácio, ela sabe que brasileiros assumiram em Abril a necessidade política de romper com os políticos de Lisboa.
“[...] Podes ficar orgulhosa de tua irmãzinha! Neste ínterim sou a regente do Brasil. Juntamente a José Bonifácio, governamos o país. Poderias ter imaginado tal destino para tua pequena Leo? Não que esta seja uma de minhas ocupações favoritas, mas ao lado do inteligente e espirituoso Bonifácio, cuidar de meu novo país é uma benvinda distração. Aprendo tanto com ele, e ele está surpreso e encantado com meus conhecimentos e sabedoria [...]”. Esta observação, em carta à irmã, de Abril de 1822, mostra que o processo de mudança no seu pensamento político tem foco nas conversas com o ilustre e notável José Bonifácio e também com o irmão.
O discurso de Diogo Feijó nas cortes, em 25 de Abril, foi interpretado como traição a Portugal. O que fazer? Abandonar o Brasil? Não. Criar os mecanismos administrativos para fazer a independência e dar continuidade ao reino do Brasil e à Casa bragantina. Ao assumir a regência, Leopoldina mostra que não é apenas uma princesa que come e bebe, engravida pela continuidade da linhagem, cavalga e coleciona bichinhos e minerais. É a mulher que apesar de sujeita ao abuso e à violência doméstica continua a sonhar a paixão à qual se ofereceu de corpo e alma; mas a experiência mostra-lhe que o sonho é sonho, e vive a realidade política para ficar em pé como cidadã e mulher. Não vê mais o Brasil como passagem, mas como “meu novo país” – uma nação nova entre as outras nações. Longe, no mar de morros que é a região paulista, Pedro encanta-se com e pela santista Domitila e só pensa nela. Política?, trono?, que raio é isso?!... Eu sou o regente, os outros que trabalhem!, é o pensamento habitual de um jovem príncipe mal educado e desprovido de princípios morais. Entretanto, diante da bela baía da Guanabara, a princesa-regente encanta o gabinete ministerial ao saber escutar e opinar sobre assuntos habitualmente tratados pela elite masculina. Nesta conversação, Leopoldina não tem as rédeas do poder, mas joga com o favorecimento dos ideais e a experiência dos irmãos Andrada e Silva – um fogo brando ideológico que começa a aquecer a ideia da libertação, algo que não está sequer no pensamento de Pedro..., atarefado na engenharia de lançar uma ponte para o seu novo interesse sexual.
Parte 3 Estupro Político & Sexual De Uma Princesa
É norma nas cortes europeias mais culturalmente identificadas ideologicamente educar as princesas para governarem no caso de impedimento ou afastamento temporário dos reais esposos, e uma das maneiras mais eficazes, até para inspecionar os seus pensamentos, é fazê-las escrever “o diário da princesa”. Isto serviu a Leopoldina para exercitar ainda mais a sua veia romântica, mas preparou-a, sim, para reger o poder caso o momento surgisse. Cedo ela reparou no descaso de Pedro em relação à [gover]nação, e pior, no descaso em relação a ela mesma, tanto que descreve um dos partos, em plena Quinta da Boa Vista, como se fosse uma autêntica nativa parindo sob a lua, sem quaisquer lampejos de o marido chamar um médico e abandonando-a ao ver, não um filho, mas uma filha! O que segura Leopoldina? A carga ideológica dos princípios aristocráticos com os quais foi educada na Áustria. Isto lhe dá o equilíbrio psicológico para aguentar tudo, e até a malvadeza de um marido-imperador. Mais uma vez o padrão: acima de tudo o sangue azul e o poder. Outro segmento social que permite o isolamento da princesa é o intelectual. Os poucos intelectuais que circulam ou residem no Rio são manifestamente pessoas afetas a Pedro, que as corrompe e as faz parte do aplauso que quer para si, único e
intransmissível. A educada e ilustrada Leo não tem a quem recorrer nem para uma conversa civilizada. Foi-lhe reservado um chiqueiro chamado palácio. Por isso, quando surge José Bonifácio uma luz ilumina a princesa e deixa-a extasiada.
Abril, 1822
Uma princesa nunca pode fazer o que deseja!
as duas irmãs
Minha querida irmã, Em 11 de março, um mês depois da horrível morte de meu filho, minha filha Januária nasceu. O parto foi como o de um animal, não de uma princesa. Quando as contrações começaram às duas da manhã, mandei chamar Pedro. Para me distrair da dor, passeamos pelos jardins. Três horas depois, agarrei-me a seu pescoço, em agonia, e dei à luz uma filha, sem médico algum à vista, e o tempo todo de pé. A dor e a angústia que sofri quando meu filho faleceu tornaram impossível alegrar-me com a nova criança. Quando Pedro viu a bebezinha demonstrou completa indiferença e deixou-me sozinha no jardim. Só minhas preces me dão forças. O funeral de meu filho foi feito sem qualquer cerimônia, apenas o sepultamos no Mosteiro de Santo Antônio. Porque era uma alma tão jovem, os costumes portugueses não permitem luto público ou qualquer cerimônia funerária. É como se nunca tivesse existido, tal como meu primeiro filho prematuro. Temo admitir que nunca serei capaz de superar a dor de perder meus dois filhos. Meu esposo começou a beber e farrear poucos dias depois da morte. É um comportamento horrível e desrespeitoso, mas suponho que todos fazem o melhor que podem para lidar com a perda. Agora estamos em abril e a vida continua. Pedro e eu nos aproximamos novamente, creio e espero estar certa. Quando nosso filho faleceu ele começou a ser muito mais atencioso e, de certa forma, gentil para comigo.
Infelizmente, há duas semanas ele teve de fazer uma viagem importante à província de Minas Gerais, uma região repleta de lucrativas minas de ouro, para reprimir uma crescente rebelião. Economicamente é o mais importante para o Brasil, e ele teve de agir rápida e agressivamente para convencer os insurgentes a aceitarem-no como rei. Como podes imaginar, eu teria apreciado muito juntar-me a ele, tudo para conhecer minha terra, meu novo lar. Contudo, tive de aceitar que não poderia suportar a penosa cavalgada, já que minha saúde ainda está frágil depois do exaustivo parto de minha filha e da angústia da morte de meu filho. Podes ficar orgulhosa de tua irmãzinha! Nesse ínterim sou a regente do Brasil. Juntamente a José Bonifácio, governamos o país. Poderias ter imaginado tal destino para tua pequena Leo? Não que esta seja uma de minhas ocupações favoritas, mas ao lado do inteligente e espirituoso Bonifácio, cuidar de meu novo país é uma benvinda distração. Aprendo tanto com ele, e ele está surpreso e encantado com meus conhecimentos e sabedoria. Ontem ouvi-lo dizer ao irmão, “Meu caro, gostaria que ela fosse ele.” Contudo, meu esposo está desaparecido, e não me escreve uma palavra sequer. Novamente espalham-se os rumores sobre Pedro e suas infidelidades. Fiz o que pensei que tu farias em meu lugar, mandei-lhe um lembrete de minha existência. Em poucos dias, como resposta, recebi quatro lindos cavalos puro-sangue. Poderiam ser pangarés, pouco me importa, apenas o fato de terem vindo dele os fazem mais lindos e valiosos para mim. Não tenho dúvidas de que os rumores maldosos na corte são parte de uma ofensiva e perigosa conspiração. Acreditas que recebi informações confidenciais e vi cartas secretas de Lisboa em que esses maus elementos tentam de toda forma plantar sementes de discórdia entre meu esposo e eu? Querem que eu lhe dê as costas e volta à Europa sem ele. Até mesmo uma carta de meu caro sogro em que ele nos repreende e exige que voltemos imediatamente a Portugal! Espero que concordes que tais táticas nos fortalecem para que tomemos a decisão correta. Depois de as brutas tropas portuguesas tentarem raptar-nos, o que terminou por levar à morte de meu filho, estou preparada a dar minha vida pelo bem da pátria brasileira à qual agora pertenço. E acredita, estou verdadeiramente feliz e orgulhosa de fazer parte desta maravilhosa nação. Deste modo a morte de meu filho não foi em vão. Aceito e resigno-me a meu destino sem questioná-lo. Até mesmo escrevi uma carta a papai assegurando-lhe que estou satisfeita e feliz, e permanecerei no Brasil. Lembras quando deixei Viena há cinco anos, e o conde Metternich olhou-me nos olhos e prometeu-me solenemente que não teria de ficar mais de dois anos longe de minha querida família? Apenas promessas vazias de um ser humano ardiloso. No começo tive tanta raiva, mas como sabes, desde muito jovens aprendemos a aceitar o que nos vem pela frente. Uma princesa nunca pode fazer o que deseja! Nem posso falar sobre nossa separação, corta-me o coração. Agora é definitiva, pois decidi ficar e devo enterrar qualquer esperança de ver minha querida família e minha terra natal novamente. É melhor permanecer calada, não tocar no assunto e parar de cutucar a ferida. Minha cara, assuntos urgentes me chamam e tenho de terminar minha carta. Por favor, responde em breve. Tuas cartas demoram tanto a chegar, perco a cabeça, especialmente agora que meu destino está selado. Uma pequena lágrima está a secar nesta última página. Abraço-te com profundo e eterno amor fraternal. Tua Leopoldina
Durante a viagem a São Paulo, em Setembro de 1822, o príncipe-regente Pedro conhece a santista Domitila...
Agora que sou regente, basta-me o poder, o resto é a vida..., pensa ele. Já conhece bem a ação psicológica da romântica Leo. Basta um lembrete e ela fica em paz, sonhadora. E ele se faz presente com alguns mimos entre traições e brutas discussões que acabam em murros na frágil princesa. Infantilizando cruelmente a cena, ele chora com ela...! E ela acredita que é tudo fruto da epilepsia que o acomete e o deixa transtornado. Mas, a corte e a população carioca sabem quem é o príncipe e começam a ver que a princesa envelhece em pouco tempo, nem se veste como princesa... Domitila é uma mulher experiente no trato sexual para obter vantagens sociais e financeiras. Embora fortuito, ou talvez não..., logo no primeiro encontro ela deixa o príncipe ´de quatro´ e a pedir por mais. Enquanto ele pensa que está conquistando mais uma fêmea é ela que o enlaça e o faz trilhar o caminho mais desejado: o poder palaciano. Consegue-o, e nem ela sonhou com tal prêmio em pouco tempo: súbito, sem quaisquer obstáculos, Domitila é marquesa e dama da corte com palácio próximo à casa imperial no Rio. Quer um filho, mas tem a mesma sorte de Leopoldina: gera uma filha. Para os seus intentos, filha e nada é a mesma coisa. Porém, Pedro passa a mimar a nova filha e esquece as próprias. Leopoldina?, bem, é uma página na sua vida e já virada. Caso a sua diaba tivesse gerado um filho, a princesa estaria de volta a Viena, mas é precisamente a perseverança romântica e o pragmatismo aristocrático da princesa que gera o filho-herdeiro, a continuidade legítima do trono e da Casa bragantina... Sempre pronta para o golpe que lhe favoreça os interesses próprios, Domitila de Canto Castro e Mello é uma prostituta social que encanta o príncipe-regente e o torna refém dos jogos sexuais. Tudo o que este rapaz precisa é de ser entretido na alcova e depois dela dar tudo o que eu quero de bom e do melhor, pensa, e assim age a santista que ele nomeia Titilia, minha diaba, enquanto ela diz dela meu demonão. Perdido nos devaneios, Pedro prostitui-se e corrompe o trono. É o estupro político da princesa Leopoldina. E em 12 de Outubro de 1825, com uma cara de pau que só um doente pode exibir publicamente, ele determina:
Em comemoração da data de meu aniversário, decidi com todo o respeito nomear a Dona Domitila de Castro Canto e Mello, dama camarista de minha bem-amada e respeitada esposa, o nobre título de viscondessa de Santos por seus extraordinários serviços e excepcional mérito pessoal. Imperador Dom Pedro l
Domitila recebe presentes suntuosos adquiridos em Paris enquanto Leopoldina vestese como camponesa no paço imperial... E se não bastasse, logo Pedro concedeu à filha nascida do ventre da condessa Domitila o título de Duquesa de Goiás, o que deixa a imperatriz completamente isolada e a tolerar o intolerável. Em carta de 4 de Julho de 1826, ela relata: Caríssima irmã, Que dia triste é hoje. Em meu completo desespero e sem saber o que mais fazer, passei o dia só, a caçar nas profundezas da floresta brasileira. Pedro finalmente passou de todo e qualquer limite. No palácio da bruxa, em frente ao nosso lar, ele concedeu o título de “duquesa de Goiás” à filha ilegítima, com toda a pompa e esplendor. Não bastasse, ainda forçou a todos beijar a mão da criança bastarda, ele realmente não tem limites. Toda a corte e a sociedade do Rio estavam presentes e participaram do ultrajante escândalo. Que covardes oportunistas são! Não faz muito recebemos a triste notícia do falecimento de seu pai, que o deixou ainda mais indócil e temerário. Está totalmente fora de controle e faz o que lhe dá na veneta, sem consciência alguma. Sua obsessão com essa mulher cresce a cada dia e ninguém pode prever se essa paixão terá fim. Segundo os rumores, a bruxa e seus cúmplices colocaram um feitiço em Pedro. Não ficaria surpresa se assim fosse, pois criaturas más como ela estão tão afastadas da graça do Nosso Pai Todo-Poderoso que atrocidades pecaminosas e demoníacas estão em sua natureza. Imagina que sua correspondência desavergonhada caiu em mãos erradas e foi a público? Não tenho palavras para descrever a vulgaridade grosseira e obscena dos dois. São como soldados em acampamento, abertamente trocando segredos íntimos. É uma abominação perante Deus. Não pensará Pedro em sua família? Além de tudo, meu esposo agora determina quando tenho permissão para deixar a casa. Geralmente só recebo permissão para ir aonde vão sua amante e seu séquito. Escandaloso, mas é verdade. Não tenho permissão para ir à cidade ou qualquer evento público sem meu esposo. Não é esta a vida de um escravo? Essa vil sedutora botoume em correntes e colocou Pedro contra sua fiel esposa e filhos. Sabes que como princesas podemos tolerar muito. Temos de mostrar força e disciplina extraordinárias porque assim nos ensinaram, mas basta! Como Pedro pode elevar sua filha bastarda ao mesmo patamar que minhas filhas? Por vezes, quando tenho de estar próxima a essa mulher, enfureço-me tanto que não posso descrevê-lo. Preciso usar todas as minhas forças para controlar a raiva e permanecer calada. Com toda sinceridade, Maria Luísa, só confiança e respeito fazem um casamento feliz. Mas nós princesas somos como dados; conforme nos jogam teremos verdadeira felicidade ou terrível pesar. Não temos influência alguma sobre como se jogam os dados. Se não mantivesse no coração a esperança de um dia abraçar-te novamente, sucumbiria à completa insanidade. Sinto tanto a tua falta, bem-amada irmã! Abraço-te daqui. Tua Leopoldina
* Cercado por vampiros palacianos, que só querem o próprio bem sugando o sangue da vida alheia, Pedro vivencia uma educação precária que o preparou para ser rei tendo a selva por trono e a violência por nação. o bom selvagem com a certeza da impunidade Assim é e assim age o príncipe bragantino: um fora da lei em casa própria. Dotado de dons artísticos, o que poderia traduzir-se em compreensão humaníssima e busca de amizades fraternais, Pedro prefere ser o bom selvagem com a certeza da impunidade, a de casa e a da sociedade submissa. Quem o irrita, ou supostamente o ataca, é tratado a ferro e fogo, ou chicote. Nada é mais importante que os seus cavalos. Equivale-se a Napoleão, mas se o conquistador era um estrategista militar e político, embora arruaceiro no trato, Pedro é um peão do poder que age por impulsos e desconhece o caminho do trono, que só vislumbra quando Leopoldina o indica nas cerimônias oficiais.
*
A dor de Leo é o retrato da violência contra a mulher. Com profunda intensidade percebe agora, e com clareza, a dor com que a irmã Maria Luísa se entregou a outro arruaceiro: Napoleão. Tudo em nome da casa imperial e da monarquia. De golpe em golpe, entre e durante partos, a princesa não tem espaço para ambiguidades, vive a própria dor, submissa ao poder que a gerou, mas reclama, afligese... Muito enfraquecida, e pior depois de mais uma brutalidade de Pedro chutando-a, ainda grávida e na frente da amante, ela percebe que o fim se aproxima. É o se lê na sua carta de 8 de Dezembro de 1826: Queridíssima Maria Luísa, Lamento muito dizer-te que minha saúde me falha e sofro muito com as dores. Estou nas últimas horas de minha vida. É ainda mais doloroso saber que nunca poderei compartilhar meus mais honestos sentimentos contigo, sentimentos que escondi no fundo de minha alma. Ouve o último grito de uma vítima solitária que te pede não buscar vingança, mas sentir piedade e oferecer assistência no cuidado de meus filhos inocentes com grande amor fraternal. Eles serão órfãos e cruelmente colocados nas mãos de quem é exclusivamente responsável por meu terrível sofrimento e má saúde. Estou muito doente e sei que não há como escapar do meu destino. Há poucos dias, Pedro saiu de si e mostrou-me o mais violento desrespeito, surrando-me brutalmente na presença de sua concubina. Estou muito fraca para lembrar-me dos abomináveis detalhes desse horroroso ataque que será certamente a causa de minha morte. Minha amada irmã, não voltarei a ver-te, não poderei repetir o quanto te amei e te adorei, meu anjo da guarda! Infelizmente nosso pacto fraternal também se acaba, em tão pouco tempo na Terra.
Peço a proteção do Todo-Poderoso para uma passagem segura e que Ele me guie em minha jornada. Por favor, ore por mim. Uma última vez, abraço-te com o maior amor fraternal que já existiu. Tua irmã Leopoldina
Parte 4 Acerca da Correspondência Secreta de Leopoldina
“[...] por amor de um monstro sedutor Vejo-me reduzida ao estado da maior escravidão e totalmente esquecida pelo meu adorado Pedro. Ultimamente, acabou de dar-me a última prova de seu total esquecimento a meu respeito, maltratando-me na presença daquela mesma que é a causa de todas as minhas desgraças [...]”
A demora em perceber que o espírito violento de Pedro está além da epilepsia crônica leva Leopoldina a um estado de nervos à flor da pele, mas a segurar o grito da repulsa. Sem forças para odiar, a sociável princesa continua a prestar serviços quase secretos de apoio a pessoas carentes que a procuram na Quinta da Boa Vista, e o dinheiro que recebe da irmã logo desaparece, primeiro, para quitar dívidas, segundo, porque ela acha uma ofensa a si mesma não ajudar quem precisa de ajuda. Obviamente, chegam-lhe aos ouvidos que Pedro gasta fortunas com roupas parisienses que abonecam a amante Domitila, e nem precisava escutar, porque Domitila se faz presente.
A carta de 15 de Setembro de 1824 é um quase grito de dor, apesar da anunciar o nascimento de mais uma filha...
Minha bem-amada irmã, Estou muito feliz em dizer que tu és tia novamente. Minha filha Francisca Carolina nasceu no dia 2 de agosto. Tua sobrinha é muito linda e, até agora, saudável. O único incidente que diminuiu minha alegria foi ver a bruxa que tem as garras fincadas em meu esposo dar à luz uma filha dois meses antes. Se pudesse realizar meus desejos mais profundos, estaria sentada a teu lado agora. Acredita, minha cara Maria Luísa, ultimamente presenciei comportamento tão vergonhoso e imoral que não imaginei possível em seres humanos. Esperar que as coisas melhorem é como sonhar que vou tomar chá contigo em breve. Impossível! Mas ainda me agarro à esperança, pois ela me dá coragem e paciência. Seria o dia mais feliz de minha vida poder abraçar-te novamente. Apesar de estar tão desiludida, permaneci fiel a mim mesma e aos valores com que fui criada. Não posso escapar dos muitos escândalos que acontecem bem diante de mim, mas meu forte senso de justiça e moral fazem-me continuar a rezar para que tudo seja diferente. Dói-me dizer que meu esposo deu-me as costas. Chama-me de traidora, e mais vezes do que posso suportar, livra os punhos das luvas de pelica. Acredita, querida irmã, não é apenas a dor física que me inflige que me preocupa, mas a escuridão em que minha alma se afoga. Podes imaginar que minha situação financeira vai de mal a pior. Meu esposo esbanja dinheiro cobrindo sua concubina de presentes, e a mim sobram parcas moedas. Pedro até mesmo lhe construiu um palácio. E Não vais crer no que digo, mas juro por Deus, é verdade. Seu palácio fica do outro lado da rua, em frente à nossa residência. Sem vergonha alguma! Sinto-me ainda mais embaraçada por ter tido de pedir empréstimos a meus próprios criados. Agora vivo amedrontada, pois se meu esposo descobrir, com seu temperamento explosivo, vai me ferir gravemente, se não me matar. Por favor, implorote que me ajude nesta situação miserável assim que possível, e encontre meios de me enviar o dinheiro. Lamento muito por te incomodar novamente, mas infelizmente não tenho outra opção. Não tenho ninguém mais a quem recorrer. Espero que esta carta sincera e honesta te chegue às mãos em segurança. Meu leal jovem médico, José Militão, que considero como a um filho, está a caminho de Madri e te levará esta carta com cuidado. De todo o coração agradeço tua generosidade contínua, e te abraço com todo o amor que existe diante de Deus. Tua Leopoldina
1826 11 de Dezembro Uma Mortalha De Hipocrisia Cobre Uma Princesa Chamada Leopoldina
“[...] minha saúde me falha e sofro muito com as dores. Estou nas últimas horas de minha vida. É ainda mais doloroso saber que nunca poderei compartilhar meus mais honestos sentimentos contigo, sentimentos que escondi no fundo de minha alma. Ouve o último grito de uma vítima solitária que te pede não buscar vingança, mas sentir piedade e oferecer assistência no cuidado de meus filhos inocentes [...]”
Sem a companhia de Pedro, a princesa fecha os olhos definitivamente em 11 de Dezembro de 1826 e deixa a sociedade perplexa, ou melhor, hipocritamente perplexa. A solidão não a venceu, mas a dor de tantos partos e a violência de Pedro acabaram por leva-la à morte apenas com 29 anos e com a aparência de 50 anos! Imediatamente uma mortalha tecida com hipocrisias sociais e políticas cerca a princesa que amou sem ser amada e, como estrangeira, teve a ousadia de arquitetar a independência do Brasil.
Parte 5 Instituições, Anotações & Bibliografia
Arquivo do Estado – São Paulo, Brasil. Biblioteca da Câmara Municipal – São Paulo, Brasil. Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro, Brasil. Hof und Staatsarchiv / Arquivo do Estado de Viena, Áustria. Museu Imperial – Petrópolis/RJ, Brasil. Museu Paulista – São Paulo, Brasil. Torre do Tombo / BN – Lisboa, Portugal.
Anotação 1 De um texto de 1975: “[...] Pese a força psicológica de Leo, é bem verdade que ela submeteu-se ao poder machista do regente Pedro e só sossegou quando, várias filhas depois, gerou o filho-herdeiro para o trono brasileiro da Casa bragantina. Não fosse isso, ela teria sido chutada por Pedro de volta a Viena que, na época, só reconhecia as filhas que teve com a concubina Domitila, feita marquesa e dama da corte. Esta parte da história luso-brasileira é quase guardada a sete chaves, pois, Portugal diz nada ter a ver com a situação, e o Brasil quer um imperador com perfil de vitorioso, e não o de um arruaceiro violento [...]”. Palestra do poeta J. C. Macedo, nas instalações do Q-G do Exército, em Coimbra/Portugal. Anotação 2 É impossível não associar o jeito violento de Pedro I do estereótipo bragantino que se conhece pela tábua do poder em Portugal: a traição, a arruaça, a violência em qualquer questão política ou social, o descompromisso com o erário público e a celebração do feudalismo civil e católico. De uma inércia política confrangedora, a Casa bragantina fugiu para o Brasil deixando Portugal à mercê da escumalha napoleônica e lá tratou de erguer um novo reino para se ocupar do próprio poder. Mas, Portugal resistiu a Napoleão, embora os constitucionalistas não tivessem uma política ultramarina de autonomia administrativa e econômica, ou seja, atuaram como colonialistas sequiosos de bens alheios, o que levou aquele novo reino a dizer não, primeiro, em 25 de Abril de 1822, quando o deputado (presbítero e maçon) Diogo Feijó exigiu a libertação do Brasil no parlamento de Lisboa, segundo, quando o experiente político e maçon José Bonifácio de Andrada e Silva aliou-se à princesa Leopoldina contra as cortes lisboetas e fizeram o regente Pedro assumir a ruptura com o grito do Ipiranga, em 7 de Setembro.
Anotação 3 A leitura das cartas da Princesa Leo fornece uma linha de dados históricos sobre a violência contra a mulher (ela mesma, a princesa) e sobre os bastidores da independência brasileira; são dados estarrecedores que mostram como ela foi social e politicamente estuprada (para utilizar aqui o termo de João Barcellos), usada ideologicamente no escambo aristocrático das políticas entre lençóis. Só poderiam ser cartas secretas. As que pude ler, em Viena, na Áustria, ajudada pela amiga Cédron, e também por Maria Augusta de Castro e Souza (nada a ver com a tal Titilia, a amante do imperador Pedro), e as que Carlota Maria Moreyra fotografou no Rio de Janeiro, são missivas que lidas por pessoas estranhas ao trono poderiam levar a uma convulsão política. Nelas, a princesa relata a violência com que é tratada por Pedro, e num dos momentos é chutada por ele na frente da amante. Príncipe? Não, ele é um rapazote educado para chicotear escravos e estuprar mulheres indefesas, ou, como aconteceu também, soltar o travão sexual de putas sociais que querem o lado bom do poder. Estudar a vida da Princesa Leo no contexto da violência política e doméstica permite uma reflexão antropológica e psicológica, e vê-se que o ontem é igualzinho ao hoje: a vida está nas mãos de machistas cruéis e a mulher tem de batalhar conquistando mais homens honestos e amorosos para sobreviver. Johanne Liffey. London-UK, 2015.
///// BARCELLOS, João – Pioneiros Alemães No Brasil // in ANTROPOLOGIA, Volume 11 da coletânea PALAVRAS ESSENCIAIS; Edicon+CEHC+Noética; Portugal & América Latina, 2015. – O Estupro De Uma Princesa. Palestra; Embu das Artes, 2011. – Imperador & Arruaceiro. Palestra, São Roque/SP, 2013. DEBRET, Jean Baptiste – Viagem Pitoresca e histórica ao Brasil. Edusp, 1978. GRAHAM, Maria – Correspondência entre Maria Graham e a imperatriz Leopoldina. Edi Itatiaia, Belo Horizonte / MG, Brasil, 1997. FERNANDES, Paula Porta S. – A corte portuguesa no Brasil (1808-1821). Ed Saraiva; São Paulo / Brasil, 1997. GRAHAN, Maria – Diário de uma viagem ao Brasil. Companhia Editora Nacional, 1956. HOLLANDA, Sérgio Buarque de – História do Brasil: Das origens à independência. São Paulo / SP, Brasil, 1971. KANN, Bettina... – Dona Leopoldina. Cartas De Uma Imperatriz. Angel Bojadsen, Istvan Jancso, Bettina Kann, Maria Rita Kehl, Andre Roberto De Arruda Machado, Andrea Slemian. Ed Estação Liberdade, 2006. LIFFEY, Johanne – Leopoldina: Imperatriz & Escrava // in PESSOAS & HUMANIDADE, organização de Maria C. Arruda; 2ª Ediç Ampliada; Edicon+CEHC+Noética; Portugal & América Latina, 2015. LOPES, Cláudio Fragata – Leopoldina nos bastidores do grito. Revista Galileu, 86-96, Set. 1998. LUSTOSA, Isabel – D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter. Companhia das Letras, São Paulo / Brasil, 2006. MACEDO, J. C. – Escambo & Política d´Alcova. Leo: a imperatriz do Novo Mundo. Palestra e opúsculo. Coimbra/Portugal, 1975. OBERACKER JR, Carlos H. – A Imperatriz Leopoldina sua vida e sua época. Conselho Federal de Cultura, Brasil, 1973. RANGEL, Alberto – Cartas de Pedro I à Marquesa de Santos. Edit Nova Fronteira, 1984. REZZUTTI, Paulo – Titília e o Demonão: cartas inéditas de D. Pedro I à marquesa de Santos. Ed Geração; São Paulo / SP, Brasil, 2011. SORIANO, Simão José da Luz – História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Regime Parlamentar em Portugal, 1866-90.
NA MODERNIDADE OCIDENTAL: (SOB A BANDEIRA DA CONQUISTA E DOMINAÇÃO HEGEMÓNICA DO MUNDO!...)
FILOSOFIA EM FOCO!
CEHC
Manuel Reis
Para que serviram os Saberes e as Ciências, positivas e experimentais, numa Cultura Contraditória, bastarda, machista-patriarcal e esquizofrénica?!...
N.B.: A Cultura da Potestas (sacra)-Dominação d’abord (mesmo nos Regimes Republicanos e Democráticos…) ainda perdura, hoje, desde que o Processo histórico/civilizatório patriarcal-machista teve a sua origem, desde há mais de cinco milénios e meio, ‒ instaurando as Divindades uranianas e pondo termo a quatro milénios de GILANIA (onde a Igualdade social, embora com funções distintas, entre Homem e Mulher, era prática corrente). Foi na galáxia patriarcal-machista, que ainda vige e impera, que se edificou, na Cultura e nas Ciências, o que o C.E.H.C. tem chamado o primado absoluto dos Objectos sobre os Sujeitos: a Metodologia e a Epistemologia do Objectivo-Objec-tualismo. Neste horizonte, como é óbvio, os Objectos (Mercadorias), no Processo do Conhecimento, como no mundo da Economia política, estão em equivalência operacional total, por sua natureza e estrutura societária, com o que os economistas e toda a gente chama e sempre tem designado, sem resistências, Capital. Nem o próprio Karl Marx e seu Amigo e Companheiro de Luta, F. Engels, tiveram esta intuição e procederam ao respectivo exame crítico (como Lutero havia reivindicado, para cada cristão, sobre a Leitura das Escrituras Sagradas): Objecto (do Conhecimento) = Capital (em Economia política). Do ponto de vista histórico/directo, o Tema é relativamente recente, no Ocidente: começou, aberta e universalmente a ser explorado, a partir dos alvores da chamada (1ª Revolução Industrial: 1720…); mas o seu embrião medieval já se encontrava nos ‘juros’ sobre os empréstimos de Dinheiro às Hansas e às Guildas: os chamados ‘pres-tami all’interesse’ (que a I.C.R. aceitou e legitimou, logo nos sécs. XIII/XIV). (O Islão ‒ como se viu ‒ só veio a legitimar isso, em finais do séc. XIX). N.B.: Para os que ainda padecem de dúvidas (ou têm opiniões adversas…), é preciso e urgente (mais do que tratar dos grupos L.G.B.T.) afirmar e estabelecer, solenemente, que há, de facto, no universo dos Humanos, uma Racionalidade Masculina, em contraste com a Racionalidade Feminina: e vice-versa! No Psico-Sócio-Ânthropos, a Tese enunciada assume o primado sobre a famigerada e histórica Luta (marxiana) das classes sociais, ‒ o que torna manifesta uma necessária referência aos Poderes Estabelecidos. Esta é uma temática, que, de tão esquecida ou ignorada, só deu relevância e o primado absoluto à ‘Luta de Classes’ e à problemática dos Poderes e do Poder.
A Racionalidade Masculina encontra-se polarizada na obtenção de Ideias/Objectos e Princípios gerais, na organização das Sociedades e na ‘Ordo Mundi’. (Assim como, outrora, o Deus bíblico, criador do Cosmos, tal como se pode ler na narrativa do ‘Génesis’). Os meios ou instrumentos, com que opera, são os símbolos ou signos (estéticos ou linguísticos), e, no mesmo horizonte, os objectos/mercadorias, indiciados e propagandeados, mediante sinais e símbolos, nas imagens da Publicidade, no chamado ‘Marketing’. Em confronto com a 1ª, a Racionalidade Feminina é, por princípio, omniabrangente, e, se tem de começar por algum lado (como no Fio de Ariadne…), é sempre pelo singular e concreto, o emotivo/afectivo, o individual-pessoal, que ela principia. Ela, no seu processus, sabe que tem de começar pela boa formação dos Sujeitos humanos pessoais: por isso, ela está atenta aos pormenores e às situações sociais concretas, aos cuidados, que é preciso envolver em todo o Processus. O seu imperativo categórico é o ‘take care’!... O pensar, no feminino, presta logo mais atenção à Sensibilidade, às Emoções e aos Cuidados. Assim, colmata o fosso entre o pensar (teórico) e o agir-actuar. (Cf. o Livro actual e revolucionário, titulado: ‘Marginalidade e Alternativa ‒ Vinte e Seis Filósofas para o Século XXI’; coordenado por Maria Luísa Ferreira e Fernanda Henriques. Edições Colibri, Lisboa, 2016. Vide, etiam, a boa recensão desta obra, in ‘JL’, 22.6 ‒ 5.7, 2016, pp.28-29). Sócrates e Jesus, sendo, embora, homens, são personagens/personalidades cujas Mensagens são passadas e comunicadas, nas praxeis sociais/societárias (o Diálogo maiêutico, como método e princípio do Saber; e a Justiça jesuânica transmitida nas práticas sociais e no Diálogo com todos os seus ouvintes e interlocutores). Karl Marx também exibiu um modo de ser e actuar algo parecido, ao afirmar e defender o axioma (psico-sócio-antropológico), segundo o qual os Seres humanos só se individuam e indi-vidualizam em comunidade, into the Society. Os Seres humanos, enquanto Indivíduos-Pessoas, não são constituídos e organizados em Sociedades (nacionais…), por obra e graça de Agentes/Actores externos, que os irão formatar, necessariamente, como ‘cabeças de Rebanho’, conduzidas por Pastores!... É
sempre, de resto, a partir da Comunidade, e do seu Interior/Consciência, que eles se constituem e desenvolvem qua tais. N.B.: Hilemorfismo Aristotélico. ‒ Para além do Discurso Dialógico Socrático (que está nas origens de toda a vera e autêntica Filosofia), a única Via legítima, válida e fecunda, do Discurso filosófico narrativo é, sem dúvida, a do Hilemorfismo Aristotélico. (Não há, mesmo, dúvidas possíveis sobre esta única Via!...). Não a do Hilemorfismo aristotélico-tomista reivindicado pelo filósofo convertido cristão Jacques Maritain (1882-1973), (v.g., na sua obra ‘Humanismo Integral’), visto que o Hilemorfismo de Tomás d’Aquino é, tão-só, parcial, no concernente à unidade/integridade do Psico-Sócio-Ânthropos pessoal, na medida em que não abandona, (como J.M.), o Deus extrínseco e transcendente, criador do Universo. Esta temática não existe em Aristóteles. Entretanto, e mesmo assim, a Obra de Tomás de Aquino, pela sua parcial índole hilemorfista, esteve censurada e proibida de ser ensinada, meio século após a sua morte (1274), na Universidade da Sorbonne, onde era Professor!...
Além dessa recuperação do Hilemorfismo tomista por J.M., ao longo de mais de 2 milénios de predominância do Pensamento Platónico/Paulino (Dualismo metafísico-ontológico de Platão e Paulo, como base e cúpula dos Cristianismos), houve (retroactivamente) uma 2ª tentativa da recuperação do Aristotelismo, no chamado ‘Colégio das Artes’ da Univ. de Coimbra, entregue aos Padres Jesuítas em 1555. Aí, o Chefe da Orquestra de uma vasta equipa era o Pe Pedro da Fonseca (15281599), chamado ‘O Aristóteles Conimbricense’. As características principais do famoso Curso Conimbricense de Filosofia eram cinco (como nos elenca M. D’Almeida Trindade, tradutor (e actualizador para Portugal) da obra de Franco Amério: ‘História da Filosofia: Moderna e Contemporânea’, Casa do Castelo, Coimbra, 1952, 2ª edição, pp.72-74): “1ª Conhecimento dos humanistas, dos homens de ciência e das escolas filosóficas de mais nomeada no período do Renascimento”, entre os quais, Luís Vives e Erasmo de Roterdão. 2ª Gostavam de escrever em latim elegante, para-clássico, ao gosto dos renascentistas, o que indiciava familiaridade com os clássicos gregos e latinos. 3ª A sua preocupação central era a da Renovação da filosofia escolástica. Embora de filiação diversificada (humanistas, platónicos ou aristotélicos), diziam-se, todos católicos; mas estavam unidos no ataque à escolástica medieval, cujos docentes coevos eram de uma mediocridade confrangedora. Alimentavam uma grande simpatia pela Renascença e a ‘Filosofia Perene’, e, sob a égide de Francisco Vitória formaram um grupo à parte, que veio a constituir um forte movimento de apoio à Restauração da independência lusa, em 1640. 4ª Elegeram Aristóteles e o seu sequaz, Tomás d’Aquino, como bandeiras cultu-rais do Pensamento do Curso. Por isso mesmo, com frequência, o seu discurso filosófico (narrativo) era acompanhado das referências à autoridade do Estagirita. 5ª Não esquecendo o apelo recente, nos alvores da Modernidade e no encalço dos Descobrimentos transoceânicos, os Conimbricenses, não só invocavam a Experiência enquanto fonte de conhecimento, como também alguns chegaram a cultivar alguma das novas ciências positivas e experimentais. Contudo, na História Geral (filosófico-cultural) do Ocidente, a tentativa aristotelizante e o seu projecto de rotura, com a tradição ideológico-cultural das Cristandades, devieram completamente frustrados e frustrantes. Por toda a parte, continuava a imperar o Dualismo metafísico-ontológico, platónico e paulino, no concernente ao Psico-Sócio-Ânthropos integral. Foi tudo um Fracasso e um Falhanço. Eles estiveram, em termos ideológico-culturais, muito longe do Movimento protestante de M. Lutero, na Alemanha (em 1517), que foi capaz de estabelecer uma vera ruptura com a I.C.R. (ajudado pelos Príncipes germânicos). Como é óbvio, as consequências desse Falhanço monumental repercutiram-se, ao longo dos cinco séculos da Modernidade Ocidental: 1ª ‒ Continuação da condição feminina, agonizando na humilhação e subordinação (legal…) da Mulher ao Homem-machista-patriarcalista. (Vide, ex.gr. o romance ‘Uma Senhora Nunca’, de Patrícia Müller, sobre a degradada condição da mulher, ao longo, ainda, de quase todo o séc. XX. Quetzal/língua comum, Lisboa, 2016.).
2ª ‒ Esquema estrutural/societário de Esquizofrenias foncières, resultantes, elas mesmas, da continuada existência das Religiões Institucionalizadas. 3ª ‒ Na órbita política da Organização das Sociedades: os Indivíduos-Pessoas/ /Cidadãos foram e continuam a ser transformados em simples ‘cabeças de Rebanho’, submetidos ao arbítrio/guisa dos seus Senhores e à Ordem societária, imposta pelos seus Chefes. 4ª ‒ Na ordem da chamada Economia política, as Contradições Estruturais persistiram, ao longo de toda a Modernidade, desde logo, entre as duas classes sociais antagónicas: o patronato (capitalista) e o operariado (trabalhador). Se os Governos de turno quiserem satisfazer os desejos e os interesses do Capital, estão a prejudicar, necessariamente, os desejos e os interesses do Trabalho. A Contradição estrutural entre os dois campos é o alimento cotidiano, quer das Organizações patronais, quer das Organizações sindicais. Tudo… porque a Society se encontra organizada segundo as pautas da Potestas (sacra)/Dominação d’abord!... 5ª ‒ Constituindo-se, embora, ab initio, como áreas diferenciadas (cf., v.g. as metodologias da Ciência positiva e experimental, em R. Descartes e em F. Bacon) o que é facto é que, nos caminhos dos últimos três séculos da Modernidade ocidental, as ciências e as técnicas misturaram-se e confundiram-se… até ao ponto (sobremodo, após a II Guerra Mundial) de: num 1º momento, assistirmos à constituição da Tecnociência; e, num 2º momento, à constituição da chamada ‘Tecnociência de Aparelho’ (a qual, procurando ‘imitar’ o althusseriano ‘Aparelho Ideológico de Estado’ se arquitectou com todos os seus serventes, uns oriundos de saberes mais científicos, outros procedentes de saberes mais tecnológicos), no horizonte das Multitransnacionais (que fogem aos ‘impostos’ e ao Fisco, com todos os argumentos, tanto nos países de origem, como nos de chegada). 6ª ‒ O Resultado de toda esta caminhada perversa (extremamente objectivo-objectualista…) foi a dissolução ou a perda da orientação e do comando do Aparelho Político do Estado-Nação, com a sua necessária e indispensável Autonomia Soberana, em Regime Democrático, e com todos os seus Poderes sufragados, em eleições periódicas, pelos seus Cidadãos. Assim, a Pirâmide societária (sócioeconómica e política) foi completa e estruturalmente invertida. Até quando seremos vítimas desta marcha (historicista…) contraditória, bastarda e perversa?!...
Centro de Estudos do Humanismo Crítico / CEHC Diretoria: Lillian e Manuel Reis Guimarães?Portugal
CECÍLIA MEIRELES A Materna Linguagem Da Vivência
Rosemary O´Connor & João Barcellos
Parte 1 de Rosemary O´Connor
A questão que se prende ao falar Português nos espaços da lusíada Expansão Ultramarina pode ser simples quando se analisa a ação de um educador multidisciplinar como Agostinho da Silva [1], a quem a Universidade brasileira deve muito, e a quem a Sociedade portuguesa continua a ignorar. Mas “...quando a questão é luso-afro-brasilidade, os trabalhos agostinianos acadêmicos, e mais os nãoacadêmicos ou puramente filosóficos, assumem uma grande relevância para a sempre necessária e contínua reflexão acerca do ser-estar Português e da Língua portuguesa no mundo”, na observação do poeta e jornalista cultural João Barcellos [2]. A primeira vez que li Cecília Meireles [3] foi através do seguinte texto: “[...] Vida reinventada: - antecâmera da Morte. “Suave exemplo / de mais silêncio”, a Poesia de Cecília Meireles é, no seu mais alto sentido, um exercício espiritual, mística preparação para a Morte – mas de um misticismo muito complexo, de um misticismo cósmico, de
aspiração a uma identidade, não com o Criador, mas com os aspectos mais perfeitos e imutáveis da sua Criação: “terra e céu, luas e estrelas”. E porque tem os olhos postos nestas realidades, as aparências – as “máscaras”, como ela diz – não a atraiçoam nem perturbam. Dirigindo-se à Terra, Cecília Meireles exclamou, num poema da “Viagem”: “Deusa dos olhos volúveis, rosto de espelho tão frágil, coração do tempo fundo, - por dentro das tuas máscaras, meus olhos, sérios e lúcidos, viram a beleza amarga. E esse foi o meu estudo para o ofício de ter alma.” A beleza amarga, desvendada no íntimo de Deméter e suspeitada na essência de todos os deuses e de todos os astros, não a lança, contudo, em desespero; precisamente em virtude daquele sopro místico, Cecília Meireles não cai nunca em excessos, e pôde, por isso mesmo, a si própria dar o nome de – Serena Desesperada” [4]. Entretanto, apesar dessa identificação demeteriana, ou seja, agrária, no que toca a uma destinação mais telúrica e ao mesmo tempo cósmica, não me parece que seja o caso da poeta Cecília, porque ela é pelo que a sociedade urbana lhe deu, e logo aí a transitoriedade marca-lhe a alma – uma marca que lhe é natural, praticamente, a transitoriedade veste a poeta Cecília, mas também veste a educadora Cecília que, pela Língua portuguesa, travestida no espaço afro-brasileiro, molda-se em Cultura própria e propaga-a onde quer que esteja. Tanto como educadora quanto escritora, Cecília Meireles é a ´deusa dos olhos volúveis´ que poeta a liberdade possível em versos urbanos envolvidos em marítimas e campestres brisas.
Nesse seu “ato de acreditar que a Vida é já a Morte, que nesta deve ser intensamente vivida pela máscara que é, e então [...], deixa a Pessoa mais em Liberdade no assumir da Consciência do estar-a-ser, físico ou não...”, lembrando de J. C. Macedo, estudos a propósito [5], e assim é que a cidadã Cecília incorpora a poética vivência da transitoriedade, pelo Todo, e não por uma leitura helenística de pastoris percepções. Cecília Meireles, como cidadã, poeta e educadora, assume uma luso-brasilidade tal que a coloca, em Portugal, como ponto-chave para a compreensão das distâncias culturais conquistadas, e a lusa Intelectualidade abre-lhe espaço publicando os seus trabalhos nas folhas de poesia ´Távola Redonda´.
A sua personalidade era tão forte que “um dia, Cecília Meireles ao chegar a Portugal – a poeta era casada com o artista plástico português Fernando Correia Dias – para proferir palestras sobre a Literatura Brasileira, agendou um encontro com Fernando Pessoa no ponto habitual das tertúlias lítero-culturais lisboetas, o café A Brasileira. Mas, o poeta heteronímico não apareceu. Desconhece-se se a verdadeira A Brasileira ficou decepcionada... Mais tarde, no hotel, recebeu um livro autografado, e um bilhetinho, no qual o poeta/bruxo dizia que havia feito uma leitura do horóscopo dela e concluído que o encontro não seria bom nesse dia. Ela mesma, leitora da acção transitória da Vida, deve ter interpretado razoavelmente o esotérico lisboeta que se pautava por uma anárquica vivência de explorar o dia a dia pela alma de quem contactava quotidianamente...” [6]. Sobre este caso, pode-se especular, mas o certo é que se a poeta brasileira fosse uma mulher sem essa característica cultural, “o poeta ´bruxo” teria ido até à A Brasileira e oferecido uma bica e um copo d´água... No olhar poético de Cecília Meireles estava a água como linha divisória entre a solidão e os espaços vivenciáveis, e mais precisamente o mar. Foi “a herança lusíada que o convívio amoroso mais lhe aguçou na alma e a fez viver a luso-brasilidade com mais calorosa atividade cultural brasileira”, como disse João Barcellos em conferência proferida na Biblioteca Cecília Meireles, em Cotia, na Grande São Paulo, em 1995. Era isso que nela bastava: a condição de se saber existir como mulher e cidadã a fecundar a maternal linguagem que une povos em diversas culturas.
Parte 2 de João Barcellos
“Repentinamente, de mim se desprende alada canção.”
Iniciar uma conversa sobre Cecília Meireles com estes três versos do poema 15ª Canção, publicado nas folhas de poesia ´Távola Redonda´, que nos Anos 50 do Séc. XX circularam em Portugal, e que, no caso da poeta brasileira, deram-lhe mais visibilidade, é, para mim, dar corpo a “uma intuição estética que era natural nela, e que a fez ser como foi sem se sujeitar a ideologismos desnecessários à Criação literária”, como já observou a professora Rosemary O´Connor [6]. Dizem dela que sendo de “De fina espiritualidade, sua poesia, sem deixar de ser moderna, mergulha raízes nas essências do simbolismo, caracterizando-se, no plano formal, pela riqueza de recursos estilísticos” [7]. Ora, não existe “fina” espiritualidade, ou é ou não é... O que na educadora e poeta carioca sobressai é uma militância cultural que vai demarcar espaços, tanto na [sua] ação educacional como na literária, de tal sorte que os seus estudos e palestras sobre Literatura Brasileira, no Brasil e em Portugal, continuam a sua Poesia - continuam uma Idéia que a distingue, enquanto identidade, como ser Brasileira por um estar cultural em que a Língua portuguesa é um meio de sociabilização, e não mais um fim para propósitos coloniais. Por isso, não vamos encontrá-la em excessos antropofágicos, mas aos quais ela não será alheia nas suas leituras de cidadã contemporânea. Um dos mais importantes representantes da luso-brasilidade, o professor e escritor Fidelino Figueiredo [9], ensina[va] que “O livro é só o invólucro mortal. A chama do
espírito que nele crepita, insinua-se perenemente pela vida...”. É por isso que não deve estranhar um profundo depoimento que a poeta fez – a saber: "Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno. [...] Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou o sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade. [...] Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde foi nessa área que os livros se abriram, e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que, até hoje, não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano." A poeta revela em si mesma “...a preferência por uma Morte que celebra a Vida pelas circunstâncias libertadoras da Alma-em-Pessoa, nunca pelo desejo de destruição, como em Sá-carneiro, que se foi entre hipotéticos saltimbancos com bombos e gaitas de Alegria, e não como em Ernest Hemingway, que se foi por viver a própria destruição...” [10]. E não apenas uma circunstância. A visibilidade da Morte passou a ser para Cecília Meireles um ideal de Vida, porque sabia que vivia com ela, fossem instantes de Amor ou de Ódio. Nem queria ser uma Pessoa tão comum. A carioca da Tijuca nascera com a Morte a bailar entre os seus entes mais queridos, desde cedo, como ela mesma testemunha; ao mergulhar na Poesia com nove anos de idade deu-se a conhecer a si mesma pela longa e silenciosa Solidão. Ao tentar uma percepção do ambiente e da criação de Cecília Meireles, o poeta Mário Quintana escreveu: “A atmosfera dos poemas de Cecília é a mesma que respiram as figuras de Botticelli. Tanto neste como naquela, há uma transfiguração das criaturas. E sentimos, ao vê-las, não a nostalgia de um passado edênico, mas de um futuro que talvez um dia atingiremos. Serão corpos? Serão almas? Mas para que a discriminação? Recordem, ou melhor, transportem-se àquele verso de Raul de Leoni: A alma, estado divino da matéria..." [11]. A poeta era isso mesmo: a completa incorporação da Morte nos atos da Vida – esses em que ela já a presenciara. Com a perda dos pais, foi criada pela avó de origem portuguesa, dos Açores, e logo, aquela herança insular da imensidão por onde transitoriedade se faz notável presença; e quando casa com o artista plástico e ceramista português Correia Dias surpreende a Morte com instantes de Amor e de Alegria: a Vida dá-lhe três filhas, mas a Morte leva-lhe o companheiro, em 1935, no suicídio de quem se percebe mais só ainda, diante de perseguições políticas ditatoriais getulistas, mas, mais pela incapacidade... de entender tal loucura contra a Vida e contra a Arte! E se já o era, radicalizou: Cecília Meireles foi moderna e contemporânea contra todos os ´ismos´, políticos e culturais, que queriam submeter a Liberdade que em cada Pessoa é um direito natural. Cecília e Fernando tornaram-se alvos da Ditadura getulista precisamente por serem Pessoas Livres, Criadoras. O que na cidadã é o livre direito de viver, na poeta é o direito de criar o ato de libertar culturalmente a mente, de fazer crescer na Cidadania o ato da Cultura que educa e gera Progresso humano. Isto era/é Cecília Meireles.
Parte 3 de Rosemary O´Connor & João Barcellos [Diálogos continentais através da Internet para o tema Cecília Meireles & Portugal, com coordenação de Marta Novaes, da TN Comunic]
Rosemary O´ Connor A colocação de João Barcellos sobre “pessoas livres, criadoras”, no caso da cidadã-poeta e educadora Cecília Meireles, tem a ver com um episódio muito triste da Histórica carioca e da Educação brasileira... Corria o ano 1934 e o Brasil assistia ao endurecimento da política ditatorial do Governo Getúlio Vargas, cada vez mais policial, inquisitorial. Ao mesmo tempo, a educadora Cecília é convidada para dirigir, no bairro de Botafogo, um Centro Infantil. Era pública, pelo que ela escrevia nos jornais, a sua idéia de que um centro educacional para crianças deveria ser um espaço de ampla liberdade. No porão do edifício, o companheiro e artista Fernando construiu o que ela chamou de “espaço encantado” que comporta a primeira Biblioteca Infantil da região carioca e onde a Criança Brasileira, finalmente, pode interagir ludicamente com Música, Livros, Teatro, Desenho, Pintura... Ela sabia das dificuldades ideológicas, mas quis iludir-se um pouco e viver aquele sonho. E tinha no companheiro um aliado excepcional. Até que um dia, a polícia política getulista invadiu e devassou o local porque o Governo tinha informações da “existência no local de livros considerados perigosos à educação infantil”, livros como “As Aventuras de Tom Sawyer” e os próprios livros da diretora! Para um artista multi-dimensional, como Fernando, aquilo foi a gota d´água quanto à falta de possibilidades de Vida. E eis que a Morte ronda. E ele entrega-se. Para uma educadora e poeta, como Cecília, e talvez mais como cidadã, o evento policialesco e maldoso calou fundo. Bem fundo. João Barcellos Sim, é verdade. E isso me lembra o poema “Retrato”, no qual ela se reinventa para continuar a ser a Morte-em-Vida. Ouçamos a poeta: “Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: — Em que espelho ficou perdida a minha face?” Para ela, como poeta e como cidadã, a importância da Vida estava na experimentação, porque, de outro jeito, nem valeria a pena ter nascido... Rosemary O´Connor
Como aquele instante, nos Açores!
João Barcellos Pois é. Ou melhor: foi. No ano 1951 ela visitou a Ilha de S. Miguel, e disse: “A paisagem é como se fosse a do meu quintal, na infância”.
Rosemary O´Connor Uma frase dela, que li num estudo feito no Brasil, veio agora à lembrança: “Aprendi com a natureza a me deixar cortar e voltar sempre inteira”... João Barcellos Olha, não conheço pessoa açoriana que se perca no Mundo, por que “a profundamente enraizada Identidade açoriana está em todos os gestos e atos”, como escrevi no meu romance O Outro Portugal [12], ambientado no que chamo de “diáspora açoriana”. Cecília Meireles foi desde cedo educada pela avó açoriana e o quintal da casa brasileira serviu como ilha açoriana, e assim ficou na memória dela. Ao visualizar e pisar a terra açoriana, a poeta e a cidadã brasileira sabia que, ali, estava a alma lusobrasileira, aquela que se corta pelas circunstâncias da Vida, mas que retorna pela inteira certeza da Morte que virá. Rosemary O´Connor
E eis a maternal linguagem...
João Barcellos É verdade. Nesta conversa falta-nos dizer da Obra maior de Cecília Meireles: o Romanceiro da Inconfidência... Rosemary O´Connor E creio que nesse Romanceiro da Inconfidência a cidadã sobrepõe-se à poeta, ou tenta equilibrar os dois pesos. João Barcellos Talvez isso, talvez. Mas vou mais longe: ela não grita a vontade de ser A Brasileira, ela o é, então, ela murmura o romanceiro como que luz e voz de funda solidão. "...Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda..."
Diz-nos ela, como que a não dizer, pois, a Liberdade não se fala, não se canta, percebe-se e luta-se por ela. Não existe espaço para atos retóricos no tempo que gera a Pessoa Livre. Ou se está para ser Livre, ou se é da escravidão!
Dublin / Ie + São Paulo / Br, 2005
NOTAS 12-
SILVA, Agostinho da [Portugal, 1906-1994] – educador e filósofo, responsável pela criação de vários pólos universitários no Brasil, e de centros de estudos em outros países, tendo sempre a Língua portuguesa como base da ação. BARCELLOS, João [Portugal, 1954] – in O Portugal Sem Medos Na reflexão De Agostinho Da Silva, on-line chat / terranovacomunic.com.br, Br.2001. Escritor e jornalista cultural, autor de vários estudos luso-brasileiros, membro do Grupo Granja [Brasil e Mundo] e do grupo Eintritt Frei [Berlin/De].
MEIRELES, Cecília Benevides de Carvalho [Tijuca - Rio de Janeiro / Br., 1901-1964] – educadora, tradutora, conferencista, grande batalhadora pela defesa da Cultura brasileira e da Língua portuguesa. 4- In Boletim Cultural / Fundação Calouste Gulbenkian – Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas [VI Série, Nº11, Out.1988, Lisboa/Pt], edição de homenagem às folhas de poesia Távola Redonda. Opinião de David Mourão-Ferreira, p.69. 5- MACEDO, J. C. [Portugal] – in El Suicídio Es Vivir Un Deseo De Libertad, ensayo, revista En Vivo y Arte, pp.07-11, con introducción de HERNÁNDEZ, Ruy, Barcelona/Esp.-1987. Poeta, ensaísta e conferencista, co-fundador do grupo Eintritt Frei [Berlin/De, 1981], co-fundador do jornal Tempo de Educar [Lisboa/Pt, 1975], restrito ao espaço anarco-esotérico, e membro da sociedade que fundou o jornal O Povo de Guimarães [Guimarães/Pt]. 6- In jornal Tempo de Educar, p.04, art., O Anarco-Esotérico Pessoa Não Foi Ver A Bela Cecília, de MACEDO, J. C.; Pontinha-Lisboa/Pt, 1975. 7- O´ CONNOR, Rosemary [Irlanda, 1960] – in The Portuguese Distance: between Language and the Psychology of Freedom, essay, with LIFFEY, Hanne, Dublin/Ie-1984. Rosemary O´Connor é ativista cultural do Grupo Granja e editora do Science and Education Journal [Dublin/Ie], e coeditora do Cult Journal [Houston/USA], ambos de circulação restrita ao meio anarco-esotérico. 8- In Enciclopédia e Dicionário Ilustrado, verb., p. 1368, Koogan/Houaiss, Edições Delta, Rio de Janeiro / Br., 1993. 9- FIGUEIREDO, Fidelino [Lisboa/Pt, 1889-1967] – autor de A Crítica Literária Como Ciência, lecionou na Espanha, nos EUA e no Brasil. 10- MACEDO, J. C. – in Morte & Vida: Poesia, art., p.03, jornal Tempo de Educar, Pontinha-Lisboa/Pt, 1975. Artigo também publicado no Science and Education Journal, p.06, trad. de LIFFEY, Hanne, Dublin/Ie – 1986. 11- QUINTANA, Mário [Brasil, 1906-1994] – in A Vaca e o Hipógrfico, 4ª Ediç Rev, p.53, 1977. 12- BARCELLOS, João – romance O Outro Portugal, ed Edicon, SP-Br., 2000. 3-
BIBLIOGRAFIA DE CECÍLIA MEIRELES Escreveu aos 9 anos sua primeira poesia e estreou, em 1919, com o livro de poemas Espectros, escrito aos 16, livro que foi recebido com louvor pelo crítico João Ribeiro. Criança, meu amor, 1923; Nunca mais... e Poemas dos Poemas, 1923; Criança meu amor..., 1924; Baladas para El-Rei, 1925; O Espírito Vitorioso, 1929 (ensaio - Portugal); Saudação à menina de Portugal, 1930; Batuque, Samba e Macumba, 1935 (ensaio - Portugal); A Festa das Letras, 1937; Viagem, 1939; Vaga Música, 1942; Mar Absoluto, 1945; Rute e Alberto, 1945; Rui — Pequena História de uma Grande Vida, 1949 (biografia de Rui Barbosa para crianças); Retrato Natural, 1949; Problemas de Literatura Infantil, 1950; Amor em Leonoreta, 1952; Doze Noturnos de Holanda & O Aeronauta, 1952; Romanceiro da Inconfidência, 1953; Batuque, 1953; Pequeno Oratório de Santa Clara, 1955; Pistóia, Cemitério Militar Brasileiro, 1955; Panorama Folclórico de Açores, 1955; Canções, 1956; Giroflê, Giroflá, 1956; Romance de Santa Cecília, 1957; A Bíblia na Literatura Brasileira, 1957; A Rosa, 1957; Obra Poética,1958; Metal Rosicler, 1960; Poemas Escritos na Índia, 1961; Poemas de Israel, 1963; Antologia Poética, 1963; Solombra, 1963; Ou Isto ou Aquilo, 1964; Escolha o Seu Sonho, 1964. Obras póstumas: Poemas Italianos; Poemas de Viagens; O Estudante empírico; Sonhos; Poemas I [194249]; Poemas II [1950-59]; Poemas III [1960-64] e Cânticos [2003].
Um Estilo Matriarcal Na Frente Republicana Do Brasil Ou: a Revolução Pernambucana de 1817 e Bárbara de Alencar
Fernanda Marques
“Eu sei, pelo que me foi dado a saber nas minhas andanças cearenses e pernambucanas [...], que o ultramar português na versão brasileira não era o mesmo assente em África, pois, a gente africana tinha e tem vida própria, ao passo que a gente nativa da ´ilha do páo vermelho, brasil´ se tinha vida deixou de a ter sob o escambo e o esbulho colonial de portugueses, franceses, castelhanos e holandeses – i.e., a Nação africana não deixou de o ser mesmo na sua linha tribal, mas ´a gente da ilha do páo vermelho, brasil´ caiu em terra e em cultura diante do cerco colonial. Quando me falaram de Bárbara de Alencar encantei-me... Uma mulher na frente liberal e republicana contra a monarquia absolutista da Casa bragantina. Ah, que viva Bárbara, que deve ter incendiado a alma de Maria da Fonte!, quase gritei...”, eis a carta (agora digital, ou email) que recebi, em março de 2017, do amigo e mestre João Barcellos em resposta a um questionamento acerca da Revolução Liberal Pernambucana. Li a resposta para uma classe do ensino médio, a pedido de uma professora amiga e parceira de projetos socioculturais via historiografia. Para espanto meu, e dela, a turma não tinha conhecimento básico sobre o assunto. Como é possível? Ora, ensina-se por apostila, mas a apostila tem conteúdos fornecidos por quem? Pela China ou pela Suécia? A industrialização do ensino globaliza a apostila e reduz a zero o ensino da
história regional-nacional pelo saber adquirido na pesquisa literária e no campo museológico e arqueológico, além de que até as turmas de professorado podem ser dispensadas. E, diante da ignorância, fizemos um trabalho de palestras e de pesquisa em bibliotecas. Resultado? Uma juventude interessada em saber quem é e de onde veio. Então, o que falta no Brasil é uma Escola de verdade que exponha a sua História adequadamente. E como celebramos 200 anos da Revolução Liberal Pernambucana recebi um convite de João Barcellos: Olha, como hoje é 6 de março de 2017, escreve sobre o 6 de março de 1817 para coletânea ´Palavras Essenciais´. Não sei quantas páginas passei em branco antes de colocar o primeiro garrancho. Para o meu amigo e mestre é fácil, ele não sabe o que é página em branco, mas para mim (que prefiro ler e conversar) é uma quase tortura. Mas, vamos lá... Nesse ano de 1817 já existia a Capitania de Pernambuco, justamente em cima de projetos de autonomia política, e quando a região de entre Olinda e Recife já havia adquirido um olhar diferenciado através da cultura holandesa e, então, recebia quase em desembarque maciço o ideal republicano entre missas de religiosos cristãos fora da orientação papal. O que deu origem à possibilidade de separatismo? No litoral carioca-fluminense a Coroa da Casa de Bragança precisava de alimentos e de dinheiro para manter a aparência imperial sem questionar as necessidades do desenvolvimento da capitania. Queria, e pronto. O nordeste enfrentava, então, uma seca de grandes proporções que enfraqueceu a sua produção agropecuária. Mas, “as festas e os salários dos reinóis são parte da política imperial, logo, a periferia social tem que pagar por isso” (escutei Barcellos, dois dias depois, no telefone), e a periferia da colônia eram as capitanias. Os ideais iluministas e a crescente organização de maçons no norte-nordeste tinha suporte na política externa do EUA, até porque o consulado estadunidense sul-americano estava precisamente em Recife, de onde saiam mercadorias diversas para New York quase mensalmente... Aquela riqueza regional alimentou a cobiça da Casa de Bragança que via no eixo Olinda-Recife a árvore das patacas. A situação de exigência de alimentos e dinheiro encheu de raiva a gente pernambucana que, dois séculos antes, já vivera a ´guerra dos mascates´, entre donos de engenho de Olinda e mercadores de Recife. Ou seja: existia uma revolta escondida, um pavio de pólvora a ser aceso por alguma faísca política. Além de que “a gente pernambucana estava ciente da sua força nativa pelo sucesso das ´batalhas de Guararapes´ durante a expulsão dos holandeses. Isso queria dizer que a Família imperial mexia num vespeiro onde zumbia uma ideologia diversa e liberal” [Barcellos, 1993), pronta a se defender da miséria proposta por aquela exigência de recursos para a Coroa. Dois pormenores são importantes neste breve estudo: 1º- A criação, em 1801, do Seminário de Olinda, por Frei Caneca (o pernambucano Joaquim da Silva Rabelo), jornalista e religioso que se tornou um dos chefes da Revolução Pernambucana e da Confederação do Equador, parceiro de Bárbara de Alencar e família.
Bárbara de Alencar e Frei Caneca
“Quem bebe da minha caneca tem sede de liberdade”, dizia ele, executado pela monarquia em 1825, junto de outros revoltosos, enquanto Bárbara era humilhada de prisão em prisão, entre Olinda e Fortaleza. 2º- A criação da República do Crato. A matriarca Bárbara de Alencar e seus filhos criaram a República do Crato dando mais campo político à Revolta pernambucana, e ela mesma assumiu a presidência. Entretanto, se um grupo de religiosos cristãos mais umbilicalmente ligados à Palavra jesuana (como define o filósofo luso Manuel Reis) têm ousadia suficiente para sair à rua e gritar por liberdade, nem toda a sociedade regional entendeu o grito, e a maioria ainda tinha o rei como ungido por ´deus´, logo, um ´santo´ a ser respeitado e seguido em suas ordens.
* E a mulher em combate não é uma deusa? Para se decidir a sair para a luta a mulher passa por obstáculos como machismo e ignorância política, como fez Bárbara de Alencar: ela deu à primeira manifestação republicana do Brasil um estilo matriarcal de olhar o futuro jogando o presente. Em uma nação de projeto sempre adiado nas entranhas do colonialismo, como é o Brasil, ela não é nem será celebrada como deusa da res publica necessária e urgente. *
Foi um grito de desespero de uma gente habituada a ser ela mesma em sua casa, em sua terra. Mas, o rei é como ´deus´, diziam os padres da situação nas missas e peregrinações de casa em casa. Ciente dessa política mística, João VI enviou o Conde d´Arcos, que chefiava a Bahia, para cercar e destruir a revolta republicana. As tropas portuguesas, reorganizadas pelos ingleses logo após a chegada da Família imperial ao Brasil, não eram mais um amontoado de homens em armas. Tinham regimento e disciplina. A revolução republicana pernambucana caiu por não ter recursos nem gente suficiente para se confrontar com a tropa imperial e a não menos imperial Igreja católica. Crato/PE e Fortaleza/CE, 2015