Centro de Estudos do Humanismo Crítico Portugal & América Latina
MANUEL REIS
SOCIALISMO… QUE FUTURO?!
(O Futuro do Socialismo: Debatendo o essencial)
Mnuel Reis
N.B.: Este texto foi projectado e escrito como 3º Livro de uma Trilogia, cujos dois Livros anteriores foram editados a seguir, no seu tempo próprio, pela Estante Editora de Aveiro: ─ ‘Flashes sobre a Esquerda neste Final de Século/Milénio (Crises do PCP e da Modernidade Incluídas) (1989); ─ ‘Não Apaguem as Luzes!...’ (1990).
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Na Ante-Câmara “O impasse do modelo [capitalista de desenvolvimento] é visível nas múltiplas variantes históricas e, nomeadamente, na variante social-democrata, a qual, depois de 1918 e durante muito tempo, se arvorou em alternativa socialista ─ o socialismo democrático ─ e que, podendo e devendo tê-lo sido (porque o socialismo ou é democrático ou não é socialismo), não o foi e antes se converteu na expressão histórica da inviabilidade de um projecto socialista alternativo ao projecto socialista de Estado, entretanto conso-lidado” (Boaventura de Sousa Santos, ‘O Estado e a Sociedade em Portugal (1974-1988), Edições Afrontamento, Porto, 1990, p.88). “As novas formas de multinacionalização do capital vieram demonstrar que a manutenção das relações de dependência é compatível com elevados níveis de industrialização, ao contrário do que anteriormente se cria” (idem, ibi, p.84). Por outro lado, estará doente a democracia política enquanto der guarida ao neocorporativismo e integrar, como compatíveis consigo, as novas formas de privatização do fascismo (cf. idem, ibi, p.83). “O socialismo não é outra coisa senão a globalização da democracia” (idem, ibi, p.99-100). Preparada remotamente, na galáxia da Cultura europeia, pela paradigmática cultura humanista da Hélade e por alguns livros da Bíblia, pelo chamado renascimento carolíngeo na Alta Idade Média, pela questão das investiduras que, através do ‘Dictatus papae Gregorii VII’, assinalou, no séc. XI, o nascimento do Poder civil na sua esfera própria de acção e lançou o gérmen do Estado secular moderno, pelo movimento de fundação das primeiras Universidades na média Idade Média, e, proximamente, pelo Humanismo e o Renascimento dos sécs. XV e XVI, pela Reforma (protestante), bem como pela revolução filosófica, primeiro (de evocar aqui, em primeira linha, a ‘libertas philosophandi dicendique’ ou a ‘separação da Filosofia e da Teologia’ de B. Espinosa), e, depois, científica do séc. XVII, ─ a Modernidade é, por excelência, a Idade do Iluminismo ou da Aufklӓrung, ‘the Age of Reason’ e, por sua mesma essência, a Idade da Secularização da Vida, do Homem e do Universo. (Exigências, afinal, ínsitas no Cristianismo do Ursprung). Indissociável do Iluminismo moderno, o movimento europeu da Secularização configura-se, essencialmente, como um modo novo de estar no mundo e na vida. Iluminismo, Aufklӓrung, Enlightenment instauram, efectivamente, um novo conceito e uma nova prática de homem, dos seus direitos e da sua dignidade. Isto requer coragem e decisão, como advertia I. Kant (no célebre opúsculo ‘Beantwortung der Frage: Was ist Aufklӓrung?’), visto que se trata justamente de ‘pensar por si mesmo’, recusando orientações e tutorias de outrem, recusando, em suma, a menoridade. Trata-se, com efeito, de “uma transformação total da cultura e da civilização em todas as esferas da vida” (E. Troeltsch). (Cf. M. B. Pereira, ‘Modernidade e Secularização’, Almedina, Coimbra, 1990, pp.3-107,109-174, 335-396). Ora isso não se pode perder na Pós-modernidade. Faz parte essencial da construção da Democracia e do Socialismo É a parteira de um Futuro humanizado.
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BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA DO AUTOR
I. OBRAS PUBLICADAS E COLABORAÇÃO DIVERSA (em Revistas e Jornais) PUBLICADAS: ─ O Cristão no Mundo de Hoje (col. ‘Convergências’), Ed. Moraes, Lisboa, 1965. (Livro proibido e apreendido no regime fascista). ─ Para uma Moral Nova da Regulação da Natalidade (fora de col.), Ed. Moraes, Lisboa, 1968. ─ Igreja sem Cristianismo ou Cristianismo sem Igreja?! (col. ‘Linha de Risco’), Ed. Moraes, Lisboa, 1969. (Livro proibido e apreendido no regime fascista). ─ Igualdade Radical para a Mulher (de colaboração com outros); Ed. Liv. Almedina (col. ‘Nova Cultura’), Coimbra, 1970. (Livro proibido e apreendido no regime fascista). ─ Cerca de uma dezena de Artigos na Rev. ‘Estudos’ (órgão do CADC, Coimbra). ─ Vários Artigos no Jornal semanário ‘O Correio de Coimbra’. ─ Vários Artigos na Rev. ‘O Professor’. ─ Vários Artigos e colaboração de índole diversa no Jornal semanário ‘O Povo de Guimarães’. ─ Direitos e Deveres Culturais na inicial e revista Constituição da República e algumas reflexões a propósito na Rev. ‘Escola (h)ora viva!’, da Associação dos Professores de Guimarães (Nº 1, Junho/83). ─ Socialização do e pelo Cinema, no opúsculo comemorativo ‘Cine-clube de Guimarães ─ 25 anos’ (Maio de 1983). ─ Colaboração diversa no Jornal escolar ‘Pontos nos ii’ (da Associação de Estudantes da Escola do Magistério Primário de Guimarães). ─ Algumas Questões sobre a Natureza da Banda Desenhada, no opúsculo ‘Con-siderações em torno da Banda Desenhada’, Círculo de Arte e Recreio, IV Semana BD ─ 1984. ─ Temas e Problemas sobre Educação e Ensino em Portugal 1984/1985 (estudo publicado in Boletim InterEscolas, Abril, Guimarães ’85. ─ Camelo ou Animal Político? (Colectânea de ensaios políticos e culturais). (À espera de publicação). ─ Educação e Ensino/problemas actuais (Antologia de textos de intervenção). (À espera de publicação). ─ Contra a ‘Classe Política’ (textos de intervenção). (À espera de publicação). ─ Pressupostos para a discussão (com boa e positiva conclusão) de Lei de Bases do Sistema Educativo (na Rev. O Professor). ─ Escolaridade obrigatória (na Rev. O Professor). ─Gestão Democrática das Escolas: Uma problemática ainda à espera da solução real adequada. (Na Rev. ‘O Professor’). ─ Temas Pedagógicos/Sobre o Ano Europeu do Ambiente (na Rev. ‘O Professor’). ─ Organização, Administração, Direcção, Gestão das Escolas (Preparatórias e Secundárias: Básicas ─ 2º e 3º ciclos ─ e Secundárias): Nem o Modelo ainda em vigor, decorrente do Dec.-Lei Nº 969-A/76, nem o novo Modelo proposto pela Comis-são de Reforma do Sistema Educativo; mas uma terceira via resultante dos dois. (Na Rev. ‘O Professor’). ─ Crítica do ‘Acordo Ortográfico’ do Rio, Livraria Estante Editora, Aveiro, 1989. ─ FLASHES sobre a Esquerda neste final de século (milénio)/(Crises do PCP e da Modernidade incluídas), Livraria Estante Editora, Aveiro, 1989. ─ Não apaguem as Luzes!... Livraria Estante Editora, Aveiro, 1980. ─ Estudos de Psico-Pedagogia e Política Educativa, Livraria Estante Editora, Aveiro, 1990. II. TRADUÇÕES: ─ A Condição de Estudante de Catherine Valabrègue. Com prefácio do tradutor. Ed. Liv. Almedina (col. ‘Nova Cultura’), Coimbra. ─ A Crise do Catolicismo de J.L. Aranguren. Com posfácio do tradutor. Ed. Liv. Almedina (col. ‘Nova Cultura’), Coimbra. ─ O Movimento Estudantil e a Escola do Capitalismo de autores vários. (Organi-zação da antologia e tradução com a colaboração de Mendes Lucas). Ed. Liv. Almedina (col. ‘Nova Cultura’), Coimbra. ─ História de Portugal de Albert-Alain Bourdon, Ed. Liv. Almedina, Coimbra.
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─ Linguagem e Conhecimento de Adam Schaff. Ed. Liv. Almedina, Coimbra. ─ Filosofia da Linguagem de J. Sumpf e outros. Ed. Liv. Almedina, Coimbra. ─ O Desafio Tecnológico de Sérgio Cotta. Ed. pela Col. ‘Studium’, Coimbra. ─ O Socialismo Crítico de Hoje ─ Teses de ‘Il Manifesto’ do Grupo ‘Il Manifesto’. Ed. Afrontamento, Porto. (Livro proibido e apreendido no regime fascista). N.B.: Não se mencionam aqui, por imperativo de brevidade, outras produções nas áreas da Música, do Teatro, da Educação e Ensino, da Sócioeconomia e do Marxismo (umas já publicadas, outras aguardando publicação).
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DEDICATÓRIA: A todos os que ainda se sentem apaixonados pela Humanidade, ─ a começar Pelos indivíduos humanos Singulares e concretos!
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ÍNDICE Bibliografia Sumária do Autor Dedicatória Índice O Futuro do Socialismo: Debatendo o essencial Orientações Preambulares Postulados Histórico-Antropológicos Algumas Teses Essenciais: A ─ A seguir à derrocada do ‘socialismo real’ B ─ Harmonizar o individual e o social… mas sujeitos humanos irredutíveis C ─ Consequências da nova ciência da cognição D ─ Plano e Mercado E ─ O Socialismo do futuro F ─ Nem voluntarismo nem determinismo G ─ Discernimento é preciso, para construir o Socialismo do futuro H ─ O pensamento holístico da Pós-modernidade I ─ Condições de preservação da Democracia J ─ Descentralização, regionalização e o básico princípio de Subsidiariedade K ─ Um velho diferendo com os Ingleses L ─ Sobre o fio da navalha M ─ ‘O Socialismo tem futuro, porque continua a ser um ideal’ Epigrama Nota bibliográfica
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O FUTURO DO SOCIALISMO:
Debatendo o essencial
“Se a revolução não é para mudar o interior do homem não me interessa” (Che Guevara). “… E a utopia da justiça social, embora difícil, terá de permanecer sempre como objectivo, para uma sociedade mais humana” (Pe Constantino Alves). “Não, eu não posso recomendar a vossa sociedade como ideal para a transformação da nossa; dada a riqueza de desenvolvimento espiritual que o nosso país adquiriu na dor durante este século, o sistema ocidental, no seu estado actual de esgotamento espiritual, não apresenta qualquer atractivo”. “Pusemos demasiadas esperanças nas transformações político-sociais e notamos que nos tiraram o que tínhamos de mais precioso: a nossa vida interior. A Leste, é a feira do Partido que a calca aos pés; a Oeste, a feira do Comércio: e o que mais apavora nem é o facto do mundo estilhaçado, é o facto de os principais pedaços estarem atingidos por uma doença análoga” (Alexandre Soljenitsyne aos estudantes da Univ. de Harvard, em 8.6.1978: in ‘O declínio da coragem’, p.33; p.49). Com a posterior Perestroika soviética e tudo o que se lhe seguiu até à data, procedeu-se à necessária e suficiente crítica e demolição das sociedades do Leste e do chamado ‘socialismo real’. O que agora se espera, se não a curto pelo menos a médio e a longo prazos, é que as referidas sociedades não sucumbam à superficial ‘lei do pêndulo’ e não embarquem na nau nem se amoldem às fôrmas do ‘way of life’ das sociedades ocidentais. Com efeito, as actuais sociedades do Ocidente não podem servir de modelo. Elas estão corroídas até à medula pela indisciplina (antes de tudo, cívica) e pela falta de autodomínio (por ex., na estrada…); pelo
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individualismo d’abord e pela ambição individual desmedida, expressa nesse desejo constante de possuir cada vez mais. Nestas sociedades, a maquiavélica soberania absoluta de cada Estado (a Força acima do Direito, como regra) foi simplesmente substituída (sem conversão) pelo chamado Estado de Direito (supostamente o Direito acima da Força), onde, não obstante, os esquemas jurisdicistas d’abord permitem perfeitamente que tanto o sim como o não possam ser defendidos e vencer em Tribunal, porque afinal o que prevalece é o poder económico. São sociedades supostamente ‘pragmatizadas’, sem utopias nem ide-ais susceptíveis de consolidar e fortalecer os laços socais que devem unir e cimentar os indivíduos numa Sociedade adulta e harmónica. Por isso, os países industrializados do Ocidente são como que uma ilha, em confronto com o resto do mundo!... À procura da sua ajuda… “O desmoronamento dos regimes do Leste constitui o grande espectáculo mediático dos últimos meses [Inverno de 1989 e Primavera de 1990], o que deu grande visibilidade pública à falên-cia dos mecanismos de regulação social em que tais regimes assentavam. Em contraste, o Ocidente deixou de ser notícia, as relações sociais capitalistas pareceram mais naturais do que nunca e os seus efeitos menos recomendáveis foram facilmente ocultados ou desculpabilizados de acordo com o princípio de que não há bela sem senão ou de que não há rosa sem espinhos” (Boaventura Sousa Santos, in ‘JL’, 10.7.90, p.7). Entretanto, um grupo de alemães do Leste, adultos e jovens, depois de faze-rem a experiência da sociedade ocidental, após a queda do ‘Muro de Berlim’, desabafavam como segue: A Democracia deveria consistir, não em cada um fazer o que quiser, mas, outrossim, em fazer cada um o que é melhor pa-ra a maioria!... “O grande desafio que se coloca hoje à humanidade é encontrar uma alternativa ao capitalismo ─ que, para a fartura de uns, exige a pobreza de muitos ─ e ao socialismo estatocrático. Não se trata de encontrar uma ‘terceira via’, uma vez que não há alternativa para a supressão da pobreza em que vivem duas terças partes da humanidade fora da sociali-
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zação dos bens da terra e dos frutos do trabalho humano. “Liberdade não é sinónimo de livre concorrência, nem começa a de um onde termina a do outro. Ser livre é reproduzir liberdades ─ o que é muito diferente de acumular lucros, ou aceitar a ditadura do partido único” (Frei Betto, in ‘Jornal Fraternizar’, Agosto/Setembro de 1990, p.3). Outrora, foi o deus Baal e, perante o baalismo generalizado, nasceu em Israel o monoteísmo teológico (o Javismo) como a solução existencial que revelou o único caminho da libertação e da vida e promoveu a unidade invencível, porque transformada, do Povo. Hoje, é o deus Capital e, perante ele, o religioso monoteísmo teológico das Igrejas cristãs, das Sinagogas judaicas, ou das Mesquitas islâmicas já não tem capacidade para alterar as situações e modificar a situação geral, deixa tudo na mesma: … essa religião da vida quotidiana que é o sistema capitalista ‘liberal’, o ‘neobaalismo’!... ─ Em vez desse sistema, ideológico e religioso que devora as maiorias pobres sem nunca se saciar, é, pois, imperioso e urgente criar outro que garanta a partilha dos bens e o respeito pelas pessoas. (Cf. ‘Jornal Fraternizar’, Agosto/Setembro de 1990, pp.1216). Quanto à ẏbris de liberdade do mercado capitalista… só há uma terapêutica certa e eficaz: a colectiva planificação democrática da Economia política. A objectividade cognitiva das ciências sociais e/ou humanas e a das ciências da natureza não são equivalentes. Nessa célebre polémica, estamos com Adorno e contra Popper. As posições de Popper e quejandas, em tal questão, enfermam ainda de determinismo positivista: tudo se passaria como se o processo do conhecimento fosse garantido tão-somente por uma objectividade institucional, expressa e assegurada pela linguagem comum e pela comunicação entre cientistas, onde não mais seria possível discernir enunciados científicos em confronto com preconceitos. As posições de Popper, nessa questão, constituem um vero síndroma de social-darwinismo teórico, o qual pressupõe erradamente que os simples e supostos mecanismos automáticos dos mercados, supostamente subtraídos ao controlo
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social, vão trazer consigo, naturalmente, na bandeja a livre troca e não o fascismo, ─ quando, afinal, foi na base da livre troca que se operou a expansão mundial do capitalismo e nasceram e cresceram os impérios coloniais; e à livre troca se acomodaram bem oligarquias e absolutismos de todos os tempos… Tudo tem a sua escala própria e adequada. Para ser observado, identificado, ou para sobreviver… Desde os infinitamente pequenos, passando pelo meso-universo humano, até aos infinitamente grandes. Desde a plantação de milho, passando pelas ninhadas de leitões, até ao número de filhos do casal da contem-porânea família nuclear. No mantenimento e prossecução da corrente da vida, vemo-los oscilar entre um limiar de sobrevivência e a performance de um óptimo vital. A própria Democracia representati-va tem a sua escala própria e adequada. O divino Platão já o adivinhava ao estabelecer uma proporção numérica-limite máximo entre governante e governados. Se a Democracia representativa não for completada e corrigida com a Democracia directa, ela entra em decadência e corrompe-se; os governantes afastam-se irremediavelmente dos governados, como muito bem observou Schumpeter. De igual modo, pretender construir o socialismo num só país e ─ pior ainda… ─ pelos enviesados e tortuosos cami-nhos do despotismo centralista de Stáline constitui, antes de mais, um grave erro sócio-histórico de escala. Mutatis mutandis, pode isso evocar-nos a loucura de Micchellangelo a intimar à estátua do seu Moisés que falasse!... ─ A estátua não falou…
Alguns pontos estruturais e cruciais, que não se poderão esquecer nem obliquar, no actual balanço necessário e indispensável entre Socialismo e Capitalismo, ou seja, no momento, que se fez acompanhar tanto da queda significativa do ‘muro de Berlim’ como de um generalizado e irreprimível desejo e ‘programa’ de Paz mundial, no momento ─ dizíamos ─ da derrocada (que a Grande História adivinhava) do ‘socialismo real’ e do implicado destroçamento da ideológica e dogmática cartilha, dita ortodoxa, do marxismo-leninismo, e numa situação, enfim, em que se torna imperiosamente necessário e urgente redefinir perfil e projecto novo para o Socialismo.
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ORIENTAÇÕES PREAMBULARES Tratar-se-á aqui de delinear Grandes Arquitraves a que o imperativo categórico da (objectiva e universal!...) boa e justa e bela vida (humana) tem de prestar atenção e obedecer e respeitar escrupulosamente, sob pena de não passarem de mentiras e hipocrisia, todos os ditirambos entretecidos em torno da defesa e segurança da espécie, da sobrevivência dos seres humanos e da defesa e protecção da qualidade de vida, erguida esta, por vezes, como bandeira de não se sabe o quê para não se sabe quê… 1. ─ Em defesa intransigente (e não mitificada, ao mesmo tempo) da Natureza. Eis a primeira grande arquitrave da nova concepção do Universo, da nova Weltanschauung, do novo e nosso (volens, nolens…) humano estar-no-mundo. A Madre-Natureza ainda (!...) está aí, connosco no seu seio e para além de nós, como a origem (Ursprung) e o primeiro princípio da Sabedoria. Obviamente Natureza também nós… e, por isso mesmo, integração orgânica dos humanos na Natureza. O imperativo categórico da criação (acto criador), que acompanha os seres humanos qual sua sombra ou sua marca de origem, não deve levar os Humanos ─ à força de sentirem como distinta e autónoma e omnipotente… a sua Racionalidade, o seu Espírito ─ a construir indefinidamente babéis de artefacta em detrimento do natural e da Natureza que, por essa via, vão sendo degradados e destruídos (inexoravelmente, naqueles casos em que não há metabolismo de reconstituição nos circuitos…). A Ecologia e as ciências do Ambiente não são, hoje, um luxo… Elas constituem um imperativo categórico de preservação e defesa da vida e dos respectivos circuitos vitais! 2. ─ Em defesa dos ritmos naturais da vida e dos eco-sistemas. É o segundo princípio de uma correcta e multividente gramática da vida. Quantos ‘stresses’ e insanidades e patologias estruturais advieram à nossa actual civilização ocidental-europeia (em vias de apressada mundialização…) devido às velocidades excessivas, à violentação dos processos naturais, à volência sistemática sobre os ritmos naturais dos processos vitais nos clássicos três reinos da Natureza. Quantos equilíbrios se refariam, quantos mal-estares e insanidades se curariam (ou sobre elas se estaria de prevenção!) se os Humanos a uma escala generalizada e, alfim, universal, decidissem respeitar e cumprir os ritmos naturais de estrutura da Vida. ─ Também aqui, não obstante, se deve advertir que a Natureza, só por sê-lo, não é necessariamente boa; e que há, sem dúvida, situações e processos em que é mesmo preciso corrigir a Natureza. Mas nada de confusões (sobretudo, voluntárias…) entre o que é ‘normal’ e o que é ‘anormal’ (devendo a norma, ontológica e ética, ser dialecticamente assumida pelos Humanos em confronto com a Natureza e a partir dela). Na verdade, todos os empreendimentos e processos que rejeitam ou defraudam os ritmos naturais apresentam um cheiro a roubo e um sabor a usura. ─ Exactamente o contrário dos quadros ‘viventes’ de Vincent van Gogh (as suas ‘naturezas mortas’ volvem-se em naturezas vivas!), os quais, após a sua morte, foram, sintomaticamente (toda a revolução quebra a rotina…), primeiro depreciados e não vendidos, para depois serem adorados (e pagos ao mais alto preço!...). É que, afinal, criar não é imitar…é muito mais do que isso. Eis por que se aproxima muito mais da Natureza o que cria do que aquele que se limita a imitá-la.
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3. ─ Em defesa do planeamento familiar, em defesa da planificação democrática da população (do seu quantum e do seu quale). A planificação demográfica (da natalidade e da população) constitui, hodiernamente, um ético imperativo categórico dos Seres Humanos como tais, justamente para que eles não mais sejam tomados ou se deixem tomar como instrumentos (ou meios…) de outros… por outros controlados, para que eles, em suma, não sejam (pelo menos, consciente e expressamente) instrumentalizados pelos que detêm o poder económico ou por aqueles que se guindaram ao poleiro da orientação e direcção políticas (governamentais ou não). Decididamente, o filho que se decide (quando isso, felizmente, acontece…) procriar, nunca deve ser justificado, na consciência dos pais, como mais uma força-de-trabalho de que se carece para sobreviver!... Sabe-se, hoje, de ciência arduamente adquirida e certa que nenhum ser humano tem o direito de instrumentalizar outro ser humano, ─ nem os pais relativamente aos filhos, nem os mestres em confronto com os discípulos. (E acrescente-se: nem os governantes em confronto com os governados!...). Pode perguntar-se por quê a insistência na necessidade de planeamento da natalidade e de planificação da população. E, por ora e aqui, responder-se-á, sumariamente, da seguinte forma: Pela negativa, porque os seres humanos não são susceptíveis de funcionarem, correcta e adequadamente, como objectos ou puros instrumentos, como produtos ou ─ passe a tauto-logia ─ como mercadorias no mercado. A pessoa humana nunca pode ser reduzida a coisa, ─ nem mesmo na acepção elástica em que Martin Heidegger emprega o vocábulo ‘coisa’ (das Dingsein: o ser-coisa; das Dingheit: a coisidade da coisa; das Dinghaft: o carácter coisal da coisa) nas reflexões que faz em ‘A Origem da Obra de Arte’ (Edições 70, Lisboa, 1990). Assim pois, aí mesmo ─ no patamar do mercado ─, face a essa realidade que dá pelo nome de Seres Humanos, o plano ─ ter-se-á de afirmá-lo sem ambiguidades ─ opõe-se diametralmente ao mercado e vice-versa. Plano significa e implica aí, por conseguinte, libertação e busca da identidade; mercado, a alienação e a troca que confunde. Pela positiva, é preciso declarar e difundir em manifesto, por toda a parte, que são as próprias sensatez e honestidade, as mais elementares, que impõem, contem-poraneamente, e de modo cada vez mais generalizado, o imperativo categórico que manda que os seres humanos não sejam utilizados como meios dos fins estabelecidos por outrem. O que significa e implica, manifestamente, que eles não devem ser, em suma, convertíveis em objectos, convertíveis em coisas, sujeitas estas à natural manipulação e controlo por parte dos Humanos. Em resumo, esse imperativo categórico estabelece, hodiernamente, uma clara distinção ─ que se pretende inviolável e inviolada ─ entre Pessoas e coisas. (Não há pessoa sem a substância, o ‘prósopon’, mas, igualmente, sem a ‘persona’, a máscara, o carácter; quanto às coisas, elas são o que os gregos chamavam ‘khrémata’, de onde procede a palavra crematística para designar a mais adulterada economia da Pólis e que já o próprio Aristóteles impugna justamente). Onde radica a sua racionalidade e justificação estruturante o referido imperativo categórico? Precisamente no ‘mystérion’ que é cada ser humano. Resumindo esta problemática: Eu não posso conhecer (mesmo em sentido bíblico…) outro ser humano até à exaustão. Exterioridade e Interioridade não se exprimem reciprocamente e em movimento-relação biunívoco. Eu não posso conhecer cabal e completamente a alteridade do outro, justamente porque, sendo, também ele, um centro de consciência, ele sabe que sabe. Por isso mesmo, ele é também absolutamente inconvertível em objecto, em coisa. ─ De ricochete, eis ainda por que o Reconhecimento (activo e passivo, dialecticamente) do outro ser humano constitui a base última do próprio princípio da objectividade (possível), na sua frontal acareação com a subjectividade do conhecimento humano.
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Assim, pois, a distinção e a contraposição entre Pessoas e coisas encontram o seu fundamento na própria transcendência intrínseca dos seres humanos. Esta transcendência intrínseca até pode ser explicada e compreendida, quer pela noção de noosfera, contraposta à biosfera, na óptica sistémica de Teilhard de Chardin (com o seu ponto Omega da Divindade a funcionar como supremo pólo de atracção e centro de convergência de toda a Evolução cósmico-biopsíquica), quer pela noção de noosfera, igualmente contraposta à biosfera, na óptica analítica e agnóstica de Edgar Morin. Ao mesmo tempo, é essa mesma transcendência intrínseca (dialéctica e dialógica, objectiva e subjectiva) que funda, epistemicamente, o vero conceito de noosfera e lhe atribui conteúdo e significado substancialmente diferentes em confronto com o conceito de biosfera. Com efeito, a distinção e a contraposição de Pessoas e coisas implicam e postulam, por exemplo, que o direito de propriedade (individual-individualista) não prevaleça, na sua dialéctica afirmativa-exclusiva, sobre os (universais) direitos humanos tout court. A contraprova do que afirmamos pode ver-se, por exemplo, nas vicissitudes por que tem passado a Democracia norte-americana. Na verdade, a prototípica (assim querida e desejada já pelos pioneiros imigrantes do ‘Mayflower’) democracia norte-americana tem vindo a corromper-se e a degradar-se, crescentemente, na sua essência porque a institucionalizada democracia representativa não tem sido (pelo menos, periodicamente…) corrigida pelas originais Assembleias legislativas populares locais; porque, em suma, o princípio da propriedade (individual-individualista) e o poder dos grandes lobbies económico-financeiros (a ele ligados umbilicalmente) têm prevalecido realmente sobre os direitos humanos universais e o correspondente imperativo categó-rico de emancipação-libertação dos oprimidos e explorados. (Seja aqui relevado o mag-nífico filme de Patrick Watson, ‘Luta pela Democracia’, designadamente o 2º episódio passado na RTP, canal 1, em 26.7.90). 4. ─ A concepção antropológica e gnóseo-epistemológica, que vimos esboçando, tem a sua expressão hodierna (pós-moderna e pós-modernista, dir-se-á também) no seguinte postuladoprincípio concernente à problemática social, ligada, esta, à velha questionação e confronto entre capitalismo e socialismo. O postulado-princípio: Face a um anterior programa (modernista) de igualdade social supostamente uniforme, o que hoje salta para a ribalta e vemos em sua substituição é um programa de igualdade de opor-tunidades sociais, que deve dirigir-se a todos os cidadãos sem excepção (a não ser os que já as tiveram…). Funda-se esta mudança de rota ─ há que adverti-lo ─ na nova mundividência em que o indivíduo-pessoa nos reaparece como um absoluto metafísico, insusceptível, em rigor, de qualquer manipulação ou controlo, insusceptível de qualquer instrumentalização. As origens próximas e remotas desta mundividência po-dem encontrar-se, v.g., no personalismo do francês Emmanuel Mounier (séc. XX), no judeu holandês (de ascendência portuguesa) do séc. XVII, Bento de Espinosa, entre outros mensageiros da tradição judeo-cristã, e bem assim no Cristianismo autêntico dos primeiros três séculos da era cristã. Com efeito, essa concepção antropológica e gnóseo-epistemológica impõe, sem ambiguidades, que, a haver Socialismo e projecto de toda uma Sociedade socialista, eles sejam edificados a partir da base, do querer e saber dos indivíduos-pessoas que, mediante processos e meios de cooperação inter-individual e de solidariedade entre as pessoas, descobrem a dinâmica e a importância da esfera social e, por vias sempre democráticas e plebiscitadas, procuram resolver globalmente (à escala de toda uma sociedade) os seus problemas, satisfazer as suas necessidades e preencher as suas aspirações; jamais a partir do vértice, por imposição estrutural de qualquer iluminado ou grupo de iluminados que, argumentando com o suposto determinismo histórico e com as supostas leis de necessidade sócio-histórica, se arrogasse em
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nome da suposta objectividade (do conhecimento ou histórica) a sapiente posse exclusiva de qualquer projecto global, o qual, para ser concretizado, dispensaria a intervenção activa, a participação e a colaboração dos indivíduos-pessoas que, por tais descaminhos, houvessem deixado de ser cidadãos (ou porque não resistiram às condições superiormente impostas, ou porque, amigos da servidão voluntária, facilmente se resignaram à condição de marionetas...). 5. ─ Filosofia? Precisamos muito dela; e ainda por muito tempo… Os que, na suposta esteira de Marx e do marxismo, chegaram a pressupor, como dado irrecusável e líquido, que a Filosofia havia sido superada e, como que por efeito dum vendaval, er-radicada dos humanos caminhos do Saber, enganaram-se redondamente. Na verdade, quando Marx insta à transformação do mundo e faz apelo à superação da filosofia, não pode esquecer-se que é sobretudo a idealista filosofia clássica alemã que ele tem em vista, e não, por exemplo, e obviamente, aquela mesma filosofia que paira ou irradia da sua própria obra. A instauração do que, com A. Gramsci, podemos justamente chamar a filosofia da praxis (ultrapassando todos os dualismos metafísicos e antropológicos) pode ver-se expressa e condensada na XI Tese sobre Feuerbach: "Os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo de modos diversos; o que importa, porém, é transformá-lo”. Assim, por conseguinte, pode até afirmar-se que a Filosofia (crítica) da praxis inaugura mesmo um novo nível de conhecimento, o chamado saber ideológico, o qual obrigará a repensar as relações tradicionais entre religião, filosofia, ciência e senso-comum. Sem essa nova dimensão do saber ideológico, proporcionada criticamente pela filosofia da praxis, como seria possível empreender a crítica (parcial e global) da Modernidade no actual advento (acelerado) da Pós-modernidade?! Exemplos, tê-los-íamos aos montes… Precisamos, pois, de fazer a apologia da Filosofia. Como dizia Bataille, a experiência do sagrado é, substancialmente, uma ‘experiência interior’; e essa experiência habita a experiência (quotidiana) do sensível e a linguagem da arte. Não se pode nem deve confundir a perspectiva mecanicista da ciência com a perspectiva humanista. Aqui, como é óbvio, interpõe-se a filosofia (e a póiesis) com toda a legitimidade. “De facto, cabe à Ciência explicar o mundo. Mas nós devemos também compreendermo-nos a nós mesmos. Não é a Ciência, que nós próprios produzimos, que explicará a nossa decisão de nos confiarmos a ela e à razão. A tarefa da filosofia é a de compreender o acto pelo qual nós optámos pela ciência” (Jean Starobinski, cit. in ‘Expresso-Revista’, 21.7.90, p.61). Entre os sonhos da razão e os ‘sonos da razão’ foi baloiçando o século das Luzes. Estruturaram-no uma série de dicotomias: aparência/realidade; sensação/reflexão; razão/corpo; máscara/rosto; belo/sublime… Ora, para explicar e compreender a Modernidade, é preciso advertir que toda a transparência tem o seu obstáculo e toda a confissão dissimula a sua máscara. É o que procura fazer, afinal, o médico pensador suíço Jean Starobinski, analisando a escrita de Rousseau, na sua obra ‘Jean-Jacques Rousseau, la Transparence et l’Obstacle’. Precisamos, pois, de fazer hoje a apologia da Filosofia, mas lúcida e multidisciplinarmente, sem de modo nenhum abandonar os ensinamentos da filosofia da praxis. Essa nova dimensão do saber ideológico, criticamente carreada pela filosofia da praxis, conduziu a Filosofia à revisão crítica das suas relações com a Ciência, o Senso-comum, a própria religião ou o saber teológico. Estamos, pois, em demanda do que, com Boaventura Sousa Santos e João Maria André, se pode chamar uma nova ‘geografia dos saberes’ (cf. v.g., o art. de João Maria André, Filosofia, ciência e senso co-mum, in Rev. ‘O Professor’, Junho de 1990, pp.34-44). E nesta nova óptica, uma das problemáticas-chave que assoma, desde logo, à ribalta é, sem dúvida, a dos níveis do conhecimento. (A isso se entrega aí João Maria André: à questionação, com que até concordamos no essencial; e a uma solução de que discordamos…).
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Esquissando o painel da questionação: Abordagem epistemológica dos níveis de conhecimento; abordagem histórico-sociológica dos níveis de conhecimento. Registe-se que essas duas abordagens constituem duas dimensões de uma única e a mesma realidade. Registese ainda ─ para esclarecer melhor a questão ─ que são históricas as raízes da actual configuração dos níveis de conhecimento (cf. idem, ibi, pp.34 e ss.), designadamente dos quatro níveis tradicionais: teológico, filosófico, científico, senso-comum. Deixe-se já observado que o senso-comum, face à mecanicista ciência clássica moderna, se apresenta, antes, como desconhecimento, como obstáculo epistemológico, na designação de Gaston Bachelard (o epistemólogo da ciência moderna, por excelência, sobretudo na sua bem conhecida obra ‘la Formation de l’Ésprit Scientifique’, Paris, J. Vrin, 1975). Os referidos quatro níveis de conhecimento estão perfeitamente identificados e autonomizados a partir do séc. XVII, depois de o universo epistémico e cultural do Ocidente ter sido preparado pelo nominalismo do inglês G. de Ockham (reivindicação do primado da intuição sensível de existentes singulares), pela filosofia natural panteísta de G. Bruno, pelo célebre episódio de Galileus Galilei que teve como consequência a autonomização, primeiro, do saber filosófico (Razão natural suplantando os supostos dados da Fé ou razão revelada) e, depois, do saber científico propriamente dito. Saliente-se, ainda, como consequência, em última análise, a substituição do primado da Razão teológica (totalitária) pelo moderno primado da Racionalidade técnica, em busca, também esta, do seu pendor e feição totalitários. Passemos, agora, ao confronto directo entre conhecimento filosófico e conhecimento científico. São diferentes as caminhadas que estas duas espécies de conhecimento vão percorrer na Idade Moderna. O conhecimento científico pode considerar-se perfeitamente formado e balizado a partir da cartesiana distinção entre ‘res cogitans’ e ‘res extensa’: os seus balizamentos estão claramente definidos no campo da ‘res extensa’. Assim, ele pode conhecer e medir-se por um padrão uniforme, ao longo de toda a Idade Moderna: manter-se-á configurado pelo primado da razão técnica. Advirta-se, entretanto, que aquela distinção entre ‘res cogitans’ e ‘res extensa’ não pode deixar de ser operada por um filósofo, enquanto tal. Por isso também a caminhada do conhecimento filosófico vai ser sulcada por um rosário de vicissitudes ao longo da Idade Moderna. Essas vicissitudes e desgarramentos começam com o racionalismo cartesiano, onde, apesar de tudo, razão filosófica e razão científica mantêm ainda, ambas, igual legitimidade perante a demanda do conhecimento verdadeiro. Passam pelo criticismo kantiano, onde se cava a brecha entre física e metafísica, entre conhecer e pensar, entre razão teórica e razão prática, de tal sorte que são feridas de morte precisamente as aspirações científicas ou de busca da verdade da razão filosófica. Passam, depois, pelo sistema hegeliano, com a reivindicação ─ no pólo oposto ─ da vocação totalitária do conhecimento filosófico, o qual pretende subsumir e integrar todos os outros, inclu-indo o conhecimento científico. Passam, de seguida, pelo positivismo de Augusto Comte, com a reivindicação do primado absoluto do conhecimento científico ─ também ele positivista ─ e a consequente erradicação de qualquer aspiração filosófica a um conhecimento metafísico. Passam, depois, pelo pensamento marxiano e marxista que procura instaurar a filosofia da praxis, de onde brota, como é sabido, um novo nível de conhecimento, o saber ideológico (que toma consciência de si). Passam pela metodologia e pelo pensamento estruturalistas do mestre-escola Lévi-Strauss e de epígonos geniais seus raiando metafísicas puramente teóricas como Michel Foucault. Pas-sam pelas correntes (a que atribuímos, aqui, carácter de estação no percurso) existencialista à Sartre da 1ª fase, e historicista à Dilthey e raciovialista à Ortega y Gasset. Deve aqui deixar-se registado que Dilthey, na sua ‘Crítica da Razão Histórica’, o que ele pretende essencialmente é impugnar o reducionismo tradicional das Ciências às Ciências da
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Natureza e afirmar uma clara e inequívoca distinção entre Ciências da Natureza e Ciências do Espírito, defendendo, para o efeito, uma dimensão histórica original e radical da Vida humana. Lição ainda bem actual esta, para todos aqueles que, a pretexto de embarcarem sofregamente nos novos paradigmas epistemológicos, incorrem, por uma forma ou por outra, num novo reducionismo, simétrico, que os leva à subsumpção epistemológica (sabendo-o ou não, explicitamente) das Ciências da Natureza por parte das Ciências sociais e/ou humanas. E chegam essas vicissitudes e desgarramentos ao novo marco-patamar da chamada Hermenêutica, a qual surge, generalizadamente, nesta segunda metade do séc. XX e depois de esgotada a moda estruturalista, como resultado de três factores importantes confluentes, a saber: a reabilitação do conhecimento teológico (e sua influência na filosofia) por obra, primeiro, do Racionalismo bíblico que teve lugar já nos sécs. XVII e XVIII, e, depois, decisivamente, por obra da ‘Formgeschichtliche Methode’ que surgiu depois da Primeira Guerra Mundial, na Alemanha, com M. Dibelius e R. Bultmann, e bem assim por obra da subsequente e contemporânea ‘arte de interpretação’ dos textos bíblicos; os diversos e diferenciados discursos artísticos e de crítica artística; as tendências da filosofia europeia formuladas a partir das raízes fenomenológicas, lançadas por E. Husserl e repensadas por M. Heidegger e, mais criticamente, por Merleau-Ponty1 ou ainda a partir dos dados da existência, como, já no séc. XIX, no pessimismo de Schopenhauer e no existencialismo de Kierkegaard, e, no séc. XX, em Sartre, Jaspers, Gabriel Marcel, Unamuno. No horizonte do paradigma da moderna ciência clássica que, segundo Gaston Bachelard, se constrói em demanda das substâncias quantificáveis, apesar de e contra o senso-comum, qual vem a ser o panorama da filosofia? ─ Ou se configura como reflexão meramente epistemológica sob as influências do positivismo e do neo-positivismo lógico; ou como discurso crítico-reflexivo sobre a actividade humana, na linha do marxismo; ou, ainda, como discurso crítico-interpretativo pluridimensional, sem objecto específico próprio, nos mais variados sectores da acção humana. Ora, não pode deixar de observar-se que, em todas essas modalidades, é o próprio acto de filosofar que está a perder a sua autenticidade e a alargar, cada vez mais, o seu declínio. Neste contexto, precisamos hoje de questionar radicalmente o próprio modelo (tradicional) de Racionalidade, não apenas neste ou naquele nível de conhecimento, mas na sua globalidade; precisamos de tirar o máximo partido possível da crise mani-festa da configuração dos níveis do conhecimento, a que aquele modelo dava cobertura. Em suma, é preciso recompor e reconstruir, de fond en comble, uma nova ‘geografia dos saberes’. A derrocada do modelo tradicional de Racionalidade (moderna), que distinguia e separava, em compartimentos e estratos estanques, a religião, a filosofia, a ciência e o senso-comum, pode provocar-se e urgir-se, desde logo, a partir do conceito de paradigma científico, na esteira de Thomas Kuhn e sua obra (edição inicial) de 1962, ‘Estrutura das Revoluções Científicas’; a partir, pois, da concepção paradigmática da evolução das ciências, onde as noções de ciência normal e de revolução científica acentuam justamente mais as descontinuidades (e, por via disso, a religação ‘subterrânea’ de religião, filosofia, ciência e senso-comum) do que as continuidades. ………… 1-
Nesta óptica, pode ler-se, com muita pertinência e interesse, a tese de mestrado do nosso Amigo Alfredo Reis (supomos que ainda inédita para o grande público), na Faculdade de Filosofia de Coimbra, titulada ‘Da Psicologia à Fenomenologia: o Percurso da Forma’ (1988); muito particularmente, o cap. III: Uma tentativa de síntese (entre as duas tradições: a explicativa e a compreensiva): Merleau-Ponty (pp.122-161). E ainda o seu artigo pub. em ‘O Professor’, Julho de 1990 (pp.37-52), e Agosto de 1990 (pp.58-66), onde A. Reis se pronuncia em defesa de uma dualidade de método, pelo menos operacional, entre ciências da natureza e ciências sociais e/ou humanas, numa linha convergente com o que nós próprios temos vindo a defender. Na verdade, a acção (humana), com as suas marcas de
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intencionalidade e de finalidade, tributária da liberdade, é efectivamente irredutível ao conceito de causalidade (mecanicista), tributário da necessidade e do determinismo.
Essa derrocada pode ainda provocar-se e urgir-se a partir das análises (na linha marxiana) sobre a natureza da ideologia e sua articulação com a filosofia, a ciência, o senso-comum e, desde logo, a própria religião. Com efeito, Ideologia não é, tão-só, o erro, ou seja, o contrário do conhecimento científico (como logo se presume); ela constitui também a moldura em que se configura o conhecimento científico, ─ o que tem lugar, desde logo, na área (mais vulnerável…) das ciências sociais e/ou humanas, mas não deixa de ocorrer também na área (supostamente menos vulnerável…) das ciências exactas e físico-naturais. Cumulativamente (e decorrentes dos dois factores anteriores), podem também provocar-se e urgir-se a ruína e a queda do modelo tradicional de Racionalidade a partir da impugnação da famigerada neutralidade do conhecimento científico, no terreno (comum) da história e da sociologia das ciências. E facilmente se dará conta de que se vem aqui a pôr em causa, mediante a problemática inicialmente asséptica da objectividade e neutralidade do conhecimento científico, precisamente o problema da articulação estrutural entre o saber e o poder. A produção do conhecimento científico entra assim, efectivamente, nos circuitos (múltiplos) do Poder!... Quanto mais não fosse, no circuito das relações económicas que têm lugar nas sociedades contemporâneas, visto que os cientistas são pagos pela sua actividade profissional… Precisamos, por conseguinte, de fundar uma nova geografia dos saberes, que ultrapasse a noção tradicional de verdade como articulação de um sujeito e um objecto, a qual, encarada de forma estática e atomizada, escamoteava e escondia e continua a escamotear e a esconder precisamente a relação práxica entre o saber e o poder e a sua (institucionalizada) vinculação recíproca. Para superar o modelo tradicional de Racionalidade (moderna), é preciso, igualmente, mudar a correspondente imagem global que temos da realidade. Nisto estamos ainda de acordo com João Maria André (art. cit., p.42). Só que essa imagem global não se muda de supetão enquanto a realidade permanece inalterada ou quase; a mudança daquela vai sendo feita à medida que esta evolui… E mudar o real e transformar o mundo é mesmo esse o nosso objectivo primordial e primacial a não perder de vista!... Mas tem pertinência e interesse o que JMA escreve sobre a mudança dessa imagem global: “É que essa imagem é consequência duma ruptura profunda entre o homem e a natureza instaurada no século XVII e de que ainda somos herdeiros. O dualismo cartesiano entre res cogitans e res extensa desumanizou a natureza e desnaturalizou o homem. Só assim foi possível o homem assumir-se como sujeito omnipotente perante uma natureza-objecto que lhe era alheia e estranha, para depois se assumir como sujeito omnipotente perante outros sujeitos que assim eram transformados em objectos. Tanto a exploração desenfreada da natureza como a exploração do homem pelo próprio homem encontram no dualismo cartesiano a sua legitimação teórica” (idem, ibidem). (Poder-se-ia remontar a dualismos mais antigos… aos de Platão, do Médio Oriente, da Índia antiga, associados, aqueles, ao princípio civilizacional do patriarcado.). Com JMA, registe-se acertadamente que, no mesmo século XVII, foi importante a obra de Bento de Espinosa como possível modelo diferente e paralelo, capaz de proporcionar a ultrapassagem do dualismo da res cogitans e da res extensa (ibi, p.42-43). Na esteira de Espinosa, podemos hoje provocar e urgir, efectivamente, a superação do mecanicismo cartesiano mediante a assumpção do modelo dos sistemas vivos (em vez do modelo da máquina) como mais adequado para a compreensão do real. No concernente ao quadro
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esboçado dos elementos para uma nova geografia dos saberes, temos de avançar que não estamos em sintonia e acordo com JMA (ibi, pp.42-44), designadamente quando ele, ao pretender superar os níveis do conhecimento (diferenciados e separados, como é sabido, no modelo tradicional da racionalidade), simplesmente os elimina, estabelecendo, em compensação do vazio deixado, as correspondentes diversas orientações assumidas por uma razão unificada. Não contestamos, obviamente, o processus epistemológico e antropológico da desejada e necessária unificação da razão. Bem pelo contrário! O que, porém, não percebemos e chega a mostrar-se-nos contraditório e absurdo é que se possa empreender eficazmente essa caminhada da unificação da razão, banindo completamente toda a distinção de níveis de conhecimento. De resto, como interactuariam (isto é aí pressuposto e exigido) as diferentes orientações sem desnivelamentos à partida?!... O resultado bem poderá comparar-se a uma homeostasia estática permanente… A ‘solução’ encontrada por JMA é o curto-circuito… O pé da teoria não chega para a pegada da prática e da realidade. Advirta-se, ainda, que boa parte da crítica que empreendemos, no nosso livro recente ‘Não apaguem as Luzes!’ (Estante Editora, Aveiro, 1990), a orientações e afloramentos de Boaventura Sousa Santos na sua obra ‘Introdução a uma Ciência Pós-moderna’ (Afrontamento, Porto, 1989), é igualmente pertinente e válida para algumas das perspectivas avançadas neste texto de JMA. Com efeito, os que pugnam pelo apagamento puro e simples dos níveis do conhecimento já se deram conta de que, no universo epistémico e cultural do Ocidente (e por enquanto…), isso conduz precisamente à perfeita equivalência (epistemológica e axiológica) de uma peça de Shakespeare com um par de botas, do bel canto de uma soprano famosa com o bocejo de um madraço, da douta sentença do juiz que libertou o suposto réu da condenação à morte com a burguesinha que vira a cara para o lado porque não pode ver matar galinhas, etc.?!... Já se deram conta de que tal processo encerra muita demagogia fácil e muita anarquia tonta?!... A esses, não lhes fará mal, por certo, uma leitura atenta e inteligente das reflexões pertinentes e das justas tiradas irónicas de Alain Finkielkraut no seu livro ‘A Derrota do Pensamento’ (D. Quixote, Lisboa,1988). Para não nos alongarmos mais e indiciando pela positiva a nossa posição crítica: individual e social ─ é preciso articular e fundir as duas dimensões numa só realidade. As reais diferenças de experiência, de cultura e de saberes (onde a sabedoria não deve ser omitida) entre pais e filhos, entre mestres e discípulos, entre os que já sabem (relativamente a determinado assunto ou disciplina) e os que ainda não sabem não são, efectivamente, apagáveis por qualquer varinha de condão, que pretenda exprimir ou realizar (!...) a bissectriz geométrica da igualdade cultural e social (ilusória, ou puramente estatística, como bissectriz…) para todos os seres humanos. A dimensão social da Pólis de Aristóteles e a dimensão transcendente (e metafísica) do Indivíduo de Bento de Espinosa, por exemplo, não podem excluir-se mutuamente, uma sempre em detrimento da outra; têm, antes, de articular-se e fundir-se, existencial e historicamente, na mesma realidade. Por outras palavras, e metonimicamente: a ontologia de Paul Ricoeur e a metafísica de Emmanuel Lévinas têm de articular-se e fundir-se numa só e a mesma realidade. 6. ─ No horizonte do renascimento da Filosofia, precisamos hoje de uma Filosofia Primeira fulcrada sobre a Ética. Eis por que se reveste, hodiernamente, de uma actualidade premente, por exemplo, a filosofia ética desse judeu lituano, naturalizado francês, que dá pelo nome de Emmanuel Lévinas. É sabido que o edifício intelectual e cultural de Lévinas está centrado, desde a sua formação juvenil, sobre a ética e a inspiração colhida no livro por antonomásia, a Bíblia. Escreve, com acerto, Edmundo Balsemão (in ‘Expresso-Revista’, 21.7.90, p.65): “Todo o edifício conceptual
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de Lévinas assenta em temas como a subjectividade, a alteridade, o infinito, o humano, a relação ética com o Outro. A obra deste filósofo é um estranho diálogo com toda a tradição filosófica ocidental e com a sua matriz grega”, ─ justamente no sentido, querido ou não expressamente, de complementar a tradição helénica com a tradição hebraica. Numa primeira fase da sua vida, ele aproxima-se sucessivamente de Husserl e de Heidegger. Lituano de origem, faz a sua aparição filosófica em França com a tese ‘Théorie de l’Intuition dans la Phénoménologie de Husserl’ (1930). Já desde então Lévinas se recusa a assumir a estrita significação gnoseológica da intencionalidade husserliana. Daí, pois, uma primeira e decisiva razão para a sua subsequente aproximação a Heidegger, com vista a posicionar o ‘ser no mundo’, no meio das preocupações fenomenológicas, justamente como o procura fazer Heidegger em ‘Sein und Zeit’. Mas a completa emancipação intelectual de Lévinas, face a Husserl e a Heidegger, começa verdadeiramente em 1947, com o seu livro ‘De l’existence à l’existant’, onde a linha do pensamento é nunca confundir ou reduzir os existentes à existência, ou seja, reivindicar o primado dos existentes recusando a ideia de uma existência sem existentes (que não deixa de assomar em Heidegger). É neste novo patamar que Lévinas procura libertar, coerentemente, o subjectivo, libertar a significação do subjectivo da ‘prisão do ser’. Escreve acertadamente E. Balsemão: “A insónia, a lassidão e a fadiga são experiências reveladoras de que a subjectividade não se esgota numa universal participação no ser: o sujeito não se limita a perseverar no existir, ele contém ‘mais’ do que aquilo que podia extrair do ser se fosse, somente, existência” (ibi, p.66). As conferências no Collège Philosophique de J. Wahl (1946-1947) constituem como que a antecâmara da sua obra maior, ‘Totalité et Infini’ (tese de doutoramento). A propósito das referidas conferências, escreve E. Balsemão: “Aqui começam a afirmar-se duas vertentes problemáticas fundadoras para Totalité et Infini: a dimensão da ‘separação ontológica’, a partir da distinção entre subjectividade e existência; a dimensão da alteridade pessoal que se pensará nas notas do Novo, do não totalizável, do Desejável e na categoria do Rosto (‘visage’). Estas dimensões polarizam-se na interrogação: ‘É possível que o último acontecimento do ser se jogue no desaparecimento de seres particulares?’” (ibidem). O sentido da totalidade que animou a história do Ocidente obriga a repensar a guerra e a política na perspectiva de uma ordem racional fundadora. “Nesse destino ocidental da totalidade, o decisivo joga-se na assimilação da subjectividade ao ser e ao ‘jogo do mundo’, que Espinosa teria anunciado no ‘conatus essendi’ da Alma e que Nietzsche recuperaria na subjectividade heróica do niilismo afirmativo” (E. Balsemão, ibidem). No contexto da dialéctica lévinasiana entre subjectividade e existência, entre subjectividade e exterioridade, o interpessoal (a relação interpessoal) revela uma assimetria inultrapassável. Com efeito, não o explicam apenas as assimetrias e reciprocidades tradicionais da comunicação. Está essa tese claramente presente em Lévinas, desde 1974, denunciando alguma dificuldade de percepção para ‘leigos’, visto que ela só pode ser validada numa experiência autenticamente religiosa. Este suposto handicap é de algum modo resolvido na união da ‘iniciativa’ do eu e da sua obrigação ética, ─ união que Paul Ricoeur teoriza na sua obra ‘Soimême comme un autre’ (1990). “Segundo Ricoeur, os limites desta ética, simultaneamente baseada na separação do sujeito em relação ao puro existir e na ideia de exterioridade do outro, descobrem-se na ausência de uma estrutura reflexiva que defina para o sujeito uma capacidade de acolhimento de outrem, baseada no ‘reconhecimento mútuo’ e no ‘discernimento’, dimensões que só se podem pensar no interior do conceito de relação com os seus corolários: reciprocidade, simetria e permutabilidade de posições num mundo comum. A ética não pode dissociar-se assim, como quer Ricoeur contra Lévinas, de uma ontologia, e a ideia de justiça deverá supor uma forçosa
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mediação institucional em que o primeiro autor põe alguma atenção, contra o que parecerá, à primeira vista, uma noção ‘de-sencarnada’ em Lévinas” (idem, ibidem). Por outro lado, porém, “a anterioridade do Outro na sua separação e proximidade face ao discurso que a partir da aparência mundana o descreve como o existente é a mesma que Lévinas coloca na base da ideia da Ética como filosofia primeira para além da contaminação ontológica. A esfera do Justo não coincide com a esfera do Bem, mas entre a ‘invisibilidade’ do Infinito e do Bem e a exigência da mostração total que governa a transparência da justiça e condiciona a possibilidade da Ontologia, mantém-se uma zona de contacto, na medida em que o Justo se deixa capturar pelo Bem” (idem, ibidem; o sublinhado é meu). Nuclearmente, o que está em causa? ─ A problemática filosófica perene e sem-pre actual do uno e do múltiplo; uma relação entre o Eu e o Outro marcada de uma diferença de Infinito; uma metafísica que cava descontinuidades no ser e marca as diferenças e estabelece as alteridades, sem jamais permitir que um sujeito existente seja subsumido e hierarquizado na totalidade do uno; uma ontologia que, na diversidade dos seres, estabelece as continuidades e impõe a unidade e, consequentemente, a hierarquia, reduzindo e anulando, se possível, as diferenças interpessoais e, alfim, a própria categoria de pessoa. ─ É de ver que um Humanismo exigente precisa hoje de articular, conjugar e fundir, numa só realidade, as duas dimensões, as duas exigências: a metafísica e a ontológica. E é, igualmente, de ver que a união possível e paradoxal entre o Eu e o Outro só pode ter lugar, efectivamente, no campo do ontológico!...
POSTULADOS HISTÓRICO-ANTROPOLÓGICOS: Em jeito de elementos preambulares, atentemos em cinco postulados histórico-antropológicos fundamentais: 1. ─ No concernente à fundamentalíssima ligação e relação (histórica e teórica) entre Socialismo e Cristianismo: “Sob o ponto de vista de verdadeira humanidade, a existência de proprietários e a existência de assalariados são impedimentos a que se realize, como empreendimento colectivo, o Reino de Deus” (Agostinho da Silva, ‘As Aproximações’, Relógio d’Água, Lisboa, 1990, p.121). 2. ─ Na realização de um autêntico projecto socialista, é absolutamente preciso encarar e resolver adequadamente a antinomia de estrutura entre, dum lado, a planificação da produção e, do outro, a existência e o reconhecimento das liberdades individuais e das suas funções insubstituíveis e inalienáveis. Daí, pois, o ter de considerar-se, desde logo, como positiva a via do cooperativismo; e como negativos os caminhos dos chamados ‘socialismo de Estado’, ‘socialismo de economia estritamente planificada’ ou ‘socialismo burocrático’ (cfr. Adam Schaff, in Rev. ‘O Socialismo do Futuro’, nº 1, Maio de 1990, p.52).
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3. ─ Entretanto ─ advirta-se ─, o próprio cooperativismo não constitui uma espécie de panaceia universal. Com efeito, “é o cooperativismo, sobretudo na sua forma extrema de república cooperativa mundial, melhor sistema do que o de manter à discrição de uns poucos [o que, na realidade, fazem o capitalismo moderno e o ‘socialismo de Estado’] todos os meios de produção. Mas o que queremos dizer é que não elimina de forma alguma os dois males fundamentais da propriedade e do salário, da mesma forma que o sistema do açougue não elimina o alimentar-se de cadáveres” (Agostinho da Silva, op. cit., pp.121-122). Mais ainda: Nem a problemática fundamental se resolve mediante a redistribuição, por todos, dos dois males: o de ser proprietário e o de ser assalariado (cfr. idem, ibi, p.122). 4. ─ Dois imperativos categóricos que nos vêm já da História bíblica da Salvação-Libertação: Um procede, expressa e largamente, do V.T. e pode resumir-se assim: ─ É dos restos (‘reliqua’ em latim, que em português até deu, etimológica e semanticamente, relíquia…), do resto que ficou abandonado, do grupo ou tribo que foi marginalizado, que podemos e devemos esperar a salvação. (É a partir daí que se constrói a mensagem-profecia-projecto para o Futuro.) Decorrente de tal tese, o postulado-imperativo categórico da necessária e indispensável integração, no todo social humano, dos marginaliza-dos, o postulado-imperativo categórico da solidariedade universal, reclamado pelas exigências da fraternidade e da igualdade social perante Iawhé-Deus: “Ego dixi dii estis et filii Altissimi omnes” (Ps. 81,6). O outro imperativo categórico procede directamente da primeira bem-aventurança anunciada por Jesus no ‘sermão da montanha’: “Beati pauperes quia vestrum est regnum Dei” (Lc. 6,20), ─ explicativamente conjugada com o lóguion que o evangelista João põe na boca de Jesus de Nazaré, o Cristo, quando, em casa de Marta e ao serem-lhe lavados os pés por sua irmã Maria, ele responde à provocação de Judas Iscariotes, evocando já o Deuteronómio do V.T.: “Pauperes enim semper habetis (no presente-histórico ─, já no original grego, e não no futuro, em jeito de profecia!...) vobiscum, me autem non semper habetis” (Jo. 12,8). Pondo o paradoxo de manifesto, que o não é no fim de contas: a pobreza é uma virtude (qualidade sempre individualmente endógena) e uma desgraça (qualidade ori-ginalmente exógena). É ela as duas coisas, não formalmente de modo simultâneo, ─ o que permite que se possa esconjurar, de vez, a velha e tradicional distinção entre a ‘pobreza material’, que era e ainda é ingrediente da santidade, e a ‘pobreza espiritual’, assim chamada, que permitia a justificação dos ricos e abençoava a ‘caridade’-caridadezinha. 5. ─ Uma pertinente e necessária advertência a propósito das revoluções tecnológicas, na história de longa duração dos seres humanos, e para fustigar algum materialismo histórico unidimensional e cavernícola. Afirmar, ao mesmo tempo, a espantosa unidade da vida e a sua brilhante diver-sidade evolutiva não é mais surpreendente que asseverar que a matéria da Terra é a mesma que a matéria do universo (cf. Yves Coppens, ‘Pré-Âmbulos ─ os primeiros passos do Homem’, Gradiva, Lisboa 1990, p.231): “Todos os seres vivos que existem ou existiram pertencem a uma só e mesma árvore genealógica” (idem, ibi, p.146). O itinerário filogenético e geográfico possível da superfamília a que pertencemos, os hominóides, dá-nos a sua origem em África, há 35 milhões de anos (cf. idem, ibi, p.154); quanto ao género Homo, a sua origem é fixada em África, há 3 a 4 milhões de anos (cf. idem, ibidem). Assim, em termos de paleontologia e de paleoantropologia, no horizonte da grande Evolução, que vai desde a classe dos mamíferos e a ordem dos primatas e a subordem (ou superfamília) dos hominóides até chegar à família dos hominídeos e ao género Homo, deve aqui advertir-se o
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seguinte: aquilo que essencialmente caracteriza e distingue o homem, em confronto com os seus antepassados hominídeos e hominóides e perante outros primatas que seguiram linhas evolutivas paralelas, é justamente o seu cérebro grande (entre 700 a 800 centímetros cúbicos, quando, por exemplo, o australopiteco robusto apresenta um cérebro entre 500 e 600 centímetros cúbicos), o cérebro pré-frontal e um melhor sistema nervoso bem como a capacidade de, com o seu cérebro maior, conceber algo que vai ser essencial e decisivo para o futuro da especiação do homo faber-sapiens (as três fases, por ordem cronológica: homo habilis, homo erectus, homo sapiens; e a linguagem a aparecer, qual pirata lúdico da própria respiração, entre o homo habilis e o homo erectus). Justamente porque é detentor de um cérebro maior e, subsequentemente, de uma nítida oponibilidade do polegar, acompanhada de uma posição bípede que lhe permite a libertação dos membros superiores, o homem é, por antonomásia, o ser dos utensílios, de que vai depender a sorte da espécie. Com o aparecimento do homem, efectivamente, o utensílio torna-se abundante e permanente; ele constitui, para o homem, uma necessidade vital, resultante da sua enorme capacidade para associar ideias e bem assim da-quele princípio darwiniano: a necessidade ou a função faz o órgão. De tal sorte o utensílio é importante e decisivo que o homem se tornou o único animal capaz de fabricar utensílios do segundo grau, ou seja, utensílios moldados com outro utensílio (cf. Yves Coppens, in ‘O Jornal Ilustrado’, 27.7.90, pp.14-18). Assim, pois, o homem como tal reage, num primeiro momento, inventando o utensílio; e, num segundo momento, controlando o meio ambiente (físico e social). Se desde o homo habilis ao homo sapiens o que se tornou decisivo foi a evolução biológica (o volume do cérebro duplicou), ─ nos últimos 100.000 anos, em contrapartida, é a evolução tecnológica que se torna decisiva: não a natura, mas a cultura; não o ‘hereditário’, mas o ‘adquirido’. “Todos os instintos, ou quase todos, apagaram-se então para dar lugar ao que se designa por adquirido. O homem deve aprender tudo, em troca da sua liberdade” (Yves Coppens, ‘PréÂmbulos’, op. cit. p.232). Poder-se-ia, pois, dizer com verdade que ‘os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos’ desde há 3 a 4 milhões de anos (cf. idem, ibidem). E de tal modo a Cultura veio a suplantar a Natura que o homem descobríu, primeiro, o carácter criador do Tempo (ainda empiricamente identificado com a Natureza); depois as duas dimensões geminadas do Tempo: a objectiva e a subjectiva; por fim, com I. Prigogine, esse conceito de Tempo potencial ou em estado latente, o qual, não só culmina ‘a coerência do universo’, como, na medida em que ‘não nasceu com o nosso universo’ e ‘precede a existência’, pode ‘fazer nascer outros universos’ (cf. Ilya Prigogine, ‘O nascimento do Tempo’, Edições 70, Lisboa, 1990, p.60). O ‘tempo-degradação’ da entropia e o ‘tempo-ilusão’de Esinstein, destilados pela Física clássica, estão, por conseguinte, hoje ultrapassados. Agora, o que a investigação científica mais actualizada nos apresenta é o Tempo criador, baseado nessa propriedade comum a todo o universo, a que se dá o nome de irreversibilidade, e bem assim no carácter aberto (universo do não-equilíbrio, da instabilidade dinâmica) de todos os sistemas (físicos, químicos, biológicos, sociais, culturais). “Actualmente ─ escreve Prigogine ─ devemos ir mais longe, compreender que a estrutura do espaço-tempo está ligada à irreversibilidade, ou que a irreversibilidade exprime também uma estrutura do espaço-tempo” (ibi, p.73). “A irreversibilidade leva, portanto, à autonomia: ligeiríssimas mudanças no am-biente exterior podem dar origem a comportamentos internos completamente diferentes, com a possibilidade de o sistema se adequar ao mundo exterior. Tudo isto corresponde a uma definição da vida: a vida nutre-se apenas de química, mas tem de certo modo incorporada a gravitação, o campo electromagnético e assim por diante” (idem, ibi, p.68). Assim, pois, “com o aparecimento da vida, nasceu um tempo interno que prossegue durante biliões de anos de vida e se transmite de geração em
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geração, de espécie em espécie, e não apenas se transmite como se torna cada vez mais complexo” (idem, ibi, p.23). Atente-se bem no grande desafio que I. Prigogine nos lança neste livro: “Todas as grandes épocas da ciência tiveram um modelo da natureza. Para a ciência clássica foi o relógio; para a ciência do século XIX…, foi um mecanismo em vias de exaustão. Que símbolo poderia ser o mais adequado para nós? Talvez a imagem que usava Platão: a natureza como uma obra de arte” (ibi, p.15). Daí, portanto, a crescente necessidade vital de controlar o meio-ambiente, como imperativo de sobrevivência. Na medida em que a tecnologia nos permite controlar, cada vez melhor, o nosso meio natural ─ de onde se segue que é normal que esse meio natural tenha cada vez menos poder sobre o homem ─, também, em contrapartida, se deve saber que as invenções tecnológicas não estão destinadas a destruir o meio natural humano e que a natural-cultural capacidade inventiva dos seres humanos não deve ser utilizada para destruir a Natureza. Quão actual esta lição da paleontologia e da paleo-antropologia!... Num horizonte de Pós-modernidade, de imperiosa ultrapassagem das ‘ỷbreis’ fragmentárias e dos desequilíbrios modernos bem como de pacificação dos conflitos estruturais da Modernidade, ─ em sede do grande Processo histórico dos seres humanos, ao longo da sua Evolução, começa a ganhar corpo a tese segundo a qual “é à luz do desenvolvimento científico e tecnológico que se devem enquadrar as grandes conquistas sociais da humanidade. A alavanca, a roda, a máquina a vapor, a electricidade, a electrónica, as telecomunicações, a informática, a robótica, etc., encaradas como força de produção e modo de produzir foram estabelecendo novas e novas relações sociais, alterando no homem enquanto trabalhador a sua mentalidade, o seu modo de estar e viver e até a sua consciência de classe” (José de Oliveira Machado, in ‘Seara Nova’, Maio/ /Junho de 1990, p.22). Significa e implica, obviamente, essa nova tese (que até corresponde aos ensina-mentos da paleontologia e da paleoantropologia), que a luta de classes como absoluto motor da História, preconizada por Marx e Engels, em meados do séc. XIX, no seu ‘Manifesto Comunista’, se converteu em coisa obsoleta, mas não se extraia daí a conclusão de que, à sombra dessa supostamente nova (?!...) tese do Processo histórico, sejam consideradas menores e quase engolidas, na real efectivação do Processo histórico, as grandes conquistas sociais da Humanidade, ─ reivindicações (passivas e activas) de liberdade e democracia e paz; reivindicações políticas (inclusive de regimes dife-rentes, menos opressivos), económicas, sociais e culturais; reivindicações de salários justos e decentes, de condições de trabalho humanas e em segurança, de defesa e protecção da qualidade da vida humana. A tal perspectiva não pode deixar de se lhe lançar o apodo de vesga e reaccionária, apagadora pérfida da verdade histórica. É que o crescimento económico não é, ipso facto, desenvolvimento económico; e o próprio desenvolvimento económico não traz necessariamente consigo progresso social, o qual só se torna real e eficaz quando é resultado da luta social dos que estão na ‘mó de baixo’. Sem luta social, por conseguinte, sem luta de classes…, as classes sociais oprimidas e exploradas não vão, de certeza, receber das classes opressoras e exploradoras, na bandeja, os frutos sazonados das revoluções científico-tecnológicas. O Poder (constituído), via de regra, nunca se converte nem democratiza a partir de dentro e ‘motu proprio’. Por exemplo, quem se tem batido e deve continuar a bater-se pela democracia participativa como condição e meio para a realização progressiva do Socia-lismo, para a suavização do Estado (até à sua extinção final…)?! As classes trabalhadoras. Só estas, com efeito, podem e devem reivindicar a descentralização administrativa como condição sine qua non para a prossecução de uma vera democracia socialista.
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O direito que o trabalhador tem de viver e gerir a sua liberdade, sem manipulações e controlos de patrões e de toda uma poderosa e asfixiante cibernética social, sem manipulações e controlos dos aparelhos societários do ‘marketing’ publicitário e do consumismo desenfreado… quem lho assegura?! As classes sociais instaladas no Po-der?!... As multinacionais?!... As revoluções tecnológicas e respectivos aparelhos, só por si, isto é, geridas, controladas e dominadas pelos patrões e pelos detentores do cons-tituído Poder económico-político?!...
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ALGUMAS TESES ESSECIAIS
─ A ─ A seguir à derrocada do ‘socialismo real’… O balanço crítico que hoje se impõe fazer, na dupla vertente da história malograda do chamado ‘socialismo real’ e da reacareação entre capitalismo e socialismo, obriga-nos, se quisermos ser honestos e coerentes e infundir confiança a quem nos escute ou leia, a proceder, no debate e nas orientações a assumir, a um vero ajuste de contas ideológico e histórico, entre os supostos ‘ortodoxos’ e os ‘heterodoxos’, que não apenas, e referindo-nos ao caso português, entre o PCP e os outros Partidos ditos menores que se reclamavam ou reclamam de fontes ou matrizes como Marxismo, Leninismo, Trotskismo, Maoismo, Guevarismo, etc.. Com efeito, nos países do chamado ‘socialismo real’, os partidos comunistas no poder, durante décadas sucessivas e explorando a sua hegemonia ao ponto de recusarem e proibirem sistematicamente qualquer espécie de oposição formalizada e legalizada, não corresponderam, nas suas práticas políticas, económicas, sociais e culturais, aos verdadeiros interesses e necessidades e objectivos das populações reais. Transformram-se, por essa via, em ‘corpos estranhos’ no seio da sociedade. Por isso, hoje, nesse ‘terramoto’ político que se verificou a Leste na esteira da ‘Perestroika’ soviética, incluindo a URSS, os movimentos populares, diferenciados embora consoante as índoles étnicas e as condições históricas dos povos em causa, estão a marchar convergente e implacavelmente no sentido de rechaçar ou deitar ao abandono os velhos partidos comunistas. Compreende-se: ─ Os tempos são realmente outros: as ideologias, à força dos correctivos dos movimentos pragmatistas, deixaram de representar um valor absoluto; por outro lado, o pósmodernismo, que ainda se mantém vigilante e não abandonou as ‘Luzes’ nem a crítica (humanizante), exige-nos, cada vez mais, um horizonte cultural holístico e integrador. Com tudo isto, porém, não se pode iludir nem elidir o referido ajuste de contas. Como somos seres temporais marcados de eternidade, a uma conversio tem de corresponder uma aversio. Os caminheiros, na História, para prosseguirem a sua marcha, após uma situação de crise, não têm outro modo de proceder, outra saída para o ar livre. Como refere Ernest Mandel, “As massas trabalhadoras na sua maioria negam a legitimidade da sociedade burguesa e das estruturas governamentais dos países do Leste, e isto tanto mais quanto menos cépticas sejam relativamente ao projecto socialista. Esta é uma realidade subjectiva, empiricamente constatável, de que devemos partir” (in Rev. ‘O Socialismo do Futuro’, nº1, Maio de 1990, p.87).
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─ B ─ Harmonizar o individual e o social… mas sujeitos humanos irredutíveis Do mesmo modo que particular e geral (singular e concreto e geral e abstracto) são vistos no mesmo ‘Blick’, como nos ensina a Gestalt ou Psicologia da Forma, assim também é preciso, em termos de parâmetros fundamentais e fundamentantes, reunir e harmonizar as duas dimensões ou exigências estruturais: a do todo social, o colectivo, e a dimensão individual, o indivíduopessoa concreto e situado, o qual nunca por nunca pode ser reduzido axiologicamente a uma ideia no encadeado do discurso, seja este hegeliano ou outro (mesmo o dialógico). Depois que, mediante o Cristianismo, o Verbo se fez Carne e Corpo, Materialidade singular e concreta, Corpo inteligente-centro consciente e de Consciência, para todos os Humanos, tornouse radical e absolutamente ilegítimo reduzir o ser humano, quer a uma ideia quer, por via disso, a qualquer coisa!...
─ C ─ Consequências da nova ciência da cognição O Materialismo histórico-e-dialéctico está postulando hoje, com intensidade crescente, uma verdadeira mutação antropológico-civilizacional: Afinal, quem tem não é!... Isto mesmo, tanto cultural e civilizacionalmente, como em termos neuro-bio-psicológicos. É essa, com efeito, uma das conclusões a que chega a nova e pluridisciplinar ciência da cognição, de que é um dos expoentes internacionais Jean-Pierre Changeux, do Collège de France (cfr., v.g., ‘Diário de Notícias’ – Magazine, 1.7.90, p.18 e ss.). O estudo hodierno do cérebro volveu-se, de pronto, numa lúcida e sagaz ciência panenvolvente. “As relações que estabelecemos com o nosso meio ambiente modelaram o nosso cérebro”. “O cérebro desenvolve-se em conexão com o exterior. Nenhum cérebro é idêntico ao outro” (Changeux, ibi, p.20). “Na inteligência humana, não podemos separar o programa da máquina. O cérebro constrói-se progressivamente, desde o nascimento, em interacção com o mundo. É o conhecimento que o modela” (idem, ibi, p.21). Nesta nova óptica, são dissolvidas as derradeiras razões que poderiam alimentar e fundamentar a platónica e cartesiana separação de corpo e espírito; são pulverizados os próprios fundamentos que na psico-pedagogia conduziam, v.g., à distinção entre crianças ‘normais’ e crianças ‘anormais’. Quanto às chamadas crianças ‘sobredotadas’, elas comprovam, precisamente, como tais, a tese central que estamos enunciando e defendendo. Acusam uma atenção, um cuidado e um interesse pelo que fazem muito maiores. Dir-se-ia que levam tudo mais a sério…É nesta perspectiva que devem ser consideradas, e não naqueloutra vesga, tortuosa e racista, em última instância, que lhes atribuiria ‘dons inatos’, para as superiorizar, de facto, em confronto com as outras crianças supostamente ‘normais’. Assim, pois, as históricas metamorfoses do hilemorfismo aristotélico (de que o autêntico materialismo histórico-e-dialéctico é a sua última expressão) estão chegando actualmente a uma situação cultural e de nova fundação civilizacional em que se postula e exige uma decidida valoração antropológica dos seres humanos segundo os cânones psico-biológicos do ser e não do ter. Já não há uma pré-justificação para as virtudes e os dons inatos individuais. Por seu
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lado, a nova biotecnologia pode corrigir elementos malsãos e geradores de ‘anormalidade’, no código genético, limitando o seu determi-nismo negativo. É deveras significativo que um homem como Ilya Prigogine, a propósito de um seminário sobre a questão ‘Quais as diferenças entre a química orgânica e a química biológica?’, nos responda da seguinte forma: “A diferença é que, na química biológica, moléculas como as do ADN são moléculas que têm uma história e que, com a sua estrutura, nos falam do passado em que foram constituídas. São fósseis, ou, se preferirmos, testemunhas do passado, enquanto uma molécula orgâncica hoje criada é uma testemunha do presente e não teve uma evolução histórica” (op. cit., pp.30-31). E, ao evocar os polímeros de Giulio Natta, nos diga quanto é importante “compreender como a irreversibilidade do ambiente se fixa na ordem molecular de um polímero” (idem, ibi, p.31). O cérebro de cada indivíduo molda-se e toma forma no seu crescente fieri cultural e neurobiológico, autoctonamente, na sua ambiência envolvente, na sua interface, na sua intercomunicação com o meio. O próprio processo de aprendizagem escolar (ou não escolar) de crianças e jovens já não encontrará, na nova ciência bio-psico-social, fundamento necessário e suficiente para ser avaliado em termos de terem os alunos mais ou menos saber e saber-fazer acumulados, nem muito menos em termos de serem uns mais dotados e outros menos dotados. Implica isso, desde logo, que todo o Sistema de Ensino e Educação, aquilo por que deve preocupar-se verdadeiramente em primeiro e último lugar é justamente por criar a todos os educandos ou alunos reais condições de igualdade de oportunidades, as quais, para serem de sucesso e de acesso aos vários patamares do Sistema, terão de ser solidária e cumulativamente económicas, sociais, culturais e sócio-linguísticas.
─ D ─ Plano e Mercado Qual o rumo que há-de tomar o novo projecto do Socialismo, depois dessa com-provação histórica que foi o ‘terramoto’ do ‘socialismo real’ a Leste?! Uma elementar ‘geometria analítica’ das realidades sociais apontar-nos-á o rumo no horizonte da bissectriz entre Plano e Mercado, entendidos estes segundo as suas antinómicas concepções tradicionais (cunhadas, de resto, pela cartilha ‘ortodoxa’ do chamado ‘socialismo real’). Enquanto o Plano for expressão de objectiva limitação e condicionamento hétero-imposto das liberdades individuais, expressão portanto de determinismo colectivo, e o Mercado constituir expressão inultrapassável (muito embora imperfeita e, muitas vezes, desadequada e traída) da liberdade dos indivíduos-cidadãos, enquanto, em suma, não for possível reunir e harmonizar, num só e indiviso paradigma sócioantropológico renovado, as exigências da concorrência e as exigências da cooperação (ambas, de princípio, igualmente humanizantes), não haverá outro rumo senão o identificável pela bissectriz social entre Plano e Mercado. Pode e deve advertir-se, entretanto, que, no concernente à antinomia ou contradição entre Plano e Mercado, uma coisa é o que se passa aparentemente, à superfície; outra coisa o que ocorre em profundidade. É sabido que o próprio capitalismo hodierno não dispensa a planificação: ver, por ex., como actuam em regra as multinacionais, engolindo e condicionando os mercados!... Essa contradição, por conseguinte, foi e é gerada, antes de todos, “por aqueles que fazem uso dum conceito errado da planificação económica (tradicional nos países do socialismo real), sem assimilar uma acção, por si só, trivial: que o desenvolvimento normal da economia exige, hoje em dia, a cooperação de duas forças motrizes, ou seja, a planificação e o
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mercado. A planificação (baseada no conhecimento das necessidades económicas da sociedade ─ tanto nacionais como internacionais ─, no conhecimento científico da tecnologia da produção, na imaginação criativa no que se relaciona com o desenvolvimento e, juntamente com este, com o ressurgimento e, até mesmo, a criação de novas necessidades sociais) deve prever as grandes linhas da evolução da vida económica do país, devendo estar, também, acompanhada do funcionamento das forças do mercado e da competência de empresas de diversos tipos. Considerando o que mais acima se disse, na vida económica de qualquer país (mas com mais razão na vida económica dum país socialista em todos os sentidos da palavra) devem actuar tanto as for-ças da planificação económica como as forças do mercado, cada uma delas no seu lugar correspondente” (Adam Schaff, in Rev. cit., p.63). A identificação do projecto do Socialismo do futuro no lugar geométrico da referida bissectriz não será concluída, em termos decisivos, sem o cumprimento de duas condições prévias, estruturais, reciprocamente imbricadas e sine quibus non: a) Terá de situar-se num horizonte para além da sociedade economiálatra. Já o próprio Aristóteles condenava a Krematística, distinguindo-a de uma Economia sã da Pólis. b) Terá de comportar o planeamento democrático da população, o planeamento da dimensão demográfica de uma dada sociedade, ─ isto mesmo como expressão directa do limiar da exigência de dignidade, alfim atingido, dos seres humanos como distintos e contrapostos às coisas (de que falou Immanuel Kant, com rara sabedoria). Mas há ainda dois probemas fundamentais que um projecto de Socialismo para o Futuro não poderá escamotear. Um é o da possibilidade tecnológica ou não da planificação global que o Socialismo postula. No que a esta problemática diz respeito, escreve acertadamente Adam Schaff (in Rev. cit., p.64): “Podemos ficar tranquilos: do ponto de vista técnico, a planificação económica será possível, inclusivamente à escala global. Podemos também estar certos de que a economia planificada é, e será, mais possível e mais perfeita à medida que formos caminhando no futuro. Esta é uma valiosa indicação para a sociedade socialista do futuro”. De resto, é já hoje sabido que não foram as dificuldades (ou impossibilidades…) directamente tecnológicas que estiveram em primeira linha no desencadear imperioso da ‘Perestroika’ soviética. Nas suas origens, efectivamente, identificaram-se outros factores primordiais, nomeadamente o colapso da produtividade mínima do aparelho económico e a falta de estímulo e de responsabilidade nas relações de trabalho e, cumulativamente, nas relações de produção (isto, para só nos reportarmos ao chamado universo económico tradicional). Assim, ao proceder-se actualmente ao balanço crítico dos resultados históricos do chamado ‘socialismo real’, resulta líquido e já sem ambiguidades que são três conceitos diferentes a socialização dos meios de produção, a colectivização dos meios de produção, a estatização dos meios de produção. Não se deve esquecer aqui que, segundo Marx, e em direcção totalmente oposta à assumida pelo ‘socialismo real’, os caminhos do Socialismo conduziriam progressivamente à extinção e à superação efectiva do Estado. O outro problema é o de saber se a actual classe operária, sobretudo aquela parte que executa trabalhos manuais, vai efectivamente desaparecer ─ como pensam, a nosso ver erradamente, alguns marxistas ─, dando lugar aos cientistas, aos engenheiros, aos técnicos, aos executivos e às ‘chefias’ do processo de produção automatizado. Em outros termos, se a Informática e a Robótica vão dissolver e exterminar a classe operária… Ora “é evidente que alguém ─ um ser humano ─ terá que dirigir o processo de produção (Marx escreveu no seu Grundrisse, em 1857, sobre o papel dos sábios ou dos engenheiros daquela época, promovendo a ciência ao papel dum novo meio de produção), mas isso não significa que a classe constituída por essas pessoas vá substituir o proletariado explorado pelo capital. Pelo contrário, essa nova classe constituída por essas pessoas poderá converter-se numa nova classe possuidora (poderá
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monopolizar esse novo meio de produção que será a informação) e até, em determinadas condições, numa nova classe dominante. Mas não se tratará, em caso algum, duma ‘substituição’ do proletariado não entrando em jogo as relações do trabalho humano. Poderão surgir muitas outras formas de exploração do homem pelo homem, mas a exploração do trabalho humano desaparecerá, porque também o trabalho como tal desaparecerá. Os robots e os autómatos podem ser utilizados no processo de produção, mas não podem ser explorados no sentido em que se explora o homem trabalhador que é despojado da mais-valia que produz. Mudam as regras que serviam de base ao socialismo. Por conseguinte, a pergunta é esta: se no futuro, quando essas regras funcionarem, existirá o socialismo, o que significará e de que socialismo se trata?” (A. Schaff, ibi, p.65). Não estão esta questionação de Adam Schaff e respectiva solução indiciada, mais centradas sobre as consequências das mais recentes inovações tecnológicas, em contradição com a tese seguinte de Ernest Mandel, mais fulcrada sobre o postulado de que “o socialismo será mundial ou não será” e sobre a verificação de que “a internacionalização das forças produtivas” arrasta consigo, iniludivelmente, “a internacionalização do capital e da luta de classes”?!... (ibi, p.99). Escreve E. Mandel: “A classe operária no sentido marxista do termo [ou seja, todos aqueles e aquelas que se vêem economicamente obrigados a vender a sua força de trabalho, segundo a fórmula cunhada por Marx e Engels] é a única força social do mundo de hoje que dispõe do potencial necessário para eliminar o capitalismo, para salvar a humanidade das catástrofes que a ameaçam, para realizar uma civilização superior, a civilização dos produtores(as) livremente associados, indispensável a este objectivo. Hoje possui a força de mais de mil milhões de pessoas à escala mundial, o que significa que é mais forte do que nunca. A tendência histórica a longo prazo, a tendência das próximas décadas cujo perfil se pode traçar, vai no sentido do seu reforço e da sua crescente homogeneização, e não no sentido do seu enfraquecimento ou da sua decomposição” (ibi, p.96).
─ E ─ O Socialismo do futuro Duas questões nucleares que o Socialismo do futuro tem de resolver. Para além ou para aquém de se saber e configurar analiticamente o que foi e ainda é histórica e nuclearmente o Socialismo, na senda dos desígnios cristãos e não esquecendo a moderna divisa revolucionária da ‘Liberdade, Igualdade e Fraternidade’, o Socialismo tem, na sua essência, já como regime político já, sobretudo, como regime social e económico, como principais e supremos objectivos a eliminação de toda a sorte de exploração do homem pelo homem e a edificação da civilização dos produtores(as) livremente associados. Essa a noção essencial que, desde logo, é preciso reter. Muito recentemente, no 1º Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais realizado em Coimbra, e na véspera do seu doutoramento honoris causa, o velho militante de lutas sociais, sociólogo e socialista brasileiro, Florestan Fernandes, esguia a sua voz e explicava a toda uma assembleia, em termos genéricos, mas nucleares e concisos, que o sentido profundo do marxismo e do projecto socialista nos dias de hoje se devia traduzir na reconstrução de uma comunidade segundo o máximo de democracia, aprendendo e assimilando todas as lições tanto da crise do Leste como da crise do Terceiro Mundo (cf. Francisco Louçã, in ‘O Jornal’, 6.7.90. p.17).
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As duas grandes Questões a que o Socialismo do futuro tem de responder são as seguintes: a) O direito privado dos principais meios de produção é a base e a origem da exploração capitalista da classe operária, constituindo-se a economia de mercado como fundamento do travão do natural desenvolvimento dos meios de produção? Em que sentido e em que medida? b) O suposto direito social dos meios de produção é suficiente para eliminar esses dois fenómenos negativos e permitir, assim, a construção do regime socialista?
─ F ─ Nem voluntarismo nem determinismo Liberdade individual e Revolução: Voluntarismo (condicionamentos originariamente subjectivos). // Determinismo (condicionamentos originariamente objectivos). Quadro de elementos iniciais que devem ser pressupostos: Revolução: impro-priamente dita: a) a das ‘relações de produção’ sem a das ‘forças produtivas’; b) a dos ‘meios de produção’ sem a das ‘relações de produção’. Revolução propriamente dita: a revolução total, simultânea e cumulativamente das ‘forças produtivas’ e das ‘relações de produção’. Procurando esboçar o perfil da Revolução, Marx acertava em cheio quando afirmava, na 3ª Tese sobre Feuerbach, que também os educadores careciam de ser educados. Como aí mesmo se diz lapidarmente, a prática revolucionária consiste na coincidência entre a “modificação das circunstâncias” e a “modificação dos próprios homens”. Face a processos revolucionários e num horizonte fenoménico, podem configurar-se duas perspectivas que redundam, afinal, na caracterização de dois tipos de revolução. A) Que veio a resultar, posteriormente, no curso da História, ─ como fruto sazonado de todo um processus ─ da Revolução de Outubro? ─ Em jeito de moldura da problemática, fiquem reafirmadas, desde já, três teses centrais: 1ª ─ O Leninismo não pode confundir-se com o estalinismo; 2ª ─ A História posterior confirmou que o trotskismo tinha razão ao desconfiar da vitória definitiva da Revolução ‘num só país’; 3ª ─ A História confirmou também a posteriori que estava, afinal, acertada a previsão de Marx que identificava e localizava a vera revolução socialista nos países capitalistas mais avançados nos processos da industrialização. Que veio a resultar, então, da Revolução de Outubro? ─ A estatolatria, a omnia-brangente e totalitária máquina administrativa-burocrática dirigente e controladora de toda uma Sociedade, os ‘Aparatchiki’, a ‘Nomenklatura’; e em consequência, no reverso da medalha, a generalizada servidão das massas populares e trabalhadoras, o medo uni-versal, a inibição e a morte das liberdades individuais e da iniciativa dos cidadãos como gramática da vida. O determinismo (usurpado das leis da Natureza), as limitações e o condicionamento estruturais das liberdades foram despótica e implacavelmente estabelecidos para os indivíduos por outros indivíduos humanos, seus semelhantes!... A tão preconizada e exaltada igualdade social redundou, assim, num completo malogro. Dir-se-ia que se pôs em marcha uma revolução das relações de produção sem haver (simultaneamente) a revolução dos meios de produção (revolução impropriamente dita, portanto). Com efeito, a simples estatização dos meios de produção não obteve como resultado nenhuma vera apropriação colectiva dos meios de produção, ─ daí que as relações de produção não se tenham alterado substancialmente: assim, o regime de salariato permaneceu como também o mal da propriedade, a qual só passou de mão (efectivamente, não passou do âmbito individual e particular para um novo âmbito veramente colectivo com a implicada transformação da sua índole).
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Em resumo, e por consequência, não chegou a nascer o Homem Novo, que o processo revolucionário de Outubro reclamava!... B) Por outra banda que tem vindo a resultar das Revoluções Industriais e, hodiernamente, que está resultando da chamada 3ª Revolução Industrial (a informática, a robótica, a automatização, em suma)? Inquestionável é que houve mutação nas forças produtivas; os meios de produção foram substancialmente alterados. Mas as relações de produção não estão a acompanhar estrutural e sistematicamente o processo revolucionário tecnológico, material (revolução, pois, impropriamente dita também). Também aqui, as liberdades individuais foram limitadas e os indivíduos são condicionados, porém, mais pelas inovações tecnológicas dos meios de produção e sua aplicação, objectivamente portanto, do que pelas decisões e controlo, (directamente pela política), do aparelho de Estado, pelos seus semelhantes, portanto, com a indisfarçável carga da di-mensão prioritariamente subjectiva e voluntarista. Balanceando agora os dois tipos de Revolução referenciados, poder-se-á extrair o seguinte postulado antropológico: Quando a sua liberdade e iniciativa pessoal estão em causa, mais fácil e legitimamente os indivíduos humanos se resignam e aceitam as limitações e os condicionamentos da Natureza, dos processos considerados objectivos das inovações tecnológicas das forças produtivas do que o controlo e os condicionamentos procedentes das supostas vanguardas das forças dirigentes, sempre marcadas da subjectividade e do despotismo. Quando o educador ─ como intimava Marx ─ perdeu o sentido e a consciência de que, também ele, precisa de ser educado!... Que é preciso, por conseguinte, em termos de busca da cientificidade e do Humanismo, prestar mais atenção às revoluções tecnológicas do que às propostas ou projectos voluntaristas de revoluções que resultam historicamente goradas ou traídas, constitui hoje um corolário líquido e indiscutível. A actual Revolução Industrial (a da automatização e da polarização nas actividades terciárias), por exemplo, que consequências sociais está ela a carrear consigo? ─ A robotização e a automatização generalizadas na produção e nos próprios serviços estão a gerar todo um processo social conducente ao que se tem chamado a paragem estrutural (tecnológica) maciça (cf. A. Schaff, Rev. cit., p.53). Conceito próximo desta espécie de situação-limite é o de “rendimento sem trabalho”, inventado pelos dois economistas norte-americanos Milton Friedman e James Tobin, com vista a superarem, por essa via, as sequelas económicas do processo de pauperismo que o capitalismo moderno não deixa de segregar. Quer se queira quer não, está a perfilar-se, com toda a premência e acuidade, no novo horizonte sócio-económico, o problema básico da nova distribuição do produto social. Na linha das análises de Friedman e Tobin, “à medida que o trabalho, no seu sentido tradicional, fosse desaparecendo (o trabalho assalariado que, na linguagem de Marx, se denomina “Ich’narbeit”) e, por conseguinte, também a classe operária, ir-se-iam apresentando novos problemas relacionados com a necessidade de garantir às pessoas um determinado nível de subsídios não vinculados a um trabalho tradicionalmente concebido: tratar-se-ia ─ e este seria um conceito novo e mais amplo ─ de todo o tipo de ocupações úteis sob o ponto de vista social (é evidente que sem se aplicar esta solução, urgiria uma sociedade degenerada, afectando as patologias sociais principalmente a juventude) (A. Schaff, ibidem). Este horizonte de análises e de soluções preconizadas ─ não pode deixar de advertir-se ─ “está a demonstrar, de forma modelar, a exactidão da tese básica do materialismo histórico sobre a mudança inevitável das superestruturas quando a base da sociedade sofre uma mudança radical” (idem, ibidem).
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Na outra face da medalha, não pode deixar de pensar-se e exigir-se, até como processo de coerência na extracção das consequências sociais da revolução tecnológica em curso, a mudança adequada das relações sociais de produção (revolução completa, ou propriamente dita). E é aqui mesmo que surge, com todo o vigor e toda a sua coerência, a instância do Socialismo como a solução: o Socialismo identificado com a autogestão, a auto-organização e a autodeterminação das grandes massas. Impõe-se esta solução tanto mais quanto mais próximo estiver o limiar da inadaptabilidade do capitalismo. Com o gosto crescente da qualidade da vida e a assumpção crescente das suas responsabilidades pessoais, o que se está verificando é que os produtores estão repudiando cada vez mais a chamada ‘ética do trabalho’, diga-se ela ‘protestante’ ou ‘japonesa’. Hoje em dia, a preocupação fundamental dos produtores, japoneses incluídos, é a de trabalhar menos e melhorar a qualidade da vida. Ora em que condições sócio-estruturais é que tais desígnios podem ser melhor atingidos? “Apenas um regime de produtores livremente associados pode desenvolver o controlo e a criatividade, assim como a responsabilidade individual e colectiva, sem os quais uma boa parte do potencial das novas tecnologias não será aproveitada. Esta libertaçao reclama precisamente uma revolução radical da relação tempo de trabalho/tempo de formação (qualificação, informação, educação)/ócio, durante toda a vida. A experiência prática confirma assim o carácter bem fundamentado da previsão feita por Marx nos Grundrisse, segundo a qual, a partir de um determinado desenvolvimento tecnológico/científico, o tempo livre e não o tempo de trabalho é que se converte em fonte e medida da riqueza” (Ernest Mandel, in Rev. cit., p.90). Perante os desígnios de que acima se falava, já se pode proceder ao balanço crítico e concluir que a opção política primordial já não se concentra propriamente na tomada do Poder como supremo objectivo, ou seja, já não reside na alternativa entre os tradicionais conceitos de ‘reforma ou revolução’; ela reside em bem outros tópoi. “A falsa antinomia ‘reforma-revolução’ ‘conquistas parciais-objectivo final’, que Rosa Luxemburgo havia já analisado de forma magistral nas suas principais obras políticas do período 1900-1910, conduz-nos pelo contrário a uma problemática que está na base do fracasso prático da social-democracia e do estalinismo. Trata-se das consequências sociais e psicológicas das conquistas parciais no próprio seio do movimento operário. Podem-se resumir na frase: hipertrofia de burocracias ‘operárias’ e ‘socialistas’ profundamente conservadoras” (idem, ibi, p.88). Assim, pois, e nas condições objectivas que a História nos tem fornecido ─ diga-se, mais uma vez, confirmadas pelo materialismo histórico ─ “o combate socialista tem [hoje, como sempre] de conciliar a luta pela melhoria da sorte imediata dos explorados e dos oprimidos com a sua preparação sistemática para mudar este poder [o poder do Grande Capital] através da acção das grandes massas, quando surgem ocasiões favoráveis que tornam possível esta mudança” (idem, ibi, p.90).
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─ G ─ Discernimento é preciso, para construir o Socialismo do futuro
‘Socialismo’/Não: Desmoronamento lógico dos regimes do chamado ‘socialismo real’ a Leste. Mas Socialismo/Sim: Que Socialismo?! ─ Uma chave da explicação, a qual justifica, pela negativa, a queda e a ruína do ‘socialismo real’ e indicia, pela positiva, o perfil do Socialismo do futuro. Nunca será de mais afirmar à cabeça o seguinte: À semelhança da ruptura que constituiu o Renascimento (e o Humanismo) em confronto com a imediatamente anterior Idade Média, “a Revolução Socialista introduziu no mundo o processo de gestação de uma Nova Idade; mas apenas o processo; a instalação nela da Humanidade vai demorar” (Zillah Branco e Miguel Urbano Rodrigues: ‘Em Defesa do Socialismo’, Caminho, Lisboa, 1990, p.12). Dizemos um Não categórico a esse socialismo que dá pelo nome de ‘socialismo real’, ao qual cabem os epítetos de ‘colectivismo’, ‘socialismo de Estado’, ou até de ‘capitalismo de Estado’, e que derrocou como por um tremor de terra (1989-1990 foram os anos em que se lavrou o seu in memoriam!...). Dizemos, por outro lado, Sim ─ um sim que é, antes de tudo, um vero imperativo categórico ─ ao perfil e à construção do Socialismo pelas vias do cooperativismo e da fundamentante edificação da sociedade civil e, bem assim, da inclusa redução e alfim extinção do Leviathan do Estado. Agora, a chave da explicação, a qual, a um só tempo, dá conta da derrocada do ‘socialismo real’ e constitui bússola anunciadora do novo perfil-projecto do Socialismo novo-velho: Efectivamente, só as inovações (mutações) estruturais-estruturantes que dão pelo nome de mutações tecnológicas têm a propriedade e o condão de alterar substancial e estruturalmente os perfis ou modelos ético-morais dos comportamentos dos indivíduos-pessoas. E justamente porque, aí, o determinismo procedente da exterioridade (Natu-reza, ‘segunda natureza’…) e o imperativo da liberdade individual, ou seja, a necessá-ria e indispensável dependência da interioridade face à exterioridade, se casam sem problemas!... Deve aqui perguntar-se: Por que é que a Revolução de Outubro não trouxe consigo (por que não o fez germinar?...) o Homem Novo, de que se carecia para assegu-rar o bom êxito da Revolução, e que à partida era suposto que trouxesse?!... ─ Não o trouxe nem o fez germinar, porque, em termos objectivos e históricos, foi uma revolução marcadamente voluntarista. Ora, na verdade, o colectivismo segundo o modelo da estatolatria ─ dependência absoluta de todos os cidadãos perante o poder de Estado omnipotente, quando, à luz da Teoria, se tinha o direito de esperar exactamente o contrário, a extinção progressiva do Estado ─ não resolve, de modo nenhum, aquela contradição entre a liberdade individual e as potências exteriores… antes, aviva-a e reforça-a através das opressões e repressões que exerce sistematicamente sobre as práticas da liberdade individual. Dir-se-ia que, aí mesmo, se identifica a distância que vai entre um aceitável determinismo esclarecido (de forças naturais ou para-naturais) e uma inaceitável e possidónia prepotência arbitrária!... Eis, finalmente, por que as Revoluções, que uma História mais ingénua do que crítica identificou como tais, são posteriormente forçadas a traçar a sua bissectriz, até chegarem, por vezes, ao ponto de partida, como se a História se repetisse!... Daí, por conseguinte, a necessidade de discernir, de distinguir sempre, desde logo, entre revoluções tecnológicas e
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revoluções tout court. De resto, e como já é sabido, só pelas vias da cooperativização e da solidariedade efectiva se pode construir o Socialismo autêntico.
─ H ─ O pensamento holístico da Pós-modernidade Acabaram as Revoluções?!...─ Viva a inteligência e a crítica democrática por toda a parte espalhada! Viva a revolução permanente, cujo desígnio teórico essencial é justamente o de escalpelizar e denunciar, sem tréguas ─ o que Ernest Mandel referia ─, essa “hipertrofia de burocracias ‘operárias’ e ‘socialistas’ profundamente conser-vadoras” (Rev. cit., p.88). Vivam, por conseguinte, as reformas incessantes e a perspectiva das transformações globais que nunca nos faleça! É isto, afinal, que reclama e põe de manifesto o novo pensamento holístico da Pósmodernidade, ─ obviamente, de uma pós-modernidade autêntica, que o mesmo é dizer crítica, de uma pós-modernidade antropologicamente digna. Em confronto com a Idade Média, a ignorância e as trevas, as epidemias, a servidão e a vida rude, em confronto com a medievalidade e a arregimentação religiosa e moral dos seres humanos, a sua implacável subordinação a poderes e forças sobrenaturais, ─ a Idade Moderna, iniciada com o Renascimento e o Humanismo e amadurecida com as ‘Luzes’, que se podem ver consumadas intelectual e politicamente nesse processus que conduziu à Grande Revolução Francesa, constituiu, sem dúvida, um passo em frente na História da Humanidade e foi, na globalidade, uma conquista que desejamos indelével. Mas a rosa tinha também espinhos!... Negativa e tragicamente, a Modernidade foi marcada pela ‘ỷbris’, pela desmedida, pelo desequilíbrio, por uma ideia de Progresso assente no princípio da fragmentação de tudo… e, consequentemente, por novas forças bélicas até ao limiar da autodestruição que toda a História da Humanidade nunca havia registado. Que deve pretender, hoje, o pensamento holístico da Pós-modernidade? ─ Não, por certo, lançar fora o bébé juntamente com a água do banho. Ele deve, outrossim, retomar o equilíbrio perdido, pôr-se em demanda do ‘mesótes’ capaz de garantir a Vida e o futuro da Humanidade. Em duas dimensões principais se tem de cumprir este novo projecto, cometido à Humanidade por uma Pós-modernidade autêntica e crítica: a) a dimensão das ciências; b) a dimensão existencial da vida e da vivência unitárias. Entre os dois hemisférios das ciências ─ as físico-naturais e as sociais e/ou humanas ─, é, indiscutivelmente, nas áreas das Ciências da Natureza que hoje uma crítica revolucionária (não-conformista) pós-moderna mais tem de incidir. Por mais paradoxal que pareça!... É que ─ adverte C.F. von Weizsӓcker (in ‘Wahrnehmung der Neuzeit’, Műnchen, 1983, p.355-356) ─ “de Galileu parte um caminho em linha recta até à bomba atómica… A Ciência da Natureza é a maior mudança de consciência da humanidade desde o aparecimento das grandes religiões e das culturas do primeiro milénio antes de Cristo; chamo-lhe o núcleo duro dos Tempos Novos. Ela dá-nos um poder intelectual que jamais existiu, portanto técnico e, por conseguinte, político. É impensável que a humanidade se não destrua a si mesma com este poder, se ela não realizar também uma mudança moral igualmente radical”. Ora o que deve observar-se, no encalce deste discurso, é que a tão necessária revolução moral não despontará no horizonte sem uma revolução de paradigmas epistemológicos que faça germinar um tipo novo de razão científica, no próprio hemisfério das ciências físico-naturais, ─ tipo novo capaz de substituir e ultrapassar o
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tradicional paradigma mecanicista do domínio racional do mundo (cuja fome de poder se vê tão bem expressa na tecnologia nuclear) pelo modelo de uma nova razão heterocêntrica que seja verdadeira guardiã da alteridade da Natureza. Há que ter a coragem de confessar e corrigir os vícios estruturais da Modernidade: “O deficit político e ecológico aberto pelo progresso científico-técnico depende de uma concepção epistemológica unilateral, que urge transformar na sua raiz: o ideal mecanicista e a fixação antropocêntrica com o olvido da alteridade da natureza e da vida, que são nossas interlocutoras e não simples reservatórios energéticos ou biológicos a explorar em ritmo exponencial. Os problemas fundamentais de uma teoria da ciência dimanam do estado actual de uma razão científico-técnica, que é ambivalente nas suas possibilidades, nos ameaça com sequelas destruidoras e avoluma o saldo negativo na problemática do ambiente, da paz e do terceiro mundo. Possivelmente, a crise da sobrevivência tem raízes na estrutura científica actual da razão, em que predomina a incongruência entre civilização técnica e o mundo da vida, originada não apenas pela desmesura de interesses políticos e económicos, mas sobretudo pelo modo como as Ciências da Natureza compreendem a realidade, que, ao contrário do que dita o figurino epistemológico, tem um estatuto ontológico ignorado pelo mecanicismo cartesiano e pela razão instrumental e axiologicamente neutra por ele talhada” (Miguel Baptista Pereira, ‘Modernidade e Tempo ─ para uma leitura do discurso moderno’, Liv. Minerva, Coimbra, 1990, p.230-231). No concernente à dimensão existencial da vida e da vivência unitárias, o projecto de uma Pós-modernidade crítica e adulta não pode fugir ao cumprimento do seu dever. Para tal, ao socorrer-se ‘naturalmente’ das aquisições e contributos das ciências sociais e/ou humanas, ele terá de saber discernir e joeirar entre o que é positivo e aproveitável e o que é alienante, mistificador, despersonalizante, susceptível de alimentar rebanhos e não de reforçar ou fundar diferenciados centros de consciência pessoais. Porque é que a Modernidade não foi capaz de assumir e de pôr em prática o ‘gnôthi s’autón’ de Sócrates, esse conhece-te a ti mesmo que nunca há-de deixar de constituir a alavanca de Arquimedes do mais elementar humanismo?! “A raiz desta incapacidade de se conhecer a si mesmo está nas profundas frag-mentações, que o pensamento introduziu na psyche e com elas a experiência do tempo e da actividade egocêntrica”. Ora “a libertação da fragmentação e do egocentrismo só é possível pela visão penetrante, que deixa perceber que, para lá do pensamento, só há energia e forma, não há tempo, não há eu nem qualquer coisa. Esta não-coisa ou o Incomensurável é o terreno fundamental de toda a existência, é o começo e o fim de tudo, que dá sentido à humanidade e impede a auto-destruição” (Miguel Baptista Pereira, op. cit., p.230). Dir-se-ia, pois, que o hodierno pensamento holístico (do grego ‘hólos’, que significa todo, inteiro, íntegro) está em demanda da união dos dois caracteres morfológico-civilizacionais fundamentais, condensados nos nomes-conceitos-realidades de Ocidente e Oriente. Uma demanda que só se poderá dar por cumprida, quando ambos tive-rem sido superados e a união for um facto consumado, ─ o que implica se casem as positividades de ambos depois de expurgadas as respectivas negatividades. Na verdade, “o Ocidente e o Oriente tentaram transcender a fragmentação, mas de modos diferentes: no Ocidente, predominou a medida (mederi, medicina, moderatio, meditatio), que se tornou relação e proporção universal (ratio); no Oriente, a realidade não é a medida, mas o Incomensurável, que se não pode pensar de modo racional, pois toda a medida (matra, metron, maya) é errónea e enganadora” (idem, ibi, p.229).
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─ I ─ Condições de preservação da Democracia
Que Democracia?!... Afinal, só o menos mau dos regimes políticos, segundo a ‘blague’ de Churchill?!... Sabemos hoje que uma crítica Teoria filosófico-política sobre a Democracia e as práticas democráticas já não cai na ingenuidade nem vai correr o risco de nos apresentar a ‘Democracia directa’ como absoluta alternativa à ‘Democracia representativa’, também chamada ‘burguesa’. Mas sabemos igualmente, por outro lado, que o regime democrático é incompatível com a demagogia (pelo menos, a sistemática); que se situa precisamente nos antípodas daquele ‘leadership’ dos Chefes que se faz acompanhar dos irresponsáveis comportamentos mutitudinários em que as massas se deixam envolver, quando acicatadas ou provocadas. Sabemos hoje, de ciência política certa, que todo o regime democrático se deteriora e corrompe, se não for assumido quotidianamente pelos cidadãos, senão for responsável e crescentemente aprofundado. Se não houver um empenhado aprofundamento da Democracia, representantes e representados afastar-se-ão cada vez mais uns dos outros, como as galáxias na evolução do Universo. Na verdade, toma-se hoje consciência, generalizadamente, de que “se verificaram as previsões mais pessimistas de Schumpeter sobre a progressiva distância entre representantes e representados nos regimes democráticos. E é certo que a acumulação dos ‘paradoxos’ ou das ‘promessas não cumpridas’ da democracia moderna não nos podem fazer desistir dela, não é menos certo que cada vez mais se impõe uma reconstrução profunda da teoria democrática que expanda e enriqueça o conceito de cidadania, que garanta a autonomia dos cidadãos perante a burocratização da vida pública e as indústrias culturais e mediáticas, que reponha o princípio da igualdade não formal como condição do exercício da liberdade e, finalmente, que assegure a transparência dos processos de informação e de decisão” (Boaventura de Sousa Santos, in ‘JL’, 10.7.90, p.7-8). Qual verdadeira espada de Dámocles, em regime democrático postula-se toda uma precaução estrutural de ordem filosófica, política e cultural, a qual se exprime em duas dimensões que têm que ser asseguradas e defendidas: a) informação e mais informação e fé na inteligência dos indivíduos-cidadãos; b) exigências fundamentais de responsabilidade ética (individual e colectiva) e de uma básica gramática de moralidade para a vida social e suas condutas. Ora uma sã e correcta filosofia política capaz de defender, promover e assegurar o regime democrático, não só a curto, mas a médio e a longos prazos, na história da Humanidade, tem de saber e esforçar-se por superar e eliminar, de uma vez por todas, a chamada ‘dupla moralidade’ no comportamento humano, consoante este é assumido e referenciado ao in-group ou ao out-group. Em linguagem freudiana, dir-se-ia que é preciso, definitivamente, que a tendência para a destruição (Thánatos) seja superada e vencida pela tendência para o prazer controlado e civilizado, ou seja, um novo estádio em que o Eros será temperado e civilizado por um Superego socialmente crítico. O kantiano ideal da Paz perpétua nunca será uma realidade estabilizada e asse-gurada em regime democrático, enquanto a ‘dupla moralidade’ não for erradicada do horizonte das modernas sociedades burguesas. É a propria História que nos adverte de que “a ‘dupla moralidade’, a aplicação de normas éticas diferenciadas aos membros do in-group (que são as hordas, os clãs, as classes sociais, as etnias ou os Estados), e aos membros do out-group, não decorre da maldade inata do género humano nem do pecado original. Resulta fundamentalmente das oposições e conflitos de interesses e da sua percepção. Modifica-se através da história em função destas oposições de interesses e do
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contexto social em que os seres humanos nascem, são educados e condicionados e acumulam as suas experiências. “Pretender superar a ‘dupla moralidade’, pretender impedir que as tendências agressivas e autodestruidoras dominem o comportamento humano, mantendo uma estrutura social baseada na competição e na procura agressiva de privilégios privados, é a pior das ilusões. E o caminho mais seguro para a catástrofe. “Apenas uma ordem social baseada na cooperação, na solidariedade e no contro-lo consciente e democrático do desenvolvimento económico, criará a possibilidade ─ não podemos prometer mais ─ de uma superação da ‘dupla moralidade’. Apenas uma ordem deste tipo criará a possibilidade de evitar as catástrofes que se avizinham” (Ernest Mandel, Rev. cit., p.95). Deve advertir-se que essa nova ordem social ─ a que até podemos dar o nome de ‘socialismo segundo Marx’ ─ encerra uma verdadeira dimensão revolucionária, na justa medida em que, superando as fórmulas da democracia burguesa puramente representativa e formal, procura estabelecer e cumprir, eficaz e coerentemente, os princípios de uma igualdade social, não apenas formal, mas material na sua base e determinação essencial. É que não pode esquecer-se que o regime democrático é substancialmente incompatível, numa face da moeda, com o suposto ‘determinismo’ económico d’abord (que tudo procura satelitizar e submeter a si: economia, política, cultura, sistema de ensino e educação, etc..) ou, na outra face da mesma moeda, com o suposto ‘indeterminismo’ do mercado, que usualmente se ergue como bandeira ou brasão do fenómeno Mercado. Fazemos esta advertência porque, no fim de contas, não deixa de ser terrivelmente sintomático que, enquanto se está dissolvendo aceleradamente, e com uma velocidade incrível, o chamado conflito ‘Leste-Oeste’, em contraposição, o chamado conflito ‘Norte-Sul’ está aí para durar, bem rude e afrontoso, não sabemos até quando!... É certo que assistimos na última década a uma espécie de degradação progressiva do valor explicativo dos factores económicos, por outro lado compensada com um significativo reforço do valor explicativo dos factores políticos e ideológicos que, de repente, nos pareceram ter mais importância do que a que lhes era atribuída. E, nesta vertente, em termos da metodologia adoptada, ter-se-á de atribuir culpas também a um certo marxismo cavernícola, que de materialismo da Natureza podia perceber algo mas de materialismo histórico-e-dialéctico não percebia mesmo nada. Escreve acertadamente Boaventura de Sousa Santos (in ‘JL’, 10.7.90, p.7): “Perante isto, é perturbador verificar que enquanto o conflito armado de razões políticas e ideológicas se derrete como cera, o conflito que parece não ter outras razões que as económicas revela uma total rigidez. Será que o determinismo económico entrou pela janela depois de ter sido deitado fora pela porta?” Sabido que os dois conflitos supra-mencionados estão extrínseca e intrínsecamente ligados, visto que o Mundo é um só, pode e deve pôr-se a questão de saber se o desmoronamento dos regimes do Leste não vai ocultar e agravar, consequentemente, o conflito ‘Norte-Sul’!... Pondo agora de parte outras reflexões pertinentes, o que neste imbroglio se está ocultando “é a ideia de que a exposição dos erros dos regimes do Leste Europeu não desculpa os erros das sociedades capitalistas e que, pelo contrário, a ‘perestroika’ no Oriente, para ter o pleno êxito que todos lhe auguramos, tem de ser seguida por uma ‘perestroika’ no Ocidente, uma ‘perestroika’ sem dúvida muito diferente dela, mas, por certo, não menos profunda. É precisamente a ‘perestroika’ no Ocidente que constitui o outro grande desafio às ciências sociais neste fim de século” (idem, ibidem), bem como aos governos e aos cidadãos dos regimes democráticos, a começar pelos trabalhadores da ensinança críticos. O que as duas experiências históricas, em confronto, nos estão revelando é que o ‘determinismo económico’ ─ não tanto o da acumulação incessante do potencial destru-tivo das
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forças produtivas, mas o do generalizado efeito ideológico do produtivismo ─ continua a ser, sintomática e sindromaticamente, mais pesado no Ocidente… Ora, tanto face aos desastres ecológicos desseminados um pouco por toda a parte e respectivas exigências radicais feitas pela Ecologia, como face ao novo redimensionamento da Economia política (designadamente, com a integração da planificação democrática da população), as ciências sociais ─ tem de concluir-se ─ encontram-se desarmadas, despreparadas e impreparadas. O negativo e o positivo do desafio que é feito às ciências sociais, caracteriza-o assim B.S.S. (ibi, p.8): “De diferentes formas, as ciências sociais aprenderam sempre a centrar-se nas relações sociais de produção e de reprodução social. Com isto, deram menos atenção à estrutura material da produção e negligenciaram as relações entre os processos humanos de produção e os processos vitais dos sistemas macro-ecológicos, tal como, de resto, negligenciaram as relações entre o trabalho assalariado e outras formas de trabalho, o trabalho doméstico, o trabalho camponês, o trabalho comunitário, o trabalho artístico e recreativo, o trabalho do lazer. O desafio consiste em redefinir as prioridades teóricas e analíticas, ampliando os conceitos de produção e de reproduz-ção humanos até incluir a produção e a reprodução da natureza, criando campos explicativos contingentes, mas cúmplices onde seja possível pensar conjuntamente a produção de utilidades sociais, a salvaguarda do meio ambiente, a crítica do sexismo e do racismo e a criatividade do trabalho não alienado”. Estamos substancialmente de acordo com o fundo e a forma da caracterização do desafio às ciências sociais, feita por B.S.S.. Começamos, porém, a entrar em desacordo ─ e já o explicámos no nosso livro ‘Não apaguem as Luzes!’, ─ quando, como acontece no último período do texto ora citado, B.S.S. parece aproximar tanto as ciências da Natureza às ciências sociais e/ou humanas que as subsume, indiferenciadamente, num único e o mesmo paradigma epistemológico. Uma tal orientação é errada!...
─ J ─ Descentralização, regionalização e o básico princípio de Subsidiariedade
Regime político democrático exige, por definição teórica e por real estrutura or-ganizativa, todo um processo coerente e eficaz de descentralização crescente e de regionalização escalar adequada. E como estas exigências se estão impondo actualmente no caso da Nação-Estado portuguesa, por um lado com uma forte e antiga tradição de autonomia à escala comunalconcelhia, por mais tempo atabafada e hipertrofiada do que deixada em livre curso, por outro lado marcada por um centralismo administrativo imperial e napoleónico que parece não desarmar (muito especialmente, tendo em conta as orientações ou omissões políticas do cavaquismo)!... Na sociedade portuguesa ao longo dos tempos, verifica-se, inclusive, uma cons-tante histórica que exprime e atribui ao poder local verdadeiras funções de contra-poder, de inspiração popular, face ao Poder central e às suas ‘naturais’ pressões procedentes do modelo sócio-económico concentrador: “Parece, efectivamente, que o reforço ou o renascimento do poder autárquico surge, em geral, em períodos de transformação profunda da sociedade portuguesa e do sistema político, embora a contrária não seja sempre correspondida. “O reforço do poder autárquico tem uma forte componente de contra-poder em relação a forças políticas dominantes que detêm
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o poder ou que o podem vir a conquistar. Um pouco neste sentido poder-se-á dizer que o poder local e a descentralização são resultados de um processo político de transformação em relação à persistência de forças, em geral de natureza conservadora” (Miguel Caetano e outros, ‘Regionalização e Poder Local em Portugal’, editada pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, Lisboa, 1982, p.110). Quanto à descentralização, impõem a inteligência e o rigor e a honestidade que ela não seja confundida e mistificada com a pura e simples desconcentração. Por desconcentração entende-se uma “mera delegação de poderes para instâncias ou níveis da administração hierárquica e exclusivamente dependentes da instância central, continuando esta a exercer o controlo sobre o órgão desconcentrado” (cf. ‘Boletim Informativo’, nº34, ME, Dez. 83, p.28). Por Descentralização deve entender-se “uma repartição do poder político por níveis administrativos diferentes, de que resulta a autonomia de certas entidades administrativas, sem prejuízo da existência de mecanismos de coordenação” (cf. ibidem). Geminada com aquele feixe de exigências fundamentais, o regime político democrático apresenta outra exigência essencial: o princípio de subsidiariedade (que nos vem já do Direito Romano) e a sua prática efectivamente entendida como questão de vida ou de morte para a preservação da Democracia. Na verdade, para que o princípio de subsidiariedade tenha praticabilidade e possa ser consequente, entre nós, é preciso pôr decididamente em marcha uma verdadeira descentralização, que não apenas a desconcentração, do anquilosado e napoleó-nico Poder central; é, igualmente, preciso pôr em prática o princípio da regionalização, discutir amplamente os diversos projectos de Regionalização, escolher e aplicar. Que pretende exprimir e significar o princípio de subsidiariedade? ─ Que não se devem passar à instância superior os problemas que podem e devem ser resolvidos na instância inferior. Significa o dito princípio que todo o Poder (político) tem a sua origem nos indivíduospessoas singulares e concretos, que o Poder começa na base da pirâmide sócio-política e quando, no topo, ele se elitiza e etiliza e formaliza em um só, ele nem por isso deixa de ser, materialmente, legião ou multidão (segundo os Evangelhos ou segundo a expressão feliz de R. Barthes). Na verdade, só o reconhecimento e a prática intransigente do princípio de subsidiariedade podem salvar a Democracia e os regimes democráticos da sua certeira e entrópica degradação e favorecer, ao mesmo tempo, o seu aprofundamento, ─ uma Democracia sempre in fieri, um regime democrático que não se resigna com o adquirido e que, por efeito de uma neguentropia positiva, não se deixa estabilizar estaticamente. Entrevistado recentemente no fim de uma cimeira da CEE em Dublin, Cavaco Silva, evocando o papa Pio XI como quem descobria a pólvora, advogava a pratica do princípio de subsidiariedade na plataforma das relações entre os Estados face ao projecto da união política da Europa… O mesmo senhor que, internamente, para a Nação-Estado portuguesa, tem feito alguma desconcentração em vez de verdadeira descentralização; e tem protelado para as calendas gregas o imperativo constitucional da Regionalização (vide ‘C.R.P.’, 2ª revisão de 1989, Artos255º-262º). Sintoma e síndroma de caminhos errados!... Obviamente. De tal maneira assim é, que, perante as exigências decorrentes do princípio de subsidiariedade, verdadeira alma de um regime político democrático, chega a constituir um falso (ou muito secundário…) problema a opção alternativa entre o projecto dos EstadosUnidos-da-Europa e a tradicional realidade da Europa dos Estados Nações. Como são, a este respeito, actuais as seguintes palavras de Proudhon (que tanto influenciou a portuguesa geração de ’70 do séc. XIX): “As nacionalidades serão tanto mais asseguradas quanto o princípio federativo tiver recebido uma aplicação mais completa”. Efectivamente, quando Cavaco Silva diz, na referida entrevista, que será inaceitável que “um país com oito séculos de história alguma vez possa ser entendido como uma qualquer autonomia regional no quadro de
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uma confederação de estados europeus”, não estará ele a actuar de má fé fomentando perversamente a confusão do que não deve ser confundido?!... Na verdade, essa direita ‘independentista’, que resulta da combinação lógica da tradição histórica do parasitismo nacional e de vestígios de reflexos senhoriais monomaníacos e mal dissimulados, nunca quis saber nem da prática nem da teoria do princípio de subsidiariedade, ─ senão para uso interno, muito menos para consumo externo… Ora, precisamente porque pouco ou nada cuida dessas exigências fundamentais do regime político democrático, é que a democracia que o Ocidente pretende impor a todos os povos do mundo pouco passará do programar de um mero espectáculo. Como o mundial de futebol. “Sem multidões, não há futebol! Como sem povo não há missa. Como não há Democracia. Mas o povo está na Democracia ocidental, como as multidões estão no futebol, como o povo está na missa ao domingo” (Editorial do ‘Jornal Fraternizar’, Julho de 1990, p.2). Um poder despoticamente democrático ─ eis como se tem de o caracterizar. O povo está aí “para ver, para aplaudir, para pagar, para protestar, para se manifestar a favor ou contra. Nunca para decidir. Nunca para participar. Nunca para jogar. Nunca para ser sujeito. Nem da política. Nem do Governo. Nem do futebol. Nem da produção na empresa. Nem do altar. Nem da Igreja. Para essas coisas de decisão e de governo, seja no futebol ou na política, seja na imprensa ou na Igreja, lá estão os entendidos, os iluminados, os privilegiados, cuja vida devotadíssima à causa de todos, todos devemos reconhecer e agradecer” (ibidem). Por que espera o Ocidente na passagem para o 3º milénio, o qual ainda continua a contar-se sobre esse marco histórico que é Jesus de Nazaré, chamado o Cristo?!... Para quando é que “a falsa Democracia ocidental ─ poder de poucos sobre as maiorias sempre marginalizadas ─ dará lugar à verdadeira Democracia participativa, a Democracia das maiorias pobres, onde ninguém é excluído” (ibidem)?!... Não se esqueça que os pobres foram sempre empobrecidos pela acção ou omissão de outros; e que os ricos, igualmente, foram sempre enriquecidos à custa de outros!...
─ K ─ Um velho diferendo com os Ingleses… Perguntava-me, há dias, um amigo: ─ Por que razão ingleses e norte-americanos não se preocupam com ‘Acordos Ortográficos’, como, por exemplo, portugueses e brasileiros, ou franceses e respectivos países francófonos? A resposta surgiu pronta, quase em jeito de sentença salomónica: ─ Um povo, como o inglês, que não sentiu necessidade de uma Constituição Política escrita, a fortiori não carece de qualquer espécie de ‘Acordo Ortográfico’, proposto, nesse caso, pelo país da língua materna matricial aos outros países anglófonos. De resto, é igualmente sabido (e já proverbial…) como os ingleses, na sua prática linguística, relacionam e articulam ‘muito livremente’ a fonemática e a grafemática da língua!... Não ter (dispensar!) uma Constituição Política em documento escrito autónomo, fundamental e fundamentante dos diversos aparelhos jurídicos que têm lugar na organização da Sociedade, pode significar e implicar, desde logo: relevância máxima conferida à Jurisprudência e aos Tribunais (ao exaustivo estudo comparado de usos e costumes, de princípios de acção e de leis não escritas, postos de manifesto pela casuística jurídica, de decisões de julgamentos e de acórdãos…) nos actos e nos processos jurídicos, como autêntica e genuína voz interpretativa da ‘common law’; primado (social e cultural) do chamado ‘direito natural’ em confronto com o ‘direito positivo’, desinflacionando, por essa via, a moderna positividade do direito
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(superlativamente expressa naquele axioma jurídico moderno que reza assim: a ignorância ou o desconhecimento da lei não isenta nem desculpa o infractor). Nessa óptica ─ já se vê ─, são mais as pessoas, os sujeitos humanos livres e responsáveis, que fazem as instituições do que as instituições que fazem as pessoas. No policromado mosaico dos povos da Europa (e agora é a sua vertente ociental que faz mais apelo à nossa atenção), o povo inglês constitui, sem dúvida, um caso muito especial: Sem Constituição escrita, com a sorte de nunca terem sido própriamente invadidos e ocupados por potências estrangeiras, sem o ‘doloroso’ conhecimento das diferenças político-jurídicas e dos conflitos entre Monarquia e República como os que se verificaram em França com a Revolução de 1789, mas, em contrapartida, iniciadores, eles mesmos, do racionalismo moderno na construção das sociedades e do Estado com a ‘Glorious Revolution’ de 1688, ─ o povo inglês, apesar de (ou justamente por isso…) situado na ponta mais ocidental da Europa, pode considerar-se o mais fiel e directo herdeiro da Filosofia e da Sabedoria, da civilização e da cultura da velha Hélade. Uma razão estrutural, de carácter histórico e geográfico, pode ajudar-nos, desde logo, a esclarecer e a explicar esse facto, ou seja, o seu acentuado tonus filosófico-cultural (conquanto isto mesmo se afigure paradoxal, em virtude do seu proverbial pragmatismo…) de inspiração helénica: No variado leque das regiões europeias que, a Ocidente, foram ‘vítimas’ da expansão e conquista do Império Romano, a velha Albion foi indubitavelmente a menos atingida, a menos marcada. A característica positividade do Direito Romano e a respectiva organização societária não exerceram, nas Ilhas Britânicas, a mesma influência que tiveram em outras regiões do vasto Império Romano, como, por exemplo, nas Gálias, nas Hispânias. A confirmar esse estruturante facto histórico-geográfico da autonomia e autocto-nia das Ilhas Britânicas, face à expansão e conquista dos césares de Roma, pode trazer-se à colação o facto posterior, na época das guerras de religião e da cisão entre católicos e protestantes, de, nas Ilhas Britânicas, se ter constituído, no âmbito das igrejas cristãs, o primeiro Estado globalmente confessional e separado (que instituiu a ‘Ecclesia Anglicana’2), perante e em confronto com o imperialismo do Papado da Roma da Cristandade católica, ─ o qual, diferentemente do que veio a passar-se nas Ilhas Britânicas, bem cedo e de bom grado acedeu recorrer à Inquisição e a todo o seu rol de atrocidades, precisamente para manter o rebanho em ordem (históricoteologicamente, é nessa altura que se difunde, com toda a intensidade, o axioma da Igreja Romana: ‘Extra Ecclesiam nulla salus’!...). ─ Numa palavra, dir-se-ia que os ingleses, no processo civilizacional do Ocidente, interiorizaram melhor e mais cedo as coacções exteriores assim ………………….. (2) Sobre essa matéria, pode ler-se, com muita pertinência e interesse, toda a parte quinta (The Church and Education, pp.301370) do livro de John A. F. Thomson, ‘The Transformation of Medieval England ─ 1370-1529’, Longman, London and New York, 1983. É de advertir, em cabeçalho, que a Reforma Inglesa e os seus líderes foram marcados por duas linhas de força divergentes mas aí congraçadas: o hu-manismo erasmiano, que não conduzia necessariamente à dissensão e à heresia (um dos grandes amigos de Erasmo na Inglaterra era justamente Thomas More, que permaneceu um ortodoxo); e a propagação da teologia luterana de Wittenberg, que levava abertamente à dissensão e à heresia. Eis também por que o reformadores ingleses não foram recrutados nos seguidores de Wyclif nem nas ‘Lollard communities’ (cf., ibi, p.369).
como o espírito de unidade nacional (cf. Norbert Elias, ‘O Processo Civilizacional, Pub. D. Quixote, Lisboa, 1990, 2º vol., nota (152), p.282). Neste bosquejo positivo e lisonjeiro para a velha Álbion, há, todavia, elementos negativos que não podem escapar-nos ao primeiro relance da observação, por mais ‘construtiva’, elementar e global, que esta seja. Referimo-nos, designadamente, à ‘filosofia do mercado’, com tudo o que este encerra também de negativo, e ao subsequente espírito do imperialismo económico (que não é, seguramente, o ‘esprit de
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finesse’, que a helénica sabedoria da Álbion bem poderia destilar, nem sequer o cartesiano ‘esprit de géometrie’ que lavrou os caminhos da ciência moderna, mas um vero ‘esprit meurtrier’ que se vai insinuando e dissimulando ao longo de toda a Idade Moderna e que, em tempos de Pós-modernidade, não dá sinais de abrandar e recolher a penates). No que toca ao imperialismo económico, ao colonialismo e aos neocolonialis-mos, é bem conhecida a história da Inglaterra e do Reino Unido (desunido… até lá dentro: vejam-se, por exemplo, as ‘duas Irlandas’…). No que às negatividades do mercado capitalista concerne, podemos arrolar, num relance sumarizante, a falta de racionalidade, mais exacto, a renúncia à racionalidade (económica), a prepotência, a imposição (dos factos consumados…) e a trapaça, tão próprias do mundo dos negócios, em vez do diálogo aberto e franco e de um fundamental espírito de cooperação, onde a emulação suplanta a competição selvagem (‘o segredo é a alma do negócio’… eis o talismã sibilino!...); a burla, a conquista, a rapina; um individualismo que só sabe segregar egoísmo d’abord; as pessoas volvidas em coisas, pacificamente (!...) trocáveis e trocadas no mercado. Dir-se-ia que o hobbesiano ‘bellum omnium contra omnes’ tem a sua completa realização aí mesmo, no Mercado, mas sempre com a máscara permanentemente afivelada da paz no mais pacífico dos reinos!... Se podemos considerar positivamente abonatório, do ponto de vista da Evolução sóciohistórica global e da sua progressividade3, ter sido a Inglaterra o berço da primeira
………………… (3) Num implícito painel histórico, apenas esboçado, partimos do pressuposto de que as revoltas dos camponeses estão para a sociedade senhorial como as greves estão para a sociedade capitalista em larga escala. Assim, nessa linha, a Revolta dos Camponeses de 1381, sendo embora expressão de um movimento comum numa Europa ainda feudalizada, constitui o único movimento a que se pode dar o nome de revolução (com objectivos políticos e sociais) na Inglaterra medieval (cf. John A.F. Thomson, op. cit., pp.25 e ss.). Dir-se-ia que, designadamente com a referida revolta dos camponeses e o agitado processo das ‘enclosures’, e estava a antecipar e a apressar, na Inglaterra, o ritmo histórico desse movimento desestruturante e reestruturante que vai operar a transição da Medievalidade (europeia) para a Modernidade europeia. Com efeito, a revolta dos camponeses de 1381 marca o fim da vilania e o princípio da libertação da classe camponesa (cf. idem, ibi, p.31). Numa sociedade ainda marcadamente rural, os movimentos populares a partir de então até meados do séc. XVI foram motivados menos por razões de carácter social e mais por razões de índole política, fiscal, ou até religiosa (cf. idem, ibi, p.34). Entretanto, a balança do Poder pendia, cada vez mais, para o lado dos landlords em vez de para o lado dos labourers (cf. idem, ibi, p.39). São a prova disso, já a partir do primeiro quartel do séc. XVI, as ‘enclosures’ e o despovoamento dos campos (cf. idem, ibi, pp.40…). Os males da ‘enclosure’ são asperamente denunciados por Thomas More, na sua ‘Utopia’, em 1516 (vide ibi, p.40). Tendo sido várias as entidades que conduziram o processo das ‘enclosures’ (cf. ibi, p.45), à pergunta se elas constituíram um bem ou um mal, deve, pelo menos, responder-se desde logo afirmando que elas contrariaram, efectivamente, o movimento cooperativo nos ‘open-fields’. É que, lá bem no fundo do Processo histórico, com as ‘enclosures’, estava a preparar-se, na agricultura e nos campos, o terreno propício para o ascenso do capitalismo moderno, da indústria como actividade económica primacial e das sociedades urbanas mo-dernas, com a guerra, o roubo e a pilhagem sulcando o percurso (cf. idem, ibi, caps. 6-8 da primeira par-te). (4) Sobre a identificação e a apreciação das causas e consequências sociais da Revolução Industrial, designadamente sobre o conceito de revolução industrial, etapas do processo de transição e relações da revolução industrial com o subdesenvolvimento, pode ver-se o precioso livro de Nino Salamone: ‘Causas Sociais da Revolução Industrial’ (Ed. Presença, Lisboa, 1980). Em confronto com a época anterior da manufactura, o processo produtivo e o seu controlo passam do produtor directo para a máquina e o seu
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detentor, aprofundando-se quer a divisão capitalista do trabalho e sua especialização, quer a separação entre os assalariados e os detentores dos meios de produção. Como diz Rioux (cit. ibi, pp.31-32), surge, assim, a Revolução Industrial “… como o início de um desenvolvimento de novo tipo, ao qual correspondem inovações técnicas, mas, ao mesmo tempo, como expressão de um capitalismo finalmente liberto de vínculos: a revolução industrial leva a cabo o processo de formação do capitalismo. Ela assinala uma etapa decisiva da transição de um estádio incom-pleto, pré-capitalista, para um estádio em que se impõem as características fundamentais do capitalismo: progresso técnico contínuo, capitais mobilizados com vista a um lucro, mas nítida separação entre uma burguesia proprietária dos meios de produção e os assalariados”. No capítulo das consequências da Revolução Industrial europeia, não deve deixar de sublinhar-se o subdesenvolvimento, a estagnação e o atraso dos países do Terceiro Mundo, o que podemos chamar o círculo vicioso do subdesenvolvimento. “Não é por acaso que os únicos países que se mostraram em condições de ascender a uma industrialização relativa são aqueles que, [como a China ou a Coreia do Norte], na base de uma revolução política, se subtraíram ao circuito comercial internacional, erguendo firmes barreiras, através do monopólio estatal do comércio externo, à incidência sobre as estruturas locais das economias metropolitanas” (Nino Salamone, ibi, pp.155-156). “O subdesenvolvimento é, portanto, o filho legítimo da revolução industrial europeia. A prova disso reside no facto de o Japão, único país não europeu ou norte-americano a manter a sua independência e a defendê-la, ter sido perfeitamente capaz de efectuar, embora em moldes peculiares, a sua revolução industrial, fazendo hoje plenamente parte do mundo desenvolvido” (idem, ibi, p.160).
Revolução Industrial4, já não é igualmente abonatório ter sido um escocês o messias do capitalismo moderno e do seu suposto motor central de funcionamento, o Mercado. Referimonos, obviamente, a Adam Smith e à sua obra famosa ‘An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations’, e, sobretudo, à necessidade (inelutável…) de estabelecer o postulado dessa ‘Mão Invisível’ (providente…), para assegurar (e preservar…) o funcionamento do Mercado, apesar de tudo, quantas vezes contra as vontades reais (passivas e activas…) dos próprios mercadores ou comerciantes ou negociantes. E tamanha é a sua projecção que, nos últimos dois séculos, o pensamento econó-mico internacional que realmente predomina é o britânico: desde a era liberal (1818-1914) em que se define uma ordem económica internacional privada, passando pela nacionalização das trocas internacionais no período entre as duas guerras mundiais, até à nova era que começa em 1945 com a reconstrução de uma ordem económica internacional neoliberal. A liberdade contratual, que constituía a regra de ouro da ordem económica interna saxónica, estendeu-se, de facto, à ordem económica internacional. De tal sorte que, hoje em dia, o neoliberalismo internacionalista não desarma, e a chamada Nova Ordem Económica Internacional, com preocupações holísticas e trans-individuais, não há meio de chegar!... Que esteve afinal, historicamente, na origem dessa extensão universalizante do pensamento económico britânico? ─ A superioridade do desenvolvimento industrial e económico inglês (decorrente da 1ª Revolução Industrial que teve lugar em solo britânico) que se coadunava perfeitamente com tal regime convencional livre, o qual, de resto, não só lhe assegurava a manutenção do avanço (industrial e tecnológico) como também condenava, ao mesmo tempo, os outros povos e países ao comércio dos produtos agrícolas, das matérias-primas e das manufacturas mais elementares (colonialismo e neocolonialismo). Falando sinteticamente da intencionalidade estrutural da obra, deverá dizer-se que Adam Smith a escreveu em defesa da
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teoria do comércio livre e contra toda a espécie de protecção e proteccionismo (teoricamente, é claro!...). Aí mesmo, nessa obra célebre que constitui a bíblia do capitalismo moderno, ele tem de postular a chamada ‘Mão Invisível’, visto que o princípio básico em que assenta toda a sua construção não é outra coisa senão o interesse próprio de cada indivíduo, the idea of self interest, que ele caracteriza assim: “The natural effort of every individual to better his own conditions, … is… not only capable of carrying the society to wealth and prosperity, but of surmounting a hundred impertinent obtructions” (cit. por S.L. Case and D.J. Hall, in ‘A Social and Economic History of Britain ─ 1700-1976’, 2ª ed., Edward Arnold Pub., London, 1977, p.69). Great Britain: o moderno país europeu da mais antiga e experimentada Democracia! (Lembrese a Magna Charta de 1215; e ponha-se de parte o caso singular da Islândia, quase familiar, actualmente com uma população de cerca de 240.000 habitantes e com o mais velho parlamento do mundo, o Althing, criado pelos colonos em 930). Mas, seguramente, não é por esses caminhos ingleses-smithianos e quejandos que a Democracia moderna e, sobretudo, pósmoderna se pode defender e assegurar. Eis o paradoxo que carece de ser ultrapassado. É que tal ‘way of living’, ditado primacialmente pelos negócios, pelo empreendimento económico tout court, pelo ‘homo oeconomicus’ e pelas leis exclusivas do mercado, em última instância, contraria e contradiz essa noção mais elementar de Democracia que o povo inglês conhece bem: ‘rule by the people’!... Onde estão os indivíduos singulares e concretos e o respeito devido aos seus direitos e interesses legítimos?!... O suposto pragmatismo do ‘homo oeconomicus’ assegura-lhos?!... Se os indivíduos-pessoas são a origem e o fim de todo o exercício do Poder constituído na Sociedade, se eles são a fonte da soberania, mesmo quando delegam, como cidadãos, mediante o sufrágio hoje supostamente universal (!...), o seu poder nos …………….. Se, por conseguinte, a Revolução Industrial inglesa, depois europeia, trouxe consigo um enorme caudal de positividades para o Progresso e no Processo Histórico, uma vera mudança de civilização, ao lado, porém de imensas sequelas de negatividades, ─ o que há a fazer, na mesma galáxia civilizacional, é justamente alterar, coerentemente, as relações sociais de produção (de distribuição e de consumo…), é dar livre curso à construção correcta e adequada do Socialismo, ao Desenvolvimento sustentado (segundo o seu conceito correcto), inseparável de planeamento da natalidade e da planificação democrática da população, numa globalizada óptica planetária de aproveitamento racional dos recursos naturais.
representantes constituendos-constituídos bem conhecidos organismos dos regimes de democracia representativa,─ os indivíduos-pessoas não abdicam, por essa via, do seu poder e da sua soberania originais. Eis por que um regime democrático digno desse nome tem de saber corrigir e complementar (e possuir dispositivos jurídicos e institucionais para o efeito) a democracia representativa com a democracia directa, ─ e isto, não apenas de forma recorrente (quando há ‘tempestade’ política no horizonte…), mas de forma institucionalizada e permanente, muito embora condicionada a circunstâncias definidas na Lei Fundamental. Um regime democrático digno desse nome tem de cumprir, com coerência e eficácia, os imperativos da descentralização e da regionalização. Tem de compreender e pôr em prática o conceito de escala e bem assim a prática política do exercício funcional do Poder nas diversas
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escalas adequadas em que ela tem lugar. Tudo isto não se leva a efeito sem a percepção, a assimilação e a efectivação operacional do básico princípio de Subsidiariedade, ─ o qual nos reconduz, em última análise, ao metafísico valor supremo da pessoa humana, como origem e fim de todo o exercício do Poder.
─ L ─ Sobre o fio da navalha… Em vez do fácil (…) trabalho ideológico e pseudo-científico tradicional, bem distribuído e arrumado em dois arraiais distintos e separados e supostamente antagônicos, de ora em diante é preciso reflectir crítica e amplamente e trabalhar sobre o fio da navalha, ou sobre o arame, como se diz em gíria de Circo. Das duas bandas se definia o capitalismo e o socialismo como dois sistemas e duas mundividências diametralmente opostos e separados, de tal sorte que constituía imperativo categórico primordial saber de que lado cada um se arregimentava ou era arregimentado e que alianças mantinha ou fomentava. Era o ‘esprit de géometrie’ que predominava! Assim, pois, qualquer glossário político que se prezasse definia o capitalismo como segue: “O uso do capital privado para financiar os meios de produção. Os lucros provenientes de tais negócios, privadamente possuídos, são tomados pelos indivíduos privados que os possuem por inteiro ou apenas comparticipação neles, e o capitalismo é, por isso, o oposto da propriedade pública ou colectiva” (in S.L. Case and D.J. Hall, op. cit., p.145). E caracterizava o socialismo da seguinte forma: “A propriedade colectiva, detida pela comunidade, dos meios de produção (terra, fábricas, minas, etc.), dos meios de distribuição (estradas, ferrovias e transportes aéreos, lojas, etc.), e dos meios de troca (os bancos). Os lucros procedentes desta propriedade colectiva são usados pelo Estado para financiar os serviços da comunidade (esquemas de saúde, pensões, etc.)” (in iidem, ibi, p.146). ─ Assim eram definidos, com efeito, os dois sistemas supostamente opostos e antagónicos: de modo estático e estratificado, esclerosado e esclerosante. A porta das supostas facilidades de uma nova e activa inculcação ideológica e a revolução a golpes de baioneta… ─ tudo isso fechou-se, decisivamente. E esperamos que tenha isso acontecido definitivamente, na história da civilização ocidental, agora mais do que nunca mundializada. Doravante, o que deve prevalecer é o pascaliano ‘esprit de finesse’! É, por conseguinte, imperioso e urgente resituarmo-nos e tomar a orientação correcta e adequada. O caminho não está de antemão traçado. Mais do que nunca é hoje verdade o que escreveu o grande poeta sevilhano Antonio Machado: “Caminante, no hay camino; se hace caminho al andar”! Para além, pois, das unicórnias discussões académicas e dos discursos teóricos que, instrumentalizando os humanos em todos os azimutes, cedo levantaram voo do terreno iniludivelmente real do quotidiano, não lhes restando agora outro espaço senão o sulcado das fendas sísmicas provocadas (felizmente!) pela Perestroika soviética; para além dos discursos teóricos (em que uma Ideologia substantiva ainda acreditava, precisamente antes de se banhar no novo pragmatismo da Pós-modernidade!...) e das académicas confrontações entre capitalismo e socialismo, entre o suposto ‘modo de produção capitalista’ e o suposto ‘modo de produção socialista’; ─ para além disso tudo, o terreno real do quotidiano (hoje universalizado, por força dos media) encontra-se actualmente marcado por uma mundividência onde parecem triunfar, em toda a linha e por toda a parte, a economia de mercado e os valores burgueses do ‘modo de produção ocidental’!...
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Vitória do capitalismo sobre o socialismo?! Nada disso…; as coisas não são assim tão simples. ─ O verdadeiro confronto nunca se mostrou tão claro e manifesto como hoje. Efectivamente, ele caracteriza-se e perfila-se entre os princípios (fundamentais e fundamentantes) do Humanismo (seja ele cristão, agnóstico ou ateu!...) e a defesa e a salvaguarda dos Direitos do Homem, oficialmente consagrados desde a Grande Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Norte-americana de1776, dum lado, e do outro, a prática social real, cheia de brechas, defeitos e contradições, pejada de corrupções e maquiavelismos, de desumanas manipulações, a reclamar, com urgência, que seja corrigida ou substituída por formas novas e modos-de-estar-no-mundo de acordo com os princípio humanistas. Neste actual ajuste de contas ─ com natural incidência histórica e implicada necessidade de reelaborar novos projectos de transformação in melius das sociedades ─ sobre o ‘socialismo real’, há, sobretudo, duas montanhas de escolhos que é preciso saber contornar e ultrapassar: a primeira diz respeito ao legado original do Marxismo e à sua futura aceitação ou recusa; a segunda concerne ao panegírico incondicional, que do Mercado se faz hodiernamente, e à correlativa dissolução de qualquer utopia socialista… Relativamente à primeira, registe-se, emblematicamente, a posição do filósofo soviético Aleksandre Tsipko, professor no Instituto de Estudos Económicos e Políticos Internacionais, expressa em entrevista dada recentemente à ‘Newsweek’ (23.7.1990, pp. 12-13). Sintomático, desde logo, o título encontrado pelo jornalista: A Idiotia do Mar-xismo. Quanto a Tsipko, acha que o Marxismo é a ideologia dos ‘marginais’, desse povo que não se integrou na sociedade moderna e que se tornou incapaz de resolver os seus problemas através de métodos civilizados e normais (ibi, p.12). Lamentando e criticando as posições de alguns marxistas americanos ─ com quem se encontrara recentemente ─ que só vêem o mundo a preto e branco, comenta Tsipko na entrevista: “Eles são incapazes de aceitar que o mundo é contraditório, e que há problemas sociais que simplesmente não podem ser resolvidos, de sorte que a civilização simplesmente faz a escolha do mal menor. Dizem eles que a sociedade ocidental explora tanto o povo que a sociedade socialista tem de ser melhor. Quando se tenta chamar-lhes a atenção para o facto de que a exploração é muito pior aqui, pondo de mani-festo os danos tremendos que o socialismo tem causado, eles não aceitam isso. Essa gente é simplesmente incapaz de pensar em profundidade, são egotistas, querem que o mundo se enquadre no seu caixilho” (ibi, p.13). Quanto à questão do ‘primeiro’ Marx e sua ênfase nos valores humanos comuns, depois de afirmar ter combatido com a ajuda do Marx que falou da alienação e da luta de classes e, apesar de tudo, ter sido desiludido pelo Marx humanista, ele esclarece a sua resposta: “O ‘primeiro’ Marx é, de facto, o mais assustador. Escreveu sobre a ‘Questão judaica’ e argumentou contra a sociedade civil. O que ele viu como formas de alienação ─ a família, o governo, a nação, a propriedade privada e a religião ─ são as verdadeiras fundações da civilização. Ele ataca os direitos e a liberdade da personalidade, é contra a soberania cristã de cada pessoa. Foi um pensador de génio, mas a sua alma morreu” (ibidem). Na passagem destas declarações ao crivo da nossa crítica, surgem naturalmente algumas advertências que não podemos deixar de registar. No que toca aos referidos marxistas americanos não será impertinente e errado lembrarlhes que é preciso pensar mais em profundidade e que a prática política (ou em ciências sociais…) da ‘lei do pêndulo’ (sintoma e expressão de superficialidade) já não colhe hoje em dia. Mas não é menos superficial e ‘pendular’ o senhor Tsipko… No que diz respeito ao apodo de Ideologia dos ‘marginais’ atribuído ao Marxismo, responderemos, em resumo, ao senhor Tsipko, que, segundo a Bíblia, já no Velho Testamento, é justamente dos restos, volvidos em ‘relíquias’, que procede a libertação e a salvação. No concernente ao suposto déficit e incompatibilidade do Marxismo em confronto com o Cristianismo, diremos que, decididamente, não são assim tão incompatíveis Marxismo e
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Cristianismo, o Marxismo e a vera personalidade cristã. Na verdade e com efeito, é justamente o Marxismo que retoma a utopia da radical transformação dos indivíduos e das sociedades quando, nos Tempos Modernos, o cristianismo eclesiástico e de cristandade (associado às igrejas societárias e por elas destilado) entra em longa agonia e perde a sua capacidade de ser ─ como reclama o Evangelho de Jesus de Nazaré ─ fermento no meio da massa. A aproximação (impugnada por Tsipko) entre socialismo e cristianismo poder-se-ia ainda observar historicamente pela negativa: Com efeito, não haverá semelhanças e parentesco entre o ‘socialismo real’, dum lado, e do outro, o cristianismo(-cristandade) eclesiástico, onde é imperioso salientar as práticas, já de longa data, do ‘Nihil obstat’ e do ‘Nihil sine episcopo’, a mais violenta e execranda repressão inquisitorial, dogmas e dictamina pensamentais balizados por uma ‘ortodoxia’ a tal ponto expressão suposta da colectividade, que a própria liberdade individual de pensamento (não ape-nas a liberdade individual de expressão do pensamento…) é inibida, banida e anatematizada?!... ─ De resto, o simples facto de a Igreja dita católica e todas as Igrejas societárias em geral serem as detentoras principais das indústrias da morte constitui, desde logo, razão e fundamento para o exercício permanente de um imperialismo implacável sobre os seres humanos. Quanto às indústrias do sexo, as Igrejas em geral e, em primeiro lugar, a Igreja católica estão em vias de ir perdendo o seu tradicional monopólio!... Em suma, é preciso dizer que não se compreende hoje a posição (superficial e ‘pendular’) de Tsipko; mas ela até pode explicar-se historicamente. A Igreja ortodoxa grega, primeiro (já desde Miguel Cerulário e a cisão em confronto com Roma, no séc. XI ─ o cisma consumou-se em 1054), e a Igreja ortodoxa russa, depois, sempre têm manifestado uma forte tendência para a concepção dualista (e religiosa) do mundo e da vida. Ora é, sem dúvida, outra e bem diferente a Mensagem crítica de Jesus de Nazaré que paira nos três evangelhos canónicos (Marcos, Lucas e Mateus) e nos Actos dos Apóstolos. Decididamente, para revelar e comunicar uma mensagem religiosa, no sentido tradicional, não seria necessário morrer assim crucificado numa cruz, precisamente como ‘marginal’ (tanto face a Judeus como face a Romanos, Ele incomodava os poderes societariamente constituídos: para os primeiros, alegadamente porque se havia proclamado Deus…; para os segundos, porque estes temiam a sublevação dos Judeus capitaneados por esse a quem davam o nome de Cristo). Uma Igreja, por conseguinte, como a que é caracterizada, por exmplo, no livro de Pablo Richard ‘A Força Espiritual da Igreja dos Pobres’ (Editora Vozes, Petrópolis, Brasil, 1990), não é, de modo algum, incompatível ou adversária do marxismo enquanto guardião de humanidade. Aí se preconiza um novo modelo de Igreja que já está despontando, sobretudo na América Latina, e se consideram as seitas, muito justamente, como as forças religiosas da morte. “Nossa tese fundamental ─ explica o teólogo ─ é que actualmente, na América Latina, está havendo a crise da Cristandade e o nascimento de uma Igreja dos Pobres”, a qual “significa um deslocamento da Igreja institucional das classes e estruturas de poder, para os sectores mais pobres e oprimidos da sociedade” e ainda “uma transformação das relações internas da Igreja, de posições autoritárias, para relações de fraternidade”. “O modelo de Igreja chamado Igreja dos Pobres rompe todos os esquemas, tipos, formas e conteúdos do modelo Cristandade. Seu interlocutor já não é o Governo ou o Estado, mas os grupos e classes exploradas, a partir dos quais procura reconstruir a Igreja positivamente em função da vida das maiorias”. Em outros termos: “Na Igreja de Cristandade, a relação fundamental é Igreja-poder; na Igreja dos Pobres, a relação essencial é Igreja-vida, especialmente, a vida das maiorias pobres e ameaçadas pelo poder opressor” (cit. in ‘Jornal Fraternizar’, Agos-to/Setembro de 1990, pp.21-22). Em conclusão, é preciso afirmar solenemente, perante os apressados, os superficiais, os oportunistas, os alvissareiros das últimas novidades, fazedores e amantes das modas intelectuais, perante o donjuanismo intelectual, em resumo, que a metodologia marxiana, ou
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seja, o modelo de análise social de Marx e de procura esforçada da cientificidade na investigação científica (muito embora se saiba e estabeleça, preliminar-mente, que são diferentes os cânones e critérios epistomológicos nas ciências físico-naturais e nas ciências sociais e/ou humanas) não pode nem deve perder-se. Leonardo Boff e o seu grupo de trabalho pastoral e de investigação científica, à frente das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), no Brasil, sabem isso muito bem! Passemos à segunda montanha de escolhos: o panegírico incondicional que hoje se faz do Mercado e a correlativa dissolução de qualquer utopia socialista (ou outra…). Diga-se, desde já, à cabeça, que os princípios humanistas e a defesa e a salva-guarda dos Direitos do Homem (dos Humanos: homem e mulher) têm exigido, exigem hoje, e continuarão a exigir no futuro a crítica do mercado capitalista e têm postulado, postulam e postularão essa estrela do Norte da Utopia (socialista ou outra… que não aliene) que alimenta e tempera a vida e sem a qual o viver quotidiano se volve em rotina ou em desespero!... Temos diante de nós a página do ‘JL’ (17.7.90, p.19) que traz o artigo do historiador francês François Furet, subordinado ao título: As folhas mortas da utopia. Seja denunciado, antes de tudo, o texto que aparece no emolduramento chamativo da página: “A derrocada dos regimes e da ideologia comunista volta a pôr em causa toda a cultura política da esquerda europeia. Os socialistas ainda têm ideias?” ─ Este tipo de resumos e de ‘guiões’ jornalísticos, o mínimo que dele se deve dizer é que, além de induzir o leitor em erro, é demagógico e maquiavélico. Centremo-nos agora, sobre o texto de Furet. Começa ele por fazer-se esta pergunta: “O que resta da ideia socialista, na hora da derrocada das sociedades comunistas?”. Logo assevera que vai ser essa a questão dominante, nos próximos anos, para a história e a acção da esquerda europeia, e que, dissolvida a velha inimizade entre esquerda e direita, vem a ser a própria direita “que corre o risco de não ter outros recursos para além da linguagem dos interesses”. Ora esta linha estrutural do discurso, o que deixa insinuar objectivamente é que as ideias estão mesmo do lado dos socialistas e que a estratégia global vai pôr-se ao serviço da esquerda!... Um passo decisivo no discurso de Furet, que confere a este seu artigo, paradoxalmente, uma atmosfera de ambiguidade procurada e uma moldura de carácter superficial e ‘pendular’ patente, a qual poderia ser definida, estruturalmente, nos seguintes termos dilemáticos: ou revolução (comunista/socialista), ou democracia burguesa com economia de mercado e muito liberalismo. Com efeito, ao longo de todo o seu artigo, o cartesiano ‘esprit de géometrie’ parece prevalecer sobre o pascaliano ‘esprit de finesse’, actualmente tão necessário e indispensável. O passo decisivo a que nos referíamos: “Entendo por ideia revolucionária a concepção segundo a qual a transição de uma sociedade para outra, que é a condição da regeneração dos indivíduos, pode e deve efectuar-se num período de tempo curto, através da conquista violenta do Estado. Neste sentido, essa ideia continuou a ser perfilhada igualmente por comunistas e socialistas até uma época muito recente”. Advirta-se, desde já, que tal ideia de revolução e do processo revolucionário está inquinada do estigma do mecanicismo; e está longe de ter sido partilhada por todos os revolucionários, antes e depois da Revolução de Outubro. Quanto a atribuí-la, indistintamente, a comunistas e a socialistas até uma época recente, tem ele toda a razão e está realmente com a história passada. Não é, efectivamente, sobre o marco da Revolução de Outubro, e a partir daí, que as duas tradições ─ a socialista e a comunista ─ se distinguem e separam. Por um lado, os comunistas franceses ─ lembra ele ─ “conseguiram nacionalizar a Revolução de Outubro, junto dos seus amigos e dos seus inimigos, através das origens da democracia francesa”. Por outro lado, evoca ─ e bem ─ o socialista Léon Blum que, ao ascender ao Poder em 1936, com a Frente Popular, mantém a distinção, estratégica e tacticamente, entre a acção de curto prazo dos socialistas centrada no antifascismo e na gestão do capitalismo e a acção a longo prazo que é a de destruir o capitalismo.
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Nesta óptica, que reputamos de acertada e historicamente correcta, não é pela Revolução de Outubro (pelo seu fieri e factum esse originais) e pelos ideais e utopias, que ela encerrou originalmente, que passa a linha divisória entre comunistas e socialistas. O ajuste de contas, a que tem de proceder-se hoje, é na plataforma comum da Esquerda que ele tem de situar-se e desenvolver-se. E, obviamente, com um programa bem definido, depois da Perestroika soviética: Por que ruiu, assim fragorosa e ‘ordeira-mente’, o chamado ‘socialismo real’?! Não será a hora da convergência das diversas esquerdas?! Que projectos pode e deve continuar a conceber e a alimentar a Esquerda?! Que acções concretas vai ela empreender?! Ora é preciso afirmá-lo ainda mais claramente: o actual e histórico ajuste de contas, que as esquerdas e a Esquerda devem empreender, é tanto mais necessário (e será tanto mais fecundo) quanto não é historicamente legítimo separar (seria isso cinicamente errado, em última instância) as duas tradições referidas ─ a socialista e a comunista ─, mesmo em relação a esse fulcro histórico-ideológico que foi a Revolução de Outubro. Neste ajuste de contas, como se vê, não é a Revolução de Outubro (em si mesma) que está em causa; é o ‘socialismo real’, todo o seu processo de formação, crescimento e queda. É a partir deste ancoradoiro que se tem de fazer as análises e as críticas necessárias e indispensáveis; incluindo os juízos críticos que merece a parte restante do artigo de Furet. Outra tirada do historiador francês que não prima pela clareza, antes, é geradora de ambiguidade e confusão: “A verdade é, assim, que o fracasso da ideia comunista atinge toda a esquerda europeia, para além dos partidos comunistas” (ibidem; o sublinhado é meu). Registese, no entanto, que Furet faz esta afirmação num contexto precedente em que discorre sobre o insucesso da dicotomia, na prática, entre não-revolucionários e revolucionários, entre gerir o capitalismo e destruí-lo, até evocar, no caso francês, o PSU, depois o Congresso de Epinay e, finalmente, o renascimento do Partido Socialista que retoma o marxismo revolucionário que fora tradição do socialismo fran-cês do séc. XIX. O contexto francês, que surge no discurso, pode atenuar o enviezado da afirmação e atribuir-lhe algum sentido verídico. Mas o facto é que a referida tirada distorce os sentidos e cria muita confusão. Consideramos certa a parte do Predicado; errada a parte do Sujeito. Se ele houvesse escrito a derrocada do ‘socialismo real’, em vez de a ideia comunista, estaria em correspondência e adequação à verdade histórica e epistemológica.Com esse modo de dizer as coisas, só se aviva o Falso diferendo (que ele até reconhece ser falso, no corpo do texto) entre socialistas e comunistas. Entretanto, há uma nítida penchant, no artigo de Furet, para o raciocínio geométrico e ‘pendular’ do tudo (revolução, marxismo, transformação das sociedades) ou nada (sociedade burguesa e liberalismo in aeternum), em nome da ‘quase impensabilidade’ (sic) de uma suposta terceira via entre capitalismo e comunismo (como ele escreve). “É evidente que há uma maneira cómoda de sair deste impasse, que é dizer que, se por um lado a ideia comunista está a morrer, o liberalismo também não está melhor, porque nenhuma sociedade contemporânea se entrega totalmente aos acasos do mercado” (idem, ibidem). Por que não faz ele corresponder a lucidez dos conceitos à coerência e dinâmica do raciocínio?! ─ comentamos nós. Furet não dá saltos; recua a penates. Resigna-se com os dois destinos indissociáveis (e contraditórios…) do indivíduo moderno: o capitalismo e a democracia. Se Marx se enganou ao propor-se “realizar a verdadeira democracia, através da abolição do capitalismo” (idem, ibidem), Furet não vai cair em mais enganos: “Aquilo que estamos a redescobrir neste fim de século é que os dois destinos, ligados pela modernidade, são inseparáveis, que a liberdade não existe sem o mercado, pois aqueles que tentaram escapar a essa dura lei soçobraram na catástrofe política e económica” (ibidem). Confessa ele depois que não pretende “fazer a apologia do capitalismo, mas sim reconhecer a universalidade ambígua do mundo em que vivemos, que julgávamos erradamente ter ultrapassado” (ibidem). Quem julgava?!...
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Reportando-se aos países do Leste, salienta, em seguida, o regresso da economia de mercado e a relevância assumida pelos Direitos do Homem que aparecem como bênção perante a tirania comunista. Logo a seguir, procede a uma análise notável, que está longe de fazer sintonia com as teses-traves-mestras recuadas do seu artigo. Ei-la: “O tempo encarregarse-á de atenuar o carácter radical desse juízo e de relembrar às opiniões públicas desses países que a crítica do capitalismo é tão antiga como a economia capitalista e que está presente em todos os grandes autores liberais dos sécu-los XVIII e XIX. Mas para os intelectuais do Ocidente, a situação é inversa: a sua tarefa não consiste tanto em refutar a idealização do mercado, continuando a fumar o seu ópio, como antes em redescobrir a sua necessidade, tentando definir a melhor maneira de o utilizar. Não há economias produtivas sem liberdade de produção; o que não quer dizer, é claro, que a distribuição dos bens produzidos se deva fazer exclusivamente por inter-médio do mercado: nenhuma sociedade democrática, a começar pela mais capitalista, a dos Estados Unidos, funciona sem uma vasta rede de redistribuição social. Mas nenhuma sociedade democrática pode tão-pouco consentir no crescimento contínuo do Estado, em detrimento da liberdade, da iniciativa e até do civismo dos seus membros” (ibidem). ─ Uma ressalva crítica a fazer nesta análise e ao longo de todo o texto do artigo: efectivamente, se não se faz o panegírico e a apologia absolutos do Mercado ─ temos que fazer essa justiça ─, por outro lado, nunca assomam os indícios estruturais dos males do mercado capitalista (o qual, em determinadas situações, faz curto-circuito e envolve contradictio in terminis). Outro exemplo nítido do estilo simplista e de carácter ‘pendular’ ocorre quando Furet se refere a tudo isso que nos foi oferecido “no bicentenário da Revolução Francesa, um festival irónico de ‘revoluções contra-revolucionárias’! Pois o que morreu em 1989, sob as aparências de um regresso do repertório revolucionário ─ continua ele ─, não foi só Outubro de 1917, mas também a ideia de modificar Outubro, de humanizar o curso da revolução. Dir-me-ão que é o que Gorbachev está a tentar fazer, que é o objec-tivo que proclama: mas foi obrigado a inscrever na sua bandeira a negação dos princípios de Outubro, o Estado de Direito, o constitucionalismo ‘formal’, a separação dos poderes, para não falar já do mercado!” (ibidem). Marcado do cartesiano espírito geométrico, com um discurso mais metafísico do que dialéctico, dir-se-á que o historiador francês (com grandes responsabilidades editoriais nas festividades comemorativas do recente bicentenário da Revolução Francesa) se mostra aqui incapaz de pensar fora dos clichés do ‘socialismo real’: é só a outra face da mesma moeda!... Bem diferente é a perspectiva e o pensamento e o discurso do seu compatriota Max Gallo, eurodeputado e também historiador, no seu livro ‘Manifeste pour une fin de siècle obscure’ (Éditions Odile Jacob, Paris, Dez. de 1989). Aí se defendem, muito justamente, ideias e teses como as seguintes: o fracasso real do leninismo ─ como hoje alguns já admitem expressa mas, a nosso ver, reducionistamente ─ não vai impedir nem evitar que regresse o tempo dos Marx e dos Jaurès; o passado histórico do capitalismo não é nada lisonjeiro: ao lado da formação das nações, nem sempre por vias justas, o crescente e acelerado processo de individualização operou-se em tais termos que a liberdade individual de alguns, poucos, foi construída na base e à custa da servidão de muitos outros; uma vez chegados ao poder os ‘socialistas democráticos’, tam-bém eles não conseguiram, no decorrer deste século, romper com a lógica do lucro, dividindo os seus programas entre as intenções sociais de um ‘liberal-socialismo’ e uma total submissão às leis do mercado. Após a derrocada dos regimes do Leste, é imperioso e urgente abrir os horizontes da análise do debate filosófico-políticos, desde logo até porque “não há uma sociedade puramente socialista nem uma sociedade puramente ‘liberal’, no sentido restrito, económico, do termo” (François Furet, ibidem). E aí, não fica mal beber as inspirações e assimilar os ensinamentos da
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Revolução Americana, com os Jefferson e os Madison e os Paine a operar no Novo Mundo (até porque, tendo sido desencadeada 13 anos antes, ela constituiu como que o balão de ensaio da Revolução Francesa), para além da Revolução Francesa e dos seus Mirabeau e Robespierre, Danton e Marat! É preciso, sem dúvida, desfazer os fantasmas da ideia comunista tal como foi vertida nas fôrmas do ‘socialismo real’. E carecemos, positivamente, de alargar e aprofundar a ideia democrática, sem preconceitos nem classificativas apriorísticas. A vasta e rica e complexa cultura política em que a Europa vive desde há três séculos, sem esquecer os seus legados cristão, romano e helénico, constitui uma fonte inesgotável para novas ideias e ideias novas, para novos e mais verdadeiros projectos de transformação das sociedades. ‘Nova ex veteribus’. O sábio é justamente aquele que das coisas velhas sabe extrair no-vas! Como em ‘A Tragédia de Coriolanus’ de W. Shakespeare, e justamente porque, em última análise, nunca se está senão entre a guerra e a paz, é sobre o fio da navalha que é preciso abrir caminho para distinguir e separar a democracia da demagogia, como quem separa, com a joeira, o trigo do jóio ou, com a peneira, a farinha do farelo; é sobre o fio da navalha que é preciso abrir caminho entre a autenticidade individual do cônsul Caio Márcio Coriolano e dos governantes em geral, dum lado, e, do outro, a prática assegurada da democracia, para evitar precisamente a tirania dos governantes (mesmo dos mais ‘iluminados’…). Segundo Platão, a Democracia teve a sua origem filosófica com Sócrates, na exacta medida em que este, tendo sido condenado por impiedade, isto é, por suposto crime contra a religião da Cidade e por suposto crime de corrupção da juventude, aceitou e cumpriu a sua pena de morte, em vez de se deixar expatriar da Pólis. E hoje?! Quão longe nos encontramos ainda do cabal cumprimento dos ideais e exigências da Democracia, muito especialmente a Tolerância ─ antes de tudo, relativamente às penas de morte ainda infligidas… ─ que constitui a ‘alma-mater’ da Democracia. Em conclusão e resumo, duas perguntas e duas respostas imbricadas uma na outra: A) Está a Esquerda em declínio e a aproximar-se da agonia mortal? ─ Nunca a Esquerda, nos Tempos Modernos e agora, já na Pós-modernidade, como se diz, teve tantas oportunidades e ventos alíseos para se pensar, estruturar e agir sem ambiguidades e confusões (ainda que isto possa parecer, pelo menos, paradoxal aos que não sabem pensar fora dos cânones do ‘socialismo real’). Os sistemas físicos, biológicos, sociais-e-morais estão, todos eles, inexorávelmente marcados pela entropia, pela degradação crescente da energia que os alimenta e mantém em funcionamento. Quanto mais não seja, a Esquerda encontra-se elementar e preambularmente justificada, porque é ela que empunha a bandeira da neguentropia nos sistemas sociais-e-morais e mobiliza as gentes na luta pela vida! Contra os poderes estabelecidos, contra a usura da morte. A missão neguentrópica da Esquerda não é, assim, supostamente tão antinatural, visto que a irreversibilidade (que acompanha o fenómeno-lei da entropia) é, também ela, fonte de ordem e criadora de organização. Na verdade, dado que “a irreversibilidade corresponde à dissipação, à desordem”, “toda a estrutura seria conquistada por uma forte luta contra o segundo princípio [da Termodinâmica]; tanto pela vida como pelo universo” (llya Prigogine, op. cit., pp.39 e ss.). B) Depois da Perestroika soviética, da derrocada do ‘socialismo real’ e da queda do ‘Muro de Berlim’ (o brasão de má memória do ‘socialismo real’), será que o diferendo, que agora toma corpo, se ergue entre socialistas e comunistas qual linha divisória entre supostamente bons, os primeiros, e maus, os segundos?! ─ De modo nenhum. O diferendo que agora se perfila concerne, específica e genericamente, o próprio ‘socialismo real’, sua génese, crescimento, declínio e morte. Por isso mesmo, encontramo-nos agora perante uma histórica oportunidade única de a Esquerda poder repensar e redefinir a sua natureza, e elaborar um grande Projecto comum de transformação (necessária e indispensável) da sociedade capitalista,
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susceptível de mobilizar toda a gente, incluindo os menos esclarecidos e os desinteressados da política, e promover a convergência decisiva e eficaz de todas as diversas esquerdas.
─ M ─ ‘O SOCIALISMO TEM FUTURO, PORQUE CONTINUA A SER UM IDEAL’ Foi esta tese sublinhada e reforçada pela Mensagem final do X Congresso de Teologia subordinado ao tema Dios o el Dinero, realizado em Madrid, de 12 a 16 de Setembro de 1990. Transcrevemos aqui, com a devida vénia, do ‘Jornal Fraternizar’, Outubro de 1990, p.6, a referida Mensagem final. “1. O profundo fracasso do ‘socialismo real’, nos países do centro e leste europeu, está a conduzir os respectivos povos para o sistema capitalista liberal. Uma tal atitude deve ser olhada com profunda compreensão e respeito pela sua liberdade conquistada. 2. Entretanto, o desaparecimento da tensão Este-Oeste põe a nu a tensão muito mais aguda que se verifica entre o Norte e o Sul, a qual, por razões demográficas e económicas, pré-anuncia um futuro de desequilíbrios tais, que, se se não encontrasse solução bastante para ela, acabaria por destruir as possibilidades de uma paz fundada na justiça e na liberdade, até desembocar finalmente em guerras, caos e incontrolada violência. 3. Por outro lado, a forma de vida do capitalismo consumista desenvolvido, se viesse a ser estabelecida à escala planetária, conduziria rapidamente ao suicídio da humanidade e à aniquilação da vida sobre a terra, uma vez que faria desaparecer dela as condições de habitabilidade. 4. É necessário encontrar novos modos de vida muito mais ecológicos, novos equilíbrios entre o ‘ser’ e o ‘ter’. O socialismo tem futuro, porque continua a ser um ideal. 5. Nesta altura, adquire sentido profundamente actual a grave advertência de Jesus: Não podeis servir a Deus e ao dinheiro. 6. O problema do sistema capitalista não está tanto na opção entre mercado ou planificação, mas na aposta que se faz pelo egoísmo e pela cobiça sem freio, em vez da aposta pela solidariedade e pela capacidade de comunicação amistosa e fraternal de bens. 7. Como sociedades do Primeiro Mundo, não podemos pretender ditar aos povos subdesenvolvidos o que têm de fazer. Devemos, isso sim, aprender dos movimentos populares pacíficos de acção solidária que surgem no seio deles, e apoiá-los com todas as nossas forças. 8. No interior das nossas sociedades capitalistas e consumistas do Norte, os cristãos somos chamados pelo Evangelho de Jesus a introduzir uma corrente de solidariedade, de disponibilidade para servir sem a necessária contrapartida de lucro cada vez maior, de tendência à igualdade, de fraternidade efectiva com os mais humildes e desfavorecidos. E fazer com que estes comportamentos progressivamente cheguem a afectar as estruturas sociais, económicas e jurídicas. 9. Os cristãos que, movidos pelo Espírito de Jesus, avançarmos por esta via, cuidaremos em percorrê-la juntamente com muitos outros homens e mulheres de boa vontade, sem exclusivismos e sem ciúmes de grupo.
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10. Permancece connosco a esperança de, ao menos, nas Igrejas, cresça o núme-ro de pessoas e comunidades que se deixem orientar nesta direcção evangélica. Entendemos igualmente ser necessário que a Igreja em conjunto e a própria estrutura hierárquica favoreçam e não obstaculizem esta saudável fermentação”.
N.B. Do teólogo peruano J. Iguinez, que no Congresso falou sobre ‘A desigualdade Norte/Sul e a dívida externa do Terceiro Mundo’, são de destacar e reter três afirmações-síntese: a) “o conflito das próximas décadas e que deixará na sombra o conflito de classes do século XX, será o conflito Norte/Sul”; b) “O actual modelo de desenolvimento não tem saída. Quem insiste nisso, não sabe em que planeta vive. Se os 85% da população mundial quiserem ter o mesmo estilo de vida dos restantes 15%, este planeta destruir-se-á. Será pior que a explosão duma bomba atómica”; c) “O capitalismo não é solução. A solução hão-de ser os povos empobrecidos e organizados a encontrá-la. E já estão a dar passos neste sentido” (cf. ibi, p.7).
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No sulco de António Sérgio (Concluímos este capítulo com um paradigmático texto analítico-resssumptivo de Miguel Baptista Pereira sobre António Sérgio (1883-1969). É que o pensamento de A. Sérgio é altamente convergente com as preocupações que tivemos e a Orientação que traçámos em ‘Igreja sem Cristianismo ou Cristianismo sem Igreja?!’ (Moraes, Lisboa, 1969). O excerpto que vamos transcrever encontra-se no estudo de M.B. Pereira significativamente titulado O Neo-Iluminismo Filosófico de António Sérgio e foi integrado na sua obra ‘Modernidade e Secularização’ (Liv. Almedina, Coimbra, 1990, pp. 163-165)).
“Deste duplo movimento, por um lado, das Igrejas, que se interiorizam, purificando-se do poder político e do dinheiro e realizando na consciência o ideal da religação universal, e, por outro, da técnica científica, que organiza a sociedade de acordo com esse ideal de fraternidade, eliminando o odioso das classes e arrancando, por isso mesmo, as Igrejas “à tão nefasta influência das divindades do oiro”, resulta a existência do puro Deus do Espírito na sociedade humana. Por isso, para Sérgio, os vícios da religião do Ocidente não estão no seu carácter intelectivo e racional, como pensa Radhakrishnan, mas na união com a política e na subordinação a César e a interesses económicos, que perverteram a interioridade religiosa, não raro mantida com autenticidade “entre os que se dizem anti-religiosos”. “Pressuposta esta distinção entre Religião e Política, é compreensível que Sérgio se declarasse “anticlericalista mas respeitador do catolicismo”, se negasse a aceitar “o ataque jacobino à religião católica” e escrevesse que “nada nos republicanos me estarrecia tanto como o dizerem que a separação das Igrejas e do Estado era a base essencial da revolução portuguesa”, sem a menor consciência das reformas económicas e educacionais, que urgia realizar. “A nós, aos homens da esquerda”, não convinha o regime da separação absoluta “antes de realizada a transformação profunda que arrancará a omnipotência a quém a exerce actualmente”. O comportamento conservador ou retrógrado, incompreensivo e inumano da Igreja mamónica, vítima das tiranias dos cofres, anti-cristã e burguesa, “é… um efeito, muito mais que uma causa, dos obstáculos a uma sociedade
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que tenha estruturação de justiça”, pois o argentário, como ensina Gil Vicente, tem pervertido a Igreja. A transformação é esperada não de uma conversão da Igreja, que “há-de permanecer no seu tergiversar sinuosíssimo entre as forças capitalistas e as reclamações proletárias” mas dos “mercadores das coisas mais belas”, que são os revolucionários humanistas, de mentalidade cristã. À táctica errada da separação absoluta contrapõe Sérgio “um arranjo com a Igreja”, que a vincule “à defesa indispensável do poder civil” até ao dia em que se triunfe da dominação plutocrática. O ideal de sociedade ou Reino de Deus entre os homens, traduzido nas categorias racionais da sociologia e da economia, é confiado à força realizadora do socialismo cooperativo com a consequente anulação progressiva do papel organizador da Igreja, numa curiosa atitude paralela à do protestantismo liberal, que, no séc. XIX, propusera a secularização como emancipação da tutela da Igreja com integração simultânea desta no corpo social do Estado, exigida pelo espírito do Cristianismo. Por isso, as tendências do ‘Secularism’ difundidas nos países anglo-saxónicos do séc. XIX eram críticas quanto à Igreja mas não necessariamente anti-cristãs”. ─ Aqui fica o convite a uma leitura ou releitura da obra, mais que nunca actual, de António Sérgio. (Adicione-se, por último, um breve apontamento sobre Bento Espinosa (1632-1677) ─ o inaugurador, por excelência, dos Tempos Novos, nos domínios da Filosofia e da Política ─ que muita influência exerceu em A. Sérgio). Com efeito, a base do Socialismo cooperativista de A. Sérgio vamos encontra-la perfilada precisamente no conceito aprofundado de Democracia Moderna, inaugurado (em ruptura com o passado, mesmo helénico e ateniense) por B. Espinosa. Escreve acertadamente F. Cabral Pinto (in ‘A Heresia Política de Espinosa’, Livros Horizonte, Lisboa, 1990, p.234): “A questão que se põe a Espinosa, e a todos os filósofos não perturbados por interesses estranhos à utilidade comum, é a de saber como fundar a democracia por forma a assegurar a máxima liberdade na maior segurança e estabilidade, tendo em vista um aperfeiçoamento contínuo de todos e de cada um”. Ora, “a ideia básica [de Espinosa] consiste nisto: ninguém é individualmente soberano ou súbdito de ninguém; as relações de dependência não existem entre os indivíduos, mas entre os indivíduos e o todo social (a colectividade), ou seja, o Estado. Só assim ficam assegurados os pressupostos da passagem do estado de natureza ao estado de sociedade: a liberdade e a igualdade; e só assim se tornam realizáveis os objectivos da associação política: a segurança e a cooperação no sentido da utilidade de todos. “Espinosa coloca a chave da democracia na categoria do colectivo: trata-se de ‘instituir um poder que pertença à colectividade por forma a que cada um obedeça a si-mesmo e não ao seu semelhante…’. A obediência de uns a outros supõe uma relação de dominação-sujeição; ora ‘vê-se que ela não pode ter nenhum lugar numa sociedade em que o poder pertença a todos e as leis sejam estabelecidas por consenso; numa sociedade desse tipo, aumente ou diminua o número das leis, o povo permanece igualmente livre, pois que, em qualquer dos casos, não age por submissão à autoridade de um poder estra-nho, mas por auto-consentimento’ (T. T-P., V, Ap.2, pp.106-7). Numa tal situação, to-dos permanecem iguais como o seriam se vivessem no estado de natureza (cf. T. T-P, XVI, Ap.2, p.268)” (idem, ibi, pp.234-5). Onde reside a diferença e a originalidade de Espinosa, por exemplo, em confronto com o seu contemporâneo filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679)? ─ Ao contrário de Hobbes, Espinosa afirma a
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subsistência do direito natural no estado de sociedade, na justa medida em que crê que este é uma continuação do estado de natureza. Assim se explicava ele em carta ao amigo e discípulo Jarig Jelles (cf. idem, ibi, p.7). Mas “inquestionavelmente, a originalidade devia Espinosa situá-la na sua metafísica: a negação de um Deus transcendente, criador e juiz dos actos dos homens. Pensamento que tornava consequente a doutrina da imanência do poder soberano e a ausência de normas extra e suprajurídicas, cuja interpretação pudesse caber, devido a poderes so-brenaturais, a uma casta de sacerdotes que, assim, se levantaria como um poder superior ao do soberano, fazendo periclitar a segurança do Estado na divisão da obediência dos súbditos. Pois nem Hobbes, nem os irmãos La Court ou, ainda antes destes, Grotius, todos eles do mesmo modo empenhados em refutar os pretextos metafísicos do intervencionismo político da igreja, ousaram ser coerentes a este ponto.” (idem, ibi, p.8). Efectivamente, “a filosofia de Espinosa não é compatível com nenhum regime que faça diminuir, em proveito exclusivo de alguns, a potência de agir e compreender de outros; por outras palavras, não é compatível com nenhum regime que faça da ignorância e da superstição instrumentos da exploração do homem pelo homem” (idem, ibi, p.12).
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EPIGRAMA1
No princípio era o Trabalho: Trabalho vivo. Depois… veio o Capital: Trabalho Morto, Trabalho Acumulado. Pelo Capital entrou O pecado original no Mundo…
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Exploração e opressão Encontraram meios De se tornar invisíveis!... Explorados e oprimidos Já não viam sua grilhetas. ………………….. Como pode o Mundo Obter a redenção Do pecado original?! ─ Sob duas condições estruturais: 1. ─ Trabalho Morto não pode prevalecer Sobre Trabalho Vivo, Nem individual nem colectivamente. 2. ─ O Capital (Trabalho Morto, Trabalho Acumulado) Tem de cumprir o seu destino: Estar primordialmente ao serviço Da Comunidade dos Viventes!
Vila Chã, 5 de Outubro de 1990. Manuel Reis.
…………………. (1) Este epigrama é bem o corolário da minha dissertação sobre ‘A Economia do Dom’, que constituiu Lição ‘de Sapientia’ na sessão solene de abertura das aulas, no Seminário Maior de Coimbra, em Novembro de1963, e cujo texto (116 pp. dactilografadas em A4) se manteve inédito porque o editor receou muito justamente a Censura política de então. Nos dias que se seguiram a essa conferência (que durou mais de 3 horas), Amigos do autor ouviram em alguns estabelecimentos de ensino da cidade comentários do género: ‘O Arcebispo sabe o padre comunista que tem lá no Seminário?!...’ ─ Dispensei-me, e dispenso-me, ainda hoje, da resposta. Na perspectiva do estudo e investigação na área das ciências sociais e/ou humanas e sempre na linha de um socialismo crítico e de base, exigentemente humanista, deixem-se aqui esboçadamente registadas mais algumas ‘estações’ importantes da ‘via-sacra’ do autor: ─ ‘O Socialismo Crítico de Hoje ─ Teses de Il Manifesto’, do Grupo Il Manifesto (dirigido, nos finais da década de ’60, por Rossana Rossanda, dissidente do PCI). Esta tradução portuguesa, que eu fizera do original italiano, foi publicada com a chancela da Afrontamento na capa exterior e com o pseudónimo de ‘Manuel Amaral’, no frontispício, como responsável pela coordenação e edição (Porto, 1970). Mesmo assim, o livro foi imediatamente proibido e apreendido pela Censura política fascista. ─ Seminário, orientado pelo autor, na Cooperativa Confronto, à rua de Sto António, no Porto, em 5 e 6 de Junho de 1971, subordinado à temática: ‘Teses e Problemas para uma visão crítica deste difícil socialismo hoje; e para uma análise e uma atitude concretas e justas do problema revolucionário hoje’. O texto respectivo, de 120 pp. dactilografadas, permaneceu inédito pelas mesmas razões. Assistiu e interveio nesse seminário o Amigo Manuel Serra, que nas vésperas havia sido libertado da prisão (na sequência da célebre revolta de Beja de 31 de Dez. de 1961). Na tarde do domingo 6 de Junho, fomos visitar o nosso comum Amigo Pe Mário, pároco da Lixa, que estava,
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então, a ser julgado num processo que se tornou célebre e onde o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, chegou a depor a favor do Pe Mário. ─ Investigação sobre Fundamentos e Parâmetros de um Socialismo Humanista (a partir, principalmente, dos ‘Grundrisse’ de K. Marx). Esta obra, ainda incompleta, foi iniciada aproximadamente 2 anos antes do ‘25 de Abril’, continuada até 1975 (com cerca de 350 pp. dáctilografadas), e aguarda, agora, oportunidade de conclusão para possível publicação. ─ ‘Camelo ou Animal Político?!’ Trata-se de uma colectânea de ensaios políticos e culturais, ainda inéditos, produzidos depois do ‘25 de Abril’ e até 1980 sensivelmente, onde aparecem textos de carácter estrutural ao lado de textos de carácter conjuntural. Perfazendo cerca de 400 pp. dactilografadas, a colectânea, mesmo tal como se encontra, mantém interesse em ser publicada, visto que é atravessada, podemos dizê-lo, pela dimensão do socialismo crítico e de base: os textos mais conjunturais, enquanto registo da nossa mais recente historicidade concreta; os textos mais estruturais, esses mantêm ainda a sua pertinência e actualidade.
NOTA BIBLIOGRÁFICA ─ ‘Bíblia’ (Vulgata latina ou Bíblia de S. Jerónimo); ‘La Bible de Jérusalem’, Desclée de Brouwer; ‘Novum Testamentum’, em grego e latim, de A. Merk, S.J., Ro- ma, 1951 (7ª ed.). ─ BRANCO, Zillah e RODRIGUES, Miguel Urbano: ‘Em Defesa do Socialismo’, Caminho, Lisboa, 1990. ─ CAETANO, Miguel e outros: ‘Regionalização e Poder Local em Portugal’, Instituto de Estudos para o Desenvolvimento’, Lisboa, 1982.
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─ CASE, S.L. e HALL,D.J.: ‘A Social and Economic History of Britain ─ 1700-1976’, 2ª ed.; Edward Arnold Pub., London, 1977. ─ ‘Constituição da República Portuguesa’ (2ª Revisão), Estante Editora, Aveiro,1989. ─ COPPENS, Yves: ‘Pré-Âmbulos ─ Os primeiros passos do Homem’, Gradiva, Lisboa, 1990. ─ ‘Diário de Notícias’. ─ ‘Expresso-Revista’ (do Jornal semanal ‘Expresso’). ─ FINKIELKRAUT, Alain: ‘A Derrota do Pensamento’, Pub. D. Quixote, Lisboa, 1988. ─ GALLO, Max: ‘Manifeste pour une fin de siècle obscure’, Éditions Odile Jacob, Paris, 1989. ─ HEIDEGGER, Martin: ‘A Origem da Obra de Arte’, Edições 70, Lisboa, 1990. ─ ‘JL’ (Jornal de Letras, Artes e Ideias), (semanário). ─ ‘Jornal Fraternizar’ (publicação mensal). ─ KUHN, Thomas S.: ‘The Structure of Scientific Revolutions’, The University Press, Chicago, 1970, (2ª ed.). ─ LÉVINAS, Emmanuel: ‘Ética e Infinito’, Edições 70, Lisboa, 1988. ─ LÉVINAS, Emmanuel: ‘Totalité et Infini (Essai sur l’Extériorité)’, Martinus Nijhoff/ La Haye, 1965 (2ª ed.). (Há tradução portuguesa). ─ MARX, Karl: ‘Fondements de la Critique de l’économie politique’ (Grundrisse der Kritik der politischen Őkonomie), I e II vols., Éditions Anthropos, Paris, 1968. ─ MARX, Karl: Teses sobre Feuerbach (1ª versão), in ‘Textos Filosóficos’ de Karl Marx e Friedrich Engels, Ed. Presença, Lisboa, (sem data). ─ M. E. (Ministério da Educação): ‘Boletim Informativo’ (nº 34), Dezembro de1983. ─ MOREIRA, Vital: ‘Reflexões sobre o PCP’, Editorial Inquérito, Lisboa, 1990. ─ ‘Newsweek’ (revista-magazine, semanal). ─ ‘O Jornal’ (semanário). ─ ‘O Jornal Ilustrado’ (do semanário ‘O Jornal’). ─ ‘O Professor’ (revista mensal). ─ ‘O Socialismo do Futuro’ (revista internacional): nº 1, Maio de 1990. (Ed. portuguesa pela P. D. Quixote). ─ PEREIRA, Miguel Baptista: ‘Modernidade e Tempo ─ para uma leitura do discurso moderno’, Liv. Minerva, Coimbra, 1990. ─ PRIGOGINE, Ilya: ‘O Nascimento do Tempo’, Edições 70, Lisboa, 1990. ─ REIS, Alfredo: ‘Da Psicologia à Fenomenologia: o Percurso da Forma’ (tese de Mestrado na Fac. de Filosofia da Univ. de Coimbra, 1988). ─ REIS, Manuel: ‘A Economia do Dom’ (inédito de 1963). ─ REIS, Manuel: ‘Camelo ou Animal Político?!’ (inédito de 1980). ─ REIS, Manuel: ‘Flashes sobre a Esquerda neste final de século (milénio)’, Estante Editora, Aveiro, 1989. ─ REIS, Manuel: ‘Não Apaguem as Luzes’, Estante Editora, Aveiro, 1990. ─ REIS, Manuel: ‘O Socialismo Crítico de Hoje ─ Teses de Il Manifesto’ (tradução). Afrontamento, Porto, 1970. ─ REIS, Manuel: ‘Teses e Problemas para uma visão crítica deste difícil socialismo hoje; e para uma análise e uma atitude concretas e justas do problema revolucionário hoje’ (inédito de 1971). ─ RICHARD, Pablo: ‘A Força Espiritual da Igreja dos Pobres’, Editora Vozes, Petrópolis, Brasil, 1989. ─ RICHARD, Pablo: A Igreja dos Pobres na década de ’90 (O que hoje está em crise é o modelo ocidental de Igreja), in ‘Jornal Fraternizar’, Outubro de 1990, pp. 19-23. (Texto notável pela sua lucidez e magnanimidade eclesial). ─ SALAMONE, Nino: ‘Causas Sociais da Revolução Industrial’, Editorial Presença, Lisboa, 1980. ─ SANTOS, Boaventura de Sousa: ‘Introdução a uma Ciência Pós-moderna’, Edições Afrontamento, Porto, 1989. ─ SEABRA, Zita: ‘O nome das coisas ─ reflexão em tempo de mudança’, Pub. Europa-América, Lisboa, 1988. ─ ‘Seara Nova’: Nº 27 (Jan.-Fev. de 1990) sobre Repensar o Socialismo; Nº 28 (Março-Abril de 1990): mesa redonda sobre Capitalismo e Socialismo Hoje; Nº 29 (Maio-Junho de 1990): História, fanatismos, progresso. ─ SILVA, Agostinho da: ‘As Aproximaçoes’, Relógio d’Água, Lisboa, 1990. ─ SOLJENITSYNE, Alexandre: ‘O declínio da coragem’, Edições Rolim, Lisboa, (sem data). ─ THOMSON, John A.F.: ‘The Transformation of Medieval England─ 1370-1529’, Longman, London and New York, 1983. ─ WEIZSӒCHER, C.F. von: ‘Wahrnehmung der Neuzeit’, Műnchen, 1983.
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