Utopia Além Sertão

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UTOPIA ALÉM SERTÃO Raposo Tavares: Um Bandeirante Geossocial Na demarcação Do Brasil Continental

pesquisa, anotação, poesia e ensaio

JOÃO BARCELLOS 1995-2016


E vamos lá... Assim mesmo, em jeitinho de abertura, porque ir às circunstâncias da casa e capela da Família Raposo Tavares, em Quitaúna, propriedade próxima ao rio Anhamby, que recebe o Jeribatyba, e já na entrada do sertão guarani e seus ramais no Piabiyu, e dali pinçar o perfil do homem que delineou a geografia continental do Brasil, em pleno Século 17, é pedir uma mão cheia de aventuras pela ousadia avançada por Antônio Raposo Tavares – o homem em questão. Os dados oficiais sobre ele são o suficiente para montar peças de teatro, poesia e novelas, é verdade, mas tais dados não permitem reconstruir o ambiente político da ambição que o levou à caça de nativos e de prata sertão adentro, até se encaminhar em utópica jornada pelos Andes e a Amazônia em busca, bem..., em busca de si mesmo, do português que carreia a cristandade na dilatação da fé e catequiza na ponta da corta e no fio d´espada. A ocupação militar, política e econômica da América é feita, sim, de acordos com povos nativos, como aconteceu entre o Bacharel de Cananeia e os guaranis na fundação de Gohayó, a primeira aldeia luso-americana e foco primeiro da raça mameluca no Brasil, mas é muito mais na ponta da corda que enforca e na lâmina d´espada que corta a cabeça e faz sangrar. Com as táticas de ataque e de cerco aprendidas com os árabes do norte d´África, os portugueses aplicam a estratégia da ´bandeira´ nos sertões da Sam Paolo dos Campi de Piratinin sob os auspícios da Capitania de S. Vicente, que substituiu o Porto das Naus construído pelos guaranis e o Bacharel em Gohayó. O ciclo bandeirístico nasce após as ações do ´velho´ Affonso Sardinha, que venceu as resistências dos nativos entre o Portinho de Carapocuyba e o Pico do Jaraguá, no final do Século 16. As ´entradas montanísticas´ executadas por Brás Cubas, Affonso Sardinha (o Velho) e outros, ainda não são ´bandeiras´, mas explorações na demanda de pedras preciosas (Jaraguá, Ybituruna, Ybiraçoiaba, etc.) e escravização de nativos para a lavoura (Carapocuyba, Koty, Conceição de Guarulhos, São Vicente, Santos, Sam Paolo, etc.); só com a queda do ponto de atalaia do Jaraguá é que os luso-paulistas puderam passar além da dita ´esquina de Koty, ou Acutia´, a ponta do Piabiyu, o velho e continental caminho guarani.

o que ferve em mim passado é neste hoje não troco o alforje da jornada por este melancólico e fatal fim sou do tempo a filigrana d´história que me é vento

É neste ambiente político e militar que Antônio Raposo Tavares se insere para demonstrar a si mesmo que é e está português sob quaisquer circunstâncias, o que a burocracia dos gabinetes lhe impedia viver.


[Antônio Raposo Tavares em traço de J. C. Macedo]


BANDEIRANTE A alma e ação ibero-católica no Novo Mundo

Pouco se diz acerca da luta contra os turcos que, em pleno Século 15, assola os estados papais – i.e., os reinos sob obediência ao Papa cristão. É verdade que em Tordesilhas, João II e Isabel assinam um tratado que lhes dá posse territórios conquistados além-mar segundo uma linha traçada a oeste de Cabo Verde; mas, nesse ano de 1494 o que mais lhes interessa é rechaçar as ousadas banderas e salteos que os árabes executam e roubam milhares de pessoas depois de arrasarem aldeias e cidades. É preciso dar uma resposta, pronta e eficaz às hostes muçulmanas. Assim é que o Tratado de Tordesilhas, de 1494, trata da conveniência dos espaços ultramarinos ibéricos e trata, também, com maior urgência, da defesa da península, de onde se prepara a batalha do Lepanto, que ocorre em 7 de Outubro de 1571 ao largo do mar Jônico a sul do Adriático; e, depois de Antônio Raposo Tavares, o Tratado de Madrid (1750) alargou a expansão feita com a bandeira geopolítica de 1648.

Brasil, Sécs 16 e 17


E o que isto tem a ver com o bandeirismo e o bandeirante? Tudo... Ainda antes e ao tempo do rei João I, os portugueses aventuram-se em terras do norte d´África e logram fáceis conquistas, mas, aos poucos, os árabes retomam as suas terras e suas gentes utilizam a tática do salteo (pelotão de primeiro combate) na estratégia da bandera (batalhão com várias companhias de militares) que, no momento apropriado, cerca e destrói a hoste inimiga. Quando chega João II ao trono luso ele tem já vasto conhecimento da ação militar muçulmana e faz valer outro saber em Tordesilhas, embora isso não seja dito: a Ilha de Brasil ou de Brandão é conhecida desde 1342 com farto pau-brasil sendo tratado na Liga Hanseática desde 1343, quando o rei Afonso IV oficiou o papa Clemente VI sobre o assunto. Entretanto, João II prepara a frota que irá fazer o Caminho da Índia tendo Vasco da Gama como almirante. A certeza das rotas já observadas é tal que João II nem molesta Colombo quando este é aprisionado e levado ao seu paço após ter arribado nos Açores com problemas nas embarcações. Com o mundo conhecido em seus mapas, Portugal quer a Índia, sim, mas quer também a definição da Ilha de Brasil ou de Brandão, e por isso, em 1500, navegando para a Índia, o condestável (ele não era marujo e sim cavaleiro) Pedro Alvares Cabral passa pela ´ilha´ e estaca o padrão da posse. Aos poucos, do rei Manuel ao rei João IV, passando pelo interregno 1580-1640, Portugal faz do Brasil o espaço de referência em razão da própria sobrevivência. Com o domínio precário da colônia, Portugal faz saber que é preciso tornar a região um foco de recursos para o reino. Mas, como adentrar os sertões de povos violentos e até canibais? E surge aquele saber militar apreendido nas praças do norte d´África: o salteo e a bandera. No final do Século 16, após o domínio do Portinho de Carapocuyba e do Pico do Jaraguá, por Affonso Sardinha (o Velho), na capitania vicentina, os portugueses e os


paulistas podem sonhar com as riquezas do sertão a oeste do planalto piratiningo, e é com o salteo e a bandera que iniciam a odisseia sertanista. O bandeirante passa a ser uma figura tão importante quanto o rei, porque se o reino ganha a colônia também progride. Homem paramilitar, nem sempre bem preparado, mas arranchado na bandera, o praça segue com o capelão, e com eles, sob o comando do bandeirante português, seguem paulistas da segunda geração e mamelucos, gentes de outras línguas (galegos, bascos, genoveses, alemães, e etc.) e milhares de escravos nativos. Na formação de uma bandera sertanista está todo o peso geossocial da colônia esvaziando, às vezes, aldeias e minguando os homens nas vilas. E só na bandera é dado ao mameluco (filho de branco com nativa) a oportunidade de agir com armas. Um dos mamelucos mais famosos é o paulista Affonso Sardinha, filho do ´velho´ Sardinha, político e sertanista, minerador e fazendeiro. Do planalto da Sam Paolo dos Campi de Piratinin ao Itatim e Guairá, do La Plata ao Madeira, o bandeirante português, que tem em Antônio Raposo Tavares a figura maior, vai à caça de nativos, busca pedras preciosas e ferro, expulsa jesuítas e holandeses e franceses, até ter em mãos o mapa geral do Brasil continental. O salteo e a bandera significam isto: a nação e o ser luso em expansão ultramarina para dar sustento ao reino na outra banda da Península Ibérica. João Barcellos, 1995.

1 O LUSO ASSENTA NA TERRA NOVA

Corre o Século 17 quando, pelo ano 1622, Fernão Vieira Tavares é nomeado governador da Capitania de S. Vicente. Reinol e confrade cristão, já residente na colônia, habituado aos meandros governamentais, inclusive no cargo de tesoureiro da Bula da Cruzada, Fernão foi casado com uma mulher de origem cristã e outra de origem judaica. Nomeada a Capitania de S. Vicente, cujo donatário era o Conde de Monsanto, esse par do reino propôs a governança a Fernão, que chegou ao velho Porto das Naus com o jovem Antônio Raposo Tavares, seu filho. Antônio nasceu nas bandas alentejanas de Mértola, em 1598, e obteve das suas mães a influência de uma doutrina diversa, embora transportando a cristandade que o pai carregava. E um jeitinho extremo de ser e estar português em qualquer lugar, apesar do trono castelhano... Sabe-se que “desde a morte politicamente anunciada do rei Sebastião, em AlcácerQuibir, o reino luso vive mais um interregno causado pelas políticas d´alcova mal resolvidas e mercê da perpetuação do sangue azul entre famílias da mesma linhagem no ibérico espaço”, e como “o rei tombado em terra africana não tinha sequer gerado ´coisa azul´ ilegítima, embora tenha ido à guerra, a nação foi cair no colo dos Felipes castelhanos”. Por pouco tempo, o cardeal-rei Henrique fez-se Portugal, mas morreu enquanto as cortes se reuniam em Almeirim, o que deixou vários religiosos da elite católica prontos para assumir a coroa, e alguns deles bem abonados financeiramente


pelos castelhanos. Outro religioso, Antônio, sobrinho daquele cardeal-rei, que estivera com Sebastião na fatídica batalha e de lá se escafedera dizendo-se um pobre padre, assume a coroa na vila de Santarém: ele é o prior do Crato. Mas os castelhanos quem a Península Ibérica sob a sua batuta política e, em 25 de Agosto de 1580, derrotam o prior-rei em Alcântara. “O período ibérico felipino une as coroas, mas não desarma o nacionalismo da pessoa lusa. Os religiosos da cristandade não têm pátria, têm o papado, o povo tem a si mesmo e a sua terra”. Educado nos mesmos meios da baixa aristocracia medieval que o pai, Antônio chega ao Brasil, em 1618, com os olhos postos na aventura e na exótica paisagem tropical com as estações do ano trocadas em relação ao hemisfério norte: outro espaço, outro ambiente. Como o pai, ele extravasa em qualquer lugar a sua portugalidade. Se estou no Novo Mundo, quero que este outro Portugal se erga como nação além-mar, decidiuse. No mesmo ano da nomeação, Fernão morre na capitania. A viúva, Francisca Pinheiro da Costa Bravo, sai da velha Gohayó com o filho Antônio e fixa residência na Sam Paolo dos Campi de Piratinin. Formam-se na região companhias paramilitares, ditas bandeiras, para aprisionar mãode-obra nativa e ir em busca de pedras preciosas. Pouco ligado à rotina burocrática do serviço reinol, Antônio Raposo Tavares é um jovem que estufa o peito pela ânsia da aventura. Uma expedição sertão adentro é tudo o que eu preciso!, disse para si. Com rancho de casa e capela em Quitaúna, próximo ao rio Anhamby, que alguns já chamam de Tietê, e a pouca distância da vila dos jesuítas, indo pela velha fazenda do Ybitátá que fora de Affonso Sardinha, ele investe algum cabedal e integra-se na expedição que Manuel Preto organiza e comanda. Jeribatyba, um rio na baixada da Vila jesuítica com acesso ao Piabiyu e que os colonos já aportuguesam para rio Pinheiros. 1628 é o ano de uma grande bandeira. É uma brigada com quatro companhias: uma vila ambulante de 900 portugueses e paulistas, e cerca de 2000 nativos como tropa de apoio. O jovem Antônio deixa em Quitaúna a esposa Beatriz Furtado Mendonça, filha do capitão Manoel Pires e de Maria Bicudo. A desesperança das mulheres de expedicionários é tanta que aqueles que têm posses se obrigam a fazer testamento-de-campo, e tendo filhos menores são os padrinhos e madrinhas tão responsáveis quanto as mães pela educação. Já habituada às entradas do seu pai, Beatriz sabe que a expedição é como “o mar, leva mas não diz se traz”. Para as mulheres, a expedição é uma mortalha prévia que tecem com fios de horror dia após dia, noite após a noite, até que um mensageiro chega com a notícia de quem vem de lá..., ou não. Antônio estudara com olhos de ver e a alma de atalaia as sortes e as desgraças dos sertanistas, dos faiscadores, “essa gente que vai além da Koty e faz fogo na serra e no sertão dos guaranis, gente brava”. Nos encantos de Beatriz adoçou o sonho e ela soube dizer que sim, dizendo não. Nenhuma jovem mulher aceita de bom grado que o sertão lhe roube o homem. Entretanto, “estar na colônia é construir outro Portugal, ir além expandindo fronteiras e trazer riquezas em nome d´el-rei”. É o lema de toda e qualquer bandeira que se ponha em marcha sob a benção de um capelão.


O lenço agitado no ar mostra uma mulher que não quer se habituar ao suplício da solidão. É das raras a fazer o gesto, e o faz com a certeza de um retorno glorioso para o seu cavaleiro. Ela não é só a mulher do cavaleiro que não move moinhos de vento, é a heroína de uma nação em marcha, que se faz além-mar nos sertões perigosos do Novo Mundo: a heroína que dá sustento ao arcabouço psicológico do homem que, lá na frente, abre caminho novo em fé e sangue. O lenço de Beatriz é o sinal que Antônio transporta na mente, é a imagem de uma luta em que a torna-viagem é rara, por isso, determina-se em honrar o gesto da mulher que o tem como bandeira da nação: voltar com a glória da missão cumprida. Piabiyu adentro, a expedição ruma para as bandas do Guaíra e do Tapes, onde faz dos padres da Societas Iesu as vítimas principais. Os padres têm de saber que a labuta deles não é criar obstáculos, mas ajudar a abrir o horizonte de Portugal. Os jesuítas sabem disso e não o fazem, preferem construir com os povos nativos uma teocracia própria e fora das políticas pastorais-coloniais do Vaticano, o que impede mão-de-obra nativa para a lavoura e as minas dos colonos. Na verdade, os jesuítas seguem a orientação de Manoel da Nóbrega, o jesuíta que mandou erguer a Vila dedicada a São Paulo, pois, desde o fracasso da primeira vila, que chamou Maniçoba, nos cafundós do sertão da Serra do Japi, ele havia determinado a expansão jesuítica para o sul e sempre Piabiyu adentro para encontrar o foco principal dos guaranis, o povo nativo mais místico da colônia. Antônio já sabe que uma das missões é “fazer o que se fez com os jesuítas da villa de sam paolo: dar-lhes regra ou expulsá-los”. As outras são as de sempre. Ao deixar Beatriz na banda de Quitaúna e enveredar pela expedição sertanista, ele sabe que vai, não sabe é se volta, porque a missão é enfrentar gente brava do sertão e os tinhosos jesuítas castelhanos, tudo de uma assentada. Ele quer saber por que os paulistas querem invadir o sul dos jesuítas castelhanos e escuta que “o gentio do sul não pode ser arranchado pelos interesses dos jesuítas castelhanos, porque a região é pertença de Portugal pelo Tratado de Tordesilhas” E do oeste ao centro-oeste passando pelo sul, a marcha deixa pelos altos necessários ao descanso e alimentação, novos fogos, enraíza antigos. A tropa tem chefes experimentados: Brás leme, Luís Grou, Pires de Mendonça, André Fernandes, Vaz de Barros e outros, sendo que o grupo de Grou avança, a certo momento, pelas cabeceiras do rio Ribeira a tomar conta do sertão de Ibiaguira, manobra necessária à segurança do todo paramilitar em marcha. Os nativos são dominados a cada ação e um dos caciques capturados, dito Tataurana, serve-lhes agora de guia.

tataurana oh meu porto d´honra por ti na guerra sou cavaleiro dos grandes fiel herdeiro vieste a mim como dádiva e de ti trajo a honra sou fama

O que aconteceu no território jesuítico? O cacique guarani está sob a guarda do padre Mola, que se recusa a entregá-lo à tropa. Por mais que a ânsia de uma contenda miliciana faça ferver os sonhos de Antônio Raposo Tavares, ele só decide dar início ao combate contra os jesuítas e os castelhanos


após estabelecer acordo com os outros comandantes. Ainda a jornada está longe do fim e apelidam-no de jefe de los mamelucos, tal é a sua personalidade e determinação. – Dar cobertura a inimigo d´el-rei é estar contra nós, fieis à coroa e à grei. E esses padres são castelhanos em terra portuguesa! – anuncia. Tudo havia sido escaramuça até então, porque, diante de tanta tropa e escravos da terra, os nativos não ofereciam grande resistência e preferiam o refúgio nas densas florestas, mas um cacique refugiado na batida de um jesuíta não português é como a chama que faz incendiar os primeiros gravetos da fogueira. E, enfim, o jovem Antônio comanda a primeira batalha, faz a espada sangrar nativos e castelhanos. A captura do cacique Tataurana foi, no rescaldo, o seu porto d´honra. A experiência sertaneja e paramilitar toma conta do espírito de Antônio Raposo Tavares. Em cada alto quer saber da estratégia a seguir, porque o Piabiyu é um caminho certo e dito pelos guaranis, sim, feito já pelo ´velho´ Sardinha e o governador Souza, mas as trilhas de acesso e de fuga são muitas, pelas matas e riachos – matas e riachos de onde podem surgir centenas de flechas. O que acontece, e corre sangue, muito sangue, desespero, gritaria, um salve-se quem puder no meio da chuva de setas. “Precisamos saber como conter esse gentio do sertão, mais atalaia”, diz-se. E ele, Antônio, sabe-o muito bem. “Mais atalaia, olho vivo”. O capelão foge mais do perigo do que assiste aos feridos e mortos, e quase sempre é mais um com espada nas mãos, porque só se faz reza vivendo. E isso faz Antônio observar melhor o ritual da falsa misericórdia, da hipocrisia vestida de santidade.

não sei o que dizeis nessa reza sei que da vossa ação o guerreiro não preza porque estranha e amortalhada o deus vosso é tal e qual o meu – o fio d´espada

Ele percebe que a diferença entre o capelão, muitas vezes versado também em montanística (ou mineralogia), e o sertanista-bandeirante não tem limites: este, busca a riqueza e a fama, aquele, faz o mesmo sob os auspícios da cristandade, por isso detém o saber enciclopédico, forma única de a cristandade dominar a colonização política e militar.


Uma guerra é sempre uma tormenta psicológica. De um lado e do outro a aberração da morte matada que celebra a vitória, celebra também a derrota. E nem sempre a mística fé se dissocia da dinâmica que é a sobrevivência, seja qual for o credo. – Quem deu a vós autoridade para tal? – quis saber um jesuíta castelhano diante da destruição no sul feita pela expedição. – Pelo que Deus me deu nos livros de Moisés! – respondeu Antônio, a fazer valer o sangue e a fé da madrasta Maria da Costa, detida em Lisboa pela Inquisição por ter sangue judio. Antônio falou com uma personalidade bem vincada e a fé na espada. E assim se forja no espírito do jovem português um guerreiro destemido, tendo a aventura como fé, uma fé de humanidade precária que o é em vida. E ele vive intensa e profundamente o seu tempo, faz história. Um tempo de idade medieval e cavaleirosa, apesar do modernismo caraveleiro, sim, um tempo em que a honra se faz no fio d´espada por el-rei, e por el-rei se arrebanha escravos e pedras preciosas em terra de outrem, porque tomada e evangelizada, sendo ela o despojo e a celebração. a terra que alcanço e os povos que dou a el-rei são esperança e são mundo que dou às gentes neste altar da terra nova aqui me faço gente com gente e na minha marcha eis que o luso renova

E então, ele é um dos que faz o retorno com a celebração a cogitar mais batalhas, mais vitórias por um Portugal alargado e, também, casa nova para todas os credos, porque ele só conhece um altar: a espada que garante a vida e o credo. A notícia corre de casa em casa, avança o Anhamby e o Jeribatyba, e Beatriz, enfim, para de tecer a mortalha que lhe demonizava a alma. O seu Antônio é vindo e com ele um pouco de paz e felicidade.

2 UM COLONO NA ESSÊNCIA DA BRAVURA

1632. Jovem ainda, Beatriz morre a saborear a felicidade de ter o seu Antônio em casa. Foi das poucas a abraçar um homem feito nação e com a glória de o ser a serviço de um povo que se faz ao mundo. Antônio é um homem abalado com a perda, não consegue imaginar a sua vida sem uma mulher na retaguarda social. Rainha morta, rainha posta, escuta. Resiste, vive momentos de profunda solidão. Embrenha-se na política municipal, deixa-se ficar entre os burocratas da capitania vicentina, mas percebe que a solidão não lhe é boa companhia e algumas famílias acenam com outro casamento, outras mulheres, algumas com posses, que lhe podem valer, tirar do desassossego psicológico. A colônia não permite interrupções nas vidas dos homens que lhe são essência política, social e militar. Mulher que vai, mulher que vem. Antônio Raposo Tavares casa então com Lucrécia, filha do bandeirante Fernão Dias Paes – era ela Lucrécia Leme Borges de Cerqueira, viúva de Gaspar Barreto e com origem em família reinol portuguesa de Mesão Frio. Ele não se afasta da linhagem senhorial, aliás, é tão


“cavaleiro quanto político, e um não existe sem o outro no poder colonial”, como escutara algumas vezes o seu pai falar. Um dos comandantes com quem mais conversa é Vaz de Barros, um quase cavaleiro veterano que os guaranis apelidaram de vaz guassu (q.s. vaz, o grande), que havia ajudado a dar capela em honra de Nª Sª do Monte Serrat à aldeia guarani Koty, junto com Fernão Dias Paes, e tinha grande fazenda numa das margens do Anhamby a oeste do planalto piratiningo, com capela dedicada a São Roque. Nas empreitadas administrativas da política colonial obriga-se Antônio à fala com os caciques brancos, nunca fica isolado. É o colono na sua essência de mando e cobrança. 1633 O comandante não fica longe da hierarquia reinol, nunca. Ele sabe que na colônia distante é preciso fazer o que fez o ´velho´ Sardinha, e não o que fez o Bacharel de Cananeia: constituir uma sociedade com o todo em marcha e não obstruir os caminhos d´el-rei. A odisseia de Affonso Sardinha ainda ecoa pela capitania vicentina, e mais na Sam Paolo dos Campi de Piratinin, e era do saber comum que ele era de fé mosaica embora se fizesse ´jesuíta´ e ´cristão´ para fazer parte do comando político e administrativo. E o foi. Já o bacharel optou por defender o seu judaísmo castelhano com os inimigos de Portugal e se deu mal, muito mal. Mas, estar com el-rei não é estar ou ser cristandade. Os padres também o sabem, e fogem dele. O casamento com a filha de um notável cristão reinol não amacia o assunto. O agora experimentado paramilitar, que ganhou esporas em ação, é um homem frio, calculista, vive com a grei e com el-rei: é ele mesmo em todas as circunstâncias. Faz jus a uma circunstância: na colônia sê colonialista. Não o sendo, vive o contrário, o diverso, e paga por isso. O momento histórico da ação ultramarina portuguesa no Brasil é de assentamento definitivo e expansão da posse, não entender isto é estar além da própria sociedade ou contra ela. A sua estatura social o faz juiz ordinário, mas é cargo de pouco interesse, e concorda em ser ouvidor da capitania vicentina quando logo recebe o convite do conde de Monsanto.

3 O PODER NÃO É MAIS PAPAL-PALACIANO, MAS BURGUÊS E URBANO

No meio das questiúnculas burocráticas da corte ultramarina, Antônio Raposo Tavares não vê com bons olhos que “religiosos façam Governo em propriedades do Estado, eis uma anomalia institucional”. Assim como “o judaísmo está por toda a parte” porque em toda ela se inscreve com negócios, o que é suportável até pela economia liberal que gera e nisso ajuda a sociedade, e “o mesmo fazem os sírios e os libaneses, os palestinos e os turcos, e já agora até negros montam os seus terreiros de comércio e reza”, também os jesuítas e os padres do vaticano devem obedecer a grei estabelecida. Para ele, e também para Paulo do Amaral, Lucas Pinto, Pedro Leme, Manuel Pires, entre outros notáveis da Villa de Sam Paolo, a lei vigente, de Setembro de 1611, determina que nas aldeias de povos nativos a assistência religiosa deve ser feita por ministros da cristandade (ou clérigos) e sob os auspícios da autoridade real ou civil. A aldeia nativa de Barueri é, em 1633, um território evangelizado e chefiado pelos jesuítas, um estado-dentro-do-estado. Com tal leitura política e jurídica debaixo do braço, lá foram aqueles notáveis, em Julho, desembaraçar a aldeia do colégio-igreja


com expulsão sumária dos padres. A sociedade jesuítica lançou bandos a publicitar a imediata excomunhão com sentença avançada pelo jesuíta castelhano Campo y Medina – sentença rasgada e pisada pelos notáveis portugueses e paulistas. Com tanto cacique branco junto e misturado tornara-se óbvio que a grei não fora o motivo, mas o fato de “a organização jesuítica proteger os nativos livrando-os da escravatura”. Mesmo com o Procurador do Conselho a requerer que a Câmara paulistana tomasse conta de Barueri, pelo que considera “usurpação do clero”, o certo é o processo se arrasta politicamente e, ainda em 1633, tentam caçar o mandato de ouvidor Raposo Tavares, que recorre em embargo por ter cargo até mais dois anos. Além de os jesuítas montarem um estado religioso dentro do Trono, o que Raposo Tavares entende por usurpação geral, ele vê na estratégia dessa cristandade extremista mais uma máscara da hipocrisia para manter outras crenças longe do poder. E ferve. Ele acha que Igreja é uma coisa e Poder é outra coisa. Ao tempo caraveleiro a força da cristandade não é a mesma dos papas guerreiros, pois, a burguesia mercantil tem parte do poder, que é econômico e político, não mais e unicamente papal. Ora, nem se respeita a Linha de Tordesilhas... A causa jesuítica faz nascer em Antônio um ódio tamanho, a par da raiva dos senhores de terras, que ele respira “a expulsão dos padres no fio d´espada onde quer que estejam”. 1638, começa o martírio dos jesuítas. Corre o mês de Janeiro na Villa que fora jesuítica. Mais uma vez, na margem a oeste do Jeribatyba, portugueses e mamelucos, nativos e até aventureiros estrangeiros, incorporam-se à Bandeira do Tapes, com a qual o comandante Raposo Tavares quer varrer de uma vez os jesuítas castelhanos das bandas dos Pampas. Lá no sul, as vastas pradarias aquém e além do rio la Plata, pradarias que na língua nativa quéchua se diz pampas, os jesuítas, seguindo aquela orientação de Manoel da Nóbrega, encontraram o tão sonhado território dos guaranis para, com esse povo e a sua mística dimensão, levantarem um novo reino espiritual. Naquela investida sob comando de Raposo Tavares haviam sofrido muitas baixas, mas reconstruíram as aldeias e reordenaram os nativos. A Societas Iesu investiu em cultivo de erva-mate e criação de gado de corte, cavalos e mulas, tecelagem e cerâmica, com foco mais em Buenos Ayres e Asunción: o negócio era muito lucrativo, e assim continua. Se de um lado os jesuítas têm a preocupação com bandeirantes, do outro é com os encomenderos, paramilitares castelhanos que têm o mesmo objetivo: caçar nativos para o serviço escravo. A sociedade jesuítica chegou à América quando as ordens franciscana e dominicana, ambas enraizadas no serviço inquisitorial do catolicismo, já dominavam muito território, daí a estratégia do padre Nóbrega em buscar ao sul, e a partir de Sam Paolo, outras paisagens, outras gentes, para erguer outro estilo de cristianismo. O serviço de encomiendas, trabalho escravo de nativos, garante nas reducciones (trabalho redirecionado) uma mão-de-obra que ajuda na economia do poder castelhano além-mar, projeto que os jesuítas aprimoram socialmente, enquanto as outras ordens operam a política evangelizadora e católica do Vaticano. É no poder econômico dos jesuítas que poderosos senhores e cavaleiros como Antônio Raposo Tavares veem a usurpação social dos padres. – Aos padres a catequese e as capelas, aos civis o poder político e financeiro! – dizem. Mais uma vez provam que o ataque à aldeia Barueri não foi um arroubo político, mas uma cultura de poder que dá primazia à ordem civil deixando a ordem religiosa em órbita própria. A laicidade dos senhores e cavaleiros não permite sequer pensar em repartir poder, e só


não mexem com franciscanos e dominicanos porque tais religiosos operam conventualmente. Fora do poder, sim, cada um é a fé que deseja expressar. Antônio deixa a Sam Paolo dos Campi de Piratinin com a convicção de que deixar a marca d´el-rei nos pampas será destruir em definitivo as tolices de Colombo quanto à linha imaginária demarcadora, pois, a de Tordesilhas já virara piada entre marujos e cavaleiros. E mais: já sabe que em Portugal o gentio e parte dos cavaleiros se organiza pela restauração do reino. Urge tanger os filhos de Castela lá nos pampas e dar ânimo à nossa gente que ousa na outra banda do mar!, pensa. Seguem o comandante 120 portugueses e paulistas, acompanhados de 900 a 1000 nativos. Capitães como Coutinho de Melo e Ortiz de Camargo dão carga senhorial à tropa. Ele planejou a bandeira tal e qual aquela de Nicolau Barreto, de 1602, ou seja, o número necessário de senhores e de servidores, e não uma fanfarra mato adentro, como aquela que anunciou a chegada do governador Francisco de Souza à pacata Villa jesuítica. Meses e meses no sertão, Piabiyu adentro, não é uma caminhada fácil e em cada alto surgem os problemas ´domésticos´ a serem administrados, às vezes mais fatais do que um vento de setas flechadas da floresta. A região entre o rio Ibicuí e a serra Geral, do rio Caí à serra do Tapes, recebe a bandeira em pleno Novembro. Após alguns dias de observação, definição de estratégia e táticas, Antônio decide seguir pela margem esquerda do rio Jacuí. Enquanto isso, e em pleno Piabiyu, a companhia chefiada por Melo Coutinho faz operações de guerrilha contra os povos locais para impedir quaisquer resistências. No dia 2 de Dezembro, Antônio Raposo Tavares cerca e ataca a aldeia de Jesus Maria arrasando-a e fazendo prisioneiros; e, logo, a aldeia San Cristóbal, pelo rio Pardo, para terminar a jornada no rio Jacuí adentrando a aldeia de Sant´Anna. As operações ocorrem com precisão e em pouco tempo as reducciones estão destruídas e os jesuítas mortos ou em fuga. Milhares de nativos engrossam uma massa de escravos com destino às lavouras de portugueses e de paulistas. Celebrando uma vitória que lhe sabe a vingança, Antônio vê a tropa fazer o retorno em 20 de Janeiro de 1637. Ele fica. O bandeirante quer deixar tudo politicamente assente na região que de Portugal é pertença. Sabe que muitos jesuítas e guaranis fugiram em canoas para as aldeias de San Inácio e Nª Sª do Loreto além rio la Plata. Logo, administrar as forças locais e demarcar a região com a bandeira de Portugal é uma necessidade de logística política.

[aldeia jesuítica de San Inácio]


Diante dos estragos, do sangue, da gritaria de gente perdida e inconsolada, Antônio tem a certeza de que o poder civil deve ser executado pela ordem própria e não permitir que bulas papais se misturem na questão do ordenamento colonial. Está em marcha uma burguesia rural que já pisa espaço urbano, e as universidades de Coimbra e Évora formam uma nova sociedade. Quanto mais se alargar este espaço no Novo Mundo mais a burguesia será escutada nos paços d´el-rei, diz-se. Antônio Raposo Tavares é um dos senhores e cavaleiros que acreditam no novo tempo que se faz na terra nova. – E eu já penso em fazer da minha fazenda a Aldeia São Roque, porque o mundo é outro, é de agricultura e é de cidade. Olhe, olhe como está forte a Sant´Anna do Parnaíba..., maior do que Sam Paolo... – escutara do amigo Vaz Guassu. Sente-se confortável na decisão de dar mais espaço para bandeira do luso tremular no vento tropical. – Outra vez! Outra vez! – escuta o grito apavorado de um castelhano. A tropa desaparece no horizonte e Antônio escuta o homem, um idoso: – Os da nação Jê acabaram com o padre Cristóbal porque ele entrou com os guaranis no campo de caça deles, lá em Ibia, sim, ano passado – sublinha, ao ver a cara de espanto do bandeirante – e, ora, vêm vocês e acabam com os jesuítas. Ai, eles davam terra e davam comida para esta gente! Ai, que Deus tenha piedade e o Papa nos ajude... – Isto aqui é terra de Portugal e eu sou Portugal, nenhum papa vem dizer-me o que batalhar ou o que fazer! – diz o bandeirante. E vê que o velho se afasta com o pavor nos olhos. Dá uma olhada no horizonte e percebe que a tropa se foi mata adentro.

4 PORTUGAL, O PODER DA TERRA E A COBIÇA

Em meio à afronta que é a reforma da instituição da cristandade pelos protestantes, as nações que neles se acham fortes começam a cobiçar o espaço ultramarino português, e mais o Brasil. Força politicamente antagônica, “a Holanda, faz-se presente nas costas do Brasil, como já havia acontecido com a invasão francesa e a inglesa, com os seus corsários, mas agora os holandeses urbanizam e nessa ação social incluem a reza protestante” nas bandas de Pernambuco e da Bahia. Sob o domínio castelhano desde 1580, Portugal é parte do trono ibérico, o seu espaço ultramarino recebe ataques corsários de franceses e ingleses que o são contra o poder castelhano e, por outro lado, enfrenta um velho freguês da Liga Hanseática dos primeiros tempos do pau-brasil: a Holanda. Os holandeses, através da sua Companhia das Índias Ocidentais, querem as regiões nordestinas e ali restabelecer o negócio da cana d´açúcar que os castelhanos impedem. Na primeira investida, em 1624, quando Salvador da Bahia é ainda a capital lusa nos trópicos, Jacob Willekens adentrou a região com 1500 soldados experientes e, embora, expulsos a seguir, o nordeste continuou como objetivo militar e econômico. Antônio Raposo Tavares tem notícias de uma iminente ruptura geográfica caso Portugal não consiga barrar os holandeses. Isto aqui é Portugal, repete para si com a visão na expulsão dos jesuítas lá nos confins dos pampas. Organizam-se forças paulistas ao chamado do governador Salvador Correia de Sá e Benevides, através de Francisco de Rendon Quebedo. Do outro lado, de Portugal, não existe possibilidade de apoio, o gentio está com os Quarenta Conjurados, grupo de cavaleiros clandestinos que vem pondo incêndio político nas hostes castelhanas, e tudo indica para breve a retomada da nação.


1639. E eis o português de Sam Paolo mais uma vez em ação. Antônio vê no chamado mais uma aventura. Junta à sua custa 150 praças e embarca para a Bahia, em 7 de Agosto, com a patente de capitão concedida pelo conde Fernando de Mascarenhas. O conde está imbuído de um sebastianismo exacerbado, não parece muito ciente da tarefa militar, pois, não fora a coluna de Antônio a tropa embarcada não seria formada. Entretanto, Antônio junta-se à tropa de Fernando da Silveira, mestre de campo. Os portugueses e os paulistas são rechaçados, mas a tropa de Antônio Raposo Tavares tem, mesmo assim, grande destaque na ação durante a retirada do Cabo de S. Roque; e, logo, de novo em Sam Paolo, Pereira de Azevedo faz embarcar singrando o rio São Francisco uma tropa para socorrer quem na Bahia já sofria de isolamento. Existe a notícia da invasão holandesa, mas não existe o conhecimento sobre a força militar que já em 1624 fizera a primeira expedição. Uma força de soldados e marujos muito bem treinada.

[mapa do espaço holandês no nordeste: um quase continente]

Os holandeses não são guaranis nem colonos castelhanos, são militares experimentados em várias guerras. Defender o espaço português em pleno domínio do trono castelhano é algo quase inconcebível, e o esforço depende da boa vontade e do cabedal dos senhores e cavaleiros. Sem essa informação técnica, homens como Antônio Raposo Tavares são simplesmente retidos nas areias da Bahia e em pouco tempo precisam de reforços para sobreviverem. Eles enfrentam uma organização social e militar chefiada pelo conde Maurício de Nassau, um especialista em expansão colonial que faz do nordeste uma fortaleza. Os portugueses e os paulistas, e os muitos


mamelucos (aqui autorizados a empunhar armamento), encaixam uma derrota que é a de um Portugal sob governo de outra nação. A situação do espaço ultramarino português desperta a cobiça, alardeia facilidades, disponibiliza novos mapas para uma geografia política sem dono. Quem é quem nesta política de interesses reinóis e burgueses? Antônio retorna ao planalto piratiningo sem o sabor da conquista, da vitória. É diferente escutar o tilintar das esporas e o vento nas velas, a odisseia é outra. Ora, ao marujo o mar que lhe é pertença, ao cavaleiro as esporas que o fazem ao sertão É quando sabe que no Portugal do umbigo ibérico o povo se anima a dizer-se Portugal e a retomar o que lhe pertence como nação. A cobiça será enfrentada, pensa ele.

5 PORTUGAL, O RETORNO DA NAÇÃO & UM BANDEIRANTE EM LISBOA

1640. O povo português retoma a sua nacionalidade e volta o olhar para o espaço ultramarino: é preciso conhecer melhor o que somos além-mar. O grupo Quarenta Conjurados decide dar fim ao domínio felipino. Um dos conjurados é João Pinto Ribeiro, bacharel que faz anular o Juramento de Tomar, uma vez que a linhagem castelhana dos Habsburgo falhou na sua missão. A ação dos conjurados tem enquadramento ideológico do padre Antônio Vieira, que apoiava de perto as muitas famílias fidalgas que após Alcácer-Quibir haviam perdido tudo. Tudo, menos a portugalidade. No dia 1º de Dezembro os conjurados invadem e tomam o Paço da Ribeira, onde aprisionam a vice-rainha e duquesa de Mântua, e logo encontram o secretário Miguel de Vasconcelos refugiado em um armário; tão anti-português ele era que foi de imediato jogado por uma janela para se finar no solo que tanto desprezara. Ora, Portugal é livre e o reino se reestrutura. O bragantino João IV, descendente de João I, é coroado rei e, enfim, fidalgos e gentios podem soltar o grito de liberdade.


E em 1647, Antônio, o grande bandeirante, embarca para Lisboa solicitado para uma conversa palaciana e mantida secreta em todo o Brasil. O maior orgulho é pisar novamente na sua terra, finalmente livre. içadas as velas o barco é maresia que a Lisboa dos cais e adegas m´aguarda com cantoria e donzelas eis me aqui pela cortesia d´el-rei sob novas velas

A fama do bandeirante é grande. Enfim, os paços lisboetas recebem um vero e autêntico expedicionário dos sertões do Novo Mundo. Sim, Portugal é livre por obra e graça da própria gente lusa. E agora? Agora é preciso fazer o registro do Portugal enquanto mapa intercontinental. E quem melhor do que o bandeirante Antônio Raposo Tavares para rasgar de novo os sertões e fazer a ligação sul-norte via região amazônica. Urge uma cartografia portuguesa própria que possibilite, também, depois dos jesuítas castelhanos, expulsar os holandeses, que do nordeste se infiltram no rio Madeira com seduções mercantis junto dos gentios. A missão é grandiosa, por isso, tratada sob sigilo. – Tão grande e complicada que não sei se alguém sobreviverá a ela! – constata Antônio. E este é o seu segredo. Que não compartilha com os gerais. – Não é apenas el-rei que confia em ti, este novo Portugal precisa do Brasil inteiro, levas a nação contigo! Precisamos estabelecer limites, cercar o que de Portugal é – escuta de um dos mais próximos amigos que fizera na corte lisboeta. Recebe do rei João IV, em 1642, o título de mestre-de-campo, o que o faz autoridade militar em qualquer parte do reino Ele sabe que representa el-rei na empreitada, mas a responsabilidade está mais na fidelidade ao seu jeito de estar e ser português.

6 UTOPIA SOLTA NO SERTÃO OUTRO PORTUGAL

Visualiza, ainda em Lisboa, uma nação tão vasta e rica que a utopia lhe toma os sentidos. Será?, pensa. Dominar e reordenar os povos do sertão não é tarefa de dias, mas de gerações; ligar o todo geográfico dos sertões do Brasil parece-lhe, no entanto, uma tarefa possível. Como expedicionário e militar isso é compreensível apesar dos obstáculos. Mas, dizer aos povos de outras línguas e florestais que ora são pertença de Portugal, o faz sentir-se qual don quijote a batalhar miragens no sertão. E assim lhe parece ser utopia a segunda tarefa.


Viver a utopia no sertão é viver a sobrevivência, então, que o seja!, determina-se ele, já a armar encontros para arregimentar soldados e comandantes em Sant´Anna de Paranaíba. E não era uma quase utopia restaurar o trono do luso?... do tempo que sou percorro o espaço da vida – fado único Fatal, telúrico vou para baixo e vou arriba nest´alma que Deus povoou nest´alma que Deus povoou sou do velho luso a sina o que de utopia m´ensina a vida é o que sobrou

Nas últimas noites, e até nos intervalos entre encontros em Sant´Anna de Parnaíba, agora a vila mais plutocrática da capitania pelo que da elite portuguesa e paulista reúne em suas fazendas, Antônio pensou, pensou e pensou no que de utópico lhe calha em vida. Nestas jornadas, ir todos vão, voltar é que é, na verdade, a utopia..., diz para si, e recusa-se sequer a mencionar aos comandantes já agregados as suas considerações. Sabe que é, e o diz abertamente, um afortunado. Viu amigos tombarem nos sertões, mortos por flechadas ou por epidemias terríveis, e ele, ele sempre a resistir a tudo e à mortalha de mata feita. Levar o seu Portugal arriba unindo os sertões é um sonho a ser sonhado em marcha forçada. Avançar com a utopia prometida a el-rei é para Antônio Raposo Tavares mais do que uma missão: é a realização do Eu luso fazendo história.

7 SERTÃO BRASILEIRO: OS LIMITES DE OUTRO PORTUGAL

Antônio é, em 1648, um dos mais experimentados expedicionários entre os mamelucos e os paulistas natos. Não é nem novo nem velho, acaba de fazer 50 anos, mas carrega uma bagagem de conhecimentos de experiência feitos. Uma missão tão complexa não poderia estar sob comando de um mameluco ou de um paulista. Só um português pode representar e expandir Portugal além-mar. Não era um segredo, mas uma exigência da segurança do reino. O segredo é a dimensão fantástica da nova planilha geossocial e política, já identificada pelo próprio Antônio em


outros eventos. Diante do Brasil dos sertões, Portugal é como aquela casca de noz que foi a caravela em alto mar... marcha pela nação fazer a vida na raiz que somos é o sonho e é a razão dizem-nos o que fomos pelo que somos

Existe uma rota alternativa de acesso às pedras preciosas do Peru? Os portugueses sabem da navegabilidade nos rios que rasgam a floresta da Amazônia. Ora, é preciso identificar um ponto, um cais de referência mercantil como se fizera na constituição da Liga Hanseática entre as cidades-cais europeias medievais, só que agora um ponto português no meio do Novo Mundo. Assim como no tempo do Bacharel de Cananeia, eis o Peru como eixo dos sonhos de grandeza e conquista. O eixo que faz despertar em Antônio Raposo Tavares aquela ânsia adormecida desde a tormenta nas praias da Bahia sob fogo holandês. Desde o Afonso Henriques, o rei primeiro com castelo em Guimarães e paço posterior em Coimbra, que a portugalidade se conhece com fronteiras definidas, mesmo que em expansão, não poderia ser diferente em relação ao espaço ultramarino. Dar a Portugal o mapa continental de um Brasil ainda não definido, mas a sê-lo, eis o segredo da missão chefiada por Raposo Tavares. A missão foi-lhe confiada pelo próprio rei João IV, honra única na história bandeirística. Porto de Pirapitingui, que uns já chamam de Itu. Maio de 1648. Centenas de portugueses, paulistas, mamelucos e nativos, aos quais se juntam, como vem sendo hábito, pelo que dizem os capelães, estão em marcha: uns da vila de Sam Paolo até o portinho de Carapocuyba, outros embarcando logo no Anhamby, descem por corredeiras e cachoeiras até Pirapitingui, cais do primeiro alto e ordenação da bandeira. – Vamos buscar outros caminhos e neles apanhar pedras preciosas – anuncia Raposo Tavares. E só. Escuta os Hurra! Hurra! habituais de quem a ele se associou pela cobiça e pelo sonho da riqueza. Na expedição estão cartógrafos e montanistas experimentados, mas, para os gerais, são tão sertanistas quanto... Do primeiro cais a expedição avança para a boca do sertão direcionado ao meiooeste: o porto de Araritaguaba. Todos sabem que a região de Mato-Grosso é a primeira escala da vila ambulante. Grandes embarcações transportam gente, animais, bagagem diversa, armas. Araritaguaba é o porto de ligação sul-norte. e nós, lá vamos nós à prata do Peru aqui viemos por águas mil e o desejo nú de levarmos a riqueza na torna-viagem que nos é lindeza ó rico Peru lá vamos nós de peito nú

Todos estão imbuídos da grandeza que é a expedição: novos caminhos e pedras preciosas. E cantam os sonhos da aventura que é enricar para depois jogar as sortes nas tavernas dos cais de Lisboa, ou em Sant´Anna do Parnaíba esposar moça prendada. No cais de Araritaguaba conhecem o batelão.


[batelão e cais d´Araritaguaba]

Embarcação enorme, à imagem da velha piroga de 7 metros utilizada pelos nativos, mas o batelão tem 12 metros de comprimento, 1,65 metros de largura e 1,15 metros de fundo, exige 6 remeiros, piloto e ajudante. É um susto. – Nóis vai nisso aí?! – quer saber a maioria. E todos veem no olhar dos nativos um riso de velha sabedoria. – É ir e é vir... – escutam de um deles, a pitar num cachimbinho toscamente feito de um pedaço de madeira. A jornada é longa, e a cada dia a camaradagem se acentua, mas lá vêm as escaramuças entre quem bebeu mais pinga ou soltou a língua ferina para falar da esposa de outro; os chefes de grupos têm dificuldade para acalmar a turma; uma e outra vez alguém é levado à presença de Raposo Tavares, que tem a corda para enforcar ou a espada para decepar. No final de Novembro de 1648, a tropa, que conta com chefes da bravura de André Fernandes, Pereira de Azevedo e o alferes Souza da Silva, entre outros, está diante de Itatim. O foco? Os jesuítas em suas reducciones. E não sobra uma. Desde a serra de Maracaju e Terecañi, Bolaños e Sant´Iago de Xeres, a tropa não deixa tronco sobre tronco, pedra sobre pedra nem palhoça de pé. O nome de Raposo Tavares ecoa de novo nos pampas, e como ecoa os castelhanos enviam de Asunción forte brigada para o combater. Dar a saber que Portugal está de volta, é a mensagem. Por isso, a bandeira deixa a região e sobe o rio Paraguay até à sua nascente na serra de Araporé, onde, perto e ainda território de Itatim, ou matogrossense, como já dizem uns, pelo Brejal das Sete Lagoas, se faz a separação das bacias hidrográficas do La Plata e da Amazônia. Nesse passo, encontram os castelhanos do Peru que têm de combater e, além deles, os povos nativos que não querem nem vê-los de longe. – Ai, as minas do Peru... – suspiram uns. E logo, em marcha nas matas ou em pirogas e jangadas rios abaixo, a bandeira segue mês após mês com os seus quês internos e os sobressaltos externos; conhecem o rio Guaporé e adentram o Mamoré para chegarem no Cayari (ou Madeira) que ajuda a formar o Amazonas – Jesus, isto é a Amazônia! – espanta-se um dos cartógrafos.


[Depois de Itatim, o bandeirante Raposo Tavares lançou Portugal Amazônia adentro]

Antônio Raposo Tavares é o mais espantado de todos quando aportam no forte da ilha de Gurupá, num canal estratégico erguido pelos holandeses e conquistado pelo capitão português Bento Maciel Parente, em 1623; na reconstrução em taipa de pilão invocou Santo Antônio. Para o bandeirante Antônio é um espanto saber que “os holandeses chegaram à Amazônia com força militar e mercantil e fizeram de Gurupá o seu ponto estratégico entre o Amazonas e o Xingú”. Entretanto, a árdua jornada bandeirística foi uma mortalha para a maioria, e até para o notável sertanista André Fernandes. E agora, Antônio e os seus homens são uma bandeira de 58 homens... Foram às reduções jesuíticas, às minas peruanas e estão agora no meio da Amazônia. Corre o ano 1651 e está feita a ligação entre o La Plata e o Amazonas. Uma odisseia de 10.000 km entre sertões, serras, rios e riachos e florestas, epidemias, suicídios, penas capitais, flechadas e lanças. Antônio olha a sua tropa. O seu grande segredo não era a missão, era saber que raros fariam a torna-viagem. Dissera-o a el-rei, em Lisboa, e dele escutara que uma nação não se faz sem sacrifícios. É um homem a fazer 53 anos, mas, mais parece um velhote de 70, tão maltrapilho está e se sente. Do forte de Santo Antônio de Gurupá alcançam Belém. Aqui, com a vila se espraiar pelo rio imenso, Antônio tem uma visão da velha e boa Lisboa. – O próximo embarque destina-se a descer tudo até chegarmos em nossa Sam Paolo! – anuncia. Está pronto para enviar a el-rei os memorandos dos cartógrafos e montanistas, estes, sempre muito bem protegidos no meio da expedição.


8 E, ENFIM, A PEQUENA E ACOLHEDORA QUITAÚNA

Sam Paolo dos Campi de Piratinin. Quitaúna, 1651.

Um velho maltrapilho avança pelo vilarejo e fica a olhar uma casa com capela anexa. Da cerca, uma mulher de meia idade o vê, mas logo desvia o olhar e continua a limpar o terreiro. O maltrapilho, barba longa e roupas sujas, espada na cinta, dá uns passos na direção da porteira que mal se segura e por ali fica, a olhar, a olhar. Dos fundos da casa surge um cachorro adoidado e em correria, latindo. Como se tivesse ganho um pedaço de carne, o cachorro lambuza o velho. A mulher levanta o olhar. – Mas... – Há anos que não vê o cachorro em festa. – Ele só fazia isso para... Ai, meu Jesus! Ai, ai, meu Antônio, meu esposo! Ele afaga o cachorro e logo levanta uma mão para saudar a mulher que vem ao seu encontro. – Lucrécia, ó mulher, que saudade de ti...! – diz ele, enquanto afasta o cachorro, dá uma palmada no traseiro dela e logo a recebe num abraço.

Sant´Anna de Parnaíba, Koty e Sam Paolo dos Campi de Piratinin, 2016


Bibliografia ARARITAGUABA – João Barcellos. Ensaio, 2007; Ediç Web / noetica.com.br, 2011. BANDEIRANTES E PIONEIROS: PARALELOS ENTRE DUAS CULTURAS – Vianna Moog, 1954. BANDEIRISMO, BARBÁRIE & CATEQUESE – J. C. Macedo. Palestra; Niterói/RJ, 1989. BRASIL, 1500 – João Barcellos. Ed Edicon, São Paulo, 2000. DAS BANDEIRAS AO TROPEIRISMO – João Barcellos. Palestra/Ensaio, Itu/SP, 1991. ENTRADAS E BANDEIRAS – Luiza Volpato. Ed Global, São Paulo, 1986. HISTÓRIA DAS BANDEIRAS PAULISTAS – Affonso de E. Taunay. Ed Melhoramentos, São Paulo, 1975. HISTÓRIA DE LA PROVINCIA DEL PARAGUAY Y DE LA COMPAÑIA DE JESÚS – Nicolás del Techo. 1680. LÂMINAS DE PALEOGRAFIA – Ricardo Roman Blanco. LaserPrint, sd. OS BANDEIRANTES – Baptista Cepellos, 1906. RAPOSO TAVARES: UM PORTUGUÊS DE RAIZ NA CONSOLIDAÇÃO GEOPOLÍTICA DO BRASIL – J. C. Macedo. Palestra; Rio de Janeiro, 1989. RAPOSO TAVARES NA POÉTICA DE BAPTISTA CEPELLOS – João Barcellos. Palestra, Cotia/SP, 1991. RAPOSO TAVARES E A FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL – Jaime Cortesão. Ministério da Educação e Cultura, Brasil, 1958. RESTAURAÇÃO DE PORTUGAL PRODIGIOSA – João Vasconcelos (S.J.). Lisboa, 1643. UM NOVO TRATADO DE TORDESILHAS DE 1494 – Ricardo Roman Blanco, sd.

Imagens: Desenhos e textos inseridos de J. C. Macedo; fotos do autor registradas em Araritaguaba (Porto Feliz, SP), mapas pinçados da Web (sem restrição autoral para livre copiagem), pinturas de Debret, Almeida Prado e J. B. da Costa].


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