Contos Populares da Ilha da Madeira e Porto Santo

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CONTOS POPULARES Das Ilhas da MADEIRA e do porto santo


título

Contos populares das ilhas da Madeira e do Porto Santo coordenação, apresentação e texto

José Viale Moutinho revisão

nova delphi ilustrações

Extraídas da rara obra A History of Madeira, with a series of twenty-seven coloured engravings, illustrative of the costumes, manners, and occupations of the inhabitants of the Island, edição de R. Ackermann, London; 1821. (Gentilmente cedidas pela Biblioteca Municipal do Funchal) design

FBA. isbn

978-989-8407-25-2 depósito legal

???? impressão

Guide – Artes Gráficas Lda editora

(Marca Registada) Rua da Carreira nº 115/117, 9000-042 Funchal, Madeira www.novadelphi.com nota à edição

O texto original deste livro foi adaptado às normas do Novo Acordo Ortográfico pelos serviços de revisão da Nova Delphi.


CONTOS POPULARES Das Ilhas da MADEIRA e do porto santo narrados por

JOSÉ VIALE MOUTINHO



Para as primas Camila e Natacha. Para os meus amiguinhos madeirenses Clarinha, Pedro (Costa), Francisco e Jo達o Pedro.



Literatura popular Ê, pois, a que corre entre o povo, a que ele cria, e a alheia de que gosta e adota. Povo, mas que povo? A parte da população economicamente menos favorecida de todos os tempos. Manuel Viegas Guerreiro Literatura Oral Tradicional Popular Paris, 1986



ÍNDICE

13 Abertura

ilha da madeira 17 19 20 22 23 24 26 28 29 30 32

CALHETA A história da figueira A história do homem, da feiticeira e da infusa O castigo do gato Um favor do Diabo O mistério da guitarra misteriosa A aposta Um saco de ouro O criado Ligeiro zangado A mulher que não gostava de fazer nada A Senhora da Neve

37 39 41 43 46 50 52 53 55 56 58 60

CÂMARA DE LOBOS As bananas do senhor Tchu O conto do criado finório O conto do Cavaleiro Negro A Torre das Navalhas O conto do pífaro Quem ajuda o Diabo? A cabacinha da velha O mais esperto é o ladrão O conto dos corcundas O gato falante O conto da mentirosa

63 65 67 68 69 70

FUNCHAL A sorte dos tontinhos O bisbis e as papas A fontinha dos bisbis O voo do bisbis Como ele pagou a dívida!


(...)


abertura

O vocábulo conto, só por si, no Dictionnaire Robert, é um «relato de factos, de acontecimentos imaginários, destinado a distrair». Porém, na Renascença tinha um duplo sentido: o das coisas inventadas e o das coisas verdadeiras. Já no sentido restrito da expressão conto popular, ou conto tradicional, é aquele que «se diz e se transmite oralmente». Ora o conto, nesta aceção, esteve no início, tal como a poesia popular, ligado à criação do povo. Tal como os baldios, o conto é propriedade dos povos e ninguém deles se poderá apropriar. Porém, no período romântico, com o esplendor da invenção da tipografia, obras impressas houve que puderam assumir, de modo mais verdadeiro, a categoria de literatura popular, conhecendo-se, no entanto, a autoria. Cito dois casos: A Rosa do Adro, de Manuel L. Rodrigues, e Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, ambos romances. Porém, o conto popular que tratamos nesta coleção madeirense procede, pelo menos em princípio, da criação popular, pois há muito que lhe desconhecemos a autoria, a ponto de – no princípio de quem, por norma popular quase canónica!, conta um conto lhe acrescenta um ponto – existirem várias versões regionais e alguns destes serem versões de outros contos continentais. Não é difícil percebermos que não tendo sido o arquipélago originalmente habitado, a população procede não só de variadas regiões do continente como de outros países, desde as nações árabes às costas africanas, onde os negros eram apanhados e escravizados. Porque os contos populares procedem da tradição oral, como foi dito, não dispõem de textos canónicos. Assim, ao escrevê-los, uma vez mais para este livro, faço-o com a liberdade com que os contaria oralmente num serão onde coubessem todos os leitores. E numa próxima oportunidade, se a tal me aventurasse, não perderia oportunidade de lhes acrescentar o que entendesse mais entretido, tal como qualquer leitor, ao recontá-los poderá entender fazê-los encaminhar por novos sendeiros fabulísticos a seu bel-prazer e a bel-prazer do auditório de que disponha. Os tempos são outros e os veículos de expressão também e como tal devem ser assumidos. Quanto a géneros, bastará uma breve reflexão pelos contos que conhecemos para atentarmos na sua diversidade. Os géneros ocasionam numerosos itens: contos de bruxas, religiosos, novelescos, de gigantes, de fadas, contos sem fim, de enganos, divertidos (quase meras anedotas), etc. Alguns chegam a ser mistos, entrosando os géneros numa total sem-cerimónia. Cada qual tempera-os como entende. Neste volume vamos ao

13


(...)


— ilha da madeira —

calheta concelho



A história da figueira freguesias do arco da calheta, do paul do mar e do jardim do mar, calheta

Era uma vez uma figueira que dava uns figos muito saborosos, tão saborosos como não havia outros assim no figueiral daquele lavrador. Ora o lavrador andava sempre com medo que lhe roubassem os figos. E, como acontecia haver ladrões que iam de noite à figueira e apanhavam quantos podiam, ele julgou poder resolver a questão da seguinte maneira: – Este ano vai ser diferente! Logo que comecem a aparecer os meus ricos figos, passo a dormir numa manta debaixo da figueira. Assim, quem cá vier encontra-me a mim e ao meu varapau! E, como apareceram os primeiros figos no dia seguinte, o lavrador, ao pôr do sol, estendeu-se debaixo da figueira disposto a defendê-la. Ora os ladrões que gostavam tanto dos figos daquela figueira como o dono dela, souberam que ele ia tomar conta dela e arranjaram um estratagema. Pela meia-noite, quando o lavrador estava no primeiro sono, os ladrões apareceram embrulhados em lençóis e começaram a cantar com vozes trementes, fazendo-se passar por fantasmas: – Alma dianteira, chega-te ao pé da figueira. Nós quando éramos vivos Comíamos destes figos. Agora depois de mortos, Aqui estão os nossos corpos! O lavrador acordou estremunhado ao som da cantilena, viu aquelas figuras fantasmagóricas, mal iluminadas e teve tal medo que se foi meter em casa, debaixo da cama. Mas os ladrões, que eram uns rapazes da vizinhança, esses fartaram-se de rir e de comer os figos daquela figueira tão especial!

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A história do homem, da feiticeira e da infusa freguesias do arco da calheta, do paul do mar e do jardim do mar, calheta

Certo dia, um lavrador teve de ir à serra buscar erva e encontrou uma velha muito velha sentada numa pedra. Perguntou-lhe: – Ó senhora, que está aí a fazer? – Fui fazer um recado e perdi-me no caminho. – E agora? – Agora não sei voltar para casa. – Deixe estar que eu ajudo-a – disse o homem. Depois subiu a velha para o seu carro puxado a vacas e lá conseguiram, entre os dois, descobrir onde ela morava. E em casa a deixou muito contente. Regressado ao trabalho que ia fazer, o lavrador apanhou a erva toda que precisava e amarrou-a aos molhos no carro das vacas. Porém, quando ia a meio do caminho da sua quinta, metade da erva desprendeu-se e caiu à estrada, estragando-se. Claro que o homem ficou aborrecido, mas voltou para trás e apanhou mais erva e voltou a compor tudo no carro. O problema é que, já no regresso, outra vez a erva se desprendeu e espalhou-se no pó da estrada. Logo viu que assim o gado não a comeria. Com alguma paciência, mas queixando-se da sua pouca sorte, o lavrador voltou ao sítio da serra onde a apanhara e lá esteve mais umas horas a cortar erva. Já começava a anoitecer quando o homem conseguiu avistar a sua casa. Mas não é que, naquele momento, o rodado do carro tropeçou numa pedra e a carga de erva tombou outra vez na poeira da estrada? – Aqui anda mão do Diabo – exclamou o lavrador. E lembrou-se da mulher que ajudara pois bem poderia ser uma feiticeira. E o homem correu a casa da velha, bateu à porta e, mal ela apareceu, disse-lhe: – Sua feiticeira! Então ajudei-te e tu mandaste o Diabo atrás de mim a fazer-me maldades? Ela fingiu-se inocente porque, na verdade, era uma feiticeira: – Eu não sei de nada, podes acreditar… – Estavas à minha espera no caminho para me atormentares… – Eu!? Só fui à ribeira beber uma aguinha e depois perdi-me! – Mentirosa! Mas se voltas a fazer-me mal ou a mandares o Diabo aborrecer-me, venho cá e desanco-te! 20


A feiticeira teve medo do lavrador, que parecia tão corajoso, e nunca mais o incomodou. E ele lembrou-se que quando se encontra alguém no caminho é dar as boas tardes e andar sem ficar na conversa, que isso pode fazer-nos perder muito tempo… Já agora, ficam a saber outra coisa, que está na mesma ordem de ideias: quando se encontra alguma coisa caída à nossa passagem, não a devemos chamar nossa nem sequer mexer-lhe, pois pode muito bem ser a armadilha de uma feiticeira. É que, uma dada tarde, indo um homem à serra, creio que a buscar lenha para a lareira da sua casa, viu uma infusa de barro caída no meio do caminho. Logo ergueu o bordão em que se apoiava e deu-lhe uma pancada quebrando-a. Naquele momento, o homem sentiu um peso nas costas e umas mãos esqueléticas que se lhe agarravam ao pescoço. Que seria aquilo?! Era uma velha que lhe gritou aos ouvidos numa voz guinchada: – Tens de me levar a casa e já! Sem conseguir dominar a vontade, o homem desatou a correr e só parou à porta da velha, que era feiticeira. Esta desmontou das costas dele e entrou, fechando ruidosamente a porta. Logo o homem começou a correr e apareceu no mesmo sítio, continuando a andar até à entrada do bosque onde havia a lenha que ele queria. Mais tarde, de regresso a casa, pensou que até podia encontrar uma panela de ouro… que não lhe tocaria!

21


(...)


Este livro foi composto em caracteres New Baskerville e Grotzec Condensed e impresso na Guide – Artes Gráficas, em papel Coral Book Ivory 1.5, 90gr no mês de Abril de 2011.





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