Coração

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coração


título Coração título original Cuore autor Edmondo De Amicis tradução Laura Moniz revisão Nova Delphi design FBA. paginação Nova Delphi imagem School Examination (oil on paper), Harvey, Sir George (1806-76) © Peter Nahum at The Leicester Galleries The Bridgeman Art Library / AIC impressão e acabamento Guide – Artes Gráficas Lda isbn 978- 989-8407-42- 9 depósito legal 332297/11 editora Nova Delphi (Marca Registada da Euthalia Editora, Lda) Rua da Carreira 115/117 , 9000-042 Funchal, Portugal www.novadelphi.com


Edmondo De Amicis

coração



nota à edição: O presente texto foi traduzido a partir da versão de Cuore de Edmondo De Amicis incluída na coleção Classici De Agostini Ragazzi, Istituto Geografico De Agostini, Milão, 2002



índice 13 Prefácio de Violante Saramago Matos 19 Nota Biobibliográfica e Enquadramento Histórico 25 Nota do Autor

27 29 31 33 35 37 39 41 43 45 47

51 53 55 57 59 61 63 65 69 71 73 75 77 83

outubro O Primeiro Dia de Escola O Nosso Professor Um Acidente O Menino da Calábria Os Meus Colegas Um Caráter Generoso A Minha Professora do Primeiro Ano Num Sótão A Escola Conto Mensal – O Pequeno Patriota de Pádua

novembro O Limpa-chaminés O Dia dos Mortos O Meu Amigo Garrone O Carvoeiro e o Senhor A Professora do Meu Irmão A Minha Mãe O Meu Colega Coretti O Diretor Os Soldados O Protetor de Nelli O Primeiro da Turma Conto Mensal – O Pequeno Herói Lombardo Os Pobres

85 dezembro 87 O Traficante 89 Vaidade


(…)


prefácio Quando o meu pai me deu este livro li-o como a jovem que era, apenas com alguns anos mais que Enrico, e ­entendi-o como o relato de um ano letivo onde se contavam os dias de um menino da 3ª classe numa escola de Turim, em Itália, com as suas alegrias, dúvidas, tristezas, contrariedades, amizades e desilusões. A mim que, ao contrário de muitíssimos outros jovens como Crossi, António ou Nelli, ainda não sabia que a vida é muito mais que brincar, estudar, aborrecer-se com ligeiras contrariedades, exibir ridículas vaidades e pequenos poderes de circunstância, este livro pareceu-me triste e dramático, um pouco pesado, até. Guardei-o com a perceção que não o tinha percebido e que seria preciso relê-lo. O tempo passou e Coração foi ficando – na estante, arrumado entre outros livros de juventude; na minha memória, como um livro intrigante. Agora, cerca de cinquenta anos depois, quando regressou para cima da minha mesa de trabalho para a escrita deste prefácio, cumpriu-se a epígrafe «Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara» – tinha olhado para ele, tinha-o visto, mas só agora estava a reparar. E talvez não pudesse ter sido de outro modo porque entender melhor este livro impressionante implica, entre tantas outras coisas, saber alguma coisa da Itália dos finais do século XIX e das lutas pela unificação do país até então constituído por diversos Estados dominados por potências estrangeiras; saber de nomes cujos exemplo e significado nos aparecem impressos no correr das páginas: Mazzini – dirigente e pensador, Cavour – primeiro-ministro liberal, Garibaldi – um homem que odiava a opressão com a mesma dimensão com que protegia os fracos e que teve um papel fundamental nas lutas pela unificação, Vítor Emanuel II – que só depois de 1861 pôde ser rei de toda a Itália. Todos profundamente nacionalistas e patriotas para quem a construção da nação italiana era objetivo prioritário. 13


Na altura, e tudo disto eu sabia Nada, e por isso nem percebi a primeira referência importante deste Coração. Podia o autor ter escolhido um ano qualquer – que os anos letivos nessas idades não são tão diferentes quanto isso – mas escolheu o de 1881/1882, o que lhe permitiu realçar, em tempo real, a figura de Garibaldi aquando da sua morte, a 2 de junho. Escrito numa época tão difícil da história italiana – 1886 é data da primeira publicação de Coração – reflete como o sentimento patriótico era marcante a ponto de percorrer as páginas deste romance em episódios extraordinários como a receção ao pequeno Coraci «Para poder acontecer uma coisa assim, um menino da Calábria estar em Turim como se estivesse em casa, (…) o nosso país teve de lutar durante cinquenta anos, e trinta mil italianos perderam a vida. (…) E aquele que ofender este colega, só porque não nasceu na nossa região, não será digno de voltar a levantar os olhos do chão quando passar pela nossa bandeira», a carta “Itália” que o pai de Enrico escreve ao filho ou os comoventes contos mensais «O pequeno patriota de Pádua», «O pequeno herói lombardo», «O tamborileiro sardo». Edmondo De Amicis, para além de um patriota e um convicto apoiante da unificação italiana transporta também para esta obra, e de forma inequívoca, as suas imensas preocupações sociais que, de resto, o levarão a ingressar no Partido Socialista italiano em 1896. O respeito pelos outros e o respeito pelo trabalho dos outros «E presta atenção porque se não conservares estas amizades dificilmente conquistarás amizades semelhantes no futuro, quero dizer, amizades fora da classe a que tu pertences, e assim irás viver numa só classe, e o homem que pratica uma só classe social, é como o estudioso que lê apenas um livro. (…) Por isso ama e respeita acima de todos os teus colegas, os filhos dos soldados do trabalho; h­ onra-os pelas canseiras e pelos sacrifícios dos seus pais, desconsidera as diferenças de fortuna e de classe, pois só os seres desprezíveis regem os sentimentos e a educação por elas;» ou «O trabalho não suja. Nunca digas que um operário que vem do trabalho “Está sujo”. 14


Deves dizer: “Tem nas suas roupas as marcas, os sinais do seu trabalho”. Lembra-te disso. E sê amigo do pedreirinho, primeiro porque é teu colega, depois porque é filho de um operário» são exemplos de ensinamentos aqui trazidos, sob a forma de cartas, pela mão do pai de Enrico a quem é atribuído um papel fundamental como educador que não deixa apenas à escola essa responsabilidade, no que poderia ser, já, a antecipação de um debate dos tempos de hoje sobre educação e instrução. Também os que têm deficiências ou incapacidades constituem motivo maior para que o autor os traga ao texto, não numa perspetiva chocantemente caritativa mas, ao contrário, numa exigência de respeito e sensibilidade, numa procura permanente de soluções. Sem poder ser exaustiva, tão importantes seriam as referências, é elucidativo um pequeno excerto de uma carta que a mãe de Enrico – outra vez a importância da família enquanto educadora – lhe escreve depois de irem ao Instituto dos meninos raquíticos «não percebeste porque é que não te deixei entrar? Para não te pôr diante daqueles infelizes ali no meio da escola, como se estivesse a ostentar numa exposição, um menino forte e saudável.» Respeito, sensibilidade e atenção que, mais de um século depois, ainda não calam nas nossas relações sociais nem na forma como enfrentamos, e temos o dever de procurar resolver, os problemas dos que são diferentes porque sofrem de incapacidades diversas. Para os dias de hoje, onde as sociedades se configuram à volta de ídolos perfeitos e de vidas ideais, ficam as reações do pai de Gigia, a menina surda muda a quem ensinaram a falar, como deviam ficar as reflexões emocionadas do professor dos rapazes cegos. O significado e a importância que De Amicis atribui a valores como a amizade, o caráter, as coisas conquistadas com esforço, a necessidade de aprender e de saber, a família, a coragem, a injustiça e a brutalidade do trabalho infantil estão evidenciados, ainda que de forma subtil, na despedida especial no final do ano que Enrico dirige a alguns dos seus companheiros e sobre os quais é expressivo na apreciação: 15


(…)


nota biobibliográfica e enquadramento histórico Edmondo De Amicis, jornalista, ensaísta e escritor italiano (Imperia, 21 de outubro de 1846, Bordighera, 11 março de 1908), cumpre a sua escolaridade em Cuneo, e prossegue os seus estudos em Turim, até aos dezasseis anos, altura em que se inscreve no exército, na Accademia Militare di Modena, onde se vem a tornar oficial. Retira-se da vida militar depois de ter participado na campanha de 1866, assistindo à derrota dos Savoia na batalha de Custoza. O seu livro La vita militare (1868), publicado com a chancela do Ministério da Guerra, relata a sua experiência no exército e obtém um sucesso relativo mas já reflete os seus ideais pedagógicos. Após a retirada do exército inicia atividade como correspondente do jornal florentino La Nazione e assiste à tomada de Roma em 1870. Da sua atividade como jornalista surgem alguns relatos de viagem, Spagna (1872), Ricordi di Londra (1873), Olanda (1874), Marocco (1876), Ricordi di Parigi (1877), Constantinopli (1878/79), Sull’Oceano (1886), Cuore (1886), Romanzo di un Maestro (1890). Em 1890 Edmondo De Amicis aproxima-se do socialismo, formalizando a sua adesão oficial em 1896 e rejeitando as ideias nacionalistas anteriormente defendidas, patentes em algumas das suas obras, nomeadamente no romance Coração. As obras posteriores a esta transformação ideológica expressam uma maior preocupação em relação às classes sociais mais desfavorecidas: Amore e Ginnastica (1892), Maestrina degli Operai (1895), La Carozza di Tutti (1892), Questione Sociale (1894), L’Idioma Gentile (1905), Ricordi di un Viaggio in Sicilia (1908), Nuovi ritrati letterari e artistici (1908). Nos anos que se seguem, Edmondo De Amicis colabora também em algumas publicações socialistas trabalhando para jornais ligados ao Partido Socialista: «La critica sociale», «La lotta di classe» e «Il grido del popolo». A 17 de outubro de 1886, precisamente no primeiro dia de escola, no início de mais um ano letivo, a editora Treves 19


(…)


este livro é especialmente dirigido aos alunos das escolas do 1º ciclo com idades compreendidas entre os 9 e os 13 anos, e poderia intitular-se: História de um ano letivo, escrita por um aluno do terceiro ano de uma escola municipal italiana. Quando digo escrita por um aluno do terceiro ano, não quer dizer que tenha sido propriamente ele a escrevê-la, tal como foi publicada. Ele ia anotando num caderno, como sabia, o que tinha visto, sentido, pensado, dentro da escola e fora dela; e o seu pai, no final do ano, redigiu estas páginas sobre aquelas notas, tentando não alterar o pensamento, e tentando manter, o mais possível, as palavras do filho. Este, quatro anos mais tarde, quando já estava no sétimo ano, releu o manuscrito e deu-lhe um cunho pessoal, servindo-se da memória ainda fresca de pessoas e de coisas. Agora leiam este livro, meninos: espero que este vos alegre e vos faça bem. Edmondo De Amicis

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outubro



o primeiro dia de escola 17, segunda-feira Hoje foi o primeiro dia de escola. Aqueles três meses de férias no campo passaram como num sonho! A minha mãe levou-me esta manhã à Escola Baretti para me matricular no terceiro ano. Eu estava a pensar no campo, e ia de má vontade. Todas as ruas fervilhavam de crianças, as duas livrarias estavam apinhadas de pais e de mães que compravam mochilas, pastas e cadernos, e em frente da escola aglomerava-se tanta gente que o contínuo e o guarda civil tinham alguma dificuldade em manter a entrada livre. Perto da porta, senti que me tocavam no ombro. Era o meu professor do segundo ano, alegre como sempre, com os seus cabelos ruivos desgrenhados, que me disse: – Então Enrico, despedimo-nos para sempre? Eu já sabia disso; e mesmo assim aquelas palavras encheram-me de pena. Foi um custo para conseguirmos entrar. Senhores, senhoras, mulheres do povo, operários, oficiais, avós, criadas, todos com uma criança numa das mãos e os certificados de passagem de ano na outra, apinhavam a sala de entrada e as escadas, fazendo um burburinho que dava a impressão de se estar a entrar num teatro. Revi com prazer aquele enorme átrio do rés do chão, com as portas das sete salas de aula, por onde passei durante três anos quase todos os dias. Havia uma enchente de gente, as professoras iam e vinham. A minha professora do primeiro ano cumprimentou-me da porta da sala de aula e disse-me: – Enrico, tu vais para o andar de cima este ano: nem sequer vou voltar a ver-te passar! – e olhou-me com tristeza. O Diretor estava rodeado de mulheres muito agitadas porque já não havia lugar para os seus filhos, e pareceu-me que ele tinha a barba um bocadinho mais branca do que no ano passado. Encontrei alguns meninos mais crescidos, e mais gordos. No rés do chão, onde já tinham sido agrupados, estavam meninos do primeiro ano que não queriam entrar 29


na sala e estacavam como burros. Era preciso empurrá-los para dentro à força. E alguns fugiam das carteiras1. Outros, quando viam que os familiares se estavam a ir embora, desatavam a chorar, e estes tinham de voltar para trás para consolá-los ou apanhá-los, e as professoras estavam de cabelos em pé. O meu irmãozinho foi colocado na turma da professora Delcatti; eu na do professor Perboni, no primeiro andar, em cima. Às dez estávamos todos na sala: cinquenta e quatro. Apenas quinze ou dezasseis colegas do segundo ano, entre os quais Derossi, o que recebe sempre o primeiro prémio. A minha escola pareceu-me tão triste e tão pequenina, ao pensar nos bosques e nas montanhas onde passei o verão! Também relembrava o meu professor, tão bom, que ria sempre connosco, e tão jovem, que até parecia nosso colega, e lamentava-me por não voltar a vê-lo lá, com os seus cabelos ruivos, desgrenhados. O nosso professor é alto, sem barba, tem cabelos grisalhos e compridos, e tem uma ruga vertical na testa, tem voz grossa, e olha-nos a todos fixamente, um a um, como se quisesse ler-nos por dentro. Nunca se ri. Eu dizia para os meus botões: – Este é o primeiro dia. Ainda faltam nove meses. Muitos trabalhos, muitos exames mensais, muito cansaço! Estava mesmo a precisar de encontrar a minha mãe à saída, e corri para lhe beijar a mão. Ela disse-me: – Coragem, Enrico! Vamos estudar juntos. E voltei para casa contente. Mas já não tenho o meu professor, com aquele sorriso bondoso e alegre, e a escola já não me parece bonita como antes.

1  N.T. O mobiliário escolar da época era em tudo semelhante ao mobiliário usado em Portugal até há cerca de quatro décadas atrás, sobretudo nas escolas de 1º Ciclo do Ensino Básico. As carteiras, uma espécie de bancos com tampo inclinado, unidos numa só peça, podiam ser individuais ou duplas.

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o nosso professor 18, terça-feira Também já gosto do meu novo professor, desde esta manhã. Durante a entrada, quando ele já estava sentado no seu lugar, de vez em quando aparecia à porta algum dos seus alunos do ano passado, para o cumprimentar; apareciam, de passagem, e cumprimentavam-no. – Bom dia, senhor professor. Bom dia, senhor Perboni. Alguns entravam, davam-lhe a mão e fugiam. Via-se que gostavam dele e que teriam gostado de voltar a ter aulas com ele. Ele respondia: – Bom dia. Apertava as mãos que lhe estendiam. Mas não olhava para nenhum deles. Permanecia sério de cada vez que o cumprimentavam, com a sua ruga vertical na testa, virado para a janela, olhando o telhado da casa em frente. E em vez de se alegrar com aquelas saudações, parecia que sofria com elas. Depois olhava para nós, um a seguir ao outro, com atenção. Durante o ditado, começou a passear no meio das carteiras, e ao ver um menino que tinha a cara toda vermelha, cheia de bolhas, interrompeu o ditado, segurou a cara dele entre as mãos e olhou-o. A seguir perguntou o que é que ele tinha, e passou-lhe uma mão na testa para ver se tinha febre. Entretanto, um menino atrás dele levantou-se sobre a carteira, e pôs-se a fazer palhaçadas. O professor virou-se de repente. O menino sentou-se logo, e ficou ali, de cabeça baixa, à espera do castigo. O professor pôs-lhe uma mão sobre a cabeça e disse-lhe: – Não voltes a fazer isso. Não disse mais nada. Voltou à sua mesa e acabou o ditado. Quando acabou o ditado, olhou-nos por um momento em silêncio; depois disse muito lentamente, com a sua voz grossa, mas bondosa: – Escutem. Vamos passar um ano juntos. Vamos tentar passá-lo da melhor forma. Estudem e portem-se bem. Eu não 31


tenho família. Vocês são a minha família. No ano passado ainda tinha a minha mãe: mas perdi-a. Fiquei só. Só vos tenho a vocês no mundo, não tenho nenhum outro afeto, nem mais ninguém no pensamento. Vocês vão passar a ser os meus filhos. Gosto de vocês, e vocês vão aprender a gostar de mim. Não quero ser obrigado a castigar ninguém. Demonstrem-me que têm bom coração. A nossa escola vai ser uma família, e vocês serão a minha consolação e o meu orgulho. Não vos peço que façam uma promessa em voz alta. Tenho a certeza que, no fundo do coração, vocês já me disseram que sim. E agradeço-vos. Nessa altura o contínuo entrou para dar indicação que a aula terminara. Saímos dos nossos lugares muito calados. O menino que se tinha levantado sobre a carteira aproximou-se do professor e disse-lhe com voz trémula: – Senhor professor, desculpe. O professor beijou-o na testa e disse-lhe: – Vai, meu filho.

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um acidente 21, sexta-feira O ano começou com um acidente. A caminho da escola, esta manhã, repetia ao meu pai as palavras do professor, quando vimos a estrada cheia de gente que se concentrava em frente da porta da Repartição. O meu pai disse logo: – Houve um acidente! O ano começa mal! Foi difícil entrarmos. O grande átrio estava cheio de pais e de alunos, que os professores não conseguiam enfiar para dentro das salas, e todos estavam voltados para o gabinete do Diretor, e ouvia-se dizer Pobre menino! Pobre Robetti! Por cima das cabeças, no fundo da sala cheia de gente, via-se o capacete de um guarda civil e a cabeça calva do Diretor. A seguir entrou um senhor com um chapéu alto, e todos disseram: – É o médico. O meu pai perguntou a um professor: – Que aconteceu? – Uma roda passou-lhe por cima do pé – respondeu este. – Partiu-lhe o pé – disse outro. Era um aluno do segundo ano, que vinha para a escola pela Rua Dora Grossa, e ao ver um menino do primeiro ano que fugira da mãe, cair no meio da rua, a poucos passos de um ónibus 2 que vinha em sua direção, tinha acorrido prontamente, agarrara-o por um braço e pusera-o a salvo. Mas como não foi tão rápido a retirar o pé, a roda do ónibus tinha-lhe passado por cima. É filho de um capitão de artilharia. Enquanto nos contavam isto, uma senhora entrou no salão como uma louca, abrindo caminho por entre a multidão. Era a mãe de Robetti, que tinham mandado chamar. Uma outra senhora veio ao seu encontro, pôs-lhe as mãos em 2  N.T. Do latim, “Omnibus”, o ónibus, precursor do atual autocarro, era um veículo de tração animal, puxado por cavalos, muito semelhante à diligência mas com maior comprimento e capacidade do que esta, era usado como transporte público.

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volta do pescoço soluçando. Era a mãe do menino que se tinha salvado. Ambas se lançaram para o quarto, e ouviu-se um grito desesperado: – Oh Giulio! Meu filho! Naquele momento uma carruagem parou em frente da porta, e pouco depois apareceu o Diretor com o menino nos braços, este tinha a cabeça deitada no seu ombro, cara branca e olhos fechados. Todos se calaram. Ouviam-se os soluços da mãe. O Diretor deteve-se um momento, pálido, e levantou ligeiramente o menino com ambos os braços para mostrá-lo a toda a gente. Este abriu os olhos, e disse: – A minha pasta! A mãe do menino que se tinha salvado mostrou-lha chorando e disse-lhe: – Eu levo-ta, meu querido anjo, levo-ta eu – Ao mesmo tempo que segurava a mãe do menino ferido, que cobria o rosto com as mãos. Saíram, acomodaram o menino na carruagem, a carruagem partiu. E então voltámos a entrar todos na escola, em silêncio.

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o menino da calábria 22, sábado Ontem, enquanto o professor nos dava as notícias do pobre Robetti, que vai ter de andar durante algum tempo com muletas, o Diretor entrou com um novo aluno, um menino de cara muito morena, de cabelos pretos, com uns olhos grandes e negros, de sobrancelhas grossas e unidas na testa; vestido de escuro da cabeça aos pés, com um cinto de couro preto em volta da cintura. O Diretor saiu, depois de ter falado ao ouvido do professor, deixando a seu lado o menino, que nos olhava com aqueles grandes olhos negros, como se estivesse assustado. Então o professor segurou-lhe uma das suas mãos, e disse à turma: – Vocês vão ficar contentes. Hoje entra nesta escola um menino italiano nascido em Reggio-Calabria, a mais de quinhentas milhas de cá. Tratem bem o vosso irmão vindo de longe. Ele nasceu numa terra gloriosa, que deu a Itália homens ilustres, e que lhe dá fortes trabalhadores e soldados corajosos; nasceu numa das mais bonitas regiões da nossa pátria, onde existem grandes florestas e grandes montanhas, habitadas por um povo cheio de engenho e de coragem. Tratem-no bem, de modo que ele nem se aperceba que está longe da cidade onde nasceu; mostrem-lhe que um menino italiano, qualquer que seja a escola italiana onde ponha os pés, encontra irmãos. Depois de dizer isto levantou-se e indicou no mapa de Itália o ponto onde fica Reggio-Calabria. Depois chamou em voz alta Ernesto Derossi – o que recebe sempre o primeiro prémio. Derossi levantou-se. – Vem aqui – disse o professor. Derossi saiu do seu lugar e foi pôr-se ao lado da mesa, em frente do calabrês. – Como melhor aluno desta escola – disse-lhe o professor – dá um abraço de boas vindas em nome de todos, ao novo colega. O abraço do filho de Piemonte ao filho da Calábria. 35


Derossi abraçou o calabrês dizendo com a sua voz clara: – Bem vindo! E este deu-lhe um beijo em cada bochecha, de supetão. Todos bateram palmas. – Silêncio! – gritou o professor – não se batem palmas na escola! Mas via-se que estava contente. O professor indicou-lhe o seu lugar e acompanhou-o até lá. Depois voltou a dizer: – Lembrem-se bem do que vos estou a dizer. Para poder acontecer uma coisa assim, um menino da Calábria estar em Turim como se estivesse em casa, e um menino de Turim estar em Reggio-Calabria como em sua casa, o nosso país teve de lutar durante cinquenta anos, e trinta mil italianos perderam a vida. Vocês têm de se respeitar uns aos outros, e estimarem-se uns aos outros. E aquele que ofender este colega, só porque não nasceu na nossa região, não será digno de voltar a levantar os olhos do chão quando passar pela nossa bandeira. Assim que o calabrês acabou de se sentar no seu lugar, os seus vizinhos ofereceram-lhe canetas e una gravura, e um menino, da última carteira, mandou-lhe um selo da Suécia.

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os meus colegas 25, terça-feira O menino que mandou o selo ao calabrês é o meu preferido, chama-se Garrone, é o mais velho da turma, tem quase catorze anos, cabeça grande, e ombros largos. É bondoso, vê-se quando sorri. Mas parece que está sempre a pensar, como um adulto. Agora já conheço muitos dos meus colegas. Há um outro de quem gosto, que se chama Coretti e usa uma camisola cor de chocolate e um barrete de pelo de gato. Está sempre alegre, é filho de um negociante de lenha que foi soldado na guerra de 1866, na formação do quadrado do príncipe Humberto, e dizem que ganhou três medalhas. Há também um pequenino, o Nelli, um pobre corcunda, franzino e de cara pálida. Há um muito bem vestido, que anda sempre a alisar a roupa e se chama Votini. Na carteira à minha frente há um menino que chamam de “pedreirinho”, porque o seu pai é pedreiro. Tem uma cara redonda como uma maçã e um nariz em forma de bola. Ele tem um talento especial, sabe fazer focinho de coelho, e todos lhe pedem que faça focinho de coelho, e riem-se. Usa um chapeuzinho de pano, que guarda amarrotado no bolso como um lenço de mão. Ao lado do pedreiro fica o Garoffi, um coiso comprido e magro, com nariz em bico de coruja e olhos muito pequeninos, que anda sempre com aparos de caneta, gravuras e caixas de fósforos, e escreve a matéria na ponta dos dedos para poder ler às escondidas. A seguir há um menino do papá, o Carlo Nobis, que parece muito arrogante, e fica entre dois meninos com quem simpatizo: o filho de um ferreiro, ensacado num casaco que lhe chega aos joelhos, tão branquinho que até parece doente, e anda sempre com ar assustado e nunca se ri; e um menino de cabelos ruivos, que tem um braço paralisado, e o traz pendurado ao pescoço: o seu pai foi para a América e a sua mãe anda a vender produtos de ervanária. O meu colega da esquerda também é um tipo esquisito, o Stardi, pequeno e atarracado, sem 37


pescoço, um pencudo que não fala com ninguém, e que parece que não percebe nada, mas que presta atenção ao professor sem pestanejar, de testa franzida e dentes cerrados. E se alguém lhe pergunta alguma coisa enquanto o professor está a falar, à primeira e à segunda não responde, mas à terceira dá um pontapé. E a seu lado fica um tipo com cara de safado, um tipo que se chama Franti, que já foi expulso de outra escola. Há também dois irmãos, vestidos de igual, tão parecidos que parecem a cópia um do outro. Ambos usam um chapéu calabrês, com pena de faisão. Mas o mais bonito de todos, o que tem mais capacidades, que vai ser com certeza o melhor aluno outra vez este ano, é o Derossi. E o professor, que já percebeu isso, está sempre a fazer-lhe perguntas. Mas de quem eu gosto é do Precossi, o filho do ferreiro, o que usa casaco comprido, e que parece doente. Dizem que o pai lhe bate. É muito tímido, e de cada vez que pergunta alguma coisa a alguém ou que toca em alguém, diz Desculpa e fica a olhar com olhos bondosos e tristes. Mas o Garrone é o mais velho e o mais bondoso.

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um caráter generoso 26, quarta-feira E o Garrone deu-se a conhecer precisamente esta manhã. Quando entrei na escola – um bocadinho atrasado, porque a professora do primeiro ano me fez parar para me perguntar a que horas podia passar em casa para nos fazer uma visita – o professor ainda não estava, e três ou quatro meninos estavam a atormentar o coitado do Crossi, o menino dos cabelos ruivos que tem um braço paralisado e cuja mãe vende produtos de ervanária. Espicaçavam-no com as réguas, atiravam-lhe cascas de castanha para a cara, e chamavam-lhe maneta e monstro, imitando-o com o braço ao pescoço. E ele sozinho ao fundo na carteira, sem expressão, ouvia o que diziam, olhando ora para uns, ora para outros com olhos suplicantes, a pedir que o deixassem em paz. Mas os outros gozavam-no cada vez mais, e ele começou a tremer e a ficar vermelho de raiva. A dada altura o Franti, aquele ventas feiosas, subiu para uma carteira e começou a fazer de conta que levava dois cestos nos braços, a troçar da mãe do Crossi, quando vinha esperar o filho à porta; porque agora está doente. Muitos puseram-se a rir às gargalhadas. Então o Crossi perdeu as estribeiras, e agarrando num tinteiro atirou-lho à cabeça com toda a força; mas o Franti armou-se em esperto e o tinteiro acabou por ir atingir no peito o professor que estava a entrar. Todos fugiram para os seus lugares, e ficaram calados, cheios de medo. O professor, pálido, foi para a sua mesa, e com voz alterada perguntou: – Quem foi? Ninguém respondeu. O professor gritou mais uma vez, levantando mais a voz: – Quem é? Então o Garrone, cheio de pena do pobre Crossi, levantou-se de repente, e disse resolutamente: 39


(…)


julho



a última página da minha mãe 1, sábado Pois bem, o ano acabou, Enrico, e é bonito ver que o que te fica na memória como recordação do último dia é a imagem do menino nobre que deu a vida pela sua amiga. Agora estás quase a despedir-te dos teus professores e dos teus colegas, e eu tenho de te dar uma notícia triste. A separação não será por apenas três meses, mas será para sempre. O teu pai, por causa da sua profissão, tem de deixar Turim, e todos nós vamos com ele. Vamos embora quando chegar o outono. Tu terás de ir para uma nova escola. Isto entristece-te, não é? Porque tenho a certeza que tu adoras a tua velha escola onde durante quatro anos, duas vezes por dia, sentiste a alegria de trabalhar, e onde viste durante tanto tempo, à mesma hora, os mesmos meninos, os mesmos professores, os mesmos pais, e o teu pai ou a tua mãe que estavam à tua espera a sorrir, a tua velha escola, onde a tua inteligência se desenvolveu, onde encontraste tantos colegas bons, onde todas as palavras que ouviste dizer eram para o teu bem, e não tiveste nenhuma contrariedade que não tenha vindo a ser útil! Por isso leva essa afeição contigo, e despede-te com todo o coração de todos aqueles meninos. Alguns vão sofrer desgostos, irão perder muito cedo o pai e a mãe, outros irão morrer jovens, outros talvez derramem nobremente o seu sangue em batalhas, muitos deles serão excelentes e honestos operários, pais de família honestas e trabalhadoras como eles, e quem sabe se entre eles também não haverá algum que irá prestar grandes serviços ao nosso país e cujo nome se encherá de glória. Por isso despede-te deles com carinho: deixa um pouco da tua alma nessa grande família, na qual entraste quando eras pequenino, e que agora deixas sendo um rapazinho, essa família que o teu pai e a tua mãe amam imenso porque nela tu foste extremamente amado. A escola é uma mãe, meu querido Enrico, ela tirou-te dos meus braços quando mal falavas e devolve-te agora crescido, forte, bondoso: que Deus a abençoe, que tu jamais a esqueças, filhinho. Oh! É impossível esqueceres. Um dia serás um homem, andarás por esse mundo fora, verás cidades imensas e monumentos maravilhosos, e esquecer-te-ás de muitos deles, 367


mas o humilde edifício branco, com as suas persianas fechadas, e o pequeno jardim, onde desabrochou a flor da tua inteligência, vê-lo-ás até o teu último dia de vida tal como eu verei a casa onde ouvi a tua voz pela primeira vez. A tua mãe

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os exames 4, terça-feira Chegaram finalmente os exames. Nas ruas em volta da escola não se ouve falar de outra coisa da boca de meninos, pais, mães, até mesmo até mesmo das governantas: exames, notas, tema, média, adiado, passar de ano, todos pronunciam as mesmas palavras. Ontem de manhã foi o exame de composição, esta manhã de aritmética. Era comovente ver todos os pais que levavam os filhos à escola e lhes davam os últimos conselhos pelo caminho, e muitas mães que acompanhavam os filhinhos até à carteira, para ver se havia tinta no tinteiro e para experimentar a caneta, e se viravam mais uma vez à saída para dizer: – Coragem! Atenção! Vê lá! O nosso professor vigilante era Coatti, o que tem uma grande barba preta, que faz um rugido de leão, e nunca castiga ninguém. Havia meninos que estavam brancos de medo. Quando o professor abriu o envelope do Município, e retirou deste o exercício, não se ouvia nem uma mosca. Ditou o exercício em voz alta, olhando ora para um de nós, ora para outro fazendo olhos ferozes, mas percebia-se que se tivesse podido ditar também a solução, para nos poder passar a todos, tê-lo-ia feito com imenso prazer. Após uma hora de trabalho muitos começavam a ficar agitados porque o exercício era difícil. Um deles chorava. O Crossi dava murros na cabeça. E não é que todos sejam culpados por não saberem, pobres meninos, que não tiveram muito tempo para estudar, e cujos pais não se preocuparam com eles. Mas a providência encarregava-se. Só mesmo estando lá para ver a ginástica que o Derossi fazia para ajudá-los, os malabarismos que fazia para passar um número e para indicar uma operação, sem ser apanhado, preocupado com todos eles, que até parecia que era ele o professor. Até o Garrone, que é bom em aritmética, ajudava quem podia, e até ajudou o Nobis, que como estava metido em sarilhos estava muito simpático. 369


O Stardi ficou quieto durante mais de uma hora, com os olhos postos sobre o problema e com as mãos na cabeça, e a seguir fez tudo em cinco minutos. O professor andava por entre as carteiras a dizer: – Calma! Calma! Tenham calma! – E quando via algum deles desencorajado, para fazê-lo rir, e incutir-lhe ânimo abria a boca como se fosse devorá-lo, imitando um leão. Por volta das onze horas, olhando para baixo através das persianas, vi muitos pais que andavam de um lado para outro na rua, impacientes. O pai do Precossi estava lá, com a sua camisa azul-turquesa, acabado de sair da oficina, ainda tinha a cara toda preta. A mãe do Crossi, a vendedora de erva também estava lá, vestida de preto, sem conseguir ficar parada. Pouco antes do meio-dia chegou o meu pai e ergueu os olhos para a minha janela: meu querido pai! Ao meio dia tínhamos terminado todos. E foi um espetáculo à saída. Foram todos ao encontro dos meninos a fazer perguntas, a folhear os cadernos, a comparar os trabalhos dos colegas: – Quantas operações? – Qual é o total? – E a subtração? – E a resposta? – E a vírgula dos números decimais? Todos os professores andavam por aqui e por ali, eram chamados de todos os lados. O meu pai tirou-me logo da mão o rascunho, olhou e disse: – Está bem. Ao pé de nós estava o ferreiro Precossi que também olhava para o trabalho do filhinho, um bocadinho inquieto sem perceber patavina. Meteu conversa com o meu pai: – Será que me podia dizer o total? Ele olhou: condizia. – Muito bem, meu querido – exclamou todo contente. E o meu pai e ele fitaram-se por um instante, com um sorriso alegre, como dois amigos. O meu pai estendeu a mão. Ele apertou-lha. E despediram-se a dizer um ao outro: 370


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Este livro foi composto em caracteres New Baskerville e impresso na Guide – Artes Gráficas, em papel Coral Book Ivory 80 gr. no mês de Setembro de 2011.



ISBN 978-989-8407-42-9

9 789898 407429


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