Óleo Sobre Tela

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贸leo sobre tela


título Óleo Sobre Tela título original Oil On Canvas autor Gina Picart direitos reservados © Gina Picart tradução Àlex Tarradellas Rita Custódio revisão Nova Delphi design FBA. paginação Nova Delphi imagem Doug Landreth Corbis / VMI impressão e acabamento Papelmunde isbn 978- 989-8407- 90 - 0 depósito legal 347246/12 editora Nova Delphi (Marca registada da Euthalia Editora, Lda.) Rua da Carreira, 115/117, 9000-042 Funchal, Portugal www.novadelphi.com


Gina Picart

贸leo sobre tela



Aos meus avós Hilda e José Manuel e aos meus pais Idelci e Hugo pela determinação e pelos muitos sacrifícios com que me educaram. À minha filha Cynthia, o sentido da minha vida. Ao meu marido Oscar pelo seu apoio incondicional durante tantos anos. Aos meus amigos Duchy Man, Benigno Delgado, Vladimir e Gretell, os essenciais. A Beatriz Maggi, a minha mestre. A Alberto Garrandés por me mostrar o caminho. A todos, amor e paz eternos. Aos Inomináveis.



índice 9 Janela em Frente ao Mar 15 O Príncipe dos Lírios 35 O Nome da Vala 35 Onde Três Franciscanos Chegam a Uma Abadia 40 Onde o Terceiro Franciscano Começa a Indagação 46 Onde as Veredas se Bifurcam e Aparece o Ódio 53 Onde Venâncio Morre e o Irmão Júlio Maquina a sua Vingança 62 Onde o Irmão Edgar Encontra o Cadáver de Berengário 64 Outros Assassinatos e o Quarto Vértice do Triângulo 68 A Porta Condenada 71 Onde… 73 Areté Para Vlad de Rais 79 Apocalipse Pomba Sobre Neve



janela em frente ao mar (Óleo sobre tela)

O meu atelier é cinzento. Estou a pintar sobre uma tela cinzenta um quadro cinzento que ninguém comprará. Para lá do vidro um oceano cinzento, sobre um céu plúmbeo e vazio, parece ameaçar esta península onde a chuva não para de cair. Chão de areia e algas podres, raras e momentâneas construções feitas de pedras atiradas pelo mar e de crustáceos mortos. Cria-as uma onda e outra arrasta-as de novo para a profundidade. São como vidas que só duram o tempo de um tremor de pálpebras. O tempo tem aqui a sua morada silente. Às vezes passam aves que batem as asas como se tivessem pressa de se afastar deste lugar, e os seus gritos de alarme chegam até mim cortando o ar como uma pequeníssima faca de prata. Observo-as. Certos dias, quando atravessam a água, deixam a sua sombra durante um instante sobre a superfície ondulada, de um verde sujo que, ao longe, parece um roxo sombrio. Durante os meus passeios julguei descobrir uma gaivota morta sobre a areia, mas quando me aproximo vejo que é só uma mancha, uma pedra, um pouco de líquido empoçado num vazio lavrado pelo vaivém das marés. Não há muitas cores nesta paisagem imutável. É como o princípio ou o fim da dissolução. Aqui passo os meus dias e as minhas noites. Não espero nada, não espero ninguém. Habito esta casa sem saber até quando; já não mo pergunto, limito-me a permanecer. Pinto o céu, as rochas, o mar e as vastas extensões de areia até onde chega a minha vista. Pinto para mim. Às vezes permito-me introduzir alguma pequena transgressão do real, como no dia em que pintei milhares de girassóis a cair entre a chuva, mas desapareceram 9


rapidamente e o quadro foi apenas mais outro retrato fiel de uma tempestade sobre a península. Numa tarde em que a solidão me pesava especialmente pintei um palhaço terno sentado numa rocha; com a sua mão direita fazia um sinal de cumprimento dirigido à janela desde onde eu o ia criando com o meu pincel. Senti-o tão real que cheguei a acreditar na sua presença, com a sua roupinha de polichinelo, o seu chapéu de guizos e o seu nariz de maçã a coroar um imenso sorriso. Numa folha de papel pintei com traços rápidos uma bandeira de amor e mostrei-lha segurando-a diante da janela. A bandeira fez-me perdê-lo de vista por um instante, e quando a retirei ele já não estava lá. Fui à sua procura. Devo ter caminhado quilómetros. Mas não apareceu. Não encontrei nem uma pegada. Às vezes tenho fantasmagorias. Sobre a mesa, em algum lugar entre os frascos de tinta, há uma carta. Está ali há tanto tempo que já não me lembro de quando a recebi. Ou talvez já aqui estivesse quando cheguei a esta casa. Talvez não seja minha e talvez sim. Não tenho a certeza. Por isso não a abri. Às vezes olho para ela e pergunto-me o que dirá. Mas a morada do envelope tornou-se confusa de tanta tinta que lhe caiu em cima. A aguarrás deslavou os caracteres e já não são legíveis. Lá dentro, as linhas devem ter sofrido o mesmo deterioro e já não se poderá decifrar a mensagem. O envelope é muito fino, quase transparente. Não deve ser uma missiva longa, nem sequer duas laudas. Talvez apenas uma folhinha pequena com uma única palavra: «Vem», ou «Adeus». Ou talvez tenha apenas uma flor pintada… Não preciso de comer nem de beber. É uma sorte, porque não dependo de ninguém para conseguir alimentos. Se quisesse podia pescar. Vi as sombras dos 10


peixes a deslizar velozes sob o véu da água, muitas sombras juntas, cardumes inteiros, mas não é necessário. Pintar alimenta-me e mata-me a sede. Também não durmo. Desde que me instalei nesta casa o sono não voltou, retirou-se como um visitante que não encontra quem veio procurar. Ao princípio julguei que morreria, mas não aconteceu nada disso, pelo contrário: sem sono, a minha força aumenta e os meus membros enchem-se de um inusitado vigor. Antes de vir para esta casa sofri muitas doenças, mas esta é uma memória que se foi apagando, já não me consigo lembrar e as imagens resistem a ser evocadas. Não me cansa pintar, não me cansa passar horas intermináveis em frente ao cavalete; agora, o meu corpo é tão leve que não conhece a fadiga. Às vezes dou um passeio pelos arredores para ver se apareceu alguma cor nova; ou pela casa, gosto de percorrer as suas amplas divisões desprovidas de móveis. Agora estão vazias, mas a sua presença é visível, porque posso vislumbrar as marcas dos seus contornos contra as paredes e o rasto das suas pernas sobre os mosaicos do chão. Havia um espelho, grande, com uma moldura antiga. A sua silhueta ficou impressa no estuque. É estranho um espelho assim numa casa de praia, numa casa moderna. Os mosaicos são de um vermelho tijolo erodido pelo salitre. As marcas dizem que também houve aqui uma mesinha pequena, um sofá e, na parede, uma estante embutida. A disposição dos livros ainda se pode ver: colocados à vontade, uns livros altos ao pé de outros mais baixos. Tenho a impressão de que se me esforçasse poderia imaginar exatamente a pessoa que viveu nesta divisão, mas seria como quebrar o silêncio ao introduzir no seu interior outra presença para além da minha. Uma vez tive a intenção de pôr cortinados pesados, densos, para atenuar um pouco essa luz 11


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areté para vlad de rais (Serigrafia)

Está sozinho. Fecha os olhos e aparece uma sala penumbrosa. Pelas suas paredes de pedra humedecida trepa a hera verde. Chão coberto de junco endurecido, comprida mesa de carvalho, chaminé com olhos de fogo, galgos aconchegados que ofegam sonhos de grandes caçadas por entre os seus caninos pontiagudos, galhardetes de tons deslavados, escudos enferrujados, panóplias onde se exibem velhos troféus de gerações, e um pajem que faz soar no seu canto as cordas de um alaúde, mas muito quedo, como se temesse que se notasse a sua presença. Sentado à cabeceira da mesa, um homem jovem, de longos caracóis negros, veste cota de malha com o torso coberto por um elmo que devolve o reflexo das chamas. Muito pálido, sustém na sua mão direita um cálice de prata do qual nunca bebe. O seu olhar crava-se nas línguas de fogo que se agitam, enquanto a mão livre permanece imóvel sobre a mesa. O dedo do meio do cavalheiro exibe um enorme anel de esmeraldas com um selo trabalhado, um selo desgastado pelo uso e com minúsculos restos de lacre cor de sangue. Ninguém retirou o serviço e ainda restam sobre a toalha, como restos de uma batalha consumada, pratos com fémures recém-descarnados, bocados de queijo e pratinhos de sal. No centro da mesa, brota de uma imensa vasilha de prata, como planta exótica, o esqueleto fracionado de um cervo que conserva os seus chifres intactos. Os comensais mantiveram a sua presença até há pouco tempo, no entanto… estiveram mesmo ali? Não há ar na divisão abobadada. Desde o tapete de juncos sobe um cheiro a erva podre misturada com excremento de ratos, carne corrupta e urina de cães. 73


Nos cantos, milenares piveteiros de bronze exalam aromas da Palestina, talvez sândalo, com longínquos eflúvios de canela, rosas e nardos. Crepita o fogo, suspira o cavalheiro, que move a mão inerte e aparece debaixo dela um pergaminho, e entre os seus dedos uma lânguida pena de ganso. Um verso longamente pensado, quase esculpido como joia preciosa, vai brotando da ponta metálica: Este é o meu poema feito de nada, escrevi-o sobre o meu cavalo enquanto dormia… Já é herói e poeta, mas recusa ser santo. Um morcego entra pela janela a preceder o rumor da chuva. O cavalheiro lembra a tempestade e, como em tantas noites invernais, o mar embravecido bate contra a falésia do castelo. Pensa na dama que o aguarda encerrada na solitária torre. Bebe, por fim, um sorvo do seu cálice de prata, e o fogo do vinho desce pelas suas veias em riacho ardente até ao seu membro que, cheio, se levanta e pressiona o metal da braguilha. O cavalheiro põe-se de pé; com um súbito movimento da sua curva da perna afasta de si a cadeira de madeira magnífica e, caminhando lentamente, abandona a divisão. Sai para um corredor iluminado por archotes que gotejam resina quente. Pega num e ilumina o caminho. Avança devagar. Sabe que nessa noite, mesmo que desse a volta ao Universo por milhares de caminhos, só pode chegar a uma única porta, inconfundível entre as centenas de portas que se levantam à sua passagem pelas divisões e corredores. E tudo deve estar assim, em sombras; só pode existir a débil chama do archote, a descartável luz que já nada pode impedir. O seu peito 74


gostaria de beber todo o cheiro da chuva que chega do mar, do sangue que vem em ondas desde longínquos campos de batalha, mas o que mais vivamente deseja é cheirar o tremor dessa carne que espera, encolhida sobre si própria, humilhada desde tempos imemoriais, inerme, atormentada pela premonição do sacrifício… Já se decidiu, já deixou de pensar no tremendo preço da sua alma: Ah…, que não escape…! O cavalheiro detém-se perante a inconfundível porta. Para quem não conheça o castelo é uma porta mais, de azinheira coberta com pesados tapetes, que poderia conduzir a uma divisão qualquer, talvez um quarto ou uma biblioteca, mas o cavalheiro conhece cada canto do seu castelo, arrastou-se silenciosamente sobre cada pedra, sobre cada pano de muralha, sobre cada atalaia e cada ponte. Sabe muito bem onde vai. Empurra a madeira. Chiam as dobradiças. A luz, modesta, invade um interior completamente escuro, e mostra uma sala idêntica a todas as salas do castelo, mas o seu resplendor modela os contornos de um leito e, no meio de uma confusão de cobertores púrpura, uma figura, um corpo dobrado sobre o seu próprio ventre, geme e ofega entre o metálico fragor de umas correntes embutidas. O cavalheiro desfaz-se da luz e avança cada vez mais devagar. Aproxima-se do leito com expressão perversa, como se aproximam os galgos à presa ferida. Com um gesto despoja a figura dos seus véus e, como um mago, materializa do nada o corpo quase infantil de uma donzela. A jovem tenta fugir, mas os aros de metal que mantêm os seus pulsos atados a grossas correntes imobilizam-na. O cavalheiro mostra agora umas pupilas repentinamente avermelhadas, reflexo de um fogo inexistente na divisão. Move as suas mãos no ar, os seus dedos agitam-se como plantas aquáticas, como flagelos; agarram 75


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apocalipse pomba sobre neve (Tinta sobre velino)

Nunca conheci o meu verdadeiro nome, mas as freiras, quando me encontraram abandonada numa vala, chamaram-me Eude. Não sei onde nasci e não tenho passado, porque sempre vivi no convento. Cresci entre os louvores ao Senhor e os rudes labores do noviciado até ao dia em que tomei o hábito. Já desde a minha infância a Madre Superiora descobriu a atração que o mundo das cores e das imagens tem sobre mim. Assim me converti em iluminadora de códices, embora devido à minha extrema juventude só me permitiam trabalhos menores. As minhas marginalia 2 valeram-me estar agora no scriptorium desta abadia, diante de uns olhos silenciosos que me escrutam. Eu não baixo a guarda, não tenho de me sentir envergonhada por ter sido destinada para o ajudar no seu trabalho. Este monge deveria sentir-se feliz de que eu, soror Eude, lave os seus pincéis, afie as suas penas e alise os seus pergaminhos em total silêncio. Proibiram-nos de falar porque ele é homem e eu mulher, e será assim até que acabemos de iluminar o manuscrito. Quando tudo terminar, a Madre 2  É sempre encomendado ao monge iluminador desenhar as piedosas imagens religiosas das figuras centrais das lâminas, enquanto os noviços se encarregam das marginalia, esses comentários e formas estranhas que se escrevem e pintam nas margens dos fólios. Os jovens, brincalhões, deixam voar a sua fantasia ao inventarem impossíveis combinações anatómicas. Eu, Eude, pintei, entre muitos outros disparates, um homem caracol, uma cabeça de homem com um volumoso chapéu, que sai da enroscada carapaça do caracol; um anão com o corpo inferior de um porco, que toca uma espécie de flauta; outro homem que toca uma gaita e tem uma cabeça com uma venerável barba muito comprida e asas de morcego. São sonhos, pesadelos que assediam os pequenos monges no escuro isolamento das suas celas; criaturas que habitam a parte escura da alma, onde a luz de Deus nunca chega.

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Superiora enviará a carroça para me vir buscar e nunca mais o voltarei a ver. Chama-se Vitale, os seus olhos são azuis como o manto da Virgem, e tem medo. Eu também: este manuscrito é a minha primeira encomenda importante, e foi feita por um rei. O Prior mandou construir para nós um móvel completamente novo: mesa dupla com bancos em frente e uma estante de dupla parede para colocar os rolos e fólios de pergaminho, com um buraco na sua base onde poderemos passar notas e comentários um ao outro, de acordo com o decorrer do trabalho. Quase nunca vemos a cara um do outro, mas partilharemos os utensílios de escrita e as belas tintas. Um noviço encarregar-se-á de as aquecer, mas serei eu a prepará-las. Tenho fórmulas que ninguém conhece, misturas de ervas, resinas e animais pequenos com pós de metal triturado e um pouco de prata e ouro. Outros noviços rasparão e alisarão os pergaminhos que eu escolhi. Tenho um tato muito fino e sei encontrar os mais delicados, os mais claros e suaves que deem as melhores luzes para esta cópia que nos vai ocupar muitos meses 3. Agora chega o inverno como uma virgem bela e velada; à sua 3  Eu, Eude, pergunto-me se a Igreja trabalha por mandato de Deus e do seu doce Filho ao permitir o sacrifício de tantas reses, criaturas inocentes da Criação, para obter os pergaminhos sobre os quais depois se escreve a Palavra divina. Eu estive na abadia de Iona, em frente à costa da Escócia, e os meus dedos percorreram a camada de ouro e gemas preciosas do Grande Evangeliário de São Columba numa noite de tempestade. Eu vi as suas iluminações magníficas, as mais belas da Cristandade, feitas com o preto das velas, com o vermelho brilhante do rosalgar, o amarelo do ouro-pigmento, o verde esmeralda da malaquite pulverizada e a caríssima lazulite trazida das montanhas do Afeganistão. Duzentas peles de vitelas nonatas foram necessárias para criar este livro magnífico. Nunca quis saber se apunhalavam a rês antes do parto para obter a bezerra sem vida. Não. Eude não quer saber. De que me serviria? Eude não pode mudar o mundo. Quem lhe dera…

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passagem uivam os lobos e as árvores vão-se tornando brancas, mas sei que veremos a mesma paisagem muitas vezes antes de terminarmos esta tarefa. Vitale de Ravenna e a freira Eude vão ilustrar os Comentários ao Apocalipse de São João, que um homem santo, Beato de Liébana, escreveu há séculos no seu longínquo mosteiro espanhol. O mundo é pequeno como uma bolota. O fogo arde na enorme chaminé do scriptorium, mas o frio é tão intenso que os dedos endurecidos se negam a mover-se. Temos as unhas lívidas e os pés insensíveis. Vitale é pálido e às vezes tosse virando o rosto para escapar à minha contemplação, mas é inútil, não há nada no mundo capaz de fugir à minha avidez de linhas e de formas. A minha pupila é profunda e possui uma memória implacável que capta o aspeto de todas as coisas como se as fundisse no fundo de um poço; ali ficam, intactas, com a mesma teimosia com que se assentam as lembranças, e germinam como sementes de cor que com o tempo crescem e se transformam em beleza. Vitale tem medo e assim vou lembrá-lo quando as minhas têmporas ficarem grisalhas. Os seus grandes olhos temerosos vão do meu rosto até às janelas, como se tentasse encontrar alguma semelhança entre a pele das minhas faces e a camada de neve puríssima que cobre a terra. Eu sei quantas imagens estão a passar pela sua mente neste instante, pecaminosas, quentes, autênticas tentações delatadas pelo tremor do seu nariz tão fino como um cálamo. É um jovem belo, mas o medo altera o seu semblante dando-lhe um ar torturado que o assemelha à expressão de um órfão. Dizem que foi o discípulo predileto do grande Magius, monge magíster de iluminadores e fiel guardião de tradições, homem temeroso a Deus que morreu sem cabelo, coberto de verrugas e com um diabo incrustado nos seus pulmões 81


que o fazia tossir e tossir, envenenado — dizem — pelos vapores mefíticos de alguma cor. A sua fama espalhou-se pelo mundo veloz como uma gaivota. Julgo saber porque é que Vitale está assustado. Decorre o ano de graça de 999 e foi garantido a estes monges, como a toda Cristandade, que na Páscoa se acabam os tempos; que vem o Anticristo e Deus lutará contra ele pela definitiva posse das nossas almas. Haverá um reinado de mil anos, e depois o grande Juízo Final onde todos seremos julgados. Os monges desenham ao contrário o número do ano e obtêm 666, o número da Besta, e murmuram sem saliva entre os seus dentes «Vade Retro!», e já não continuam a lançar migalhas uns aos outros nem a trocar piscadelas de olho, nem acariciam as coxas trémulas debaixo da mesa. Estes homens que se retiraram da vida estão assustados com a certeza de morrer. Se eu pudesse falar contar-lhes-ia que o Concílio de Roma condenou a sete anos de penitência o rei Roberto e muitos dos seus súbditos hereges. Dir-lhes-ia que muitos dos arquitetos venezianos preparam belos planos para reconstruir a sua cidade consumida há dois anos pelo fogo. Que em Colónia preparam os festejos do dia 24 de dezembro, justamente a Páscoa, para receber o seu novo Arcebispo. E que eu própria, Eude, só ontem vi a Madre Superiora do meu convento subscrever contratos com os pedreiros após vinte e cinco anos de serviço. Reis e imperadores sabem muito bem que tudo continuará como até agora: os camponeses a semear nabos, os nobres a perseguir javalis, a guerra a matar, os lobos a procurar refúgio entre as ruínas dos vencidos, as mulheres a dar à luz e os monges a copiar manuscritos para a eternidade. Rotação do anel sobre o dedo per saecula saeculorum. Mas Eude não pode falar. Eude está condenada ao silêncio. 82


O noviço aproxima-se com um rolo de tiras de lã para vendar as mãos de Vitale, mas eu mando-o embora e ocupo-me disso. As mãos ficam suspensas no ar como aves congeladas em pleno voo, paralisadas pelo assombro. O contacto com as minhas estremece tanto o monge que, quando é a sua vez de me vendar, o seu tremor impede-lho e eu acabo por me vendar sozinha. A chave de uma boa ligadura está em não apertar demasiado as tiras de lã à volta dos dedos para que o sangue, gelado, não deixe de fluir imobilizando o escrevente. Distribuímos o trabalho apontando para o número de páginas que cada um vai ilustrar. Vitale, generoso, concedeu-me o início, mas eu escolho da metade até ao final4. Na realidade ter-me-ia conformado com qualquer parte do texto, mas a Madre Superiora, embora me tenha advertido de que me comporte com recato e discrição, também me repetiu várias vezes que eu não estou às ordens dos varões por mais santos e sábios que sejam, mas sim de Deus e Jesus Cristo 5. Devo mostrar que tenho vontade. Agora Vitale está a ler e toma notas com a sua pena de ganso. Tem gestos nobres. Terá nascido no século, na cidade ou num castelo e ordenou-se tarde; provavelmente um dissoluto a quem o seu pai quis afastar da família para guardar a honra do nome. Tem os traços finos de alguma antiga estirpe. Dizem que é descendente de Gala Placídia e Valentiniano. Se for verdade, Vitale tem sangue de imperadores. Deveria ser mais moreno, se tem ancestrais romanos e cresceu diante dos ventos 4  Os primeiros capítulos de João mostram a morte e a desolação, as sete pragas, as taças da ira divina. Eu prefiro ilustrar a esperança: a grande Jerusalém que desce do céu para salvar os vivos. 5  Nunca me disseram qual é o sexo dos anjos…

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do Adriático, mas é branco como os godos, ou como se nunca tivesse visto o sol. Alva a carne, vermelho o cabelo, azul nos olhos e cor-de-rosa nos lábios… Um ícone de Ravenna. As miniaturas de Beato são magníficas, será difícil igualar a sua beleza. Essas imagens de olhos imensos e quase tão grandes como a forma amendoada do rosto, perpetuamente horrorizados como quem olha em sucessão dramática para todo o catálogo das desgraças passadas, presentes e futuras do mundo; e essas mãos teimosas, ossudas, que parecem agarrar-se com desespero à esquálida vida que ainda palpita sob as magras dobras das suas túnicas… Todas as personagens contemplam perplexas a arca de Noé e a pomba que segura com o seu bico um ramo de oliveira; olham para as sete igrejas, sumptuosas como pequenas joias de rainha; olham para o Cordeiro a mostrar-se aos Justos com o seu abundante velo de animal muito bem nutrido; veem os Apóstolos jantar com a sua fome de pescadores paupérrimos; veem o Tetramorfos a anunciar desde o seu trono o advento da Jerusalém celeste rodeada de doze portas com arcos de ferradura. Olham e olham com os seus imensos olhos espantados. E, enquanto olham, talvez se lembrem de que só um número insignificante de humanos — cento e quarenta e quatro mil — poderá atravessar a majestosa soleira da salvação. A Cidade áurea é para os eleitos. Ninguém se atreve a perguntar-se de que tamanho é Jerusalém nem quantos justos poderá albergar quando chegar o final dos tempos, mas sabe-se, embora não se comente, que só aqueles sobre os quais caia a Graça poderão acolher-se atrás dos seus muros. O destino dos restantes é bem confuso. Eu, Eude, sempre me perguntei: se Cristo morreu na cruz para lavar os pecados de todos os homens e de 84


todas as mulheres, porque é que a Jerusalém celestial será um refúgio exclusivo para poucos? As Escrituras não dizem nada que me possa convencer de que isso é justiça. Até hoje muitos monges se debruçaram sobre os seus pergaminhos para pintar as visões de horror onde a tragédia do mundo chega ao seu fim, mas nenhum se atreveu a perguntar, a pedir argumentos. Nós, que nos consagrámos aos livros, somos piores do que os escravos e os servos. Os nossos olhos consomem-se na lívida luz, a nossas costas encurvam-se em plena juventude, deforma-se a caixa do corpo, sofremos sede, fome e frio, e à noite, quando tentamos conciliar o sono sobre o colchão de palha que nunca aquece, somos atormentados pelas visões que de dia não pudemos estampar sobre os fólios com o poder das nossas mãos; imagens próprias que sejam heraldos dos nossos verdadeiros pensamentos. Porque é que temos de obedecer sem nos permitirmos jamais uma ideia? Porque é que temos de aceitar que nada de novo pode ser acrescentado ao que já foi escrito? Por acaso um monge inteligente não é capaz de encontrar significados novos nos textos que copia? Por acaso o mundo é o que encerra um pergaminho entre as suas capas de marfim e nunca deve mudar? Por acaso os homens e mulheres do século, e de todos os séculos vindouros, estão encerrados no que já foi escrito como dentro de uma jaula imutável chamada Eternidade? Chamam a isso fidelidade ao texto primigénio. Eude, não penses, não penses mais, que ofenderás a Deus! A vida é uma cópia interminável do ontem.

In nomine domini nostri ihesu christi incipit liber revelationis ipsius domini nostri ijçhesu christi, escreveu o copista

nas Preliminares. Vitale e eu lemos o texto mais de uma vez e sabemo-lo de cor. Se o mosteiro ardesse e todos 85


os livros do scriptorium se convertessem em cinzas, suspeito que poderíamos rescrever uns quantos e começar a biblioteca outra vez. Mas nós não somos únicos. Os monges nunca esquecem os livros que copiaram, porque estão treinados para recordar o que leem. Somos como crateras humanas destinadas a conter conhecimento que foi de outros, vertido nesses velinos que acariciamos com a ternura e o desejo que não podemos entregar a nenhum ser vivo. Eude, cala-te, ou condenar-te-ás ao fogo do Inferno.

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(…)


Este livro foi composto em carateres New Baskerville e impresso na Papelmunde – SMG, Lda, em papel Coral Book Ivory 90 g no ano de 2012.




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