QUEM É CAPITU?
Autores Luis Fernando Veríssimo, Lya Luft, Millôr Fernandes, Luiz Fernando Carvalho, Lygia Fagundes Telles, Mary Del Priore, Fernanda Montenegro, Silviano Santiago, John Gledson, Roberto DaMatta, Gustavo Bernardo, Daniel Piza, Luiz Alberto P. de Freitas, Otto Lara Resende e Carla Rodrigues Organização de Alberto Schprejer
Se fizermos uma eleição entre os leitores desse país para decidir quem é a personagem feminina mais polêmica, mais importante ou mesmo mais bonita da literatura brasileira, a Capitu de Machado de Assis venceria com folga nos três quesitos. Mesmo assim o seu criador foi econômico na descrição da esposa de Dom Casmurro, destacando os olhos e o olhar. Não especificou a cor desses olhos, mas os desenhou com as metáforas poderosas da “ressaca” e da “cigana oblíqua e dissimulada”. Mas a aparência “verdadeira” de Capitu fica apenas no terreno das possibilidades, deixando para cada leitor a tarefa de sonhar sua personagem.
LUIS FERNANDO VERISSIMO Meses antes da infausta morte por afogamento de Escobar, Bentinho havia me procurado. Era a primeira vez que ia ao meu escritório e passou algum tempo comentando a decoração da sala, o calor daquele inverno e a corrupção no país antes de entrar no assunto que o levara à Ouvidor. O assunto justificava sua relutância e o seu suor fora de estação. Bentinho queria que eu investigasse Escobar. Queria que eu o seguisse como sua própria sombra. Queria saber todos os seus movimentos. Queria, acima de tudo, saber de seus encontros amorosos.
JOHN GLEDSON Talvez, no final, ela seja atraente não por causa de sua natureza de sereia, seu jeito de cigana, sua dissimulação, seus olhos de ressaca e assim por diante, mas porque nós sentimos, apesar de tudo, algo de honestidade, realismo e integridade nela, um ímpeto que talvez não esteja presente nesse grau em nenhuma das outras mulheres de Machado, antes ou depois.
FERNANDA MONTENEGRO (...)E como mulher de palco digo que, se eu tivesse tido na minha vida a oportunidade de tentar interpretar Capitu, partiria do ponto de vista de sua clara, profunda e inconfundível brasilidade (...)Indo além do que já ousei e me arrisquei nestes parágrafos, intuo que, embora o Brasil seja nome masculino, nosso país, por nossa complexidade oblíqua,
energética, misteriosa, pela nossa História contada sempre de uma forma tão dissimulada e pelo fascínio tão decantado de nossos trópicos, é, no fundo, uma nação Capitu.
LUIZ FERNANDO CARVALHO Capitu, o inesperado ser, não é o que o Casmurro nos conta? Antes de tudo, ela é o que ele omite? Sua verdade está no que não sabemos? Sua fascinação reside na dúvida. A angústia por desvendá-la cresce pela nossa incapacidade de aceitar o silêncio, o enigma, o trágico em nós mesmos.
SILVIANO SANTIAGO Capitu não existiu e continua a não existir. Não existe o túmulo de Capitu, onde depositar rosas no Dia dos Mortos. Desde sempre, ela teve a consistência das letras do alfabeto latino e a materialidade das palavras escritas na língua portuguesa falada no Brasil. A lápide que recobre o corpo se confunde com a folha de papel impressa, onde continuamos a depositar as flores da crítica literária. Em termos óbvios, Capitu é um personagem ficcional, agigantado pela estima e a lente das sucessivas gerações de leitores do romance Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis.
ROBERTO DAMATTA Mas quem é, afinal,
Capitu? Penso que a Capitu demonizada pelo autor-narrador
representa a perda da inocência e de um passado que não tem retorno; ela é também a consciência do fato de que nenhum de nós é amado como gostaríamos. Ela também representa a frustração diante da promessa moderna de que estamos no mundo para fazer muito e esse muito, em certos momentos, transforma-se em muito pouco.
Há uma pergunta que se faz desde que Dom Casmurro foi publicado. A pergunta não é, como parece à primeira vista, se Capitu traiu ou não Bentinho, mas sim: quem é Capitu? Responderam a esta pergunta a atriz Fernanda Montenegro; o diretor Luiz Fernando Carvalho; a historiadora Mary Del Priore; o professor e escritor Gustavo Bernardo; a jornalista e professora Carla Rodrigues; a escritora Lya Luft; o professor e escritor Silviano
Santiago; o crítico John Gledson; o escritor Otto Lara Resende (in memoriam); os geniais Luiz Fernando Veríssimo e Millôr Fernandes; o psicanalista Luiz Alberto P. de Freitas; o antropólogo Roberto DaMatta; o jornalista e biógrafo Daniel Piza; e a escritora Lygia Fagundes Telles. Cada um dos autores respondeu como quis e na forma que achou melhor: ora ensaio, ora depoimento, ora conto. Os textos formam um painel precioso, para ser lido na ordem ou aleatoriamente, para ser discutido, para provocar conversas. Alberto Schprejer (Org.)