DALLA: A MENINA-LUZ

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São Paulo, 2022
Marcelo Siqueira Ricardo Valverde

Dalla: A Menina-Luz

Copyright © 2022 by Marcelo Siqueira e Ricardo Valverde

Copyright © 2022 by Novo Século Editora Ltda.

Editor: Luiz Vasconcelos

Coordenação Editorial: Stéfano Stella

Preparação: Elisabete Franczak Branco

Revisão: Thiago Fraga/Flávia Cristina de Araújo

Diagramação: Manoela Dourado

Ilustrações de Capa: Paula Monise

Montagem de Capa: Stéfano Stella

Ilustrações: Wikimedia Commons

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográ co da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Siqueira, Marcelo

Dalla: a menina-luz/Marcelo Siqueira, Ricardo Valverde. –Barueri, SP: Novo Século Editora, 2022. 288 p.: il.

22-2307 CDD B869.3

Índice para catálogo sistemático:

1. Ficção brasileira

GRUPO NOVO SÉCULO

Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111

CEP 06455-000 – Alphaville Industrial, Barueri – SP – Brasil Tel.: (11) 3699-7107 | E-mail: atendimento@gruponovoseculo.com.br

www.gruponovoseculo.com.br

1. Ficção brasileira 2. Literatura apocalíptica 3. Terror I. Título II. Valverde, Ricardo uma marca do Grupo Novo Século

A Lucca e Maya, para que nunca se esqueçam.

Marcelo Siqueira

Aos familiares, amigos e leitores, com carinho e amor.

Ricardo Valverde

Agradecimento especial ao editor Luiz Vasconcelos, pela parceria de longa data e por acreditar no projeto; a Frank Félix, pela leitura beta e por compartilhar seus profundos conhecimentos sobre mitologia nórdica; a Elias Awad e Maurício Gomyde, pela força e por confiarem na obra. A propósito, Loki também envia um abraço!

Ragnarök, Johannes Gehrts.

[…] Irmãos lutarão

E matarão uns aos outros; Filhos das próprias irmãs Pecarão juntos.

[…] Uma era do machado, uma era da espada, Escudos serão partidos.

Uma era do vento, uma era do lobo, Antes de o mundo cair morto.1

1 Fragmentos do registro nórdico narrado na Völuspá (A Profecia da Vidente), primeiro e mais conhecido poema da Edda Poética, preservado nos manuscritos do Codex Regius.

PRÓLOGO

Akureyri, Islândia Dezembro de 2017

As imagens que ecoavam dentro da mente da pequena Dalla eram mais do que apenas sonhos aleatórios. Elas tinham vivacidade, gosto e cheiro de saudade. Eram memórias reais, de um tempo livre e feliz. Anterior ao monstro que começou a nascer no sangue da menina, impedindo-a de respirar, de comer, até mesmo de reunir forças para sair da cama, dia após dia, e que a fez trocar o calor do lar por um quarto gelado e fedorento de hospital.

Mas as suas atenções sempre voavam para longe dali. Graças aos seus doces devaneios, fugiam daquela realidade lúgubre e aterrissavam onde ela bem entendesse. Esse era o lado bom de ser uma criança de 8 anos. Talvez os adultos perdessem isso com o tempo, o que poderia ser até mais triste do que a doença que aos poucos triturava sua saúde e sua sanidade.

Dalla estava com os joelhos sobre o tapete felpudo do quarto, um sorriso desenhado nos lábios, os olhos presos na janela, certa de que veria um dos treze rapazes de Yule – os Jólasveinar. Afinal, era véspera de Natal, e

ela já havia colocado uma tigela de leite de ovelha no quintal. Era questão de tempo até os trolls saírem das montanhas e descerem à cidade para rechear as meias das crianças de presentes, ou de batatas estragadas – caso alguém tivesse se comportado mal. A menina estava tranquila, segura de que não sofreria nenhuma punição, uma vez que ganhara ótimas lembranças nos doze dias anteriores.

A ansiedade a consumia como de costume, revirando seu pobre estômago, que implorava pela ceia que seria servida muito em breve. No fundo, ela sabia que receberia a visita que tanto aguardava apenas quando estivesse dormindo. Aquilo a irritava um pouco. A mesma coisa acontecia com os elfos que vinham buscar os dentes de leite. Nunca fora capaz de vê-los. A frustração a fez apanhar um boneco no baú de brinquedos e uma tesoura que guardava no fundo da gaveta do armário. Depois de dar mais uma espiadinha através da janela, para se certificar de que a tigela de leite de ovelha estava cheia e notar a estranha presença de uma mariposa marrom de asas grandes e peludas, a menina se deitou no chão do quarto e começou a fazer algo que mais tarde chamaria de “recriação”.

Dalla ouviu o trinco da porta girar num estalo agudo. Por alguns segundos, desviou os olhos do boneco e os inclinou na direção da mãe, que invadira o quarto como um furacão desgovernado.

– Filha! – disse Asdis, o corpo meio desajeitado. – Seu pai acabou de retirar o cordeiro do forno. Desça para comer. Sua avó já está à mesa, doida para contar aquelas mesmas histórias sobre os deuses.

– Espere, mamãe. Só preciso terminar meu trabalho. – Dalla entortou os lábios e depois apontou para o boneco que, àquela altura, já estava sem os braços e com a cabeça cortada em pequenos pedaços.

– Perdoe-me, querida. Mas o que está fazendo? – Asdis indagou com seriedade, arqueando as sobrancelhas.

– Estou reconstruindo…

Asdis, nitidamente preocupada, ajoelhou-se ao lado da filha e, em silêncio, apanhou alguns fragmentos de plástico que se emaranhavam no tapete.

– Com estes pedaços vou pintar o céu – Dalla falou com a voz doce. – Com estes outros criarei os mares. Os pés do boneco serão as montanhas. Os braços, as árvores. E com estas tiras que estou abrindo na barriga, vou dar vida a crianças que não sofram com doenças.

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CAPÍTULO I LUZ Ljós

Reykjavík, Islândia, agosto de 2018 Hospital Universitário Nacional de Fossvogur

Os passos do emissário, cautelosos e ansiosos, ecoavam sobre o piso do corredor do setor de oncologia do Hospital Universitário Nacional de Fossvogur, situado na região sudeste de Reykjavík, como um marcador do tempo. Aquela escuridão, vinda da noite e do silêncio do andar da oncologia, já que os horários de visita haviam se esvaído minutos atrás, tingia seus olhos de um amarelo cintilante; lembravam os de um réptil em posição de alerta. Normalmente, quando o sol do poente começava a se esconder por detrás de Kirkjufell, a montanha mais famosa e visitada da Islândia, o emissário preferia se recolher. Em situações como essa, que envolviam missões de urgência, ele sabia que tinha de manter as pálpebras praticamente cerradas para passar despercebido.

Um vento gélido atingiu seu rosto como uma bofetada. O emissário deixou escapar um leve sorriso; detestava o calor úmido do fim do verão. Ergueu a cabeça e notou a janela do fundo entreaberta, destacada em meio a uma nuvem de sombras.

Aproveitou para paralisar os movimentos. Respirou e armazenou um pouco de oxigênio nos pulmões; afinal, sabia exatamente o que viria a seguir. Levou a mão direita ao bolso do jaleco branco, colocado sobre um terno azul-marinho como parte de seu disfarce. Não era um médico especialista em câncer infantil, tampouco um enfermeiro. Estava ali por outra razão. Na verdade, por conta de uma menina. Apanhou um envelope entre os dedos longos e finos – eles não tinham unhas, pareciam canudos de carne e osso –, e retirou de seu interior um pedaço de papel dobrado e amarrotado. Abriu-o com delicadeza e estudou as poucas palavras escritas em letras garrafais:

DALLA, 9 ANOS QUARTO 126

O emissário permaneceu com o olhar perdido naquela mensagem por mais alguns segundos, os pensamentos inquietos e entrecortados. Sabia que sua missão era de extrema importância e que não poderia falhar. Pensar nas consequências de um possível erro chegava a corroer sua mente. Os batentes da janela se chocaram num grito débil e transportaram o emissário de volta ao refúgio de sua tarefa. Ele dobrou o pedaço de papel e o guardou novamente no envelope e então no bolso. Ergueu a cabeça e fitou a porta que se agigantava ao seu lado. – Cento e vinte e seis – disse, num sussurro pausado. Retomou a caminhada, torcendo para que não houvesse mais ninguém naquele imenso corredor, até que seu destino lhe convidasse a entrar. Girou o pescoço em todas as direções, estudando com enorme atenção o local, e descobriu-se sozinho. Era seu dia de sorte. E ele estava muito próximo, podia até sentir o perfume azedo e mórbido vindo do leito da menina. Avistou adiante o brilho de uma maçaneta prateada abaixo do número 126, e apertou a marcha. Abriu a porta com suavidade, e um ambiente claro e aconchegante se precipitou à frente de seus olhos. O emissário permitiu que seus lábios se curvassem num largo sorriso ao constatar o quanto aquele cômodo em nada se parecia com um quarto de hospital, exceto pelos aparelhos acomodados atrás da cama, que mantinham a vida de Dalla em curso. As paredes eram roxas e alguns desenhos de pássaros se espalhavam pelas portas de um armário alaranjado, que tomava por completo um dos lados do cômodo. Havia um triciclo com

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o rosto de um cavalo perto de uma janela aberta, que parecia proteger a menina de qualquer mal que pudesse tentar atacá-la pelo lado de fora. Um abajur aceso em cima de uma mesinha repleta de papéis soltos e lápis de cor de diversos tamanhos completava a decoração.

O emissário se aproximou da cama. Estreitou os olhos ao observar os traços frágeis e fundos na face da menina, a tez pálida, os lábios rachados e secos, a respiração curta, cansada de lutar pela sobrevivência. Imaginou ela morando ali havia anos, trocando o conforto de casa e as brincadeiras com os amigos por uma enxurrada de exames e tratamentos sem trégua. Ele retirou um pequeno galho de trigo do bolso de trás da calça e o acomodou entre os cabelos ruivos de Dalla.

– Para lhe dar sorte – sussurrou, a voz adocicada. – É do seu verdadeiro lar.

Em seguida, com as mãos trêmulas e aflitas, acariciou a testa infantil, úmida de tanta dor e agonia. Mas aquele sofrimento estava por terminar, ao menos por um longo período. Essa verdade confortava o emissário e o enchia de coragem para completar sua missão.

No bolso interno do jaleco havia uma seringa. Ela era um pouco diferente das encontradas nos hospitais e centros médicos do mundo, pois não se via uma agulha em sua ponta. O emissário agarrou a injeção com firmeza e testou o líquido brilhante e avermelhado que ocupava o cilindro do instrumento com um chacoalhar de dedos. Estava tudo como planejado. Ele acomodou a seringa sobre a pele translúcida do antebraço da menina e despejou o conteúdo, uma gota por vez, apertando o êmbolo com zelo e paciência. Uma pequena mancha escura se formou no local; lembrava uma cicatriz, um arranhão profundo ou uma marca de nascença. A menina arregalou as pálpebras, no mesmo instante em que uma borboleta lilás penetrou o cômodo pela fresta da janela entreaberta. Ela bateu asas até repousar sobre o ombro do emissário. Por alguns segundos, ele inclinou a visão para o lado de fora do quarto. A lua cheia parecia uma moeda de prata solitária pendurada em um céu negro e sem estrelas. O vento agora era morno, a temperatura havia subido um pouco mais.

– Quem é você? – perguntou Dalla, fitando o rosto do emissário com os olhos arregalados, a testa franzida pela dúvida.

Um amigo.

Ele caiu num pequeno silêncio, logo após a resposta.

– Está se sentindo melhor? – inquiriu, voltando as atenções à menina.

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–Acho que sim. As dores sumiram – respondeu ela simplesmente, sem se preocupar muito em quem era de fato aquele homem, pois estava acostumada com novos enfermeiros entrando e saindo com frequência de sua vida.

–Que bom. Foi exatamente para isso que eu vim.

–Espere! – chamou Dalla, apontando na direção do ombro do emissário. – Eu sonhei com esta borboleta.

–A partir de agora, ela será sua companheira.

O emissário apanhou o inseto com delicadeza e o colocou sobre a barriga da menina.

–Jura?

–Aham – respondeu ele, os olhos penetrantes. – Essa borboleta é como um guia ou uma espécie de condutor. Quando não souber o que fazer, ela apresentará a você o caminho.

–Legal! – comemorou ela, um sorriso estampado na face. – Eu me chamo Dalla.

–Eu sei.

–Qual é o seu nome?

–Eu… – titubeou ele, para escolher entre a verdade e uma desculpa esfarrapada que fizesse algum sentido. – Não tenho – disse num sussurro.

–Por quê?

–Meus pais ainda não me deram.

–Estranho… Vou chamar você de Phantom, igual ao meu brinquedo preferido. – A menina apontou na direção do triciclo. – Eu o batizei com o nome do cavalo do Zorro, o filme favorito do meu pai.

O emissário sorriu, com o semblante relaxado.

–Obrigado. Eu preciso ir agora.

–Para onde?

–Qualquer dia eu lhe conto.

A menina assentiu, enquanto mexia e observava as pontas dos dedos das mãos, como se algo novo estivesse acontecendo com eles.

–Pensei que eu estivesse morrendo – balbuciou Dalla. – Pelo menos foi o que eu consegui escutar dos médicos numa conversa que tiveram ontem com meus pais. Eles não paravam de chorar e eu fingi que estava dormindo.

–Não se preocupe. – O emissário esboçou um meio sorriso. – As coisas mudaram. Você deixará este hospital muito em breve.

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CAPÍTULO II MILAGRE Kraftaverk

Reykjavík, Islândia

Dias depois

Dalla fitou a paisagem através da janela do quarto do Hospital de Fossvogur pela última vez. Por meses, aquele cenário isolado era tudo o que podia observar, uma ínfima fração do planeta havia se tornado o seu universo. E por mais estranho que pudesse parecer, mesmo ciente da doença quase incurável que jantava suas células a cada minuto e lhe causava dores insuportáveis, a ilusão de que o mundo era apenas daquele tamanho lhe trazia algum conforto e segurança. Como um pássaro que se vê apreensivo ao notar a gaiola aberta e a possibilidade de bater asas livremente. A imensidão do mundo pode assustá-lo.

Um vento instável agitava as folhas das copas das árvores, recortadas à frente de um céu azul ausente de nuvens. Os raios de um sol que prometia ser fervente já manchavam de dourado boa parte do gramado ao fundo. Os lábios de Dalla se curvaram num sorriso ansioso. Desviou sua atenção para os brinquedos amontoados no chão. Decidiu deixá-los ali mesmo, como uma maneira de trazer sorte aos

que usariam o quarto após sua partida. O mesmo valia para os seus sapatos, ela não os queria mais. Sairia dali com os pés descalços, como se experimentasse a vida pela primeira vez – tinha certeza de que a mãe compreenderia. Continuou estudando o cômodo, e suas pupilas encontraram os cantos altos das paredes. Não conseguiu descobrir o esconderijo da borboleta, mas sabia que ela estava por perto, em alguma imperfeição entre os tijolos, observando-a como um guarda-costas. Ela apertou as pálpebras ao se lembrar de Phantom, ohomem esquisito que havia lhe trazido saúde e paz. Gostaria que ele estivesse ali, que a visse deixar aquele leito com perfume de morte e regressar ao mundo dos vivos. Talvez ele tivesse, dentro de sua cartola mágica, palavras de coragem para lhe dizer, e todo aquele medo de enfrentar a vida se esvaísse de uma vez. Imaginou-o curando outras crianças, condenadas a uma infância isolada e cercada por muros de sombras e trevas, com intermináveis visitas a centros médicos e cirurgias com estudos alternativos – bem, isso se aquilo fosse de fato o seu emprego. Uma lágrima saltou de suas pupilas e deslizou por sua pele corada. Dalla levou as pontas dos dedos ao rosto e a amassou, exatamente como fazia com os origamis que a avó Birna lhe trazia quando a visitava no Natal.

Uma voz conhecida chegou aos seus ouvidos e a retirou de seus pensamentos:

–Vamos, filha. – As palavras de Asdis encontraram um cômodo silencioso, os aparelhos atrás da cama se descobriam desligados.

–Estou pronta – disse a menina, virando a cabeça. Os olhos marejados denunciavam o choro recente. – E o papai?

–Está indo buscar o carro no estacionamento. – Asdis se aproximou da menina e lhe deu a mão. – Vai ficar tudo bem, meu amor. Você não precisa mais permanecer aqui. Voltaremos apenas para mais alguns exames. Os médicos estão incrédulos, sem entender como o seu corpo reagiu. O milagre já aconteceu!

–Foi aquele homem… Eu disse para vocês! – Dalla engoliu em seco e fez uma breve pausa; ela sabia que ninguém acreditava que um homem misterioso realmente estivera por ali injetando medicamentos sem a autorização e a ciência dos médicos do hospital. – Será que este mundo gigante vai me aceitar de volta?

–Ele não tem a mínima graça sem você.

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Edição: 1ª

Fonte: Palatino Linotype

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