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No momento em que o Recife debate seu futuro, símbolos da cidade contam a história de um passado não tão distante que tem implicações diretas na foto do amanhã


“Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória”, José Saramago.


Sumário

Editorial

O

conceito de memória é de difícil definição. É complicado justamente porque lidar com as lembranças não é como mexer com uma ciência exata: os resultados podem ser variáveis e imprevisíveis. Esquecer, assim como lembrar, pode ser uma tarefa ora simples, ora complexa. Nesta revista, trataremos da memória como um instrumento de autoconhecimento. De indivíduos, de povos, de cidades. Da nossa cidade. É de um Recife que se debate entre o novo e o antigo; uma cidade que parece não mais se reconhecer. Transfigura-se em um amontoado de prédios, de carros, de asfalto. Uma ideia de progresso que, vale lembrar (obrigado, memória!), já se provou falha em quase todos os lugares em que foi aplicada. Este número pode parecer nostálgico, mas queríamos mesmo é falar sobre as miudezas, como a emocionante vida de seu Eduardo “Alegria” da Silva, e sobre assuntos que atingem diretamente a sociedade, como o projeto Novo Recife, no Cais José Estelita, e como no final das contas tudo isso está interligado.

Capa Capa produzida por Maryna Moraes sobre a foto do Edf. Duarte Coelho e suas memórias.

Entrevista José Ernani Souto Andrade

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Nascido no Recife, escritor pouco lembra da cidade, mas esta ficou guardada no seu inconsciente

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Memórias Clarice e Bandeira Prédio símbolo do modernismo arquitetônico no Recife vive entre a glória do passado e a incerteza do futuro

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Futuro #OcupeEstelita Taxista adotou o Recife como lar e local de trabalho, estabelecendo uma relação íntima com a cidade

Professor de história analisa sociedade “aligeirada” e crescimento insensível do Recife

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Memórias Nelson Rodrigues

A infância no Recife marcada na prosa e na poesia de outros dois grandes escritores brasileiros

Capa Edf. Duarte Coelho

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Movimento propõe novos rumos para o Recife, tendo o Cais José Estelita como símbolo

Perfil Eduardo Izidio da Silva

Expediente Edição: Camila Estephania e Márcio Bastos Reportagem: Camila Estephania, Flávia Oliveira, Márcio Bastos, Renato Contente Design: Maryna Moraes Tratamento de imagem: Eduardo Mafra e Maryna Moraes Fotos: Equipe

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No contrafluxo do aligeiramento Para o professor José Ernani, ‘o crescimento atual está engolindo as pessoas’

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Por Márcio Bastos

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“O presente que se ignora vale o futuro”. Sempre com a palavra exata, Machado de Assis observou como poucos as minúcias do comportamento humano, tanto na esfera da individualidade como no seu papel enquanto ser social (e em sociedade). Ao destacar a importância de se atentar à construção da história enquanto ela se desenrola, o escritor já atentava para as consequências que podem ser produzidas a partir das decisões do presente. É o que acredita também o historiador José Ernani Souto Andrade. Professor do Departamento de História da UNICAP ele conversa nesta entrevista sobre a importância da preservação da memória, os perigos do “aligeiramento” da sociedade e as lições que o Recife pode aprender com seus próprios erros.

Retratos: Gostaríamos de perguntar primeiramente sobre sua visão a respeito da forma como a nossa sociedade lida com a memória. J.E: Atualmente, a sociedade está muito “aligeirada”, descartando com muita facilidade o passado. O que está acontecendo é que estamos jogando todas as fichas no presente, mas esquecendo que o próprio presente é o passado projetado hoje. Quando falamos de memória, estamos falando também da construção de uma identidade – das pessoas e da sociedade. Acho que uma questão problemática do progresso (que quase nunca é pensada) é: até que ponto, em nome desse desenvolvimento, se deve apagar essa identidade? Retratos: Gostaria que o senhor falasse mais sobre esse “aligeiramento” que identifica na nossa sociedade, e também comentasse se acha que as gerações precedentes lidavam melhor com a preservação da memória. J.E: A ciclagem histórica tem momento muito acelerados e outros mais lentos. O que eu observo é que atualmente as coisas não só estão mais rápidas, como também mais superficiais. A impressão é que essa ligeireza faz com que a gente esqueça das coisas mais rapidamente. Além disso, o crescimento

atual está engolindo as pessoas. Mas isso é um movimento que já vem de algum tempo. Tanto que Charles Chaplin, em “Tempos Modernos” já alertava para a coisificação do homem. Hoje, o virtual está pautando a vida das pessoas, inclusive provocando um fenômeno inusitado que é a falta de tempo para tudo, inclusive observar, refletir etc. Retratos: Há um debate em curso, no Recife, a respeito da condução do planejamento urbanístico da cidade. O movimento #OcupeEstelita, inclusive, tem mobilizado uma parcela da sociedade que acredita que o projeto Novo Recife é um atentado à memória da cidade. Como o senhor vê esse momento pelo qual a cidade passa e o que acha do #OcupeEstelita? J.E: Essa questão do Cais José Estelita é complicada. Você tem uma área que passou anos abandonada pelo poder público e pela iniciativa privada. Acho que é consenso que a área necessita de uma utilidade. A questão é que tipo de uso você dá para o local. Construir várias torres de 40 andares cria uma série de problemas para a região, inclusive tapar a visão da parte histórica da Cidade, os bairros de Santo Antônio e São José. O ideal seria pensar aquela área como um espaço público que pudesse ser aproveitado pela população. Quanto à forma


| Entrevista | José Ernani

“estamos jogando todas as fichas no presente, mas esquecendo que o próprio presente é o passado projetado hoje. ” como tem sido conduzido o crescimento do Recife, na minha opinião, é muito imediatista. Se olha apenas a solução mais próxima, mais “prática”. Um exemplo é esse projeto de viadutos na Agamenon Magalhães. Retratos: Esse é outro ponto que tem gerado debates. O que acha desse projeto? Retratos

J.E: Acho que falta sensibilidade à administração pública. Temos muitos exemplos de projetos similares, em outras cidades, que deram errado. O Minhocão, em São Paulo, é um dos mais sintomáticos. Você tinha uma área valorizada que, após a construção da obra, perderam seu valor. Intervenções desse tipo acabam criando espaços subutilizados. É o chamado utilitarismo imediato. Acho que se os viadutos forem construídos, eles serão nosso Minhocão.

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Retratos: O senhor consegue lembrar de outros momentos em que o tema da preservação da memória esteve em pauta no Recife? E no que resultaram esses debates? J.E: Essa questão volta e meia está de volta no centro dos debates. É inevitável, até porque a sociedade está em constante transformação. Na década de 1970, por exemplo, para a construção da Avenida Dantas Barreto, foram destruídas várias casas e, mais marcante, a Igreja dos Martírios. Na época aconteceram vários protestos, e assim como agora estudantes, historiadores, professores, arquitetos se uniram para vetar essa ação. Mas, em nome do “progresso”, a Igreja foi inclusive destombada e posteriormente derrubada. Hoje, a Dantas Barreto é um grande elefante branco.

Márcio Barros


Raiz pernambucana de Nelson Rodrigues

em evidência no centenário do autor

2012

marca cem anos do nascimento do grande dramaturgo brasileiro, o recifense mais carioca que existiu

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É de caju de praia e pitanga brava que tem gosto a infância de Nelson Rodrigues no Recife. Essa é uma das poucas recordações que o autor de Vestido de Noiva, já adulto, guardou dos quatro primeiros anos de vida na capital pernambucana. A pouca idade na época não contribuiu para que o “galego de cabeça grande” acumulasse lembranças mais consistentes do período, além de imagens difusas, como os pais em pose de retrato antigo, e sensações marcantes, como o sabor das frutas nordestinas.

Divulgação

Retratos

Por Renato Contente

Embora a vivência na terra natal fosse uma memória distante para o escritor, o fato não deixou de influenciar sua obra, mesmo que de forma discreta. Apesar do rompimento geográfico que teve ao se mudar para o Rio de Janeiro, aos quatro anos, Nelson continuou convivendo com seu núcleo familiar pernambucano, o que lhe permitiu manter certa aproximação com suas origens, mas não o impediu de se tornar um autêntico nativo da Zona Norte carioca. 2012 marca os 100 anos de nascimento de Nelson, em 23 de agosto de 1912, e o país vem se preparando para celebrar o centenário de seu maior dramaturgo. No Rio – onde ele cresceu e amadureceu, em pessoa e obra -, e em São Paulo, estão programados diversos eventos especiais para a data, que incluem montagens de todas as 17 peças do escritor e a publicação destas em espanhol, feito que, por incrível que pareça, permanece inédito até hoje. Pernambuco, terra de grandes teatrólogos e, ao lado de São Paulo, celeiro da dramaturgia moderna brasileira, não poderia ficar de fora.

Nelson Rodrigues


| Memórias | Nelson Rodrigues

O Recife celebra Nelson

Também está em andamento, no Sesc Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, um projeto que pretende homenagear Nelson Rodrigues através de cursos, seminários e palestras, previsto para outubro do próximo ano. “Pretendemos trazer especialistas na obra de Nelson de todo o país para discutir o legado deixado pelo autor, que continua vivo e pungente em

nossa sociedade”, afirma Rudimar Constâncio, gerente da unidade. Nelson, aliás, será um dos temas de estudo da próxima turma da Escola Sesc de Teatro, no mesmo local, que volta a funcionar a partir de março de 2012. “As inscrições para o curso técnico de teatro, com duração de dois anos e meio, começam em janeiro”, adianta Rudimar. No Recife, o último evento de grande porte que se propôs a gerar apreciação e reflexão acerca da obra de Nelson foi o 9º Festival Recife do Teatro Nacional, em 2006. Realizado por Aimar Labaki, Antônio Cadengue e Lúcia Machado, o projeto trouxe à cidade 15 montagens (locais e de outros estados) de peças do escritor a preços populares, além de uma exposição, seminário e mostra de filmes. “O seminário, sob o tema “Nelson Rodrigues e a Cultura Brasileira”, reuniu vários estudiosos da obra rodrigueana, e acabou rendendo a publicação A esfinge investigada – Seminário Nelson Rodrigues Recife 2006, organizada por mim e Labaki”, lembra Cadengue, também responsável por montagens memoráveis da obra de Nelson, como “Valsa nº 6” e “Senhora dos Afogados”, esta última com ótima repercussão também em Portugal. “Esperase que em 2012, assim como em 2006, a cidade faça jus a seu célebre conterrâneo”, conclui o encenador.

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Recentemente de passagem pelo Recife, a jornalista e pedagoga Maria Lúcia Rodrigues, filha de Nelson, veio em busca de material para a exposição Nelson, de uma família Rodrigues, que está montando com o apoio do projeto Ocupação, do Itaú Cultural. São Paulo, Recife e Rio de Janeiro receberão a exposição em junho, agosto e dezembro de 2012, respectivamente, durante um período de dois meses em cada capital. “Um dos destaques da pesquisa que venho fazendo é como Pernambuco ficou marcado no meu pai, mesmo ele tendo saído daí tão cedo. Além de informações inéditas sobre ele, esperamos levar às pessoas novas abordagens de sua obra”, resume a herdeira, em entrevista por e-mail. “A ideia é levar a exposição para Recife no aniversário dele, em 23 de agosto. Ainda estamos procurando o melhor lugar na cidade para a instalação do projeto, mas queremos que seja num ponto central para facilitar o acesso”, explica.

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Um Recife de ouvir falar “Não me lembro de uma única voz. Não guardei um bom-dia, um gemido, um grito. Não há um canto de galo no meu primeiro e segundo ano de vida”. É assim que Nelson Rodrigues define a infância vivida no Recife: sem palavras. Os registros, como descritos no início deste texto, se limitam à imagens e sensações, mas seriam lembrados com saudade até o fim da vida do escritor, aos 68 anos. Ainda recém-nascido, Nelson morava com o pai, o jornalista Mário Rodrigues, a mãe, Maria Esther, e os irmãos em uma casa modesta, mas confortável, na Rua Doutor João Ramos, na Capunga, próximo ao Derby. Os quatro anos passados aqui não foram incomuns para Nelson, que nasceu louro e, segundo ele mesmo, “cabeçudo como um anão de Velásquez”. Fora a coqueluche que contraiu aos

dois anos, ele só teve, como a maioria das crianças da época, “galos” e lombrigas. No verão de 1915, como descreve Ruy Castro em O Anjo Pornográfico (a mais completa biografia lançada sobre o teatrólogo), os Rodrigues arrendaram uma mansão na Rua do Sol, em Olinda, para passar a temporada. De dia, alugavam cavalos para passear entre as pitangueiras anãs da Praia do Farol, a um quarteirão da residência. À noite, davam festas com orquestras, nas quais “casais dançavam quadrilha e se excitavam nos breves instantes em que seus corpos se roçavam”. “Nelson tinha menos de três anos, mas não se iluda: nada lhe escapava”, afirma Ruy, indicando que a percepção da sensualidade começara cedo no futuro autor de obras polêmicas.


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Divulgação

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Foi o som do mar de Olinda, ouvido nesse período, que teria inspirado o enigmático mar descrito em Senhora dos Afogados, única peça de Nelson que se passa no Recife. Ambientada na zona portuária e boêmia da cidade, a obra apresenta um Recife de ar mítico e épico, distante da realidade pernambucana, provavelmente resultado das várias histórias que ouvia dos pais e das tias sobre a terra natal, que mal conhecera. “Em Senhora dos Afogados Nelson retrata não o Recife que viveu, mas o que ouviu falar”, justifica Luis Reis, professor de teatro do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da UFPE. “Apesar de o épico ser um recurso da dramaturgia para tornar uma história atemporal, o espetáculo contém elementos que indicam a falta de intimidade dele com a cidade, como se as lembranças desta estivessem em seu inconsciente”, diz.

| Memórias | Nelson Rodrigues

Maria Lúcia Rodrigues, filha do autor, vê Pernambuco muito presente no pai, mesmo que de uma forma indireta. “Acho que essa capacidade dele de enxergar além das aparências é fruto de ter nascido numa cidade como Recife, que vinha, desde o século XIX, sendo palco de grande efervescência cultural”, defende a pedagoga. “Lendo e relendo meu pai, retomando lembranças dele e de minhas tias, percebi que havia uma marca muito forte, como um eco, desse jeito pernambucano. E quando me refiro a esse jeito, não se trata de mencionar a simpatia e a doçura do povo daí, e sim de uma certa irreverência, uma disposição iconoclasta e contestadora que notei nos intelectuais desse período”, afirma. Nelson só voltou à cidade uma vez, aos 17 anos, e não demorou muito por aqui (não gostava de viajar e, por ter medo de avião, nunca saiu do Brasil). Apesar de ter deixado a capital pernambucana muito cedo, por conta de desentendimentos políticos do pai, o cidade marcou fortemente sua memória afetiva, como se evidencia neste trecho de entrevista: “Tenho, em minha memória profunda, um apelo de pernambucano pelo Recife. Só sei que a pitanga ardida ou o caju amargoso foi a minha primeira relação com o universo. Ali eu começava a existir”.

Dois pernambucanos e uma revolução Outro traço marcante de Pernambuco em Nelson Rodrigues é a influência do conterrâneo Gilberto Freyre em sua produção. Se o autor de Casa-Grande e Senzala transpôs a esta e outras obras a vida íntima do passado colonial brasileiro, como a violência sexual cometida pelos senhores de engenho às escravas, Nelson coloca em evidência os pequenos gestos cotidianos dos subúrbios cariocas, impregnados, por sua vez, de resquícios do mesmo sistema patriarcal criticado por Freyre. “Nelson mostra, baseado em Freyre, que as famílias tinham dois discursos: um, que regia os valores morais da casa; outro, que prevalecia na rua”, explica Anco Vieira, professor do departamento de letras da UFPE. “Daí todo o jogo de dissimulação, de hipocrisia, de taras sexuais contidas, de histerismos etc. É por essa via que Recife se faz presente na obra de Nelson: através das histórias familiares, com seus incestos, suas hipocrisias, suas perversões sexuais”, pontua.

O diretor Newton Moreno, responsável por trabalhos como As centenárias, ilustra essa aproximação entre os dois grandes autores na peça Memorial da Cana, adaptação da tragédia carioca Álbum de família, de Nelson Rodrigues, para a Zona da Mata Norte de Pernambuco. “Há uma grande influência das dinâmicas pessoais de Nelson em suas obras, tanto recifenses quanto cariocas. Com maestria, ele consegue fabular essas matrizes e nos fazer pensar a sociedade brasileira através de seu núcleo fundamental, a família”, explica o recifense radicado em São Paulo. “Em Memória da Cana queríamos pensar o país e sua relação com o poder patriarcal através dessas obras”, diz. Freyre e Rodrigues fizeram, cada um na sua área (um na antropologia, o outro na dramaturgia), uma revolução sem pudores contra as bases da sociedade patriarcal, cujas ferrugens ainda são perceptíveis em nosso cotidiano.


| Memórias | Clarice e Bandeira

Clarice, Bandeira e o Recife que permanece Dois dos maiores escritores brasileiros tiveram sua obra marcada pela infância vivida no Recife Camila Estephania

“A

infância é curta, mas como impressiona”, afirmou certa vez a escritora carioca Lívia Garcia Roza. As impressões que as experiências ocorridas nos primeiros anos de vida do indivíduo deixam são essenciais para entender o adulto que ele se tornou (Freud e seus seguidores que o digam). Se o Recife que ficou marcado em Nelson Rodrigues é mais imaginado do que vivido, no caso de outros dois grandes escritores da nossa literatura a relação com a capital pernambucana é mais profunda. Nascida na Ucrânia, em 1920, Clarice Lispector imigrou com sua família para o Brasil antes de completar um ano de vida. São do Brasil, em particular do Recife, portanto, suas memórias mais remotas. Entre as ruas do bairro da Boa Vista onde viveu até mudar-se para o Rio de Janeiro -, aos quinze anos, Clarice experimentou as primeiras sensações, registrou tipos humanos e sofreu o impacto da morte de sua mãe, Mania, evento que marcaria profundamente sua personalidade e obra. Habitando o número 367 da Praça Maciel Pinheiro, a família Lispector tinha como vizinhança outros imigrantes judeus, que, como conta o biógrafo Benjamin Moser no livro “Clarice,”, viviam e Divulgação

Um Recife doce e inocente permanece na poesia de Bandeira

Estátua de Clarice na praça que marcou sua infância trabalhavam nas redondezas. Hoje, a escritora dificilmente reconheceria a dinâmica do bairro de sua infância, apesar da maioria das construções da sua época ainda estarem de pé. O bucolismo cedeu lugar à pressa; os passeios públicos aos ambulantes, e muitos dos endereços residenciais encontram-se abandonados. A própria praça Maciel Pinheiro, que atualmente ostenta uma estátua da escritora, pouco lembra o belo espaço dos tempos da Clarice menina. Poucos meses antes de morrer, na sua última visita ao Recife, Clarice se hospedou no Hotel São Domingos, localizado perto da casa onde morou na infância. Como era de se esperar, o Recife havia mudado, assim como a própria escritora. Mas as lembranças daquele período, essas sim, permaneciam intactas. À pergunta de um entrevistador sobre o significado do Recife na sua vida, Clarice foi enfática: “Pernambuco marca tanto a gente que basta dizer que nada, mas nada mesmo nas viagens que fiz por este mundo contribuiu para o que escrevo. Mas Recife continua firme”.

Bandeira A associação do Recife à infância também está presente na obra de Manuel Bandeira. O poeta nascido na capital pernambucana, em 1886, viveu na cidade até os dez anos, e guardou recordações doces da sua infância, época em que brincava de “chicote-queimado e partia vidraças”, na rua da União. No poema “Evocação do Recife”, Bandeira constroi um delicado retrato baseado em um Recife que é só afeto e saudade. Hoje, o trem de ferro é história, a rua da União é abarrotada de carros e por lá já não se ouve crianças brincarem. A cidade se transformou. Ao menos na literatura do nosso poeta-maior, aquele Recife ainda vive.

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Por Márcio Bastos

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| Capa | Duarte Coelho

O passado que sustenta, o presente que sobrevive O Edifício Duarte Coelho, localizado em uma das esquinas mais famosas da cidade, foi testemunha por mais de 60 anos das transformações do Centro do Recife. De seu passado glorioso ostenta várias histórias, mas e o futuro?

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Por Renato Contente

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I

mponente e sem parecer se preocupar com a caótica rotina ao seu redor, o Edifício Duarte Coelho, esquina da Avenida Conde da Boa Vista com a Rua da Aurora, exala suntuosidade mesmo tendo acompanhado todo o processo de decadência do Centro do Recife, que tomou força no final dos anos 1980. Apesar do tombamento do Cinema São Luiz em 2009, que funciona no térreo do edifício, as marcas dos 60 anos do prédio são bem visíveis para quem passa. Um vazamento da caixa d’água que abastece o conjunto foi responsável pela grave infiltração que hoje afeta toda sua estrutura. A fachada do prédio, considerada um marco da arquitetura urbana moderna pelos especialistas, está coberta de mofo, causado pelas infiltrações. A olhos vistos, tudo isso sinaliza o processo de degradação da própria construção e do ambiente em volta. Um vazamento da caixa d’água que abastece o conjunto foi responsável pela grave infiltração que hoje afeta toda sua estrutura. A fachada do prédio, considerada um marco da arquitetura urbana moderna pelos especialistas, está coberta de mofo, causado pelas infiltrações. A olhos vistos, tudo isso sinaliza o processo de degradação da própria construção e do ambiente em volta. Síndico do lugar há mais de dez anos, Gilvan Cavalcanti reclama da inadimplência dos moradores dos 108 apartamentos, que, segundo ele, chega a mais de 40%. “Com tanta gente sem pagar o condomínio, tem que ter jogo de cintura para escolher as prioridades, como água, luz, pagamento dos funcionários e manutenção dos elevadores, que são originais”, diz. O edifício é composto por 14 pavimentos em três blocos (A, B e C), voltados para a Rua da Aurora, Avenida Conde da Boa Vista e Rua

Edf. Duarte Coelho


Antes retrato da nobreza recifense, o prédio acompanhou o movimento de decadência do centro da cidade

da União. Os dois primeiros blocos têm, apenas uso residencial, e o terceiro, comercial. Os quatro primeiros pavimentos são ocupados pelo cinema e por salas comerciais hoje inativas. Gilvan ainda diz que a revitalização do cinema, encabeçada pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (FUNDARPE), não trouxe melhoramentos diretos ao prédio como um todo,

já que funcionam de forma independente. “Não dá pra negar que isso melhorou a auto-estima de quem mora aqui, e também que foi essencial para evitar a presença de moradores de rua que ocupavam a área do prédio referente ao cinema. Mas mesmo com o térreo tombado, todos os outros andares dependem do pagamento do condomínio, que é negligenciado por grande parte dos moradores”, revela.

Glamour de ontem Os apartamentos foram pensados para comportar famílias de médio e pequeno porte – no bloco A, todos os apartamentos são grandes, com maiores aposentos; no B, há um apartamento menor e dois maiores em cada andar. Com a inauguração do prédio no começo dos anos 1950, famílias que moravam em casarões luxuosos de diferentes partes da cidade se mudaram para o Duarte Coelho com a intenção de entrar na onda de modernidade pela qual passava o Recife. Morar lá era considerado ser de vanguarda.

Um dos primeiros proprietários de um apartamento lá foi o dono dos cinemas São Luiz, Luiz Severiano Ribeiro. A noite de abertura do cinema, em setembro de 1952, aliás, é considerada por historiadores como um dos maiores eventos sociais da década - o filme exibido na ocasião foi “Falcão dos Mares”, estrelado por Gregory Peck. Durante muito tempo só se entrava para assistir aos filmes de paletó e gravata, era mais uma oportunidade para a finesse recifense se vestir bem, mesmo no quente clima capital pernambucana.

O arrojamento da coisa O Duarte Coelho foi concebido numa época em que a ideia era modernizar o Recife, exterminando os cortiços e pensões para ampliar e construir avenidas. O bairro de Santo Antônio, um dos maiores concentradores de “pardieiros” - como eram conhecidos esses lugares na época - foi o principal alvo das autoridades, que logo abriram caminho, em 1938, para a construção da larga Avenida Dez de Novembro, atual Guararapes. No terreno em que foi construído o edifício funcionava a monumental Igreja Anglicana (conhecida também por Igreja dos

Ingleses), demolida para alargar a Conde da Boa Vista e dar lugar à moderna construção formada pelo conjunto habitacional, cinema e lojas. Na apresentação do projeto arquitetônico original, feito no final dos anos 1940 pelo arquiteto Americo R. Campelo, havia os seguintes trechos: “LOCALIZAÇÃO: – O edifício será construído no terreno com frente para as ruas da Aurora, Conde da Bôa Vista e da União, no ponto onde desemboca a Ponte Duarte Coelho, na continuação da moderna Avenida 10 de Novembro”

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Renato Contente

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| Capa | Duarte Coelho

“CARACTERÍSTICAS DO EDIFÍCIO: - O edifício será um grande bloco arquitetonico de 14 pavimentos. Haverá um grande cinema e lojas no 1.º pavimento (terreo). O cinema será moderníssimo e apresentará os melhores requisitos da mais adiantada técnica” Campelo não poupou nos custos do ambicioso projeto que vinha para dar ao Recife ares de metrópole. Descreveu cada item minuciosamente, desde o tipo e marca do aço a ser utilizado aos fluxos das descargas. Ao

especificar o chumbo, por exemplo, disse: “Será da marca Nazareth ou semelhante, de 1.ª qualidade, puro ductil e maleável. Ao cortar deverá apresentar a superfície brilhante branco azulada”. Ao falar dos vasos sanitários, o arquiteto foi claro quanto ao material para cada utilizador, registrando a histórica e atual desigualdade entre as classes: “Os vasos serão nacionais brancos, sifão interno, com tampo duplo laqueado. Nos W.C. de empregados, os tampos serão simples, envernizados”.

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Morada inestimável

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Circe Monteiro, coordenadora do Laboratório de Tecnologias de Investigação da Cidade da UFPE, o LATTICE, aponta que com a decadência do centro, as classes mais abastadas foram se afastando em direção ao subúrbio, onde novos bairros apareciam com melhor qualidade de habitação. Ela afirma que o que se vê hoje é um grande investimento por parte do governo para restaurar prédios históricos de forma isolada, e não a cidade e o espaço em volta. “A revitalização do espaço urbano no qual está inserido o prédio é fundamental. Se o poder público valorizasse devidamente esse espaço, choveria capital privado para investir ainda mais, tanto nas edificações quanto no entorno delas”, defendeu a especialista. Apesar das difíceis condições do local, Circe aponta que é crescente o número de pessoas interessadas em morar no Centro do Recife, sobretudo nos edifícios históricos – seja nos sobrados da Rua da Aurora ou nos edifícios antigos como o Pirapama e o próprio Duarte Coelho. Segundo ela, na Europa, morar em um lugar assim é como ter um pedaço da história para si, “é chique, é trendy”, diz, “e esse costume tem sido transposto aos poucos por aqui”.

Renato Contente

É o que pensa o analista judiciário Josélio Silva, de 41 anos. Ele comprou um apartamento incendiado há alguns anos, e o reformou totalmente. Hoje, o local, que teve o antigo dono morto no incêndio, está impecável. “Valeu a pena cada centavo empregado”, diz, com orgulhoso. Outros moradores novos chegam interessados pela história do prédio, que já teve moradores ilustres, como o historiador Antônio Gonçalves de Mello e seu filho, o também historiador Ulysses Pernambucano de Mello. A cabeleireira Luciana Gomes, de 36 anos, saiu de Camaragibe com os dois filhos para morar no edifício. Ela procurou o centro da cidade para ficar perto do trabalho e ter mais opções de diversão. Em um edifício comercial em frente ao Duarte Coelho, Luciana administra um salão de beleza com seu irmão, Ivison, que mora com ela. “Basta atravessar a rua para chegar no trabalho, é uma maravilha”, afirma. Ela diz que não é barato morar no Duarte Coelho, que tem um dos condomínios mais caros do centro, mas que vale a pena por ter uma fatia da história em seu nome. “Daqui eu não saio”, finaliza.


Fotos: Direitos Urbanos/Ytallo Barreto.

Movimento #ocupeestelita: O futuro do Recife em movimento


No meio do c a m inho tinha um cais Cais José Estelita é alvo de debates que transformações que propõe uma paisagem moderna para sua orla, mas deixa brechas para a criação de um prejuízo social

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Por Camila Estephania

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Um numeroso grupo de recifenses saiu de casa, no domingo de 15 de abril deste ano, com um destino incomum aos residentes da capital pernambucana, o Cais José Estelita. A área viu, naquele dia, uma convergência de pessoas cheias de ideias e sonhos de cidade. Para embalar o encontro social dessas centenas de pessoas, foram realizados pequenos shows, performances circenses; foi montada uma piscina de plástico para as crianças se refrescarem naquela manhã estampada por um sol escaldante, e parte da orla virou um grande bicicletário. Embora pudesse ser a descrição de um simples piquenique, a movimentação era um protesto, nomeado #OcupeEstelita, que na onda das manifestações que aconteceram mundialmente, desde o início do ano, levou os cidadãos às ruas por três vezes neste ano. No caso recifense, o mote da ação foi o projeto Novo Recife, empreendimento para ser erguido naquele lugar nos próximos anos. Localizado em um trecho abandonado do bairro de São José, o Cais em questão envolve uma série de velhos galpões, três casas e a estação ferroviária Cinco Pontas. Após uma reforma feita pelo prefeito Roberto Magalhães, em 1999, através do “Projeto Estratégico Capital”, ganhou uma orla revitalizada, que, a princípio, contava com guarda policial, mas em pouco tempo caiu no esquecimento dos governantes, tornando-se um ponto deserto, e um tanto perigoso, da cidade. A orla parecia atrair a atenção apenas de turistas, cineastas e

cantores, que aportavam na área para fazer sessões do foto e filmagens rápidas. Fora dessas ocasiões, os banquinhos instalados no Cais estão sempre vazios, convidando, sem sucesso, o recifense a sentar-se, aproveitar a vista e a brisa, e fazer parte da paisagem desta cidade. O local, no entanto, se naturalizou como ponto de passagem, cruzado por motoristas apressados enclausurados em seus carros com ar-condicionado. Após a venda de parte desse território, em um leilão realizado em 2008, para um consórcio de construtoras, formado pela Moura Dubeux, Queiroz Galvão e GL Empreendimentos, essa realidade de abandono está prestes a mudar. Porém, o projeto que prevê a criação de empresariais, residenciais e áreas públicas não é aprovado com unanimidade pela opinião pública. Uma parcela da população acredita que a área pode (e deve) ser explorada de forma a beneficiar toda a população, ao invés de uma pequena parcela socialmente privilegiada. São essas pessoas que deram início ao #OcupeEstelita. “A


Fotos: Direitos Urbanos/Ytallo Barreto.

| #ocupeestelita

experiência estética da cidade também pede que conheçamos nossos vizinhos, deixemos nossos filhos na escola sem precisar de carro; pede para utilizarmos as vias não como um lugar em que passamos e deixamos passar a nossa vida, mas um espaço físico e espiritual que definitivamente ocupamos, mantemos relações afetivas e cuidamos”, opina o jornalista Rodrigo Almeida, que acredita que os novos projetos urbanos para o Recife não pensam no espaço público como um ambiente de encontro social, tornando a rua como um mero símbolo de passagem. Em consonância com esse pensamento, o estudante de arquitetura Henrique Castro defende que é preciso pensar primordialmente no pedestre para atender às demandas de toda a sociedade. “Recife tem perdido a chamada ‘escala do pedestre’. Hoje em dia, ao caminhar pela cidade, nos vemos cercados por enormes muralhas dos edifícios, e muitas delas com calçadas minúsculas e sem nenhum tratamento paisagístico que proporcione sombra ou amenização da temperatura”, observa o estudante. “O pessoal vem

protestar aqui, fica duas ou três horas e vai embora. E o que acontece com quem fica sempre?”, questiona Osângela Denise, de 32 anos, que vive em uma das três casas vizinhas aos galpões. Moradora do Cais há 18 anos, ela diz já ter perdido as contas da quantidade de vezes que as casas foram assaltadas. Mesmo com a vigilância particular, os inquilinos das três únicas habitações do Cais estão sempre em alerta sobre os perigos que vem de fora dos seus muros. Por isso, Osângela não hesita ao afirmar: “quero mais é que derrubem isso aí (os galpões). Aqui é muito abandonado e a paisagem é muito feia. Se você vê o projeto na internet, vai ver que vai ficar lindo”. O ferroviário Wanderly Andrade, que mora ao lado de Osângela, embora também acredite que o empreendimento será benéfico, não se mostra tão entusiasmado quanto sua vizinha. Funcionário da Estação Cinco Pontas há 25 anos, Wanderly também se preocupa com a manutenção da memória histórica do lugar. “As pessoas não usam mais a ferrovia e os ferroviários estão sendo esquecidos. Acho importante manter alguma coisa, para que a história de tantos trabalhadores não seja apagada”, defende ele, que diz já ter sido procurado várias vezes pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN, que estuda a possibilidade de tombamento dos imóveis. As casas, de 1958, assim como os galpões, eram de propriedade da extinta RFFSA, a Rede

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Movimento #OcupeEstelita uniu crianças e adultos para protestar contra a contínua verticalização do Recife

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Fotos: Direitos Urbanos/Ytallo Barreto.

| #ocupeestelita

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Ocupação cultural no Cais, em abril, reuniu centenas de recifenses para refletir sobre o Recife que se deseja para as gerações futuras

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Ferroviária Federal, que se responsabilizava pela Estação Cinco Pontas, criada em 1858, já tendo sido o principal meio de transporte de uso social e comercial. Após a privatização da Estação pela Companhia Ferroviária do Nordeste, a área passou a sofrer com a falta de zelo, mas nunca esteve inutilizada. “A ferrovia ainda funciona, mas não para o uso social, e os pavilhões eram usados até quatro meses atrás, quando foi dada a voz de despejo, como área de descarga de alumínio e para armazenamento de mercadorias de supermercados”, explica Wanderly. As residências, por sua vez, tiveram manutenções bancadas pelos seus próprios moradores, que não são proprietários dos imóveis, pertencentes à

União, mas que ganharam o direito de ocupar as casas por exercerem cargos de direção na Estação vizinha. O desejo de manter os traços que acompanharam por tanto tempo aquele espaço, são importantes não somente para a cidade recontar sua história através da sua própria estrutura, como também para entender o Recife hoje, como fruto dos acontecimentos passados. “O desenvolvimento econômico da cidade e o seu adensamento para comportar uma população tão crescente não precisavam entrar em conflito com a preservação histórica e com o bom planejamento urbano. Esse tipo de ocupação descontrolada do solo urbano, liderada somente pelo ponto de vista da


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iniciativa privada, que é de curto prazo, vai criar, no longo prazo, uma cidade cada vez mais insuportável, sem identidade”, analisa um dos organizadores do movimento #OcupeEstelita, Leonardo Cisneiros. Diante de um momento em que a cidade atravessa mais uma expansão imobiliária, em que as empresas cobiçam novas áreas, antes pouco exploradas, como o bairro do Pina, a praia do Paiva e as proximidades do Bairro do Recife, observa-se que os espaços públicos assumem, cada vez mais, um caráter transitório para o cidadão. Talvez pela violência crescente, a experiência de estabelecer uma relação com a rua é substituída pela convivência em

ambientes privados, criando uma sociedade fechada e alheia a sua própria realidade. O caso do Cais José Estelita, localizado em um dos lugares mais centrais da cidade, equivalendo a quase um quarto do bairro de São José, na confluência de caminhos para vários pontos da cidade, poderia ser base para um projeto de requalificação urbana que privilegiasse toda a população. O projeto de empresas privadas para uma área de grande importância pública levanta um debate entre a população sobre quem deve determinar e como deve ser a ocupação da cidade, para que no futuro, o Recife dos cidadãos não se torne mais uma lembrança apagada pelo tempo.


Por Flávia Oliveira

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duardo Izidio da Silva, 64 anos, tem uma rotina matinal que segue fielmente. Às oito da manhã chega ao seu ponto, na Avenida Bernardo Vieira de Melo e se põe a lavar seu velho táxi. Ele não sabe, mas faz parte da minha rotina também. Toda vez que eu saio de casa, vejo ele e seu veículo impecavelmente limpo na esquina. Certa vez eu não apenas o vi, como precisei de seus serviços. Estava atrasada para um compromisso e, sabe-se, transporte público não é amigo de quem está em cima da hora. No caminho, enfrentamos um pequeno engarrafamento que já é comum na Av. Boa Viagem, em frente ao Hotel Atlante Plaza. Ansiosa por conta do meu atraso, reclamei: “é sempre assim na frente desse hotel!”. Em resposta ouvi a voz do ex-presidente Lula ao meu lado. “Não fale assim do meu hotelzinho, não, eu adoro ele. Sempre que venho ao Recife, fico aí”, disse. Olhei surpresa para o lado, esperando ver a figura barbada de Lula, mas tudo que vi foi seu Eduardo rindo um riso gostoso. “Dizem que imito muito bem as pessoas”, afirmou o taxista. Não pude deixar de concordar. “O pessoal aí me chama de ‘Alegria’”, acrescentou. Mesmo entendendo perfeitamente o motivo, para ouvir o que ele tinha a dizer, perguntei “E é, mas por quê?”. “Porque ninguém nunca me viu com raiva, minha filha”, respondeu ele. Depois desse dia, seu Eduardo ficou na minha memória. Assim, quando soube que faria um perfil de um taxista para, através dele, recuperar um pouco da memória do Recife, não deu outra. Pensei logo em seu Alegria. Em seus 64 anos, seu Alegria passou por tantas dificuldades, que só o fato de ele ainda conseguir carregar um sorriso no rosto é digno de um prêmio. Nascido em Palmares, no interior de Pernambuco, filho de pai cearense e mãe alagoana, seu Eduardo conta que se mudava muito quando criança. Seu pai era “andarino”. “Sabe? quem ruma de cidade em cidade”, explica. Assim, ele viajou por várias cidades do interior do Estado com os pais. Isso construiu nele também um espírito em constante busca (“meu pai era andarino, mesma coisa que eu também, procurando um rumo na vida”). Mas não apenas isso, as viagens constantes prejudicaram seus estudos (“só fiz até o primário”). Aos 18 anos, Eduardo tomou uma importante decisão: iria para o Recife ganhar a vida. Munido de coragem e uma pequena trouxa com suas coisas, foi. O dia da chegada está bem gravado na sua memória. “Era o sábado de Zé pereira de 1970, e na cidade era tudo festa”. E ele, preocupação. Veio para Recife sem parente ou amigo que o recebesse, sem lugar pra ficar, sem emprego, sem nada. E agora, “o que

Majestade dentro da Alegria Para o taxista Eduardo Izidio da Silva, as ruas do Recife são mais do que referências espaciais: são parte de sua própria história Flávia Oliveira

De seu táxi, seu Alegria vê o Recife mudar


fazer?”, era o que mais pensava seu Eduardo. Foi então que encontrou a coisa que mais lhe pareceu um teto na cidade - o então único viaduto do Recife, o do Forte das Cinco Pontas. “Onde encontrei agasalho foi no viaduto”, lembra. E durante dois anos, seu Alegria morou sob esse endereço, onde recebeu vários convites para roubar e se drogar, mas rejeitou todos. “Um rei jamais esquece sua majestade”, ensina. Era plena ditadura militar no Brasil e Eduardo era um jovem morador de rua, mas, mesmo assim, o taxista revela sentir certo saudosismo. “Tenho saudade daquele tempo. A liberdade hoje está de mais”. Mesmo contrariando o senso comum, ele conta que, ainda que o período fosse de desconfiança e medo, se sentia mais seguro na cidade. “Era ditadura, mas tinha polícia na rua, mesmo eu sendo morador de rua, eles não mexiam com a gente”. Mas até o morador de rua Eduardo, que mesmo numa democracia não exerceria sua cidadania, sentiu os efeitos contrários da ditadura “Agora, assim, você não podia falar [mal] nem do vereador, não tinha essa liberdade”, afirma. Depois de dois anos trabalhando com pequenos “bicos” informais, seu Eduardo conseguiu um emprego na única fábrica de ônibus do Recife, chamada “Ciferal”, onde trabalhou por dois anos. Conseguiu sair da rua e comprou um abrigo na Imbiribeira. A fábrica fechou e hoje só existe na região Sudeste. “Saí de lá profissional, mas não tinha outra empresa onde eu trabalhasse na minha área”, conta seu Eduardo. Aí ele teve que se virar. Trabalhou como porteiro, vigia, motorista. “Já trabalhei de tudo, minha filha, só não fiz roubar”, fala a majestade dentro da Alegria. Foi então que resolveu virar taxista. “Procurei emprego e não encontrei. Não falta quem queira empregado, mas pra pagar é difícil”. Desde então, se passaram 18 anos, nos quais ele exerceu a profissão de taxista. Talvez o espírito “andarino” de seu Alegria tenha se acalmado com uma profissão que o faz ir de um canto a outro, nunca ficar estático. A partir daí, Recife entrou nos Olhos de Eduardo Izidio. E, nesse tempo todo em que é taxista, o que seus olhos atentos mais captaram foram as mudanças no seu local de trabalho – as ruas. “Mudou demais. Há 18 anos, a gente ganhava mais dinheiro e rodava mais, porque tinha por onde rodar”. Seu Eduardo compartilha da opinião dos que acham

que a cidade cresceu demais e desordenadamente, gerando um trânsito que atrapalha a vida de todos, principalmente de quem tira das ruas o seu sustento. Outro revés, na visão dele, foi a facilidade que todos têm de comprar carros hoje em dia. “O pessoal parou de pegar táxi porque todo mundo compra carro por causa do IPI reduzido”. Além de isso prejudicar diretamente o trabalho dele, ainda gera o trânsito que tanto atrapalha sua vida. “Veja agora, que horas são? Três horas. A essa hora eu não pego uma corrida pro Centro. Por quê? Porque só o que eu ia gastar no trânsito na volta, não paga nem a viagem de ida”, explica. Apesar de tudo, seu Alegria disse que está bem como taxista. “Tenho meu dinheirinho, ninguém sabe quanto eu ganho e sustento a família [seus três filhos e uma esposa]”, orgulha-se. Mesmo tendo saído há muito tempo do “agasalho” do viaduto das Cinco Pontas, aquele cenário ainda faz parte do seu dia a dia como taxista. “Ali no centro as coisas não mudaram muito, não. A sujeira continua a mesma. O viaduto [das Cinco Pontas] não mudou nada, ainda tem até gente morando lá. Não tem governo que acabe com aquilo; no primeiro mundo tem, imagina aqui, no terceiro”, pontua. Em outras partes da cidade, no entanto, as transformações captaram os olhos de seu Alegria. “Não tinha a Avenida Agamenon como é hoje, por exemplo; era só uma faixa. Nem o Hospital da Restauração tinha, quando eu cheguei aqui”. Porém as mudanças percebidas por seu Eduardo não são apenas nas ruas, mas no dia a dia. “Não tinha Cia telefônica, porque telefone era só pra rico. Na rua mesmo tinha muito engraxate, mas hoje não tem”. Acho que posso ficar agradecida porque taxista ainda tem.

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| Perfil | Eduardo Izidio da Silva

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