O Casarão nº cinco

Page 1

nยบ cinco - NOV / DEZ 2013

no. cinco - novembro/dezembro 2013

1


2

no. cinco - novembro/dezembro - 2013

Editorial

Perfil

Ao avesso

Por Gustavo Cunha e Mariana Pitasse

A quinta edição do CASARÃO traz em sua capa uma das questões mais polêmicas atualmente: a redução da maioridade penal. O tema, que não é tão recente, vez ou outra volta a ser a bola da vez, principalmente graças a uma forcinha da grande mídia - que noticia uma enxurrada de crimes bárbaros cometidos por menores de idade em um curto espaço de tempo. Em meio à polêmica que divide a opinião da sociedade, O CASARÃO traz um viés geralmente desprezado: o abandono dos menores por parte da sociedade. E o Estado omisso fica evidente em outra reportagem desta edição: Analfabetismo. A Pnad de 2012 revelou que, pela primeira vez nos últimos 15 anos, as taxas de analfabetismo cresceram no país. Cabe a nós, jornalistas, questionar e investigar o porquê deste dado alarmante. O CASARÃO acompanha duas personagens e mostra as dificuldades de ser excluído do mundo das palavras e, mais do que isso, da tecnologia. A edição traz também uma reportagem sobre os ‘’card games’’, além de um entrevistado conhecido por todos do IACS. Não estamos falando de um professor, mas do nosso pipoqueiro, sem dúvida uma figura de tradição na casa rosa. E por falar em tradição, esta é uma das grandes preocupações dos moradores de Santa Teresa. Com a proximidade dos grandes eventos e o foco no turismo, o Governo do Estado não poupa mais esforços (nem verba) para investir na reforma do sistema de bondes. Resta saber se as melhorias vão agradar a todos, principalmente aos mais interessados: a população local. Por fim, o jornal continua sua trajetória de acompanhar as desocupações na cidade do Rio de Janeiro. Parece que, com o fim de 2013, o relógio está cada vez mais acelerado para as comunidades que estão no caminho das ambições dos Governos Federal e do Estado. Chegou a hora de conhecermos o fim da linha em Manguinhos. Abram portas e janelas! O CASARÃO

Texto e Arte: Ana Carolina Paradas, André Borba, Augusto Mendes, Bruno Sarmet, Camilla Shaw, Carolina Cantreva, Cindy Borges, Daniela Reis, Daniela Tupinambá, Daniele Barbosa, Débora Diettrich, Elena Wesley, Gabriel Vasconcelos, Gabriela Vasconcellos, Gustavo Cunha, Igor Pinheiro, Isabel Muniz, Isabella de Oliveira, Isabelle Cantanhede, Joana Jorge, Juliana Pimenta, Liliana Silva, Livia Alves, Lucas Bastos, Marcela Macedo, Marcela Arcoverde, Mariana Penna, Mariana Pitasse, Mirian Sampaio, Rodrigo Rocha, Samantha Su e Thaianne Coelho Capa: Mariana Baptista Mídias Sociais: Talita Alves ocasarao12@gmail.com fb.me/jornalocasarao

www.jornalocasarao.com Agradecemos a orientação dos professores Carla Baiense e Rômulo Normand APOIO

PARCERIA

Pipoca é com ele mesmo Sebastião Figueira Diniz já é patrimônio do IACS: há 25 anos, tempera o intervalo das aulas com simpatia sem saber bem com o que trabalhar. Uma noite de chuviscos não é sina porta, a diretora encrencou comigo. nônimo de queda nas vendas para SeViu no carrinho de pipoca do primo A primeira coisa que fiz foi pedir para “que não usava, por vergonha de ser bastião Figueira Diniz. Protegido por ela ligar para a diretora do Meu Sonho, um boné, o pipoqueiro carrega a carvisto pelas meninas” - a oportunidade colégio onde trabalho há mais de 20 rocinha para perto do poste de luz, no que esperava. Não demorou a aprender anos, que lhe disse: ‘olha, eu não queInstituto de Arte e Comunicação Social o ofício. “Ele me chamou para dividir ro que o Tião vá para aí, não, porque da UFF, o IACS, facilitando a sessão de trabalho. Me mostrou mais ou menos se não eu vou perder ele aqui, na saífotos que o deixa um pouco envergoe disse: ‘é assim, assado… Agora, é só da do meu colégio’”, conta com ornhado. “Vai ser rápido, né?”, pergunta. se virar’. Em duas semanas, já tinha gulho. Para contornar o excesso O primeiro clique é logo interrompido aprendido tudo”, afirma. de estima, ele agora se divide por por uma estudante, que quer o pacote Ao longo do tempo, o pipoqueiro duas tardes em cada escola e fecha completo: “Salgada e doce! Com leite aprimorou a técnica, labutando por as noites sempre no IACS. Todos os condensado, tá?”. Em questão de segunpontos variados de Niterói. Hoje, a rodias, o carrinho é guardado no casarão dos, outros seis estudantes aparecem, tina se estende de domingo a domingo, rosa. “Sempre faço amizade com os diaglomerados abaixo de um guarda-sol com uma pausa na sexta - “o dia retores do instituto, que quebram esse improvisado na barraca, que os prooficial de descanso dos pipoqueigalho para mim”, explica. tege da chuva. “Essa é a melhor piporos”, como classifica. O final de E quando o assunto é o projeto de ca que já comi na vida”, exclama com semana é o período mais agitado: mudança do IACS para o campus do conviccção uma das garotas, receosa depois de estourar milhos no CamGragoatá, Tião se mostra apreensivo. de aparecer nas fotos. po de São Bento, segue para a Praia “Eu gostaria muito de trabalhar lá, mas Há 25 anos, Tião (como é conhecide Icaraí e aonde mais tiver movimeno prefeito do campus me disse que não do pelos mais próximos) tempera os to. “Sábado e domingo é ralação total: posso, porque vou atrapalhar a venda intervalos das aulas na faculdade da pego às 8h e largo às 22h. Isso quando dos trailers. Penso em pedir o apoio dos Rua Lara Vilela, em São Domingos, com não faço nenhuma festa”, exclama. Em alunos. A única coisa que a gente conta muita simpatia. “Se encontrarem uma média, são gastos cinco quilos de milho nesse momento é com esse apoio”, diz, pipoca doce melhor que a minha, pode por semana, o equivalente a 30 caixiem tom de apelo. voltar que não paga nada”, brada aos nhas de pipoca. Todo o material vem de Nas avaliações do pipoqueiro, este clientes. O segredo para o caprichoso Bragança Paulista, no interior de São foi o pior ano em relação às vendas. “O sabor é uma simples mistura de canela Paulo. “Ser pipoqueiro não é fácil, não”, movimento está fraco. A maioria dos com açúcar. “Eu faço essa misturinha, desabafa. alunos que gastava aqui no IACS agora acho que fica melhor. Cada um faz Antes de frear o carrinho na faestá tendo aula no Gragoatá”, diz, reada sua maneira, né? Tem gente que culdade, de segunda a quinta, o pifirmando que deseja muito continuar a usa chocolate, mas a pipoca fica poqueiro ainda faz ponto em dois fazer parte da história do instituto. “Mipreta, amargando, meio enjoativa”, colégios nas redondezas. “As mães nha relação com as pessoas é a melhor explica. me chamam para os colégios. Na úlpossível. Estou aqui no calor, no vento, O sotaque com a cadência tima escola que coloquei meu carrinho no frio…”, relata, entre brincadeiras do levemente arraspequeno Junior, de sete anos, filho tada é resquício Gustavo Cunha de Joyce, fundas origens do incionária da terior. Nascido em cantina da Santo Antônio de faculdade. No Pádua, no norte fim do papo, fluminense, Sebasos repórteres tião decidiu tentar se lembram a vida na capital, de que esem meados da queceram de década de 1980. fazer apenas Abrigou-se na casa uma pergundo irmão, em São ta, simples: Gonçalo. “Mas ele “quantos logo se casou, e aí anos, Tião?” fui dividir apartaO pipoqueimento com outros ro responde, sete colegas. Decom ar de pois de um tempo, dúvida: “Ratambém casei”, paz, acho que conta. estou camiCom pouco esnhando para tudo, Sebastião 57 ou 58. chegou à região Deve ser isso, m e t r o p o l i t a n a Com uma legião de fãs, o pipoqueiro Tião teme a mudança para o Gragoatá sabia?”.


3

no. cinco - novembro/dezembro 2013

Limoeiro Por Augusto Mendes, Rodrigo Rocha e Thiago Medeiros

NOS TRILHOS DE SANTA TERESA Governo do Estado investirá R$ 110 milhões em obras para a reforma do sistema de bondes de Santa Teresa e moradores se preocupam em manter a tradição O Bonde de Santa Teresa está passando por reformas e os moradores temem mudanças bruscas. O bondinho, como é carinhosamente chamado, não é só um transporte para a população da região, ele é também um ícone do bairro. As alterações preocupam os moradores que se identificam com o modelo original. Há dois anos, o serviço está suspenso devido a um acidente, em agosto de 2011, que matou seis pessoas e deixou 57 feridos. O investimento realizado pelo governo será de R$ 110 milhões, sendo R$ 60 milhões destinados às obras, R$ 40 milhões para a aquisição de novos bondes e R$ 10 milhões para a reforma das estações e da oficina. Os moradores reivindicam um inventário sobre o estado atual dos bondinhos originais. As intervenções para a reforma de todo o sistema já foram iniciadas e vão interditar parcialmente três ruas do bairro. A previsão do Governo do Estado é reinaugurar o transporte no segundo semestre de 2014. Agentes da CET-RIO já trabalham orientando os motoristas na região. Um projeto apresentado em 2012 fez com que os moradores ficassem receosos quanto à modernização dos novos bondes. “A desconfiança é muito grande. Se-

Operários trabalham na retirada da malha

rão bondes fechados, totalmente diferentes dos clássicos e que dificilmente serão aceitos pelos moradores”, conta Jacques Schwarzstein, diretor de transportes da AMAST (Associação de Moradores e Amigos de Santa Teresa). O objetivo do projeto original é a substituição dos antigos por novos equipamentos, a fim de aproveitar as obras de revitalização de todo o sistema de bondes. As tubulações de água, esgoto e gás, bem como o cabeamento elétrico, empresa de telecomunicações e de telefonia participarão efetivamente do desenvolvimento da nova infraestrutura do centenário Sistema de Bondes do Estado do Rio de Janeiro. Segundo a Casa Civil, a licitação para a compra dos 14 bondes novos e a troca dos trilhos já foi realizada. Eles terão suporte retrátil de apoio para os pés na entrada e na saída. E também uma proteção lateral para impedir que passageiros viajem pendurados. Para receber os novos bondes, a Companhia Estadual de Engenharia de Trans-

Fotos: Rodrigo Rocha

portes e Logística (Central) vai implementar o Plano Diretor de Transportes, que inclui pesquisas de campo, e terá a parceria da Prefeitura, através da CET-RIO na reestruturação do trânsito no bairro de Santa Teresa. Já o subsecretário estadual da Casa Civil, Rodrigo Vieira, afirmou que os bondes manterão os elementos tradicionais e ganharão mais segurança e tecnologia. “O novo bonde vai ter monitoramento, uma solução de acessibilidade para portadores de necessidades especiais, gravação de imagem e bilhetagem. Esse é um bonde que respeita a história, mas também a sociedade que vive na cidade”, explica. Álvaro Braga, diretor da Amast, considera o novo projeto de bondes um avanço em relação ao apresentado em 2012. “Era um verdadeiro atentado contra a memória e o patrimônio de Santa Teresa”, argumenta. Segundo o diretor, com o Estação no Largo dos Guimarães desativada desde o acidente de 2012 início das obras, a pauta agora é discutir o destino dos bondes históricos abando- pelos bondes, a Central. A própria asso- história recente de luta do bairro. O donados em um galpão. “Percebemos que ciação de moradores já vinha denuncian- cumento aponta as irregularidades coos bondes novos tiveram uma evolução do o sucateamento do bondinho antes do metidas pelo governo estadual. Os bonpositiva e vão ficar mais parecidos com acidente. O processo que apura o episó- des foram tombados como bem cultural os originais. Vamos fazer uma campanha dio corre na 39ª Vara Criminal da Capital. em 1988 pelo Inepac (Instituto Estadual Nelson Araújo Correa da Silva, filho do Patrimônio Cultural). O Iphan (Instipara que os antigos bondes sejam restaudo motorneiro Nelson Corrêa, afirma tuto do Patrimônio Histórico e Artístico rados”, defende o diretor. Além disso, ele anuncia que a Asso- que o pai já estava aposentado, mas con- Nacional) tombou em caráter provisório, ciação também vai reivindicar um in- tinuava a trabalhar no bondinho pelo por uma portaria de 2 de abril de 2012 ventário sobre o estado físico de cada gosto do que fazia e pelas amizades que o traçado da linha do bonde e um bonde um dos bondes tradicionais, alguns conquistou no bairro. Nelson e a família antigo. O trajeto para quem saía do centro da com até 80 anos de idade. “A guarda e souberam que o pai havia falecido antes a responsabilidade desses bondes tom- mesmo de chegar ao Hospital Salgado Fi- cidade começava nas proximidades do bados estão compartilhadas entre o po- lho. Ele conta que o Estado não ofereceu Largo da Carioca, na Rua Lélio Gama, do assistência alguma à família. A viúva do lado do prédio da Petrobras, onde fica a der público e a sociedade”, lembra. Outra pauta defendida é a capaci- motorneiro, Dulce Araújo da Silva, aguar- pequena estação dos bondes. O percurso tação dos funcionários da Companhia da agora a decisão da Justiça sobre a in- seguia sobre os Arcos da Lapa e subia as ruas do bairro, passando pelos casarões Central, para a operação dos novos denização. Apesar das inúmeras tentativas dos históricos de Santa Teresa, até a estação bondes. “No projeto não tem uma palavra citando o investimento no pesso- moradores de negociar a volta do bonde terminal no bairro de Cosme Velho. Há mais de cem anos executando seu al que vai operar esses novos veículos. ao bairro, a Associação de Moradores e Precisamos saber se eles estarão aptos a Amigos de Santa Teresa entregou à pro- percurso pelo tradicional bairro boêmio trabalhar neste novo sistema”, denuncia curadora da República Dra. Ana Padilha, do Rio de Janeiro, o bondinho servia tamno dia 31 de julho de 2013, as 14.500 bém de meio de transporte diário para os Álvaro Braga. No acidente de 2011, o bondinho saiu assinaturas do referendo “O Bonde que moradores da região. dos trilhos e derrubou um poste. Cinco queremos” e um dossiê que reúne toda a 2011 pessoas morreram na hora e o motorneiJunho - Turista francês ro, que chegou a ser socorrido, não morre ao despencar de bondinho que atravessava resistiu. Segundo testemunhas, o os Arcos da Lapa bonde estava superlotado, conAgosto - Seis pessoas tribuindo para o acidente, que morrem e 57 ficam ocorreu em um lugar delicado, feridas no acidente. O servi1988 numa descida em curva. ço é suspenso. Tombamento do bonde pelo Inepac Na denúncia oferecida pelo MP-RJ (Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro) em 2012 2012, cinco funcionários da empresa Iphan tomba o que administra o bondinho foram traçado da linha do culpados, aceitando a alegação de Final do século XIX bonde que o governo não tinha conheci- O Bondinho de Santa mento da precariedade do sistema. Teresa é inaugurado Na época, a Amast criticou a ação proposta pelo Ministério Público enten2009 dendo que culpabiliza o “lado mais fraco” Professora Andreia de 2014 e isenta de responsabilidade o secretário Jesus morre após bondinho Previsão de encerramento atingir táxi das obras e reinauguração estadual de Transportes, Júlio Lopes, que do Bonde era o presidente da empresa responsável


4

no. cinco - novembro/dezembro - 2013

Capa Por Isabel Muniz

A discussão sobre a redução da maioridade penal desconsidera a triste realidade brasileira: o abandono da população jovem e pobre pelo Estado

Fotos: Bruno Sarmet

Mãe de um menor infrator, Mônica Cunha critica o atual modelo de socioeducação

A

ex-cozinheira Mônica Cunha conheceu o sistema socioeducativo no ano 2000, quando o filho adolescente foi internado pela primeira vez no Degase, aos 15 anos. Junto com o jovem, a mãe ingressou num universo marcado pelo desrespeito aos direitos fundamentais, pela falta de infraestrutura e pelo preconceito. “Não é só o filho que é colocado à margem porque cometeu um ato infracional. Sua imagem muda, as pessoas logo apontam: pariu um bandido, um marginal. É como se mãe e filho não prestassem”, relata a mãe do rapaz, que morreu aos 20 anos, e de outros dois jovens, um professor, de 30 anos, e um cadete da Aeronáutica, de 19. Mônica conhece bem os dois lados da Justiça para jovens e adolescentes: aquela que descrimina os direitos e os deveres do Estado para com essa população, assegurados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e a que, na prática, criminaliza o menor. Foi desta experiência que nasceu o Movimento Moleque, há dez anos. Sem conhecimento dos próprios direitos e dos seus filhos, Mônica resolveu agir. Fez um curso de educadora social, certificado pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), e passou a compartilhar o

conhecimento com outras famílias na mesma situação. “Tento mostrar que existem leis, tratados internacionais que resguardam a criança e o adolescente. Muitas mães são analfabetas ou semi-analfabetas”, lembra Mônica, que realiza encontros, palestras e debates sobre os direitos do menor.

“As pessoas logo

apontam: pariu um bandido, um marginal.

Mônica Cunha, educadora social

ano passado, pelo Programa Justiça ao Jovem, ligado ao Conselho Nacional de Justiça. A equipe percorreu as unidades de internação estaduais e colheu depoimentos dos garotos, que relataram agressões verbais e físicas, como o uso de gás de pimenta e choque elétrico. No ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) encaminhou ao Governo do Estado do Rio de Janeiro, Poder Judiciário e Ministério Públi-

co alguns ofícios denunciando as más condições das unidades, a concentração delas na Região Metropolitana e o abuso por parte dos agentes, que utilizariam a violência como um método “educacional”. Atualmente, no Rio de Janeiro, a aplicação das medidas socioeducativas de internação e semiliberdade são de responsabilidade do nível estadual através do Novo Degase - Departamento Geral de Medidas Socioeducativas. E as outras medidas, como advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida são executadas pelos municípios. O Novo Degase possui oito unidades de internação, distribuídas na Ilha do Governador, Belford Roxo, Bangu e Campos dos Goytacazes; e 17 Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente (Criaad), destinadas a quem cumpre a medida de semiliberdade. O Rio de Janeiro apresenta, dessa forma, uma concentração dos pólos de internação que leva o distanciamento do internado para com a família, o que contraria recomendações do ECA. Sidney Teles da Silva é um profundo conhecedor do sistema socioeducativo do estado e de muitas histórias de vida dos adolescentes que cometeram ato infracional, umas com final feliz e outras nem tanto. Ele foi diretor da Escola João Luiz Alves de 1999 a 2002, quando saiu para ocupar o cargo de diretor-geral do Degase, onde ficou por um ano. Além de reiterar as denúncias do CNJ, ele chama a atenção para uma unidade do Degase, especificamente, que já deveria estar fechada, o Educandário Santo Expedito, instalado em pleno complexo penitenciário de Bangu. “Já foi determinado pelo Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente que essa unidade seja desativada. Em dezembro de 1997 os adolescentes foram transferidos para lá, em caráter provisório, por três meses, pois a escola João Luiz Alves, na Ilha do Governador, iria entrar em reforma. Na época, a unidade se chamava Muniz Sodré. Desde 1998 pedimos que esta unidade em Bangu seja desativada”. Sidney também defende a redefinição do sistema. “O ideal mesmo é ter unidades para, no máximo, 30 adolescentes e divididos por idade, tipo físi-

Assessor da Comissão de Direitos Humanos da Alerj há quatro anos, o advogado Guilherme Pimentel também convive com a dor e a revolta de pais cujos filhos cumprem medidas socioeducativas. “O sistema socioeducativo põe os adolescentes em verdadeiras cadeias, inclusive com todas as violações de direitos humanos que acontecem nas penitenciárias”, denuncia. As distorções do sistema ficaram bem claras numa pesquisa realizada,

Guilherme Pimentel: violação dos direitos humanos se repetem no sistema socioeducativo


5

no. cinco - novembro/dezembro 2013

co e gravidade do ato infracional. E outro fato importante a ser dito é que há muitos jovens com problemas mentais, que precisam de tratamento, mas que cumprem internação junto com os outros. E aí é complicado, ou ele vai ser agressor ou agredido”, alertou.

Qualquer semelhança com o sistema prisional não é mera coincidência

redução da maioridade penal não leva em conta são as condições que levam os jovens a ingressarem no mundo do crime. O perfil dos adolescentes que cumprem medida socioeducativa não difere muito dos adultos que lotam o sistema penitenciário. O levantamento feito pelo Projeto de Monitoramento dos Direitos da Criança e do Adolescente, em 2006, mostra que a presença predominante é de negros, pobres, oriundos de favelas e com baixa escolaridade, e revela que 15,8% deles estão em regime de internação, o que contraria a orientação do ECA. Eles são, também, as maiores vítimas da violência. Dados do Projeto mostram, ainda, que em 2007 o número de homicídios entre a população de 15 a 24 anos foi maior entre negros, com 11.905 casos, com maiores regis-

Enquanto entidades de defesa dos direitos humanos lutam para garantir a segurança e a ressocialização dos jovens, definidos pelo ECA, o debate sobre a redução da maioridade penal revela a pressão de parte da sociedade por penas mais duras. Este ano, dois episódios de violência em São Paulo, envolvendo a participação de menores, reacenderam a discussão. No dia 09 de abril, o jovem Victor Hugo Deppman chegava ao edifício onde morava, no bairro de Belém, Zona Leste de São Paulo, quando foi assaltado e, mesmo sem esboçar Sidney: diferentes infrações num mesmo espaço reação, levou dois tiros de um adolescente de 17 anos. A poucos dias de completar tros no Rio de Janeiro (1.677), Pernam18 anos e reincidente no sistema, buco (1.652) e Bahia (1.251). Já entre o rapaz vai cumprir uma medida a população branca, houve 4.512 casos socioeducativa. Após o incidente, de homicídios, sendo que São Paulo e o governador de São Paulo, Geral- Paraná apresentam os maiores númedo Alckmin (PSDB), veio a público ros, 991 e 947 casos, respectivamente. Para a educadora Mônica Cunha, o falar que apoiava mudanças na lei. cenário que se abrirá caso a maioridaAinda no mês de abril, outro crime chocou a sociedade: o caso da de penal seja reduzida será o pior posdentista Cynthia Magaly Moutinho sível e a criminalidade não irá diminuir. de Souza, de 47 anos, morta no pró- “Vamos imaginar que eles entrem com prio consultório, em São Bernardo 16 e saiam com 22 anos, vão vir para do Campo. Segundo testemunhas, as ruas jovens e violentos; daí o Estaos criminosos, entre eles um jovem do vai perceber que a medida não deu de 17 anos, queimaram a dentista, certo. Depois, só vai faltar botar os neirritados com o fato de que só havia gros e pobres na cadeia quando nasceR$ 30 na conta-corrente da vítima. rem ou esterilizar as mulheres negras e A comoção foi grande. Enquanto pobres, para assim eliminar a semente do mal”, ironiza programas de a educadora. debate na TV Assistente levavam espe- A questão não está no social da Precialistas para sistema e sim em como feitura Munidiscutir o tema cipal de Angra e políticos voci- a sociedade lida dos Reis, Joyce feravam contra com a infância e a Guimarães Fera impunidade, o reira, trabalhou ministro da Jus- desigualdade social em três unidatiça deu declaJoyce Ferreira, assistente social des socioedurações contrácativas - Escola rias à redução João Luiz Alves, Instituto Padre Severida maioridade. Embora a visibilidade seja maior no e o Centro de Socioeducação Gelso nos casos envolvendo adolescentes de Carvalho Amaral. Especialista em em crimes bárbaros, latrocínios Direito Especial da Criança e do Adoe homicídios não são as infrações lescente, ela acredita que a redução mais recorrentes. Dados do Con- da maioridade penal só serviria para selho Nacional de Justiça mostram acentuar ainda mais o problema da puque a maioria dos menores que nição, que tem uma única classe social cumprem medida socioeducati- como alvo permanente. “A questão não está no sistema sova responde por roubo (36%). O tráfico de drogas aparece como a cioeducativo e sim na forma como a segunda maior causa de autuação sociedade trata a questão da infância e (24%) – ver gráfico completo. da desigualdade social”, reflete a assisO que a discussão a respeito da tente social.


6

no. cinco - novembro/dezembro - 2013

Estante Por André Borba e Lucas Bastos

Fotos: André Borba

Jogo de gente grande Híbridos de brincadeira e negócio, os Trading Card Games multiplicam números de fãs e cifras no Brasil Quem passa pela movimentada Avenida Ernani do Amaral Peixoto, no Centro de Niterói, talvez não saiba que batalhas místicas e guerras medievais se desenrolam perto dali. Os guerreiros que travam esses duelos são crianças, jovens universitários e até executivos de terno e gravata. Mas longe de empunharem espadas e escudos, eles se utilizam de cartas e dados para as disputas. São os jogadores de TCG (Trading Card Games), que têm como ponto de encontro uma loja de uma galeria comercial. Os jogos reúnem personagens mitológicos, criaturas fantásticas, muita magia e alguns números que chamam atenção. De acordo com a Hasbro, empresa multinacional do segmento de brinquedos e entretenimento, cerca de 12 milhões de pessoas no mundo jogam Magic: the Gathering. Estão considerados nessa conta apenas os que participam de torneios oficiais, não entram os que disputam partidas de forma casual, com seus amigos ou em campeonatos amadores. Se esse número de jogadores torcesse por um clube brasileiro de futebol, por exemplo, sua torcida ficaria em 4º lugar no ranking das maiores do Brasil. Só seria menor que as do Flamengo, Corinthians e São Paulo. As cifras movimentadas também impressionam. No início de 2012, Magic: the Gathering possuía sua marca avaliada em 200 milhões de dólares, cerca de R$ 430 milhões. Graças a um crescimento de 35% , registrado no último triênio, o valor da marca atingiu a marca de R$ 585 milhões.

“No formato Legacy, um dos muitos de Magic, as pessoas chegam a pagar R$ 2 mil para comprar quatro cartas.”

outra, aos sábados, após o expediente. “Às vezes, eu fico dois meses sem jogar. Infelizmente, jogar não faz parte do trabalho”, lamenta Pedro, que se desfez do seu próprio deck, mas fica de olho na cotação das cartas. “Vendi as cartas que me convinha e guardei as que eu acho que vão valorizar daqui a algum tempo”, diz o rapaz. Esse mercado milionário levanta uma questão: como um jogo fabricado com um material barato pode mover tanto dinheiro? A resposta passa pelo valor de algumas cartas utilizadas. Um deck comum custa em média R$ 30. No entanto, a busca por um baralho do nível de grandes torneios resulta na valorização de algumas cartas. Esse valor é determinado por fatores como a raridade, sua adequação a diferentes estratégias e a procura dos jogadores. Essa lógica de mercado restringe o público que participa dos campeonatos. Mas, mesmo assim, há quem se satisfaça com torneios amadores e um deck menos elaborado. Esse é o caso do estudante de Letras Sidney dos Santos, que reconhece o caráter comercial do jogo e prefere não participar de competições. “Eu só jogo pela diversão mesmo, já que não tenho como montar um deck de campeonato”, afirma o rapaz, que indica Pokémon e Magic como os TCG preferidos. “Determinadas cartas chegam a custar R$ 1,2 mil. Tem gente que gasta R$ 10 mil só com a compra de cartas”, ressalta O também estudante de Letras Lucas Mizumoto, de 21 anos, teve o primeiro contato com TCG ainda na infância, quando ganhou um booster de Pokémon de aniversário. Já crescido, vê o jogo como

Pedro Bastos, vendedor da Legion Card Games e jogador de TCG nas poucas horas vagas

um hobby a ser levado a sério. Ele e mais cinco amigos formaram uma sociedade, na qual o valor da compra de cartas e o seu uso é dividido entre os sócios. “Todo mês, durante a temporada de torneios, cada integrante tem que investir R$ 250 na compra de cartas”, explica Mizumoto que já viajou para diversas cidades brasileiras para participar de competições. O alto valor investido em baralhos competitivos muitas vezes não encontra recompensa financeira. Pedro admite que o retorno só é possível caso o jogador consiga se manter com regularidade nas primeiras posições. Como a premiação em dinheiro no Brasil é proibida, de acordo com a mesma lei que proíbe jogos de azar, os competidores recebem o prêmio em boosters ou em crédito para gastar como quiserem na loja que organizou o evento. Muito diferente do modelo dos Estados Unidos, em que há campeonatos que premiam o vencedor com até US$ 40 mil, como o Magic World Championship. Iniciação no TCG

A maioria dos jogadores teve seu primeiro contato com os card games quando criança. Foi assim com Pedro, Sidney, Mizumoto e Marília Milagres, estudante de Edificações da Faetec. Aos 19 anos, a

Pedro Bastos, vendedor

Já em um outro patamar da economia dos card games, a venda de cartas pode gerar uns bons trocados para os jogadores e lojistas. Pedro Bastos, vendedor na loja Legion Card Games, conta que quem deseja participar de grandes torneios e ficar nos primeiros lugares precisa esvaziar os bolsos: “No formato Legacy, um dos muitos de Magic, as pessoas chegam a pagar R$ 2 mil para comprar quatro cartas. Já no T2, que é o mais difundido nas competições, a média varia entre R$ 500 e R$ 2 mil”, explica. Pedro está empregado há um ano na loja e traz no currículo a experiência de ter trabalhado numa concorrente. Familiarizado com TCG desde 2001, o vendedor só joga no tempo livre e, vez ou

jovem conta que começou a jogar com o pai, aos oito. Uma entre as poucas mulheres que frequentam a Legion Card Games, Marília acredita que TCG está mais aberto ao público feminino. “Há alguns anos, não tinha mulher entre os jogadores. Era muito restrito aos homens. Hoje aumentou bastante o número de meninas no mundo das cartas”, diz a estudante, que revela ouvir piadinhas dos colegas, mas tolera “zoação”. A estudante de Comunicação Visual Mayara Zavoli se iniciou nos TCG com a irmã Nathalia. As duas, que fazem o mesmo curso na UFRJ, jogavam Pokémon e Yu-Gi-Oh! quando crianças e migraram para Magic: the Gathering recentemente. “Eu só comecei a jogar Magic agora. É tudo culpa dele”, diz Mayara ao apontar para o namorado, Luciano Casemiro, que a acompanha nas partidas. Jogador de card games há mais de dez anos, Luciano diz que sempre jogou com os amigos e que, agora, TCG também é um dos passatempos do casal. “A gente sempre joga junto. Estamos até pensando em organizar um torneio lá na UFRJ”, diz o estudante de Direito. “O objetivo vai ser brincar mesmo, não vai ser nada sério”, finaliza o jovem.

Cardgamês

Trading Card Games: Jogos de cartas colecionáveis normalmente estampadas com algum personagem ou criatura mágica. São jogos de estratégia disputados por dois ou mais jogadores. Boosters: Envelopes com cartas sortidas de um TCG específico.

Deck : Nome dado aos baralhos utilizados pelos jogadores. Para cada torneio há um número específico de cartas que um deck pode ter.

Muito mais que brincadeira de criança, os Trading Card Games colecionam números expressivos

Formato: Regras específicas que regulamentam uma modalidade no qual o TCG é jogado. Alguns formatos admitem o uso de todas as cartas já lançadas, outros só aceitam cartas de determinada edição.


7

no. cinco - novembro/dezembro 2013

Identidades Por Daniela Reis, Débora Diettrich, Liliana Silva e Rodrigo Rocha

Analfabetismo : duas faces da mesma moeda

N

o momento em que o Brasil desponta como uma das principais potências econômicas mundiais, o que explica o retorno do analfabetismo? De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2012, recém-divulgada pelo IBGE, a taxa de analfabetismo no Brasil parou de cair, uma reversão das expectativas apontadas nas últimas edições do censo. O estudo mostra que a incidência entre pessoas de 15 anos ou mais de idade é de 8,7%, o que corresponde a 13,2 milhões de analfabetos. A região Nordeste concentra mais da metade desse total, com 54%, um contingente de mais de sete milhões de pessoas. O dado significativo que a pesquisa traz é o fato de ser a primeira vez que a taxa mostra uma tendência contrária à queda nos últimos 15 anos. Entretanto, para o IBGE, é necessário esperar a pesquisa do ano que vem para entender se há um prognóstico de queda, reversão ou estabilidade. Em pleno século XXI, o que impede o acesso ao ensino básico? Como será a vida de um analfabeto num mundo não só letrado, mas crescentemente tecnológico? Lucy e Luzia são duas faces da mesma moeda. A primeira viveu do ensino e a segunda nunca teve essa oportunidade.

O desafio de alfabetizar

Nunca foi preciso muito. Bastavam uma pequena sala de barro, algumas carteiras, uma lousa e, principalmente, uma professora dedicada. Foi assim que a professora Lucy Gomes de Azevedo, de 79 anos, iniciou sua jornada de mais de cinco décadas de dedicação total à alfabetização de crianças e adultos. “Entrei na escola apenas aos oito, mas aprendi rápido, e logo já estava ajudando outras crianças que moravam perto de mim. Eram duas turminhas, com vinte alunos em cada”, lembra a professora, que já alfabetizou mais de mil alunos. A estrutura, construída por sua mãe, nos fundos da casa onde mora até hoje, na comunidade da Igrejinha, no Largo da Batalha, em Niterói, logo não comportaria mais os sonhos de Lucy. A diretora da Escola Leopoldo Fróes ouviu falar da jovem professora. Mesmo sem ter feito o ‘Curso Normal’, ela foi convidada a dar aula no colégio público. Entrou para nunca mais sair. “Comecei dando aula para minhas bonecas. Hoje encontro com meus ex-alunos, muitos doutores, médicos, advogados, engenheiros, pessoas que eu ajudei a formar”, recorda. Questionada sobre as dificuldades na

Rodrigo Rocha

A outra face Luzia, de 50 anos, é uma dentre os 1,2 milhão de brasileiros da região Norte que não sabem ler. Sua mãe deixou Aracaju (SE) para morar em Niterói quando a menina tinha apenas cinco anos. As promessas de boas oportunidades no Sudeste não se concretizaram. Luzia largou a escola na primeira série sem conseguir ler ou escrever. Aos doze anos, começou a trabalhar como babá. Histórias como essa sempre foram muito comuns no Brasil. Havia, no entanto, a expectativa de que a situação, em poucos anos, viesse a mudar. Não foi o que a última Pnad mostrou. Na verdade, a taxa de analfabetismo cresceu 0,1%. Hoje, Luzia é empregada domésti

Lucy Gomes de Azevedo, de 79 anos: mais de cinco décadas alfabetizando crianças e adultos

alfabetização de adultos, a professora explica que alunos mais velhos trazem para a sala de aulas as preocupações do cotidiano, como trabalho, casa, família. Muitos abandonam o curso por não conseguirem administrar esse tempo. Eles contrariam justamente a principal causa que os fez retornar à escola – o desejo de melhorar de vida, conseguir um bom emprego e garantir o futuro da família. “Lembro-me de uma aluna, uma

Alfabetizar é formar a personalidade do cidadão. É mais do que apenas ler e escrever

senhora, que um dia saiu correndo da sala de aula porque começou a chover, e ela esqueceu as roupas no varal. No outro dia, não podia vir porque estava arrumando a casa. Outra vez foram os filhos... Até que ela desistiu. Foi uma pena”, comenta. Para a professora, é preciso força de

vontade: “O maior sofrimento de um analfabeto é ser dependente das outras pessoas. Mas eles têm vergonha de revelar isso. Um aluno meu, certa vez, mentiu ao pedir ajuda para preencher um documento. Ele disse que estava sem óculos, e que não conseguia enxergar”.

Motivação

Lucy tem um lema: “Alfabetizar é iniciar a formação da personalidade do cidadão. É mais do que apenas ler e escrever”. Ela também acredita que a educação no Brasil melhorou significativamente nos últimos 50 anos. “Naquela época, havia bem menos escolas. Muitas ficavam longe das casas dos alunos, e a infra-estrutura dentro de sala, o material didático, nem se comparam ao de hoje. Mas ainda há muito a avançar”. Afastada das salas de aula devido à idade, hoje a professora se debruça sobre um velho projeto: publicar uma cartilha de alfabetização. “Alfabetizar é uma tarefa que exige amor e dedicação. Ao longo dos anos, reuni, nessas páginas em branco, histórias, canções e exercícios que ajudaram a formar vários dos meus alunos. Quero poder deixar este aprendizado para as próximas gerações”, revela.

Quando tenho muita dúvida pergunto. Tem gente que finge não me conhecer pra não ajudar.

ca e sente na pele as consequências da pouca escolaridade. “Quando tenho muita dúvida pergunto. Tem gente que finge não me conhecer pra não ajudar. E ainda dizem: ‘você não sabe ler não?’ Aí você fica triste, porque se perguntou é porque não sabe“, lamenta. As dificuldades aparecem em atividades banais do dia-a-dia: ir ao mercado, identificar ônibus e até mesmo usar o celular. Ela só pode discar para números que conhece de cor, já que não consegue acessar o menu. A patroa não se conforma com a dificuldade da empregada e já tentou ensiná-la: mas as obrigações não terminam no trabalho. Quando chega em casa, Luzia ainda tem os afazeres domésticos. “Eu mesma não quis. Saí fora”, reconhece. “Acho que é de mim mesma, não tenho força de vontade”, admite. Luzia, que cozinha um prato depois de olhar apenas uma vez alguém preparar a refeição, ainda não consegue seguir uma receita escrita. E quando essa reportagem que conta sua própria história for publicada no jornal, Luzia terá que pedir a outra pessoa para ler.


8

no. cinco - novembro/dezembro - 2013

(Des)Ocupação Por Isabella de Oliveira e Samantha Su

FIM DA LINHA EM MANGUINHOS O mesmo PAC que suspendeu a linha do trem e integrou comunidades da região também dispersa famílias do local Fotos: Isabella de Oliveira

Ao andar pela rua Uranos, de buracos de esgoto e encanana favela João Goulart, situada mentos estourados durante as no Complexo de Manguinhos, demolições, acidentes com moo olhar se perde entre montes radores, respaldados por laudos de entulho e lixo, esqueletos médicos, e abandono de entulho. de construções e vergalhões Procurada, a EMOP afirma desexpostos. Um observador conhecer os processos e alega distraído pode não perceber oferecer serviços de assistentes as poucas casas ainda de pé, sociais, sociólogos, psicólogos, diante da imponência da nova arquitetos e advogados para a malha ferroviária, agora suscomunidade, que não confirma pensa. Entre os escombros, a informação. no entanto, está a residência Entre os que resistem está da família Gomes da Silva. Vanderson Guimarães, pai de A construção, hoje com três duas meninas gêmeas de quaandares, começou com a matro anos, que têm dificuldades triarca Dona Maria, há mais respiratórias, em decorrência de 40 anos, e cresceu pelas da poeira das obras, e inúmeras mãos de filhos e netos. Essa é vezes precisaram ir a unidades uma das histórias ameaçadas de saúde. Em 2010, Isis, uma das desde 2008, quando o govermeninas, chegou a ponto de volno deu início a mais um protar para casa com um atestado cesso de desapropriações no de oitenta dias para a dispensa Remoções transformaram a vida dos moradores de Manguinhos Rio, desta vez, para as obras das aulas. Ao todo, o pai guarda do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). e, mesmo assim, são necessários consertos. Até ago- mais de setenta documentos, entre prontuários, disDesde o aviso de remoção, a maior preocupação ra, ela é a única da família que já retirou o cheque e pensas e atestados, comprovando os problemas de dos cinco núcleos familiares que dividem o lote tem comprou outro imóvel, mas não tem condições de se saúde que sua família vem enfrentando. sido encontrar uma forma de permanecer juntos. O mudar, devido às reformas. A ideia de se separar dos Luiz Soares, morador da comunidade de Varginha, objetivo é encontrar uma casa que tenha os mesmos filhos e sair da casa que construiu trouxe problemas é um dos poucos casos de pessoas que viram, no PAC, padrões da atude saúde para dona Maria. “Com uma oportunidade de melhorar de vida. Ele fez parte al, mas os baixos esse negócio já fui parar até no das primeiras 43 famílias que participaram das removalores oferecihospital. Fiquei doente, com pres- ções, em 2009. Soares optou pela compra assistida, e dos pelo goversão alta, diabetes emocional”. A fa- sua casa foi avaliada em um valor três vezes maior do no e a alta de mília conta que, toda semana, re- que na época da compra do imóvel, em 1997, partinpreços dos imócebe visitas da Empresa de Obras do de R$ 15 mil e chegando a uma soma total de R$ veis na comuPúblicas do Rio de Janeiro (EMOP) 46.200. Luiz conseguiu o que ele classifica como um nidade fizeram para pressioná-la, mas nunca teve bom diálogo com o Estado. “A prefeitura cumpriu o com que a vida a orientação de um assistente so- que tinha que cumprir”, diz. deles parasse Apesar de ter visto no PAC uma possibilidade de cial e nem informações da EMOP no tempo. “Dessobre como conseguir apoio jurí- mudar de vida, Luiz afirma que faltou apoio do Estado de 2009 eu não dico. Sem um advogado, todas as no que tange tanto às questões emocionais quanto às compro um sofá, financeiras do procesnegociações foram eu não sei para so. Na época de Luiz, feitas por eles mesonde eu vou”, diz a elevação dos preços mos. a filha mais veDona Maria resiste na casa onde mora há mais de 40 anos das moradias também Além da famílha, Patrícia, que não era uma realidade lia de Dona Maria, mora no andar do meio, o de maior metragem (121 outros moradores ainda resistem e na comunidade. m²). A casa, avaliada em um primeiro momento em R$ se organizam. É o caso de 12 famílias, Maria Rodrigues, 68 mil, chegaria a valer R$ 138 mil, após cinco anos de também da favela João Goulart, que se que mora com a filha e negociação. “Eles vieram com um decreto do governo uniram para exigir que as desapropriaa neta em Manguinhos, do Estado estabelecendo um teto máximo para a inde- ções sejam feitas de modo digno. Mas concorda: “Antigamennização. Se eu fosse protelar, corria o risco de ir para a para Jurberg, do PAC, a resistência deste tinha casa de R$ 15 Justiça, perder e baixar o valor”, argumenta. mil, depois que isso (o ses moradores não se justifica. “O PAC Caso a negociação não avance com o PAC, de acor- é um programa que visa melhorar a PAC) começou, passou do com os valores do decreto estadual de realocação, vida de milhares de famílias. São cerca a ter casa de 220 mil, o processo é encaminhado à Procuradoria Geral do de 11 que não aceitam negociação. Os de 150 mil”. O compleEstado (PGE). Nesse caso, um juiz envia um perito de demais 50 mil moradores não podem xo de Manguinhos, loavaliação para apresentar um novo valor, normalmen- deixar de usufruir de parques e áreas calizado em uma área te inferior à oferta inicial, pois se baseia na PGE, cujo de lazer porque 11 famílias não aceitam de fácil acesso na Zona piso é menor, como explica a coordenadora do PAC, os valores”. O grupo, porém, alega que Norte, perto de duas liRuth Jurberg. nhas de metrô, é cortaa resistência não é só pelo valor das inA avaliação do PAC é feita de forma individual, le- denizações, mas também por respeito à do pela linha do trem e vando em conta a metragem e o material empregado história que construíram no local e pela fica próximo a regiões na obra de cada extensão. Por isso, cada um dos núcle- forma como têm ocorrido as demolide comércio proemios da família deve receber uma indenização diferente. ções. nentes da cidade, como o shopping Nova AméA decisão de resistir resultou em Depois de uma longa negociação, a casa de dona MaEsqueleto de casa removida da favela João Goulart rica. A ação do tráfico, no ria, que possui 47 metros quadrados, foi avaliada em processos contra empresas responsáR$ 41 mil. Mas a nova casa que conseguiu valia R$ 65 veis pela demolição, tais como FW Engenharia e SH entanto, impediu a valorização da região. Mas com a mil reais. A compra só foi possível com ajuda do filho Chagas. As famílias acusam as empresas pela abertura chegada da UPP, em 2009, a especulação começou.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.