Casarão nº 15

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O CASARÃO - JULHO AGOSTO - 2017

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Editorial

Entrevista

A casa é nossa. O povo resiste. “Resistir. Exercer força de reação contra outro corpo. Defesa. Oposição. Não ser intimidado por autoridades.” O significado da palavra resistência em muito se assemelha às necessidades encontradas por quem vive em 2017. Há os que acreditam que tudo será esquecido e que não existe espaço para nenhum tipo de progresso no país. Mas também há os que lutam, que se manifestam contra as diversas instituições opressoras e vão contra imposições, bloqueios, cortes e apagamentos. Nesta edição, O Casarão abre suas páginas para contar as histórias daqueles que não se conformam com as questões críticas lançadas sobre sua própria humanidade e persistem. As páginas a seguir apontam a precarização do espaço público, como é o caso da Escola de Teatro Martins Penna, que resiste à crise e ao esquecimento do poder público, mantendo sua história viva apesar da falta de recursos. É preciso sair das paredes e ir além. Olhar fora das pílulas de notícias dos jornais online e ficar atento às necessidades do acesso à Universidade, entender os problemas dos que chegam ao solo brasileiro procurando refúgio e difundir o conhecimento a respeito das questões raciais e culturais. Convidamos você a entrar nessa enorme casa e, num exercício de reflexão, construir um novo olhar e lutar por esses desafios que não ganham espaço na mídia, mas estão aqui e são reais. O espaço é nosso, fique à vontade.

Publicação Laboratorial do Curso de Comunicação Social Orientação Carla Baiense Ildo Nascimento (18788 MTb)

Reportagem, Fotografia e Diagramação Ana Bustamante, Andressa de Oliveira Amendola, Andrey Benevenuto, Caio Macedo Camilla Alcântara, Camilla Shawn, Carmem Angel, Carolina Lopes, Felipe Gelani, Gabriel Sorrentino, Igor Oliveira Simoes,Jéssica Simões, Leon Lucius, Lizandra Machado, Luana Santiago, Marcella Moreira, Maria Clara Pestre, Mariana Alecrim, Marry Ferreira, Rafaela Mascarenhas, Stephany Cordeiro, Tatiana de Carvalho e Tiago de Assunção. Capa e ilustrações Diego Abreu

ocasarao12@gmail.com fb.com/jornalocasarao @jornalocasarao issuu.com/ocasarao

Precisamos falar sobre a lei 10.639

A

por Carmem Angel

pedagoga Alessandra Pio foi a primeira coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB) do Colégio Pedro II, criado em 2014 a partir da reivindicação de movimentos negros para a aplicação da Lei 10.639 que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro brasileiras nas escolas. O Núcleo não recebe verbas públicas, e se organiza através de debates e rodas de conversa com lideranças negras. Como é a resposta dos alunos ao NEAB? É muito boa e é o que dá energia para continuar. Eles começaram a cobrar da escola outra postura, maior envolvimento dos professores. Os alunos se mobilizaram para fazer eventos de História da África, de fortalecimento da identidade negra. O protagonismo é negro, mas quem quiser pode participar dos debates. O NEAB serve também como um polo de amparo. Alunos nos procuraram para fazer denúncias de racismo por parte dos próprios professores e pedir auxílio. Qual a importância da lei 10.639 na formação do aluno e cidadão brasileiro? A Lei 10.639 é uma ação afirmativa, que representa a reivindicação de séculos de resistência e de uma demanda do movimento negro. A gente aprende na escola a normatizar a violência sofrida pela população negra. É necessário descortinar algumas coisas para começar a combater o racismo, pautado na inferioridade do povo preto, desde criança. O nosso conhecimento dentro das escolas precisa valorizar as crianças negras, que vão se sentir mais pertencentes a esse lugar que hoje é hostil para elas. Quais os maiores desafios da implantação da Lei 10.639? O primeiro é a resistência branca de manutenção de privilegio. Não enxergar o racismo é um privilégio. O outro lado é a filiação simbólica com o que é europeu, seja branco ou não. É necessário abrir uma brecha para falar da África que não é a África dominada. Em 2009, um responsável entrou na Justiça contra o uso de um livro sobre o Rei Xangô, porque o filho não deveria ver “coisas de macumba”. Recentemente, uma professora se negou a usar literatura afro-brasileira porque é do “demônio”.

“A escola tem um partido: branco, eurocêntrico e racista.” Como vê a tentativa do Escola Sem Partido, de excluir conteúdos relacionados às religiões de matriz africana da Base Nacional Comum Curricular? Falar que estamos impondo uma ideologia é não entender que tudo que estudamos é ideologia. Nós fomos educados para sermos racistas acreditando que é normal uma faculdade de medicina, em 100 anos, não formar negros em plena Bahia. Estudamos uma história cheia de religião: as Cruzadas, a junção do Estado e Igreja. A primeira linha da nossa Constituição é católica. A gente teve sempre uma ideologia judaicocristã. Da mesma forma que trazemos a história de Zeus, ... Porque não falar em Oxalá? A escola tem um partido: branco, eurocêntrico e racista. De que maneira a Reforma do Ensino Médio interfere no ensino da temática africana? Ao definir o mínimo que se tem que ter em comum para todo o país, os estudos de África são delegados à transversalidade, são optativos. A essência da História não passa pela África. Houve muita discussão e o que foi colocado nessa base curricular comum não representa todos os debates que aconteceram. É possível integrar os ensinos africanos ao modelo voltado para o vestibular? A mesma pergunta que eu tenho eurocêntrica no vestibular, eu posso ter uma pergunta afrocêntrica. A visão eurocêntrica é muito individualista, meritocrata. Quando a gente começa a educar para outra visão mais ampla, de respeito entre os seres, há a perda de poderes instituídos e isso gera uma briga que começa no currículo. A etnomatemática conta que muitas relações geométricas são africanas, de muito antes da “descoberta” da escrita que conhecemos. Como não temos isso em matemática para dizer ao nosso aluno negro que ele pode ser engenheiro? Quando começamos a valorizar conquistas de negros para além de “samba, feijoada, capoeira” começamos a ter um campo de disputa muito tenso.

Agradecemos o apoio do Projeto de Extensão

na impressão deste número do Casarão

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O CASARÃO - OUTUBRO/NOVEMBRO O CASARÃO - JULHO AGOSTO 2017 - 2017


Por Marry Ferreira e Andressa Amendola

Em 2017, apenas 104 jovens com deficiência ingressaram na UFF no primeiro semestre. Se a mobilidade ainda restringe o direito de ir e vir, imagine as dificuldades de quem precisa de acessibilidade em sala de aula. Clara Sasse, 19, é caloura de Ciências Sociais e deficiente auditiva. Quando ingressou na universidade, a maior barreira era o desconhecimento de professores e funcionários sobre a cultura surda, principalmente entre o surdo oralizado e o que usa libras. “Professores que não possuem boa dicção e falam muito sem escrever dificultam o aprendizado. O fato de alguns deles não entenderem mostra que a universidade não é preparada para nós”. Vanessa Rodrigues, 33, está na segunda graduação na UFF e também enfrenta problemas no curso de Ciências Contábeis. “Larguei o curso de Química porque o excesso de material em inglês dificultava minha comunicação como deficiente auditiva. Tive um professor que usava um bigode muito grande e era impossível fazer leitura labial. A coordenação disse que resolveria o problema mas, na aula seguinte, ele estava sem bigode, fazendo piada e muito irritado. Expliquei que só precisava que ele cortasse

libras o mais cedo possível e crescerem um pouco ou me transferisse para outra bilingues ou multilingues”. Hoje, apenas turma e ele entendeu”. os cursos de licenciatura são regulados A psicóloga Luana Vieira explica que (Lei 10.463/2002) para ofertar a disciplina o ideal é que o aluno cego possa contar de Libras no currículo. com mídias que favoreçam seu estudo, Lucilia Machado, Mestre em Diversiassim como o surdo tem que contar dade e Inclusão pelo Curso de Mestrado com um intérprete. Ambos devem ter Profissional em Diversidade e Inclusão/ autonomia para decidir quando usá-los. UFF e Coordenadora do O jovem deve encontrar Sensibiliza UFF, divisão um ambiente inclusivo de acessibilidade e ine adaptado às suas neclusão, criada em 2009, cessidades para não se é tetraplégica há 18 sentir isolado e desistir. anos e enfrenta muitos A Instrução Normatidesafios. “Não conseva nº 128/2016, da Agênguimos fazer metade cia Nacional de Cinema, do que é proposto por regula a acessibilidade falta de mão de obra, divisual e auditiva nos nheiro e de uma política segmentos cinematoLucília Machado voltada para a inclusão”. gráficos, assim como Formada em Jornalismo pela UFF, Lua eliminação de barreiras que limitem cilia trabalhava na instituição quando soou impeçam a participação social. Mas, freu um acidente de carro que a deixou a realidade é bem diferente. Luciane paraplégica. A coordenadora mudou Rangel é surda, professora de Libras na diversas vezes até encontrar um local UFRRJ, mestre em diversidade e inclusão acessível a sua permanência, percebenpela UFF e não tem acesso facilitado ao do na pele a necessidade de lutar pela teatro. “Me sinto excluída. Gostaria que inclusão. “Muitos não se comunicam por houvesse o ensino de libras em todas as medo de sofrer preconceito e nós preescolas e em todos níveis da educação. cisamos dessa informação para correr As crianças ouvintes poderiam aprender

“É preciso mais do que nunca que a universidade assuma a inclusão como uma diretriz básica”

atrás de políticas de acessibilidade”. Para atender o Art.42 do Estatudo do Portador de Deficiência, que exige os meios e recursos necessários para atendimento especializado a alunos com deficiência no ensino superior, ingressantes encontram um formulário no IdUFF onde podem relatar suas necessidades. No ano passado, a UFF recebeu 30 alunos com deficiência, disponibilizou 30 bolsas no programa Bolsa-deficiência e três vagas adaptadas no alojamento. Andrea Farias, graduada em pedagogia pela UFF, tem nanismo e contou com a ajuda do Sensibiliza para permanecer na Universidade. “Por eu ter deficiência física e baixa estatura, coisas simples do cotidiano se tornavam difíceis, como sentar-se na carteira escolar e ir ao toalete”. A estudante diz que a Universidade precisa minimizar burocracias para comprar equipamentos adaptados. Apesar de todos os avanços, muito ainda precisa ser feito. Com a aprovação de cotas para pessoas com deficiência (Lei 13.409/2016) no ENEM 2018, aumenta o ingresso e também a preocupação com a acessibilidade. “É preciso que a universidade assuma a inclusão como uma diretriz básica”, diz Lucília.

6 e 7 de dezembro Auditório Interartes O CASARÃO CASARÃO- OUTUBRO/NOVEMBRO - JULHO AGOSTO - 2017 O 2017

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Identidade ou fraude? Entrevistas de aferição da autodeclaração de cor/etnia provoca questionamentos

Por Lizandra Machado

As políticas de ações afirmativas, ou cotas, trouxeram a identidade racial para o debate. Como se define quem é preto, pardo ou indígena? A Universidade Federal Fluminense (UFF) é a primeira, entre as públicas federais, a adotar a “aferição da autodeclaração de cor/etnia” como parte do ingresso às vagas destinadas a pretos, pardos ou indígenas no Sistema de Seleção Unificada (Sisu). As modalidades L2 (etnia, instituição pública e renda) e L6 (etnia e instituição pública) representam 891 vagas, ou seja, 57,66% das cotas na UFF. Nas primeiras três chamadas, em Niterói, 198 candidatos foram convocados para a entrevista de verificação de cor/etnia e, desses, 113 candidatos foram considerados “não aptos”, ou seja, 57%. Ao todo, 77 recorreram da decisão e 37 tiveram o recurso deferido. Com isso, o número de barrados diminuiu para 76, o que representa 10,88% dos 698 candidatos que realizaram a pré-matrícula. Na sua quinta tentativa para ingressar na UFF, todas elas pela modalidade L6, a estudante X foi aprovada no curso de Serviço Social. No caso daqueles que concorrem às cotas por etnia, é preciso preencher uma autodeclaração e anexar uma foto, através da qual a comissão designada pela Pró-Reitoria de Graduação da UFF (PROGRAD) define quem está apto ou quem fará entrevista. “Fiquei com medo de não passar, de não me considerarem parda. Quando cheguei foi tudo muito tranquilo, entreguei minha documentação pessoal, uma funcionária observou minha foto e assinou um papel dizendo que estava aprovada., relata X. No entanto, outros candidatos tiveram que ser avaliados pela comissão de aferição. É o caso da estudante Y, que passou na chamada regular para Engenharia de Produção. Y não sabia das entrevistas de aferição de cor/etnia e foi avisada por uma amiga que seu nome constava na listagem de convocação, que saiu no dia 4

17 de março, quando ela já tinha feito a inscrição em disciplinas. “Fui assistir as aulas que começaram no dia 20, mas fiquei a semana toda nervosa. A autodeclaração tem foto colorida e eles podem observar o fenótipo. Me declarei parda e a foto era super nítida. Um ex-colega de escola se declarou pardo também e teve a autodeclaração aceita e a cor de pele é bem mais clara que a minha”, argumenta Y. No dia da entrevista, Y descreve que primeiro teve que responder três questões: por que se declarava negra, parda ou indígena; se já tinha sofrido algum tipo de preconceito; e se tinha algo a acrescentar. Em seguida, ela foi direcionada para uma sala em que estava a comissão. “Acho que é necessária essa entrevista. No entanto, ela deve ser feita antes de as aulas começarem”, argumenta Y, que foi considera apta sem precisar entrar com recurso. Quem também teve que ser entrevistado é o estudante Z, da cidade de Piracicaba, interior de São Paulo, e aprovado no curso de Cinema pela ação afirmativa L2. Ele conta que chegou tranquilo à reitoria, onde foram realizadas as entrevistas, por realmente acreditar ser pardo. “Entrei numa sala em que estavam cinco pessoas, quatro delas eram negras/pardas e uma branca. Eles simplesmente me perguntaram se tinha mais alguma coisa a acrescentar além do que havia escrito na folha do questionário. Eu disse ‘não, tudo que eu queria dizer eu já escrevi’. Então disseram ‘ok, pode ir’. A ‘entrevista’ durou menos que 1 minuto”, explica. No dia 24 de março, data em que saiu o resultado da aferição das três primeiraschamadas dos cursos de Niterói, Z abriu a lista e se surpreendeu com o fato de ter sido considerado “não apto”, pelos avaliadores. No dia 27 de março, Z foi até a reitoria da UFF e descobriu que não era o único naquela situação. Decidiu, então,

entrar com recurso. “Argumentei com dados do IBGE e disse que não concordava com o resultado de maneira alguma, já que eu simplesmente SOU pardo”. Ele teve seu pedido deferido, mas desistiu da UFF, depois de descobrir que foi aprovado na quarta chamada da Universidade Federal de São Carlos (SP). Em nota publicada no dia 24 de março de 2017, a PROGRAD divulgou que os procedimentos executados “foram aprovados pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão - CEPEx-UFF e atenderam ao disposto em Editais, Comunicados Oficiais e documentos internos divulgados na página do SiSU 2017-1 na UFF”. O Coletivo de Estudantes Negrxs da UFF (Cenuff ) afirmou em uma publicação numa rede social no dia 26 de março que a “medida é resultado da organização de estudantes e coletivos negros universitários que, desde abril de 2016, estão denunciando as fraudes e solicitando que a Universidade Federal Fluminense tomasse providências em relação a isso”. O Coletivo explica que este sistema é resultado de um grupo de trabalho que contou com representação de estudantes, professores, técnicos administrativos e da PROGRAD, que buscaram mecanismos que impedissem fraudes nas autodeclarações de cor/etnia. “As ações afirmativas em são conquistas sociais que precisam ser defendidas e aplicadas da melhor forma possível para que alcancem o objetivo de criar um ambiente universitário mais diverso e possibilitar que grupos historicamente marginalizados tenham acesso a seus direitos”, conclui a postagem. Professora do curso de Enfermagem na UFF e criadora do Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra, Isabel Cruz afirma que a autodeclaração de raça/cor já faz parte do repertório de muitas ações e programas sociais cotidianos . Ela ainda afirma que enquanto técnica de coleta

de dados para pesquisa, tem sido exaustivamente testada. Enquanto estratégia para ingresso na Universidade via cotas, ela explica que a metodologia esta associada à entrevista para garantir o direito do candidato e evitar um viés racial. “Não devemos usar do ‘privilégio do cargo’ para justificar a negação de princípios e valores universais, como a presunção de inocência, a autodefinição e o direito ao documento público, entre outros. Neste sentido, foi garantido ao(à) candidato(a) a apresentação de um documento público (triangulação da autodeclaração) para desta forma ajudar no controle de um eventual ‘viés racial’ por parte da banca de aferição”, explica a professora. Questionada se o método de aferição por meio de entrevistas é válido, Isabel explica que cabe à universidade apresentar uma resposta com base em evidência que identifique estratégias, complementar ou suplementar à autodeclaração, para acesso por cotas étnico-raciais (ou no futuro bem próximo, por gênero, por exemplo). “O que não falta são pesquisadores competentes para isso”, explica. A UFF divulgou o resultado final dos recursos de todas as chamadas dos cursos de Niterói e dos polos no interior no dia 14 de junho e atualizou a lista no dia 20 do mesmo mês. Ao todo, 1.432 candidatos das modalidades L2 e L6 dos cursos de Niterói e polos do interior fizeram a pré-matrícula. Desses, 325 candidatos foram convocados para a entrevista de aferição de cor/etnia. Desse número, 200 foram considerados não aptos pela comissão e 86 recorreram, sendo que 48 tiveram o recurso indeferido. Com isso, o número de estudantes que tiveram a matrícula cancelada diminuiu para 162, o que representa 11,31% dos pré-matriculados. Procurada, a UFF não respondeu aos nossos questionamentos. O CASARÃO - JULHO AGOSTO - 2017 2017 O CASARÃO - OUTUBRO/NOVEMBRO


Realizada pelo Ibope e encomendada pelo Instituo Pró-Livro, em 2016, a pesquisa Retratos na Leitura do Brasil aponta dados desanimadores para os escritores, editores e amantes da Literatura: a média de livros lidos anualmente é de 4,96 por ano. Desses, 0,94 são indicados pela escola e 2,88 lidos por vontade própria. Nesse cenário, fica cada vez mais criterioso o trabalho de editoras. Como apostar em novos talentos sem a certeza das vendas? Por outro lado, o que leva autores iniciantes a ainda tentarem fazer da escrita o seu oficio? Como percorrer um caminho tão difícil? Nascido em Nova Iguaçu e sem influências diretas na literatura, o escritor Thiago Kuerques procurou caminhos

O CASARÃO CASARÃO- -OUTUBRO/NOVEMBRO JULHO AGOSTO - 2017 O 2017

Thiago Kuerques no lançamento de seu livro

Foto: Rafaela Mascarenhas

Profissão escritor

alternativos para ser lido. Postava seus textos em um blog, até que conheceu a autopublicação (o autor custeia a impressão de seus próprios livros). Foi assim que Thiago publicou suas primeiras obras, O Cara Que Não Publicava Livros e Ensaio dos Poemas Pelados. Em 2017 lança Território, livro de contos que tem a Baixada Fluminense como cenário. A empreitada não foi nada fácil. “Teria que desembolsar mais de sete mil reais para que a publicação saísse. Amigos me convenceram a procurar alguma solução ao invés de já desistir. Vendi o livro antes mesmo de assinar o contrato”, conta Thiago. O livro Território foi publicado no Brasil, em Portugal e em e-book na Itália, Espanha e Holanda.

Por Jéssica Simões

A tecnologia a serviço da disseminação também foi o caminho escolhido pela autora Raissa Tavares, que começou a usar o Wattpad, uma ferramenta online para que autores compartilhem suas histórias, aos 13 anos. Um de seus livros, Os Doze Signos de Valentina, se destacou no site e foi publicado pela Editora Record. “Eu fico até um pouco irritada quando alguém diz que eu “dei muita sorte”, porque passar 11 anos escrevendo online, juntando leitores, tentando chamar a atenção das editoras, passando dias de semana, finais de semana e feriados escrevendo não é fácil e não é “dar sorte”, é se dedicar ao que faz”, confidencia Raissa, que enviou seu original vinte sete vezes para editoras. A literatura e a periferia Por falta de incentivo, moradores afastados dos grandes centros tem pouco contato com o mundo dos livros. Sem gosto pela leitura até os 24 anos, Jessé Andarilho, como é conhecido, começou a escrever pelo celular no trem, na ida para o trabalho. Ele conta que observar as conversas alheias fez dele um “fofoqueiro literário” e essa foi a matéria-prima de suas histórias. Seu livro, Fiel, publicado pela Editora Objetiva, conta a história de um menino envolvido no tráfico carioca. Em relação à propagação da literatura nas periferias, Jessé é enfático: “Livro é bom, mas não tem que ser apresentado como algo que vai mudar a vida da

pessoa que vai ler. Tem que ser apresentado como uma parada maneira, tipo um filme, um CD ou qualquer outra coisa que as pessoas consomem para passar o tempo e para ter prazer”. A falta de incentivo foi a força motriz para o surgimento da Folha Cultural Pataxó. Fundada em 1998, pelo professor, militante e poeta Fabiano Soares, e localizada em Belford Roxo, a editora tem o objetivo de incentivar a produção literária na Baixada , abrangendo todos os tipos de público. Feita de modo artesanal, torna a publicação literária mais acessível. Para Fabiano, a Pataxó é mais que uma editora. “Não se trata apenas de uma simples editora, mas de um movimento que problematiza, inclusive as grandes editoras. Ajudamos a canalizar uma produção literária já existente sem visar o lucro. As relações financeiras tem como objetivo fortalecer ainda mais as publicações, reproduzindo zines, repondo equipamentos, como máquinas de impressão, estiletes, grampeadores, papéis e outros materiais afins”, esclarece. Com o avanço dos recursos tecnologicos, sobretudo a Internet, publicar parece não ser um sonho mais tão distante. Se alguns acreditam que a literatura se encontra em estado de alerta, outros a fazem viva, produzindo e reproduzindo, de diferentes modos, mas com um objetivo em comum: não deixar que se perca a arte de contar histórias.

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Reportagem de Marcella Ramos

Em 2016, o projeto Migrantes Desaparecidos da Organização Internacional pela Migração calculou cerca de 7,5 mil mortes de migrantes. Dessas, mais de 5 mil teriam sido durante a travessia no mar Mediterrâneo. Apenas nos primeiros quatro meses de 2017 foram mil mortes na rota. A organização avalia que entre o período de 2014 até maio de 2017 cerca de 21 mil pessoas desapareceram ou morreram. Desses, mais de 13 mil no Mediterrâneo. A crise migratória dos últimos anos é a mais grave desde a 2ª Guerra Mundial. A fome, os conflitos e a miséria são alguns dos motivos. Os principais países de origem dos migrantes são da África e Oriente Médio. Desde 2010, houve revoluções na Tunísia e no Egito, uma guerra civil na Líbia e na Síria e também ocorreram protestos na Argé6

lia, Bahrein, Djibuti, Iraque, Jordânia, Omâ, Iêmen, Kuwat, Líbano, Mauritânia, Marrocos, Arábia Saudita, Sudão e Saara Ocidental. Com isso, governos de décadas caíram, outros surgiram e o clima de instabilidade se instaurou. A guerra na Síria se mantém como um dos mais complexos e mortíferos conflitos desse século. Nesse contexto, é comum que aumente o número de evasão. Até 2016, a rota mais utilizada para a chegada à Europa era o leste do Mediterrâneo, onde os migrantes saiam da Turquia e entravam pela Grécia. Entre 1 de janeiro e 3 de maio de 2016, cerca de 155 mil pessoas entraram no continente euro-

peu por meio dessa rota. Desses, 5,3 mil morreram. A Ilha de Lesbos, na Grécia, era o prin­cipal ponto de recepção de refugiados. Em 2015, o jornalista Victor Ferreira, do programa Profissão Repórter, da Rede Globo, visitou a ilha paraacompanhar a jornada dos migrantes recém-chegados. Ele contou, durante o “Conversas Piauí e Pública”, em abril de2017, que botes com capacidade para 20 pessoas chegavam diariamente com mais de 40 viajantes. “Aquelas pessoas não recebiam nenhuma orientação. Entravam nos botes e o traficante de pessoas falava para eles seguirem em frente. Depois que em-

“A crise migratória dos últimos anos é a mais grave desde a Segunda Guerra Mundial”

purrava o bote para o mar, ele saltava e voltava para terra. Assim, eles ficavam horas em um bote superlotado esperando chegar, em algum momento, na Grécia”. Em março de 2016 a União Européia firmou acordo com a Turquia para a devolução dos refugiados que tentassem cruzar a fronteira por este caminho. Mesmo que nos primeiros meses a medida tenha tido problemas para se instaurar - na primeira semana mais de mil pessoas chegaram em solo grego sem grandes problemas -, um ano depois, a mudança: apenas 376 pessoas usaram a rota e 37 morreram no caminho. Com isso, os refugiados passaram a usar a rota central do Mediterrâneo, saindo da Líbia e entrando pela Itália. Nos primeiros cinco meses desse ano, 37,2mil pessoas cruzaram o centro do O CASARÃO - JULHO AGOSTO - 2017 O CASARÃO - OUTUBRO/NOVEMBRO 2017


Mediterrâneo e cerca de mil morreram. Em 2014, aconteceu a Mare Nostrum, operação humanitária da marinha italiana que resgatou mais de 166 mil pessoas durante o ano. Ela foi substituída pela Triton: de menor porte, com equipe reduzida e poucos aparatos como helicópteros e aviões. Dessa forma, a nova operação se desenvolve apenas em localidades próximas à terra firme, ignorando o alto mar, onde um grande número de botes naufragam. A troca das operações gerou polêmica pelo suposto descaso com a vida dos refugiados, que não deixariam de cruzar a fronteira. Agora, a busca e o resgate das pessoas depende novamente das guardas-costeiras e de navios comerciais. Com o elevado número de mortes é difícil entender por que as pessoas viajam por essa rota. É importante notar que a Europa, que oferece melhores condições de vida, se converteu em uma fortaleza quase impenetrável. Muitas vezes, o Mediterrâneo é a única opção para chegar ao continente. Além disso, a Itália, comparada a outros países europeus, apresenta menor dificuldade de acesso. Em março de 2017, o Conselho da Europa, defensor dos direitos humanos no continente, denunciou fragilidades no sistema italiano de repatriações voluntárias ou forçadas de imigrantes clandestinos. Segundo o órgão, isso poderia encorajar um fluxo cada vez maior de imigrantes irregulares. Ressaltaram também que a Itália não consegue dar proteção legal aos menores de idade que chegam desacompanhados em seu território. O posicionamento foi fruto de uma visita ao país feita pelo comissário especial para migrações, Tomas Bocek, em outubro de 2016. Em seguida, durante um discurso no Senado, o primeiro-ministro italiano, Paolo Gentiloni, até então discreto e avesso a polêmicas, rebateu as afirmações. Ele disse que a crise migratória não se resolve com mágica: “O objetivo é substituir a imigração clandestina por fluxos e canais mais aceitáveis. Com isso, espero um passo a mais, em termos de recursos, para ajudar a Itália”, declarou. Ele também disse que não aceitará “lições da União Europeia” “Nossas atividades estão concentradas em uma série de medidas, da imigração à administração pública, do processo penal à segurança urbana. Desafio qualquer um a indicar outro governo na Europa empenhado em um complexo de reformas como o da ItáO CASARÃO- -OUTUBRO/NOVEMBRO JULHO AGOSTO - 2017 O CASARÃO 2017

vado e que o terrorismo islâmico havia lia. Não somos os primeiros em Malta para discutir a crichegado ao país. da classe, mas não aceitase migratória e estabelemos lições”, completou, cer medidas para conter Sobre a ida para a Alemanha, Vicenfático. o fluxo de pessoas pelo tor lembra de uma situação em que se Mediterrâneo. Entre as envolveu: “Na viagem da reportagem, A maioria dos refudez medidas do acordo, quando a gente já estava em solo eugiados que chegam à está a decisão de aumenropeu eu vi um grupo conversando e Europa têm como objetar o apoio fornecido às já tinha percebido que um deles falava tivo chegar à Alemanha. autoridades e à guarda cosinglês. Eu tentei ser legal, chegar junto. Segundo Victor, não eles enteira da Líbia para deter barcos de Comecei a falar “e aí, aliviado que você tendem bem o porquê: “Quando eu migrantes em seu litoral e erguer camestá na Europa?”. Nisso eu fui meio infeperguntava para os refugiados o porpos de refugiados no país. Além disso, liz. É claro que existe o alívio de ter feito quê de estarem indo para a Alemanha, a UE decidiu apoiar processos de repaa travessia e estar vivo. Quem morre, ninguém parecia saber direito o que iria triação voluntária para refugiados que morre nesse momento, não morre já encontrar. Pra mim, isso era bastante pretendem retornar aos seus países de estando na europa. Ele já tinha passaassustador. Você vê crianças e famílias origem. Sobre o assunto, a chanceler do por uma provação muito grande. inteiras, levando todas suas vidas em alemã, Angela Merkel, declarou durante Só que agora tinha outra: a sensação uma mochila e indo para a Alemanha o encontro: “A situação dos migrantes é de não-pertencimento. Esse rapaz com sem garantia”. dramática na Líbia. Precisamos de uma quem eu falei era um afegão jovem e Mesmo recebendo todos os sírios, saida política para estabilidade”. ele respondeu “é, a minha família está iraquianos e afegãos, o asilo alemão lá e eu não sou daqui, eu nem sei se eu Durante o ano de 2016 e 2015, não é imediato: o processo para aceigostaria de estar aqui. Eu vim porque a Merkel sofreu críticas dentro da Alematar pessoas como refugiadas pode lefamília toda juntou dinheiro e só dava nha por conta de seu posicionamenvar um ano ou mais. Victor acrescenta para bancar uma pessoa. Pediram para to diante das migrações. Opositores outra situação: a ida para a Alemanhã eu vir porque eu era mais jovem.”. Ele se afi rmavam que os refugiados estavam é cara, apenas refugiados com dinheiro sentia um pouco covarde, mas a família sobrecarregando o sistema, que a vioconseguem fazê-la. Somente a travesinsistiu demais”, contou. lência de extrema direita havia se agrasia da Turquia para a Grécia custava cerca de mil euros por pessoa em dinheiro. “Assim como a maioria dos sírios ou refugiados em geral que iam pra Europa tinham dinheiro, tinham também muita qualificação. Eu encontrei engenheiros, médicos, arquitetos… Gente que tinha um emprego, trabalhava, tinha uma vida absolutamente normal em seu país e teve que largar tudo de uma hora para a outra”. A política de portas abertas da Alemanha não se dá por uma questão somente humanitária. A taxa de natalidade está baixa e falta mão de obra. A intenção da alemanha é receber principalmente famílias com filhos pequenos para que eles possam crescer com educação alemã e passar a ocupar esses cargos. Nos últimos meses, Por que essas viagens têm que ser clandestinas? o país começou a recusar os refugiados que não estão dentro dos O maior problema é a dificuldade de conseguir visto: mesmo que quase todos os governos europeus tenham assipadrões previstos — casais jovens nado acordos internacionais sobre refugiados após a Segunda Guerra Mundial, atualmente eles colocam obstáculos. Nos últimos anos, apenas 40 mil vagas de reassentamento para refugiados sírios foram oferecidos, 30 mil só na com filhos pequenos. Alemanha. Além disso, outros cinco países vizinhos da Síria acolheram 3,9 milhões de refugiados. A Alemanha recebeu cerca de Por que há tantos naufrágios? 800 mil refugiados somente em 2015 — quatro vezes mais que o As causas do elevado número de afogamentos no Mediterrâneo são de infra-estrutura. Essas travessias são feitas total registrado no ano anterior — em botes para, no máximo, 20 pessoas. Além disso, quem comanda essas operações são traficantes de pessoas. ainda é o principal destino de mi- Quando essas embarcações viram ou apresentam problemas, nem sempre há ajuda por perto. Agora, as operações lhares de imigrantes que chegam de resgate são controladas principalmente pela guarda costeira, que controla áreas próximas à terra firme. ao continente. Por que viajam por essa rota mesmo sabendo que é perigosa? Em fevereiro de 2017, reprePara a maioria dos refugiados, que só querem fugir dos conflitos, a travessia é o menor dos problemas. Além disso, sentantes dos 28 países membros da União Europeia se reuniram alguns imigrantes que sobreviveram à travessia relataram que uma vez com os traficantes responsáveis pela via-

As principais rotas de migração e a central do Mediterrâneo

gem na Líbia, é impossível voltar atrás. Mesmo que você tente desistir, armados e ameaçadores, os traficantes não dão outra opção senão entrar no bote. 7


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culos, que têm sido eurocêntricos e silenciam e distorcem a História e Cultura Africana e Afro-Brasileira”, ela explica. Já a pedagoga do Colégio Pedro II Alessandra Pio destaca que a abordagem da temática é importante para a valorização da criança negra na escola, promovendo maior autoestima e a sensação de pertencimento. “A gente aprende na escola a normatizar a violência sofrida pela população negra. É necessário descortinar algumas coisas para começar a combater o racismo Como resultado de anos de resistêndesde a infância”, criticou. cia e de luta dos movimentos sociais, foi aprovada em 2003 a Lei 10.639, que Enquanto isso, na Alerj…. incorpora às Diretrizes Educacionais a O problema na implementação da obrigatoriedade do ensino de História lei também vem chamando à atenção e Cultura Afro-Brasileira em escolas púdo legislativo. Na Assembleia do Rio blicas e particulares, além de instituir o de Janeiro (Alerj), o deputado Flávio Dia da Consciência Negra, comemoraSerafini (PSol) promoveu, por meio da do em 20 de novembro. Uma série de comissão de Educação, uma audiência atualizações posteriores adicionou à lei para debater o tema. Um dos encamia obrigatoriedade do ensino de história nhamentos feitos pelo parlamentar foi e cultura africana e ino pedido de realiza“O currículo dígena. ção, por meio da SeQuatorze anos de- é uma disputa política, cretaria de Educação, pois, a aplicação da lei de uma avaliação não é apenas um em sala de aula ainda étnico-racial e da inenfrenta barreiras, espaço de prescrição clusão da temática como a falta de incenno Plano Estadual de de conteúdos” tivos e subsídios do Educação. “Essa avapoder público, lacunas liação é importante na formação docente, desinformação para ver o desempenho da população e preconceitos raciais e culturais. De negra, visando desenvolver políticas acordo com uma enquete feita pela públicas que corrijam possíveis distorequipe de reportagem com universições”, declarou durante o evento, apontários da região metropolitana do Rio, tando em seguida que a atualização do 49,8% não tiveram aulas e debates volPlano tem sido discutida nacional e retados à história, cultura e influência da gionalmente. África durante o ensino básico e, dos Falhas na formação docente que tiveram, 77% acreditam ter sido inUma das maiores dificuldades que suficiente. a inserção da temática afro enfrenta nas escolas é o desconhecimento e o Para a professora de história Kátia despreparo dos docentes para trabaRégis, da Universidade Federal do Malhar o conteúdo. Segundo Kátia Régis, ranhão (UFMA), ao estabelecer o recoos cursos de Pedagogia e Licenciatura nhecimento das raízes africanas na fordemonstram resistência ao restringir o mação da sociedade nacional, ao lado tema a “uma ou outra” disciplina de Hisdas indígenas, asiáticas e europeias, a tória da África e/ou Educação das Relalei contribui para o questionamento das ções Étnico-Raciais. relações étnico-raciais no país. “Esta deNo curso de Licenciatura de História sigualdade se manifesta nas instituições da Universidade Federal Fluminense educacionais por meio dos seus curríiante de todo o mundo, o Brasil é notado por sua diversidade cultural e étnica. Em séculos de história, o país foi construído por diferentes povos, nativos e estrangeiros, que constituem o que hoje chamamos, na prática, de Brasil. O protagonismo dessa trajetória rica e diversa, no entanto, se reserva à figura branca europeia, delegando aos negros e índios apenas uma ponta nos livros de história, ainda sob uma ótica eurocêntrica.

Carmem Angel Leon Lucius Tiago de Assunção

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A Lei 10.639, de 2003, define a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afrobrasileiras nas escolas públicas e privadas de todo o país. Mas 14 anos depois, sua aplicação ainda encontra desafios sociais e acadêmicos.

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(UFF), referência nacional na área, há nhão (UFMA), em São Luís, Régis é resatualmente apenas uma disciplina obriponsável por coordenar o curso de Ligatória sobre a história do continente e cenciatura Interdisciplinar em Estudos três optativas voltadas à cultura da reAfricanos e Afro-brasileiros, criado em gião. Para o coordenador do curso, Ale2015 com o objetivo de formar educaxandre Santos, o pouco espaço para o dores e qualificar gestores para formucontinente africano no currículo é reflelarem políticas educacionais voltadas à xo de uma tradição temática. Ela expli“Da mesma forma eurocêntrica. cou que não há a intenção de substituir “O currículo é que trazemos o foco eurocêntrico uma disputa polítios mitos de Zeus, pelo africano, mas ca, não é apenas um a efetiva espaço de prescride Hades, Isis e Atenas, possibilitar integração da diverção de conteúdos”, sidade étnico-racial por quê não podemos ele explica, compledo Brasil na formatando que o conhefalar em Oxum, ção inicial dos(as) cimento da cultura professores(as). Ogum e Oxalá?” e história afro é uma forma de dar ao nePreconceito gro um lugar de fala que lhe é negado O ensino da história do povo nedesde a Colonização, contribuindo com gro também enfrenta barreiras sociais. a criação e reforço de sua identidade. Alessandra lembrou episódios de into“Não se pode mais ignorar a dimensão lerância em seu colégio: uma professoque o continente africano teve em nosra se recusou a utilizar um livro didátisa formação, nossa própria experiência co de literatura afro-brasileira e a o pai histórica”. de um aluno abriu uma ação judicial Kátia Régis, no entanto, destaca que contra o uso de um livro paradidático abordagens pontuais não são suficiensobre o Rei Xangô. “Da mesma forma tes para eliminar atitudes preconceique trazemos os mitos de Zeus, de Hatuosas e racistas na universidade. “Há des, Isis e Atenas, por quê não podea necessidade de ações mais incisivas mos falar em Oxum, Ogum, Oxalá?”, ela nas atividades de ensino, pesquisa e exquestionou. tensão, requerendo novas perspectivas Os preconceitos, segundo ela, se epistemológicas para que a temática manifestam por uma resistência branca adquira a relevância exigida na legislade manutenção do privilégio associada ção”, criticou. à filiação simbólica com valores euroIniciativas peus, considerados superiores. “Não ver o racismo é um privilégio. Pensar sobre Na Universidade Federal do Mara-

essas coisas é muito doído e é um ato de resistência, pois não há problematização”, ela criticou. Escola Sem Partido Em destaque nos últimos anos, o movimento Escola Sem Partido tem adotado um posicionamento contrário ao ensino da temática africana nas escolas ao alegar a perpetuação de uma doutrinação ideológica e política em sala de aula. A pedagoga Alessandra Pio, contudo, defende que o conteúdo e a ótica trabalhados hoje em aula são carregados de ideologia fundamentada pela cultura judaico-cristã. “A gente fala das Cruzadas, da Igreja Católica, da junção do Estado e Igreja. A primeira linha da nossa Constituição é católica. Isso é um partido: é um partido branco, eurocêntrico e racista que a escola tem”, disse. Outra crítica feita pelo movimento, que é contrário à lei, é a redução do tempo de estudo de “assuntos e disciplinas muito mais relevantes para os alunos”. Alessandra discordou, lembrando que conhecimentos africanos podem e devem ser trabalhados em disciplinas que não estão tradicionalmente aliadas ao tema, como a matemática através de estudos da etnomatemática (Para mais informações, escaneie o código QR ao final da reportagem). De acordo com os estudantes que participaram da enquete realizada, 90,2% tiveram a África associada à disciplina de história, seguida por Portu-

guês/Literatura (56,1%) e Artes (31,7%). Pio anda acredita ser possível integrar ao vestibular os estudos de história e cultura afro-brasileira e africana, mas que isso significaria pôr em destaque outra visão de mundo contrária aos interesses hegemônicos ao fugir da visão eurocêntrica, que ela definiu como individualista e meritocrática. “O Novo Ensino Médio” A lei 10.639 também tem chamado atenção em meio à discussão da Reforma do Ensino Médio, aprovada pelo Governo Federal no início deste ano, que estabelece a segmentação de disciplinas de acordo com áreas do conhecimento e a redução de matérias do ciclo comum obrigatório a todos os estudantes. Para Alessandra, essas mudanças delegam os estudos de temas africanos à transversalidade – se tornam apenas optativos -, e não representam as discussões que aconteceram acerca da Reforma.

SAIBA MAIS SOBRE A ETNOMATEMÁTICA

Infográfico: Carmem Angel

Fonte: Pesquisa realizada pela equipe de reportagem com 155 alunos de diferentes universidades do RJ

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Por Gabriel Sorrentino

As religiões de matrizes-africanas são instrumentos fundamentais para a resistência da cultura negra Tribobó, bairro de São Gonçalo. O sol queimava forte quando chegamos ao portão de ferro prateado. Do lado de fora era possível enxergar o coqueiro de aproximadamente seis metros de altura e, acima da entrada, os três vasos que provavelmente continham elementos e firmezas, mostrando a quem passasse por aquela rua de terra que ali era um terreiro de candomblé. Isso para quem viesse de longe pois, na região, poucos desconhecem o tradicional Ilê Axé d’Ogum Já, fundado há mais de 50 anos por Pai Kayambe, falecido em outubro do ano passado. Sem muita demora, o portão se abre e a filha de santo do barracão, Ingrid d’Yansã, com suas tranças afro presas em um ojá branco, turbante usado nas religiões de origem africana, e se prontificou a nos levar até o barracão. Logo na entrada, nos deparamos com um gigantesco igbá - recipiente que contém os objetos de culto a um orixá -, com diversos tipos de ferramentas e designado a Ogum, divindade dona do terreiro e, também, das estradas e caminhos. É esse orixá que, segundo algumas religiões, protege as portas de entrada das casas e templos. Ingrid foi a primeira filha a realizar os rituais de iniciação ao candomblé na nova gestão do terreiro após o falecimento de Pai Kayambe. Ela avisa que a mãe de santo, que assumiu o terreiro em novembro de 2016, logo nos receberia. “Kalofé, yá”, pedi, quando Mãe Juçara d’Yemonjá apareceu. Enquanto beijava sua mão, ela respondeu: “Yemanjá te abençoe”. Bisneta de escravos, Mãe Ju10

çara é filha e neta de negros e, em constante trabalho, mostra que as religiões afro-brasileiras são formas de resistência da cultura negra. Participa de marchas e caminhadas com o objetivo de combater o preconceito e conscientizar pais e mães de santo sobre seus direitos, além de palestras organizadas por casas de umbanda e candomblé dentro dos próprios Centros. “Todas as casas de São Gonçalo abrem as portas para a comunidade. Explicamos nossa religiosidade. Mostramos à sociedade o que é nosso culto”, explica Mãe Juçara. O babalorixá Pai Gilmar d’Yansã acrescenta que esses eventos não buscam cuidar apenas dos direitos da comunidade, mas, também, mostrar o cotidiano do grupo. “A sociedade continua impondo a cultura eurocêntrica dentro das comunidades de matrizes africanas. Contudo, é ao contrário: nossa cultura está presente no Brasil de ponta a ponta. Nas vestes, na gastronomia, no cotidiano e, até mesmo, nas brincadeiras de criança. ’Fui ao tororó beber água e não achei. Escravos de Jó jogavam caxangá’. Desde a Pedagogia até o nível acadêmico nas universidades, o candomblé está influenciando. A cultura negra está presente no dia-a-dia de qualquer parte da sociedade brasileira”, conta Pai Gilmar. Zelador da casa Egbe Ile Ase Oloya Torun, em São Gonçalo, o pai de santo conta que esse projeto educativo aconteça de dentro dos terreiros para fora. Antes, o povo do santo, como são chamados os fiéis das religiões afro-brasi-

leiras, iam às ruas para apresentar sua fé. Hoje, o grupo leva a população para dentro dos terreiros. “Conseguimos convencer os líderes, os babas e yás, que tudo deve começar de dentro pra fora. Conseguimos fazer com que seus filhos de santo viessem a se autoafirmar, se autodeclarar, se impor. O povo do santo que se mostre: use branco às sextas-feiras, não tenha vergonha das suas contas. Temos que mostrar a sociedade nossa cultura sem medo. Essa é a resistência negra”, defende. De acordo com Mônica Dias, pesquisadora associada do Laboratório de Etnografia Metropolitana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LeMetro/ IFCS-UFRJ), ao falar sobre resistência dos cultos afro-brasileiros, nos referimos a séculos de devoção sobrevivendo de maneira inadequada. Sendo consideradas “crendice”, “feitiço” e, até mesmo, associadas a algo primitivo, as religiões sobreviveram à época em que os costumes europeus eram considerados referência. “Este tipo de pensamento é denominado como etnocêntrico pelas ciências sociais. E, devido a esta forma de pensar, muitos praticantes foram perseguidos e presos, casas de candomblé e umbanda e outras afins foram fechadas de forma violenta. Basta conversar um pouco com religiosos mais antigos e você se vê diante do que realmente é a resistência”, diz a especialista. Para Àyánídá d’Oyá, iniciada no candomblé em agosto de 2015, a intolerância está diretamente ligada ao racis-

mo porque ‘macumba é coisa de preto’. “Nossa religião sobreviveu a décadas de intolerância e criminalização. Então, sim, é coisa de preto e não há vergonha nenhuma em dizer isso. Quando eu enxergo minha fé, me sinto honrando todos os negros que sofreram ao longo desses anos para manter minha religião viva. É como se eu dissesse aos intolerantes que não vou abaixar minha cabeça para o preconceito”, assume. A antropóloga acrescenta que todos devem ter ter muito respeito às religiões afrodescendentes. De acordo com Monica, nelas estão a memória e a história de vários povos antigos. “Chamo a atenção para as histórias contadas, as narrativas dos antepassados presentes nos terreiros, para a forma de pensar o mundo sob a lógica do sagrado, um modelo ecológico de respeito à natureza e a todas as formas de vida”, explica. “Intolerância religiosa” foi tema da redação do ENEM, em 2016, envolvendo milhares de jovens em todo território nacional. Além disso, a umbanda ganhou status de Patrimônio Cultural Imaterial. Mônica Dias afirma que isso é algo a ser considerado como cenário de reflexão. “A mensagem é clara: tolerância e respeito. Tolerância à diferença e respeito aos Direitos Humanos. Retrocessos que trazem da obscuridade a perseguição a religiosos e seus templos são inaceitáveis, seja porque devemos, democraticamente, respeitar as diferenças culturais e a diversidade religiosa, seja porque a lei nos exige”, conclui a pesquisadora.

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Madureira sorriu

“Sou, sempre fui e vou continuar sendo Mangueirense.” Por Igor Oliveira Simões

Mas quando anunciaram a Portela como campeã do carnaval não pensei duas vezes antes de sair correndo do meu retiro carnavalesco nos alpes tijucanos direto pra Madureira. Há pelo menos 10 anos frequento os ensaios e precisava ver de perto a felicidade tomando conta do bairro onde nasci e fui criado. Assim que cheguei à Estrada do Portela já lotada, os fogos anunciavam outra grata surpresa: o Império Serrano também havia sido campeão do grupo de acesso. Naquele momento, Madureira voltava a ser a capital mundial do samba. No Império mais democrático da Terra, uma faixa pendurada com os dizeres “A minha história já fala por mim, sou resistência, orgulho sem fim. Tem poesia no ar, você já sabe quem sou, pelo toque O CASARÃO 2017 O CASARÃO- -OUTUBRO/NOVEMBRO JULHO AGOSTO - 2017

do agogô” resumia o ambiente. O orgulho se manifestava no samba no pé dos passistas, nas lágrimas das senhoras, na galera da harmonia que se abraçava e no garotinho que balançava uma bandeira branca e outra verde, na esperança de ver o seu Império voltar a ser grande no ano que vem. A resistência está ali diariamente, no Mercadão, no calçadão de Madureira, na Serrinha, no jongo, no baile charme do viaduto, na imagem de São Jorge, em Dona Ivone Lara. Na Portela, a atmosfera não era diferente. Debaixo das asas da águia, os gritos de “É campeã”, presos na garganta de gerações portelenses por 33 anos, foram finalmente libertos. Chegar à quadra era quase impossível, a rua Clara Nunes esta-

va tomada pelo canto das três raças, que dessa vez podia ser ouvido por todos os lugares. Enquanto Seu Monarco cantava a chegada da majestade do samba, Luciano - um dos milhares de torcedores que havia corrido até ali pra ver a Portela – chorava sem parar, olhando hipnotizado pro palco e dizendo que a escola é sua vida e que, durante muitos anos, seus amigos diziam não entender porque torcia pra quem nunca tinha visto ganhar. Com os olhos ainda cheios de lágrimas e sabedoria, disse que a Portela sabia ganhar com humildade.

Sob as cinzas da quarta-feira, a alegria renasceu e por alguns momentos as dores do subúrbio foram substituídas pelas delícias da conquista. E eu, que nunca tinha visto o meu lugar tão feliz, tive minha certeza traduzida no enredo campeão do Império Serrano, que homenageava o poeta Manoel de Barros: O meu quintal é maior, mas muito maior que o mundo. Madureira sorriu.

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De tempos pra cá, a apropriação cultural tem sido amplamente discutida, principalmente entre os jovens. Polêmico e delicado, o tema destaca questões relativas às desigualdades históricas da sociedade brasileira, bem como o papel da mídia na reprodução de estereótipos e modelos culturais. O próprio conceito de cultura é bastante problemático, mesmo nas Ciências Sociais. Para o antropólogo britânico Edward B. Taylor, “cultura é todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. Num país em que, segundo o IBGE, 54% da população é negra, podemos falar em cultura minoritária ou naturalizar as representações culturais adotadas na mídia? Quando se olha para a TV, tem-se a ideia que somos um país de brancos: é a “nata” impondo através do inconsciente que a maioria é, na verdade, minoria, tirando sua força política, social e cultural; mantendo-os no lugar de oprimidos e conservando uma posição confortável de dominantes. Mas cultura tem dono? A própria ideia de uma cultura nacional surge a partir da seleção e combinação de elementos das várias heranças que chegaram ao território brasileiro. Falar em apropriação, no entanto, diz respeito ao uso daqueles elementos que não estavam contidos numa unidade nacional. Então, o que os movimentos negros contestam na apropriação cultural é a utilização da memória histórica e das tradições e crenças como objeto de consumo no contexto capitalista. Para Dara Sant’Anna, pertencente ao movimento Enegrecer, além de carregar uma história de resistência para a população negra, o turbante exerce o papel de passar a cultura afro a diante. Segundo Dara, a busca por uma pessoa que possa ensinar a amarração de um turbante ou trançar o cabelo vai além do saber fazer. É uma questão de cuidado que deve ser valorizada por representar um momento de troca de energias e experiências. Para a antropóloga Ana Enne, da Universidade Federal Fluminense, a apropriação e o hibridismo fazem parte de um processo “da vida”, porém o grupo que contesta a posse não legítima O CASARÃO CASARÃO- OUTUBRO/NOVEMBRO - JULHO AGOSTO - 2017 O 2017

de um símbolo com valor histórico-cultural representativo, como o turbante, está em posição de fazê-lo desde quereconheça a ingenuidade da luta: com o avanço das interações humanas, potencializado pelo avanço das tecnologias, a apropriação é inevitável.

“O turbante é como uma coroa usada pelas mulheres negras como forma de resistência. Não tem a ver com beleza, e sim, com identidade, ancestralidade e confronto aos padrões estéticos impostos pela mídia.” Passado histórico que deixou marcas Ao falarmos sobre apropriação cultural, não podemos esquecer das relações de dominação vividas pelos negros. Um passado em que uma cultura hegemônica se impunha a outras em condições de subordinação. Foi o que ocorreu nos tempos de escravidão e vale lembrar que o Brasil, mesmo após consagrar-se como um império independente e promissor em 1822, foi dos últimos a abolir o sistema escravocrata, em 1889, e, mesmo assim, deixa para trás dúvidas quanto à benevolência do ato, uma vez que não ofereceu nenhum suporte ao grupo posteriormente e eles continuaram, como continuam até hoje, 128 anos depois, marginalizados. Mercado de trabalho Para entrar no mercado de trabalho, o negro encontra impedimentos já nos processos seletivos: o critério “boa aparência” é analisado de acordo com subjetividades. Subjetividades essas que se traduzem por “que não seja negro, de preferência” ou “se for negro: que tenha traços finos, cabelo não tão crespo e pele não tão escura”. Segundo o instituto Ethos, engajado na mobilização social de empresas, brancos ocupam cargos mais bem remunerados e relevantes que os negros. ‘‘O racismo é um problema que só vai melhorar quando pessoas negras forem chefes. A empresa não vai contratar alguém diferente do perfil do resto e sim alguém com a mesma história.

Ter uma estética atípica, uma origem distinta, dificulta muito na hora de se apresentar porque a população negra não tem “o QI”. Quando conseguimos alguma coisa, é na cara e na coragem”., diz Dara Sant’Anna. São esses mesmos critérios “rigorosos” que impedem os negros de ocupar um espaço maior em propagandas. Hoje há representantes da população negra na mídia, porém há a repetição dos mesmos rostos (como Lázaro Ramos e Taís Araújo, que dominam o cenário). Em revistas como a Veja e a Época, duas das mais populares do país, somente 13% das propagadas contêm negros.Como se não bastasse, 90% dessas representações são estereotipadas ou tentam inserir os negros dentro de padrões que os aproximem aos brancos, segundo levantamento do Ethos. A ativista do movimento Enegrecer acredita que o diálogo na escola sobre questões raciais pode ser uma forma de conscientização. Mas só se for valorizado além do dia da Consciência Negra, como parte efetiva do currículo escolar para o aprofundamento do tema, inclusive da apresentação das religiões de matrizes africanas, que continuam hostilizadas, e apoio relevante de um número expressivo de interessados. Dara credita na força e na expansão das auto-organizações negras para que determinadas questões sejam esclarecidas em diversos ambientes e o conhecimento seja multiplicado. Ela aposta na apresentação e investimento no pouco abordado afro-empreendedorismo como forma de empoderamento econômico. Nele, estampas africanas são valorizadas, e sabe-se, por exemplo, a origem dos tecidos dos turbantes e formas de amarração para ensinar aos clientes. A luta é necessária, os rios devem fluir Embora resistir seja importante para quebrar a dominação, Ana Enne esclarece que a discussão e exposição é, até então, o melhor caminho para a identidade da minoria se infiltrar num espaço doutrinado por uma ideologia dissimulada. No final, é importante entender que o grande vilão da apropriação não é o singular, portanto não se fundamenta o ataque das minorias enraivecidas à menina branca que escondia a careca ocasionada pelo câncer com um turbante. O programa Esquenta, um recanto da cultura afrodescendente na maior

emissora brasileira, é um exemplo claro dessa tentativa mascarada de parecer gentil e justo ao ceder espaço para uma minoria. Porém nos termos da emissora e representado por uma apresentadora branca que, apesar de afirmar entender muito de favela, pertence à sociedade do Leblon, o bairro mais nobre do Rio de Janeiro. Após séculos de opressão, o que o oprimido tinha para dizer finalmente aflorou e encontrou a própria voz. Ana Enne concorda que a tendência é as discussões se fortificarem, mas garante: “comparemos esses pequenos grupos com um rio: quando esse rio desrepresar, esse rio das contenções das minorias, não tem como o processo acontecer de forma meiga. É uma questão muito complexa e de muita briga; a água vai descer violentamente”.

Afinal, qual é o

blema prdeovisto na

loirinha de trança nagô? Luana Santiago e Stephany Cordeiro

Não pelo fato dela ser loira e usar a trança. Vivemos em um país livre, onde cada um usa o que quiser. Mas ela será vista como “estilosa”, enquanto uma menina negra com o mesmo penteado será questionada “Você lava o cabelo?” Se a loira disputar uma vaga de emprego em uma loja com uma negra também com o penteado nagô, será considerada “good vibes, desapegada dos bens matérias, cult”, enquanto a negra despertará comentários do tipo “Ih! Esse povinho ativista acha que tudo é racismo! Melhor não!”. No baile temático África, da Vogue, as roupas típicas foram classificadas como “fantasia” enquanto os flashes foram direcionados para as loirinhas de trança nagô, esnobando as principais estrelas da noite, as negras Thaís Araujo e Glória Maria. Quando as revistas de moda elegem loiras de trança nagô para lançar um novo penteado “cool”, e não modelos negras é porque não vai vender muitos exemplares ou ficar tão bonito.

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Novos caminhos

Fugindo de uma guerra em torno do minério, congoleses encontram refúgio no Brasil Por Camila Alcântarae Mariana Alecrim

A República Democrática do Congo está mais presente no nosso dia a dia do que percebemos. É lá que se encontram cerca de 80% das reservas de uma das substâncias mais cobiçadas mundo – o Coltan. Apelidado de “ouro azul”, é uma mistura de dois minerais, columbita e tantalita, e é matéria-prima de celulares, tablets, satélites, computadores e outros aparelhos eletrônicos. Além dele, o segundopaís mais extenso da África tambémabriga minas de ouro, ferro, urânio e diamantes, que são visadas mundialmente. Tantas riquezas naturais fazem contraste com uma população carente e acostumada a viver em guerra. Independente da Bélgica em 1960, o mais populoso país francófono do mundo 14

também é jovem e demasiadamente pobre. Possui uma das maiores taxas de mortalidade infantil do planeta, junto a elevados índices de analfabetismo e desnutrição. O Índice de Desenvolvimento Humano é de 0,239, a segunda pior média mundial. Ainda assim, é o lugar mais bonito que Mireille Muluila já colocou os pés. “O lugar mais bonito do mundo é sempre o nosso país”, foi com essa frase que começou a contar sua história de vida numa palestra promovida pela Cáritas, no Rio de Janeiro. Mireille é formada em Relações Internacionais e fluente em sete idiomas, e faz parte dos 1.151 refugiados congoleses que habitam no Brasil. Só no Rio, são mais de 900. A Convenção de 1951, assinada em Genebra,

define o refugiado como aquele que esteja fora do seu país de nacionalidade ou residência habitual por perseguição; seja ela por nacionalidade, grupo social, raça, religião ou opinião política. São congoleses 21% dos refugiados que moram no estado do Rio. A República Democrática do Congo já vive quase 20 anos de guerra civil, com a participação de milícias e exércitos de países vizinhos (Ruanda e Uganda). No leste da nação, somam-se seis milhões de mortos e desaparecidos – o maior e mais sangrento conflito desde a Segunda Guerra Mundial – e é por essa região que passa a história de Mireille. Moradora de Shabunda, no Kivu do Sul, trabalhava em um programa de proteção social. Foi num dia, ao voltar de uma

missão, que percebeu que os “rebeldes” haviam tomado o bairro onde vivia. Ela, que já conhecia as histórias do que acontecia naqueles lugares que foram tomados pelas milícias, fugiu. “Obrigam os pais a deitarem-se com os filhos, e se você não o fizer, eles te matam. Não dá para ter as condições normais de vida”, conta, dando ênfase à forte cultura do estupro e de dominação presente no local. A adaptação dos refugiados em solo brasileiro pode ser difícil. Quanto mais novos, mais facilidade com o idioma, o que não acontece com os mais velhos, que também possuem raízes fincadas na terra natal. No Rio, a Cáritas dá o primeiro apoio aos refugiados. Lá, Mireille teve aulas de português, mas enfrentou O CASARÃO - JULHO AGOSTO - 2017 2017 O CASARÃO - OUTUBRO/NOVEMBRO


dificuldades em sua chegada. “Não é fácil deixar o seu país e tudo o que você conquistou, e ir para outro onde você não conhece ninguém, não fala nem a língua local. Isso aconteceu comigo.” No Rio, há 4.288 refugiados e 2.899 solicitantes. Se comparada à da Europa, a legislação brasileira para solicitantes de refúgio é avançada. Em terras europeias eles ficam retidos e recebem auxílio financeiro; enquanto aqui, apesar de não haver o direito a bolsa, o posto de refugiado já lhes é garantido e, assim, conseguem emitir toda a documentação necessária para começar a nova vida. Mesmo com um Brasil de tanta abertura para receber os imigrantes em refúgio, há muita luta contra o preconceito. “Na África eles lidam com a discriminação étnica, e aqui eles descobrem o racismo”, diz Diogo Felix, assessor de imprensa da Cáritas. Mireille confirma: “[As pessoas] acham que vamos para outros países porque queremos roubar empregos, porque fizemos algo ruim nos nossos países, porque somos ruins”. Foi o que Prince Pombo, cientista político que pediu refúgio no Brasil por ser do partido de oposição, também percebeu: “No Brasil, encontrei pessoas boas e ruins. Felizmente, encontrei mais boas”, conta. Ao chegar aqui, Prince começou a trabalhar em um hotel. Hoje, é professor de inglês no Abraço Cultural, uma escola de idiomas onde todos os professores são refugiados. “O Abraço surgiu com o propósito de inserir essas pessoas que chegam ao Brasil na sociedade, tanto economicamente quanto social e cul-

turalmente”, explica Tatiana Rodrigues, coordenadora. Segundo ela, a ideia foi de prestar auxílio de uma maneira que não fosse pontual e assistencialista, mas que pudesse empoderar e integrar os refugiados. Lá, são ministradas aulas de árabe, espanhol, inglês e francês, sob a ótica das culturas dos professores. Vivendo entre os conflitos, Prince bateu à porta da embaixada brasileira e foi acolhido. Saindo de um lugar que já esteve nas mãos de um ditador com o poder de mudar o nome de sua nação para Zaire, e o próprio nome para algo que pode ser traduzido por “todo poderoso guerreiro”, encontrou no Brasil um sistema político em desenvolvimento, porém com alto grau de organização no que se diz à administração do sistema público, em sua opinião. “Aqui, as pessoas são facilmente identificadas pelo CPF, e tudo depende dele. No meu país não há isso, o Brasil está caminhando para um ótimo nível de organização. Passo a passo, o Brasil está indo muito bem”, justifica. Quando questionada sobre o futuro em solo brasileiro, Mireille conta que gostaria de voltar a trabalhar na área em que é graduada e ajudar a quem precisar, mas que quer aprimorar-se no idioma antes. Ela ainda dá um conselho aos brasileiros: “O Brasil é um país muito rico e há pessoas que olham para isso com maldade. Os brasileiros precisam cuidar da própria casa”.

Curiosidades - Há mais brasileiros migrantes do que pessoas de outros países em nosso território. - A Argentina acolhe um número de refugiados duas vezes maior que o Brasil. - Há diferenças entre refugiados e migrantes. Os refugiados deixam seus países por motivos de guerra ou perseguição. Os migrantes podem possuir qualquer outra razão. - A lei não permite que os refugiados sejam enviados de volta a países onde suas vidas são ameaçadas. - Caso o imigrante chegue a seu novo país sem seus documentos atualizados, ele pode ser deportado – o que não pode acontecer com os refugiados. - Existe um debate, sob exemplos da desertificação da região africana de Sahel ou a inundação de uma ilha costeira em Bangladesh de que os migrantes que saem de suas casas por causa de mudanças climáticas, devem ser considerados refugiados. A nova Lei de Migração - Reconhece o migrante, independentemente de sua nacionalidade, como um sujeito de direitos, reduzindo a burocracia e facilitando sua inclusão na sociedade brasileira - Prevê uma anistia para migrantes sem documentos que entraram no país até 6 de julho de 2016, como consta no artigo 118. - Promove o combate à xenofobia e a não-discriminação - Torna o sistema de recepção e registro dos migrantes mais moderno, incluindo, também, artigos específicos para casos de apatridia (quando a pessoa não possui nacionalidade) - A nova lei também se estende aos brasileiros no exterior (por isso o nome “Lei de Migração”, no lugar de Lei de Imigração) - A lei brasileira protege tanto os direitos do migrante quanto no combate a organizações criminosas que se aproveitam da migração para a prática de atos ilícitos.

Prince Pombo está há um ano no Brasil. Hoje, dá aulas de inglês no Abraço Cultural e elogia seu novo país

Foto: Victor Curi

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Única escola pública de teatro do Rio resiste ao sucateamento

Texto por Igor Oliveira Simões Fotos por Camila Shaw

Escola de teatro mais antiga da américa latina com 109 anos. Fundada pelo escritor Coelho Neto. Celeiro de grandes talentos da dramaturgia do passado e do presente, como o ator Procópio Ferreira e o autor Jô Billac. Única escola que oferece formação teatral gratuita no Rio de Janeiro e batizada com o nome do pioneiro ator da comédia de costumes no Brasil, a Martins Penna sofre os reflexos da crise financeira que atinge o Estado desde o ano passado. As dificuldades dos cerca de 200 “filhos da Martins” começam com o processo de desmonte estrutural da instituição. A unidade, que faz parte da rede FAETEC, sofre com a falta do repasse das verbas de manutenção, que não ocorre desde agosto do ano passado. Os aparelhos de ar condicionado não funcionam, as instalações elétricas são constantemente improvisadas por funcionários da escola e a sala de caracterização não possui iluminação adequada. No teatro Luiz Peixoto, as improvisadas varas de iluminação são de madeira, as originais foram devoradas pelos cupins. O palco, onde grandes artistas fizeram suas primeiras apresentações, hoje se sustenta após a colocação de uma chapa de madeira por funcionários da escola. E como se não bastassem os 16

inúmeros problemas, um defeito no telhado faz com que o teatro fique alagado quando ocorre uma chuva mais forte. Já o teatro de arena Armando Costa, que começou a ser construído na gestão do então diretor José Wilker, em 1981, apresenta melhores condições, com uma vara de iluminação de metal, mais leve que a de madeira, que facilita a operação das luzes. Apesar disso, o chão é feito de concreto, o que aumenta o impacto no corpo dos alunos e o equipamento de iluminação é obsoleto. Os obstáculos na formação dos estudantes persistem até no acesso à instituição. Até 2015, eles tinham direito a um lanche e ao riocard escolar nos dois anos e meio em que permaneciam na escola. A retirada desses direitos prejudicou alunos de outros estados e os que enfrentam problemas financeiros. “Pagar aluguel, bancar a passagem e alimentação é algo que encarece a permanência e muitas vezes impede o acesso e a continuidade no curso”, diz o aluno formando, Pedro Barroso. Apesar do descaso estatal, a Martins Penna ainda é procurada por alunos de outros estados e até de outros países, sendo referência na revelação de novos atores que, com uma formação ampla, têm a oportunidade de aprender tam-

bém sobre iluminação e cenografia. Nos corredores, o clima é de muita mobilização e parceria entre professores, alunos e funcionários. Todos se desdobram para manter viva a instituição. “A escola cai aos pedaços, mas sempre tem gente para amparar”, diz Herbert Said, ex-aluno e instrutor de iluminação cênica. A luta contra a desvalorização da cultura é vista em todos os cantos. Na entrada é possível ler no muro azul: “Sempre tentam acabar com a nossa arte, mas ela resiste e nunca perde a sua realeza”. O amor pela Martins é o motor da resistência que impede o fechamento das cortinas da escola centenária. Amor compartilhado por professores e funcionários, que enfrentam a redução do quadro e o atraso nos salários, mas mesmo assim mantêm o trabalho. A Martins, que já teve em seu corpo docente Cecília Meireles e Fernando Pamplona, enfrenta mais de dois meses de salários atrasados dos professores. Funcionários terceirizados foram demitidos sem indenização após oito meses de calote. A escola chegou a ficar sem secretaria, o que impedia a emissão dos certificados de matrícula dos novos alunos. Além disso, a falta de funcionários compromete a organização das doações de figurinos e cenários recebidas pela instituição e con-

tribui para a deterioração do rico acervo da biblioteca, impedindo o acesso dos estudantes. “A biblioteca ano passado funcionou com cinco funcionários que não receberam, fazendo rodízio pra ficar uma hora por dia só pro pessoal fazer prova”, conta Marcelo Biar, co-gestor da unidade. O vigia Luis Fernando, 56 anos, contratado há pouco mais de três anos foi um dos terceirizados que ficou oito meses sem salário. Demitido, recebeu apenas uma parte do FGTS depositado pela empresa PROL Serviços, no valor de R$ 104. Depois de seis meses sem conseguir emprego fixo, fazendo bicos para ajudar a esposa no sustento dos dois filhos adolescentes, retornou à Martins Penna por outra empresa terceirizada. “Foi um sufoco, até porque o mercado aí fora não tá fácil, você não consegue arrumar emprego”, conta Luis. Mesmo com o salário em atraso, o professor Ricardo Rocha mostra que a resistência dos alunos que se formam na unidade encontra ressonância no engajamento dos funcionários, que ajudam a manter a Martins Penna de pé desde 1908. “Se a escola não funciona, é fácil desmontá-la, então a gente tá na resistência, continua mantendo a qualidade que tem, com os estudantes que tem”. CASARÃO - JULHO AGOSTO - 2017 OOCASARÃO - OUTUBRO/NOVEMBRO 2017


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