no. sete - maio 2014
1
2
no. sete - maio 2014
Editorial
Entrevista
Entre ruas e vozes, um Casarão de muitas histórias
Por André Borba e Gabriela Novaes Felipe Magalhães
É
na construção de discursos que a História se realiza. Há exatos 50 anos, um governo militar era instaurado no Brasil. A realidade social seguiu outros rumos a partir de então. Nas ruas, pessoas inconformadas com o caminho por onde percorria o país. Esses mesmos asfaltos fervilhantes não se limitaram a ecoar os gritos de quem lutou pela história daquelas décadas. Pelo contrário, recebem até hoje as reivindicações de quem quer mudar as páginas que descrevem o destino diário desse povo. Como no emblemático ano de 1968, em 2013, milhares movimentaram pequenas e grandes cidades. Este roteiro das ruas é um lugar onde a escrita não para. Essa análise da presença da atuação popular tanto em anos ditatoriais, quanto em uma democracia é apenas uma parte do que essa edição do O CASARÃO reserva para você. Temos também uma entrevista especial com Rafucko, radialista e videomaker, que conta um pouco sobre seu trabalho com vídeos e seus pensamentos sobre mídia e política. E o uso da palavra Doutor? Uma matéria que apresenta questões históricas e linguísticas mostra como esse título ainda tem grande viés político. Nos esportes, vamos mostrar o Badminton, uma prática pouco difundida no Brasil, e um projeto voluntário como incentivo a essa atividade. O papel do livro e suas versões virtuais também entram em nosso lar de discussões. O CASARÃO mostra o crescimento do mercado editorial de e-books e a possibilidade de se promover boas leituras nas inúmeras plataformas disponíveis. Por fim, cultura. Artistas circenses que se apresentam nas ruas do Rio de Janeiro também ganham as folhas dessa edição com a proposta do “Rio é Rua”. Entre nessa leitura e sinta-se em casa! O CASARÃO Texto e Arte: André Borba, Arthur Figueiredo, Bernardo Oliveira, Bianca Alcaraz, Camilla Pacheco, Daniela Reis, Douglas Dayube, Fabio Peixoto, Felipe Magalhães, Francielly Baliana, Gabriela Novaes, Gustavo Xavier, Igor Pinheiro, João Pedro Soares, Leonardo Pimentel, Lucas Bastos, Luís Pedro Rodrigues, Marcos Kalil, Paula Rodrigues, Rafael Bolsoni e Thiago Medeiros Capa: arte de Thiago Machado sobre foto de Evandro Teixeira
ocasarao12@gmail.com fb.com/jornalocasarao @jornalocasarao issuu.com/ocasarao
www.jornalocasarao.com Agradecemos a orientação dos professores Carla Baiense e Romulo Normand.
APOIO
bicos. Me xingam de ser do PSOL, como se fosse xingamento ser filiado a um partido político. Me xingam de ser psolista e viadinho, e é aí que eles mostram quem eles realmente são. Existem pessoas que fazem um trabalho incrível no PT, mas é um partido homofóbico.
Para ditar a liberdade
Na pedra do Arpoador, Rafucko fala sobre seus vídeos, política e homossexualidade
E
le conhece bem o Rio de Janeiro, sua política, seus movimentos, sua efervescência. Rafael Puetter, mais conhecido como Rafucko, é videomaker, apresentador de talk show e presença constante nas manifestações de rua. Lutou com os professores por melhores salários, esteve nas históricas jornadas de junho e bate ponto em atos pelos direitos da população LGBT. Protesta, se envolve, grita. Com um humor que foge ao dos grandes canais de televisão, ele subverte. Na internet, faz deboche dos poderosos e sacaneia o status quo. Você começou a fazer os vídeos por causa da sua militância? Eu sempre quis fazer vídeo de humor e criar conteúdo. Eu achava que era pra TV, porque eu fiz Rádio e TV (ECO-UFRJ). Mas com a internet surgiu um novo formato, ao qual me adaptei muito bem. Tenho uns vídeos antigos que são bem menos sobre política. Não diria que são zero políticos, porque têm uma crítica.
Por ter um humor contra-hegemônico, te preocupa que você não tenha espaço em grandes veículos? Não, porque essa é uma escolha minha. Acho que tem espaço, e ele vai ser cada vez mais ocupado, mas as pessoas têm esse medo. No Rio de Janeiro, o mercado é Rede Globo. Por mais que critiquem, sempre ficam meio pianinho, porque podem acabar indo para lá. Mas, a Globo não é tudo, sabe? Ainda mais com essa questão de produção para a internet, os custos são menores. Acho que há alternativas sem depender dessa mídia rica. Assumir-se homossexual em nossa sociedade é um ato político? Cada vez mais, eu percebo que tudo é um ato político, até nossa mera existência. Tipo a questão do ’rolezinho’ ou das remoções. As pessoas vivem em um lugar há 40 anos, todo mundo sempre respeitou, até a Prefeitura aceitou que elas morassem ali, e, de repente, por causa das Olimpíadas, elas não podem mais. Por isso, a existência delas ali é um ato politico. Então, óbvio que sair do armário é um ato politico. Para mim é muito menos do que para alguém de uma cidade do interior ou da periferia. Por isso, sinto uma necessidade de ir adiante. Há muita divergência no movimen-
to LGBT sobre as pautas prioritárias. Para você, quais deveriam ser? Acho bobeira essas briguinhas. Seria mais fácil se cada um se juntasse na pauta dos outros. A pauta prioritária do movimento LGBT deveria ser a Ditadura Gay. Eu falo brincando esse nome, mas temos que começar a bater o pé de que certas coisas não são para serem discutidas. Evangélico que condena homossexual não dá opinião sobre legislação para homossexual. Não é ditadura, é apenas porque eles não serão contemplados por essa lei. Não vamos debater, já existe muito debate. Não é uma discussão se o kit anti-homofobia deve ser distribuído, ele deve ser distribuído. Temos que ser mais assertivos, atacar mais do que ficar só nos defendendo.
“
Eu percebo que tudo é um ato político, até nossa mera existência
”
Em uma entrevista, você disse que admira o Marcelo Freixo e o Jean Wyllys, pois eles representam uma nova política. Que nova política é essa? Você vê no discurso que eles escolheram uma forma diferente de fazer política, que não é o caminho de usá-la para obter mais dinheiro ou mais poder. Isso fica muito claro quando eles dão nome aos bois. 90% dos políticos brasileiros falam sempre com meias palavras porque um sabe o podre do outro. O Jean e o Marcelo Freixo fazem questão de esclarecer o que está sendo dito, são pessoas extremamente didáticas. Eu acho que a nova política tem que ser feita assim. Mas o próprio PT, por exemplo, acabou pressionado por esse Congresso que temos. Com certeza. Só que não tem necessidade de fazer da forma que fazem. Posso estar sendo utópico demais, mas alguém tem que chegar e enfrentar a dificuldade. Acho que certas concessões não podem ser feitas. O veto ao kit anti-homofobia foi feito com um texto que é igual ao da lei homofóbica russa: “Não podemos fazer propaganda de opção sexual para nossas crianças”. É absurdo. Quando eles fazem essas explicações, eles são constantemente racistas, misóginos, homofó-
As manifestações de junho de 2013 tiveram como desencadeador o aumento de 20 centavos na tarifa dos ônibus. O povo protestou e o preço não subiu. Porém, pouco tempo depois, o aumento foi de 25 centavos. Onde estão as milhares de pessoas que estavam nas ruas? O clima está muito tenso por causa da Copa. Muita coisa não foi feita. Tem a Aldeia Maracanã, que é para as Olimpíadas, tem estádios que não foram terminados, a própria questão de Lei Anti-terrorismo. Acho que as pessoas que estavam protestando estão tendo que se organizar para isso. Esse lance dos 25 centavos é uma pauta um pouco menor, é importantíssima, mas com essa questão da violência, da morte do cinegrafista (Santiago Andrade, da TV Band), tem muita gente pensando e repensando. As pessoas estão se organizando para lidar com tudo isso, mais do que os 25 centavos.
Você esperava que a TV Globo fosse tentar tirar seu vídeo, corrigindo o William Bonner, do ar? Eu cogitei a possibilidade, mas depois eu pensei que era meio megalomaníaco pensar que eles fariam isso. Eu fiz um remix, aquele vídeo não é deles. Uso o vídeo deles na minha obra. A lei de direitos autorais do Brasil é muito defasada e acredito no conceito de desobediência civil. Não concordo e vou fazer a crítica com esse vídeo, vou publicar e republicar. É liberdade de expressão. Foi como consegui expressar a minha indignação. Na hora em que vi a censura, eu tive dois segundos para pensar “que merda” e, no terceiro, eu me liguei: “Eles são muito burros. Eu estou falando de censura dentro do vídeo e eles censuram o vídeo”. Subi o arquivo novamente, botei o link para download e falei para as pessoas repostarem.
“
90% dos políticos brasileiros falam sempre com meias palavras porque um sabe o podre do outro
”
Você acha que existe uma onda de recrudescimento do conservadorismo? Com certeza. É estúpido achar que vamos acabar com o racista, o homofóbico, o fascista. Até porque, o único jeito de acabar é por uma forma tão violenta que a gente se tornaria eles. O que precisamos é ter as regras e as leis para limitar o poder dessas pessoas de arruinar vidas.
Leia a entrevista na íntegra em jornalocasarao.com
3
no. sete - maio 2014
Identidades
Por Bianca Alcaraz, Felipe Magalhães e Gabriela Novaes
“
Doutor, voce^ tem doutorado?
Travo minha pequena batalha com a consciência de que a língua nada tem de inocente. Se usamos as palavras para embates profundos no campo das ideias, é também na própria escolha delas, no corpo das palavras em si, que se expressam relações de poder, de abuso e de submissão. Cada vocábulo de um idioma carrega uma teia de sentidos que vai se alterando ao longo da História, alterando-se no próprio fazer-se do homem na História. E, no meu modo de ver o mundo, ‘doutor’ é uma praga persistente que fala muito sobre o Brasil. Como toda palavra, algumas mais do que outras, ‘doutor’ desvela muito do que somos – e é preciso estranhá-lo para conseguirmos escutar o que diz.” Eliane Brum
A
Foto de Gabriela Novaes e editada por Camilla Pacheco
dvogado, Delegado, Dentista, Médico, Veterinário. “Doutor”? Alguma vez na vida, quase todo mundo já ouviu – sem nem arranhar muito nos ouvidos – a palavra que vem de séculos e que passou por muitas bocas de maneira nada mecânica. Das senzalas e dos campos de café às roupas pomposas de trabalho, o uso de um pronome de tratamento aparentemente inofensivo demonstra algum traço de legitimação do poder. Mesmo sem pensar, a submissão é concretizada em cinco letras. E, mesmo entre os letrados, quem será doutor? Pelas letras, uma menina do interior do Rio Grande do Sul que aprendeu com a vida a ser mulher provocou questionamentos no artigo “Doutor Advogado e Doutor Médico: até quando?”. Publicado originalmente em setembro de 2012, na coluna de Eliane Brum no site da revista Época, o texto ganhou as páginas do livro “A Menina Quebrada e Outras Colunas de Eliane Brum” (Arquipélogo, 2013). Entre a ira de alguns médicos, o incômodo de alguns advogados e os aplausos de muitos leitores, a pergunta simples instigou: “Por que o uso da palavra ‘doutor’ antes do nome de advogados e médicos ainda persiste entre nós? E o que ela revela do Brasil?” De qual Brasil? De 1500 a 2014, muitos existem. E mesmo em 2014. Tantas carreiras disponíveis no mercado, tantas opções de estudo e aperfeiçoamento profissional. Antes, letrado era doutor. E ser letrado significava, basicamente, ser médico ou advogado, assim mesmo, no masculino. De acordo com o antropólogo e pesquisador sobre gênero, conjugalidade e corpo pela UFRJ Marcelo Silva Ramos, há um histórico de profissões que, ao longo do tempo, foram dominadas sobretudo por homens, enquanto outras ficaram designadas às mulheres. Simultaneamente, a escolaridade também ficou marcada pela diferença entre os sexos. “Podemos verificar que algumas profissões, até bem pouco tempo atrás, eram
predominantemente masculinas. Quando surgiram no Brasil, os cursos universitários foram dominados por homens e eram, tradicionalmente, cursos de Medicina, Direito, Engenharia. Você tinha, sim, outras profissões como professora, e até enfermeira, que eram designadas às mulheres, mas ainda bem pouco. Digamos que o papel tradicional da mulher era mais os cuidados da casa, dos filhos, ser esposa e mãe”, esclarece Marcelo. Se o antropólogo explica que o doutor de antes era o escolarizado ou alguém de posses, hoje a permanência do hábito social se dá por continuidade. “Nem tudo o que está na lei se reproduz na vida dos indivíduos da mesma forma”. E a situação, ao menos no papel, é outra. Atualmente, o título de doutor conseguido no meio acadêmico pode ser obtido pela conclusão da chamada pós-graduação. No Brasil, existem dois tipos: a lato sensu – conhecida como especialização ou MBA – e a stricto sensu – referente aos mestrados e doutorados, duas fases sequenciais. É o que explica a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, a Capes, em nota oficial a O Casarão. “Ao concluir uma pós-graduação stricto sensu é concedido ao discente um título, grau acadêmico: quem conclui o mestrado é considerado mestre em sua área; os concluintes do doutorado são chamados de doutores”. A Capes regula as pós-graduações stricto sensu, enquanto as de lato sensu ficam por conta da Secretaria de Educação Superior (SESu).
Resquícios do Império
O principal argumento em que que os defensores do uso da palavra “doutor” por pessoas que não possuem o título se baseiam é o artigo nono da lei de 11 de agosto de 1827, decretada pelo imperador Dom Pedro I, após o alvará outorgado por Dona Maria, a Louca, anos antes. Essa observação também é feita por Eliane, em seu artigo. Tal lei, teoricamente, concede o título aos que concluírem os cinco anos dos cursos jurídicos e preencherem as condições estabelecidas pelos estatutos. Quais estatutos? Quais condições? Não está claro.
O Império caiu. Teria validade uma assinatura de Dom Pedro I em pleno governo Dilma? Apesar disso, a questão não é essa. Mesmo que tivesse, desvalorizaria aqueles que, de fato, têm os anos de estudo e competências, além de demarcar uma hierarquia social. “A partir do momento em que você tem uma diferença entre as pessoas, você precisa demarcar isso de alguma forma. Existem estratégias de tratamento na língua que diferenciam essas posições. Então, doutor é um exemplo disso”, afirma Silmara Dela Silva, professora adjunta no Departamento de Ciências da Linguagem da UFF e pesquisadora em Análise do Discurso. Para Silmara, mesmo com um número maior de pessoas com acesso à educação, a demarcação ainda é percebida. E só o que pode mudar o quadro de desigualdade é o uso de novas formas de discurso, partindo para a ressignificação. “Por mais cristalizado que esteja um sentido, você sempre pode fazer com que ele caia em desuso, criando novos sentidos, criando novas histórias. A gente não tem como controlar os sentidos, mas nós podemos criar certa resistência a eles”. Procurados pela equipe de reportagem para expressarem opiniões a respeito do tema, os conselhos federais de Medicina, Odontologia, Medicina Veterinária e a Ordem dos Advogados do Brasil não quiseram se manifestar até o fechamento desta edição. Na delegacia, consultório ou escritório, os atos de resistência podem – e devem – ser individuais. “Assim, minha recusa ao ‘doutor’ é um ato político. Um ato de resistência cotidiana, exercido de forma solitária na esperança de que um dia os bons dicionários digam algo assim, ao final das várias acepções do verbete ‘doutor’: ‘arcaísmo’: no passado, era usado pelos mais pobres para tratar os mais ricos e também para marcar a superioridade de médicos e advogados, mas, com a queda da desigualdade socioeconômica e a ampliação dos direitos do cidadão, essa acepção caiu em desuso. Eliane Brum
”
~
OPINIAO DAS RUAS Leonardo Ribeiro, advogado
“Para um advogado, o uso da palavra doutor é um pronome de tratamento. Você chama todos os advogados assim. Não é pelo título.” Isadora Dias, estudante de Economia
“Eu não acho legal [chamar de doutor], porque você está querendo dizer que quem é advogado, ou quem é médico, é melhor do que uma pessoa graduada em outras áreas. É um título que você conquista depois de ter feito mestrado, doutorado. Você tem que ter doutorado pra ser considerado doutor. Por isso, não chamo nem advogado nem médico de doutor, mesmo quando eles ficam bravos comigo.” Thiago Soares, estudante de Economia
“Eu acho errado porque é uma forma de banalizar um título elevado. Para mim, doutor é doutor. Meus professores são doutores.” Carminer Silva, sapateiro
“Eu acho que todas as profissões são iguais, seja médico, advogado, engenheiro... Feliz é a pessoa que tem uma profissão. Por isso, eu não chamo ninguém de doutor.” Arli dos Santos, auxiliar administrativa
“Não costumo chamar meu médico de doutor, porque tenho tanta intimidade... Ele é tão meu amigo, que eu chamo de ‘você’. Tem outros médicos, que a gente não tem tanta intimidade, que eu chamo de doutor. Mas com o médico do dia a dia é você pra lá, você pra cá...” Maria da Conceição, dona de casa
“Eu chamo meu médico de doutor porque ele é uma pessoa tão legal que merece respeito. É merecido chamá-lo assim.” Fernanda Emerick, estudante de Psicologia
“Eu acho que vai muito do senso comum. Mesmo sem ter certeza quanto à formação desse profissional, por uma questão de hierarquia, respeito e talvez até mesmo de falta de informação, a gente se refira a ele como doutor. É para poder diferenciar o conhecimento ou qualquer coisa do gênero.”
4
no. sete - maio 2014
Capa Por Douglas Dayube, Francielly Baliana e João Pedro Soares
No meio do caminho tinha uma pedra... A memória é um espaço de construção constante. É a partir dela que a História encontra seu caminho. Nesse olhar para o passado, quando muitas verdades vêm à tona, é possível compreender as fronteiras que dão ao país um ou outro espaço para sua formação. Com o Brasil não foi diferente. Os sucessivos governos militares, entre 1964 e 1985, mostraram ao povo o que os livros do futuro deveriam contar: um período de grande repressão política e social, porém, com intensas lutas e movimentos de contestação. No entanto, não foi apenas a governança ditatorial de então que viu a capacidade das pessoas de ocupar as ruas. Em 2013, milhares deram novamente as caras. Editaram a história, como nos anos ditatoriais. São períodos que se tocam no eixo de cinco décadas. Uma mesma linguagem, a das ruas, a ser compreendida em diferentes terrenos. Essa é mais uma remissão. Mais uma memória à luz de uma construção que não para.
N
o período que precedeu o golpe militar de 1964, a sociedade brasileira estava mobilizada como nunca. No campo e nas cidades, camponeses e operários se organizavam para reivindicar mudanças nas estruturas sociais do país. Com João Goulart, um presidente articulado com as massas, tornavam-se reais as chances de reformas estruturais se concretizarem. Entretanto, a força dos movimentos populares não foi suficiente para impedir o golpe militar. Na madrugada do 1º de abril de 1964, o senador Moura de Andrade declarava vaga a Presidência da República. Demian Melo, doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), explica a relação entre a repressão aos movimentos camponês e operário e a ascensão do movimento estudantil como protagonista das mobilizações sociais. “Como disse o Roberto Schwarz, crítico da literatura, o Brasil estava irreconhecivelmente inteligente nesse período antes de 64. Na virada dos anos 50 para 60, há uma ascensão dos movimentos sociais bastante significativa”.
das – são estancados com o golpe. “A primeira onda de repressão atinge setores das forças armadas que apoiavam Jango e, depois, faz uma limpeza na estrutura sindical brasileira. Não é por acaso que os estudantes vão assumir uma posição importante”, explica Demian.
estabeleceu a ordem atirando com armas automáticas contra passeatas e matou centenas de pessoas. No resto do Continente Americano, o movimento estudantil também estava em alta”. O continente europeu, berço das principais revoluções sociais dos séculos anteriores, também foi palco de fortes lutas populares. O exemplo mais emblemático é o de maio de 68 na França, que quase derrubou o governo autoritário do General de Gaulle. Cid Benjamin ainda destaca a Primavera de Praga e a Revolução Cultural em curso na China, episódio que classifica como controverso, apesar de ter “colocado o país de cabeça para baixo”. O ex-militante, que participou do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, iniciou sua militância em meio a essa efervescência. De acordo com o jornalista, a repressão aos estudantes que iam às ruas era menor do que a exercida sobre outros setores que se levantavam contra o regime. No início da década de 60, a União Nacional dos Estudantes (UNE) já vinha ganhando força. Sua principal bandeira era a reforma universitária. Entre seus principais objetivos estava a promoção da conscientização popular através da cultura. Com o golpe, as pautas da UNE acabaram por se multiplicar. Mesmo com as crescentes reivindicações, o regime aprovou uma reforma universitária que caminhava no sentido contrário dos interesses estudantis, com reflexos nos dias de hoje. São exemplos o vestibular e a crescente participação privada no ensino. Além disso, foi instaurado o decreto-lei 477/69, o qual permitia a demissão de professores e a expulsão de alunos que realizassem atividades consideradas subversivas. Era uma motivação a mais para a ocupação das ruas. A mobilização contra o governo, no contexto autoritário, levou a uma forte repressão por parte do Estado. Segundo Demian, a brutalidade foi determinante para a perda da base de apoio do regime, tendo em vista a
Evandro Teixeira
“
Foi um golpe muito forte na classe média. Grande parte dela estava marchando, em 64, pelo fim do governo Jango. Agora, seus filhos estavam sendo atingidos
”
Demian Melo, historiador
O historiador lembra que, neste período, o movimento operário está rompendo as amarras do corporativismo sindical feita para evitar a luta de classes. Essas estruturas são incorporadas pela esquerda sindical da época, ligada ao Partido Comunista e também aos trabalhistas independentes e se tornam um esteio da luta de classes. Além disso, os trabalhadores rurais estavam muito mobilizados, tanto pela reforma agrária quanto pela sindicalização rural, que visava a levar a legislação trabalhista para o campo. “Essa luta colocava em xeque um padrão de aliança estabelecido pelas classes dominantes desde a Era Vargas, de não mexer na estrutura agrária do Brasil”, analisa. Depois de 64, há uma mudança substancial da configuração do movimento social, uma vez que os mais significativos – o operário, dos trabalhadores rurais e mesmo o movimento dos subalternos das forças arma-
A Marcha dos Cem Mil retratada por Evandro Teixeira em 1968
E não era apenas no Brasil que as massas estavam convulsionadas. O jornalista e ex-militante do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8) Cid Benjamin, que hoje atua na Comissão Estadual da Verdade do Rio, destaca o contexto internacional como fator determinante para a eclosão dos movimentos sociais no país. “Nos Estados Unidos, houve grandes manifestações de massa contra a Guerra do Vietnã. A cada semana chegavam caixões e mais caixões cobertos com a bandeira americana, era um impacto muito grande. O México, logo abaixo, estava muito convulsionado em função das Olímpiadas de 68. As manifestações estudantis colocaram em risco a realização dos jogos, o exército re-
configuração de classe dos estudantes, que levou ao seu posterior endurecimento. “Foi um golpe muito forte na classe média. Grande parte dela estava marchando, em 64, pelo fim do governo Jango, com medo do comunismo, porque iria acabar com a liberdade. Agora, eram seus filhos que estavam sendo atingidos. Em 68, quando Edson Luís foi assassinado, os estudantes entravam em teatros, interrompiam espetáculos e diziam ‘mataram um estudante, podia ser seu filho’. Uma parte das pessoas que estava ali apoiou o golpe. Talvez, sem dimensionar que aquilo era um golpe de Estado e iria instalar uma ditadura”. Apesar de Demian rejeitar uma comparação entre a
5
no. sete - maio 2014
Francielly Baliana
em 1992, não se via tamanha mobilização. A ebuli- que vê a necessidade de mobilização do povo brasileiro. ção espontânea das massas e a enorme quantidade Rafael Kritski é estudante de Ciências Sociais da Unide reivindicações geraram incompreensão em histo- versidade Federal Fluminense e faz parte do Levante. “A riadores, cientistas sociais e antropólogos. gente se propõe a ser um movimento de massas, logo, O fenômeno que mais gerou debates, sem dú- tem muito trabalho a ser feito. Nossa linha política deve vidas, foi a atuação dos Black Blocs. De vândalos a ter uma capacidade melhor de trabalhar com as contramártires, eram classificados das mais variadas for- dições em que vive o jovem de hoje. Quando se fala em mas. André Nicolau, jornalista que conheceu de per- atingir as massas, é preciso lembrar que quem tá aí soto a atuação desses grupos, destaca que todos em fre, o dia inteiro, enxurradas de ideologias em sua cabe2013 eram manifestantes e tinham algo a reivindi- ça. Nesse sentido, enxergamos que é preciso tocar onde car, principalmente por sofrerem as mesmas injus- o jovem é tocado, mostrar, por exemplo, que se a pastiças diárias no transporte, que é apenas uma parte sagem aumentou é porque os financiadores de quem do caos cotidiano. Para André, a diferença reside na está no poder são os grandes empresários”. Contudo, postura de ataque de alguns em face de repressão e essa atuação no cenário político não aconteceu apenas violência policial. “Ao invés de simplesmente fugir ou em junho de 2013. A organização existe desde 2006, e Cid Benjamin destaca a influência do contexto internacional ter medo, essas pessoas passaram a adotar a tática de Bernardo Oliveira enfrentamento e combate. E, justamente por haver conflito é que chamou a atenviolência da polícia no período ditatorial e os dias de ção da grande mídia – de forma negativa”. hoje, concorda que a repressão seja uma herança do reApesar da conquista da democracia, a gime. É o que detalha Luciana Lombardo, doutora em herança do autoritarismo ainda é visível. Antropologia Social pela UFRJ e professora de História Em 2013, os estudantes voltaram a ser suas da PUC-Rio. “A repressão é um traço de continuidade de vítimas. Um dos marcos, nesse período de um projeto de Estado horroroso. A polícia desse país é ida às ruas, foi o cerco ao Instituto de Filouma polícia de Estado, e o compromisso do Estado é eli- sofia e Ciências Sociais da UFRJ (IFCS). No minar as lutas sociais. Não é à toa que a Polícia Militar dia 20 de junho, universitários e professono Brasil nasce depois da Revolução Haitiana. Era tudo res que buscavam refúgio das bombas de que eles não queriam: um governo de pretos, pobres, li- gás lacrimogêneo atiradas pela Polícia Milivres e republicanos. A questão é sempre classista, sem- tar foram impedidos de sair do prédio. pre racista. Desde o XIX até os dias de hoje”. Embora as recentes mobilizações tenham trazido à tona uma crise das instituições representativas, a militância estudanO movimento não parou por aí til organizada ainda é forte. Organizações como a União da Juventude Socialista (UJS), Compreensão ou criminalização? A dúvida gerada pelas máscaras Após a redemocratização, em 1985, o movimento ligada ao PCdoB; Kizomba, juventude do PT; e estudantil perdeu parte do protagonismo das lutas so- Insurgência, ligada ao Psol são alguns exemplos. O Le- desde então vem realizando uma série de atividades e ciais. Tanto pelo fortalecimento do sindicalismo no ABC vante Popular da Juventude é um desses grupos de cau- discussões que envolvem diversas pautas populares. paulista, que culminou na fundação do Partido dos Tra- sa nacional. O movimento se insere num projeto político balhadores (PT), como pelo surgimento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), em 1984, e sua Bernardo Oliveira consequente consolidação. No pré-64, o movimento estudantil vinha em um processo muito ligado à questão da reforma universitária. Nesse período, a UNE buscou Ao invés de simplesmente fugir ou ter uma aproximação com as lutas populares, tentando medo, essas pessoas passaram a adotar levar o debate dos movimentos sociais para dentro da universidade. Para Luciana, entretanto, a organização a tática de enfrentamento e combate. E, estudantil fez escolhas políticas equivocadas que fragijustamente por haver conflito é que lizaram sua capacidade reivindicativa.
“
chamou a atenção da grande mídia André Nicolau, jornalista
”
“
A repressão é um traço de continuidade de um projeto horroroso. A polícia desse país é uma polícia de Estado, e o compromisso do Estado é eliminar as lutas sociais
”
Luciana Lombardo, antropóloga e historiadora
“A trajetória do movimento estudantil muda radicalmente após a abertura. Mais ainda depois do governo Lula. Antes, eles estavam querendo discutir as Ligas Camponesas, falar com o sindicato. Chegaram a propor que as faculdades de Direito dessem aula para sindicalistas, ou que as faculdades de Engenharia ensinassem aos mestres de obra. Acredito que teria sido uma iniciativa pioneira de acabar com a separação entre a universidade e o movimento social. A UNE desse período não tem nada a ver com o que ela vai virar no pós-ditadura. Acho que seu grande engano político vem depois dos anos 90, quando ela vai se destinar à tentativa de amortização do impacto do conflito, apoiando ações absurdas para as universidades públicas”. Assim como a UNE, diversas outras organizações passam por uma crise de representatividade. Em junho de 2013, centenas de milhares de jovens foram às ruas para pedir mudanças. Desde o movimento que culminou no impeachment do presidente Fernando Collor,
Diversas pautas ganharam as ruas em junho de 2013
Militância independente, partidária; grupos de debate em universidades; movimentos sociais no campo e na esfera trabalhista; os ligados a mídias comunitárias, sindicatos. São inúmeras as organizações que resistiram à passagem do tempo e coexistem em prol de diferentes ideais. A complexidade da atuação do Estado, mesmo em pilares democráticos, ainda abre margens para questionamentos, pelo menos enquanto houver uma causa pela qual lutar. Num ano em que o golpe militar de 1964 faz 50 anos, a memória sobre quem resistiu a uma política de exceção, onde se censurava, torturava e exilava precisa vir à tona. Mostrar que o povo é capaz de ir às ruas quando está descontente é uma maneira de lembrar que nas mãos de todos se legitima o poder. Essa microfísica não linear pode ser vista no curso da História. É ela, ontem e hoje, que não deixa sair de cena a fragilidade de toda hegemonia quando vários, em uma luta de muitas classes, mexem em seus pilares.
Ainda tem uma pedra no meio do caminho
6
no. sete - maio 2014
Arquibaldos e Geraldinos
Ponto a Ponto
Por Fabio Peixoto e Lucas Bastos
Badminton enfrenta a falta de incentivo e começa a ganhar espaço no Brasil Uma quadra, uma rede, raquetes e uma peteca. Esses são os itens necessários para a prática do Badminton, um esporte em crescimento no Brasil. A modalidade corre por fora em busca de atenção e incentivo, principalmente pela concorrência com esportes gigantes em popularidade e ganhadores de medalhas, como o vôlei e o futebol. Entre 5 e 21 de agosto de 2016, o Rio de Janeiro será a cidade-sede dos XXXI Jogos Olímpicos e Paralímpicos e o Brasil terá representantes nas 28 modalidades que serão disputadas. Diante disso, debutantes nos Jogos, os atletas brasileiros do Badminton pretendem agarrar essa oportunidade para aparecer para o grande público.
A raquete pesa entre 85 e 110 gramas e a peteca entre 4,74 e 5,5 gramas
A partida é disputada em games de 21 pontos, em sistema de melhor de 03
1,55m
m
36 , 4 1
Brasil e Badminton: ainda pouca intimidade
O Brasil ainda tem pouca tradição quando o assunto é Badminton. O resultado mais expressivo foi a medalha de bronze conquistada pelos brasileiros Guilherme Kumasaka e Guilherme Pardo na categoria duplas masculinas nos Jogos Pan-Americanos de 2007, no Rio de Janeiro. Embora o esporte possua tantas semelhanças com o Tênis, algumas diferenças são determinantes. Uma das principais é o custo do equipamento. Enquanto um equipamento básico de Tênis, raquete e bolas, chega a custar R$ 300, é possível adquirir um conjunto de raquetes iniciantes e petecas de Badminton por R$ 60. Outra diferença fundamental para entender a diferença de popularidade entre as duas modalidades no Brasil é a ausência de um campeão mundial e patrono do esporte no país, como o Guga o é para o Tênis. E é esse panorama que Gabriel Alcântara pretende modificar. Ele é responsável por diversos projetos de incentivo ao esporte na cidade de Niterói. Ele dá aulas de Badminton no Jurujuba Iate Clube, faz um trabalho social na Fabio Peixoto
5,18m Pode ser jogado em simples, duplas e duplas mistas Comunidade do Cubango e é professor voluntário no Estádio do Caio Martins, onde dá aulas gratuitas para quem quiser conhecer e aprender. O Badminton está em sua vida desde os cinco anos de idade, quando praticava vela, "O Badminton tem um histórico correlato ao da vela, pois precisamos do vento para velejar, e da ausência dele para não alterar a trajetória da peteca, que é muito leve". O Projeto no Caio Martins O projeto desenvolvido por Gabriel no ginásio poliesportivo do Caio Martins tem como intuito atender a comunidade. O espaço foi cedido pela administração do local a professores de diversas atividades. Toda segunda e quarta-feira, das 19h30 às 21h30, crianças, homens e mulheres de todas as idades suam a camisa e se divertem praticando a modalidade. Segundo o professor, o nú-
mero de participantes passa de 100, entre alunos regulares e eventuais. Essa diversidade de participantes se destaca como um dos pontos positivos do projeto. “Aqui no Caio Martins é esse o nosso foco maior, a socialização da galera”. Alcântara também destaca o prazer proporcionado pela atividade física. “Você começa a jogar e você nem sente, né? Daqui a pouco já está suando, interagindo, socializando”.
“A galera quer que o Brasil seja uma potência olímpica, mas cadê os investimentos desde a base?”
Gabriel Alcântara, professor
Gabriel fala com orgulho sobre o seu projeto, mas ressalta as dificuldades: “O Material é todo meu, eu que trago as raquetes, petecas, redes, postes... A gente ainda não tem nenhum patrocínio”. Ele define o grande desafio enfrentado pelo Badminton no país: “A galera quer os resultados, quer que o Brasil seja uma potência olímpica, mas cadê os investimentos desde a base? Não adianta treinar o cara faltando 1 ano para a Olimpíada”. Semente para o futuro
Raquete e peteca de Badminton: equipamento mais barato que o de Tênis
Mesmo enfrentando essas dificuldades, o trabalho de Alcântara, já rende frutos. Felipe Ribeiro, de 14 anos, começou a praticar com o professor no projeto Pró-Cubango, em 2011, e com sua ajuda conseguiu um resultado surpreendente: foi campeão brasileiro sub-13 tanto em simples quanto em duplas. "Fomos com a intenção de conhecer os competidores, ver como era o campeonato, mas
conforme fui ganhando os jogos, o Gabriel me motivou e falou que eu poderia ganhar, e foi isso que aconteceu", conta. Felipe participa dos treinos em todos os projetos do professor, mesmo que já dispute campeonatos em alto nível. "Venho para ajudar, para interagir com o pessoal e retribuir tudo que o Gabriel faz por mim. Sem ele, eu não teria ido para o campeonato, que foi em Porto Alegre (RS). Ele pagou minha passagem e me treinou. Ele é como se fosse um segundo pai para todas as crianças do projeto". Felipe pretende seguir no Badminton, mas também foca nos estudos. O garoto está cursando o 1º ano do ensino médio e quer fazer faculdade de Educação Física. Para os interessados em conhecer o Badminton, o Projeto de Gabriel Alcântara acontece no Ginásio do Caio Martins, no bairro de Icaraí – Niterói às segundas e quartas das 19h30 às 21h30 – É gratuito e não precisa dispor de equipamento próprio.
CURIOSIDADES
• O badminton originou-se na Índia com o nome de Poona e era jogado por marinheiros ingleses que aprenderam o jogo em suas viagens e os levaram pra Europa.
• O nome do esporte é uma homenagem à propriedade de mesmo nome, de propriedade do Duque de Beaufort´s, berço da modalidade em sua versão moderna. • Os primeiros jogos olímpicos onde o badminton foi disputado foram os de Munique, em 1974, como exibição. Apenas em Barcelona-92 a disputa começou a valer medalhas.
7
no. sete - maio 2014
Estante Por Daniela Reis e Igor Pinheiro
Do papel ao virtual: as múltiplas faces do livro Como o surgimento dos e-books contribuiu para mudanças na leitura e no mercado editorial Daniela Reis
“Temos e-book em papel”. A ironia escrita em um pequeno quadro verde no canto da vitrine de uma das livrarias mais tradicionais do Rio de Janeiro nem sempre é compreendida. A gerente-sócia da livraria, Milena Ducttiade, acha graça do público que pergunta sobre os e-books em papel. Ela explica, descontraída, que estes podem ser encontrados em todas as estantes que enchem o lugar do chão ao teto. Diferentemente das grandes livrarias em rede, a Leonardo da Vinci, localizada em uma galeria no subsolo da Av. Rio Branco, mantém um clima de dias remotos – abrigando até um livro editado em 1574. Se o espaço aproxima o que o tempo distancia, permanece a dúvida quanto ao futuro do mercado editorial: os livros digitais substituirão os livros físicos?
Em uma editora tradicional, o autor receberia apenas 10% do percentual de venda, contra os 70% que o site oferece
A leitura em diversas plataformas e o comércio digital de livros já são práticas comuns entre muitas pessoas. O valor mais baixo não é o único fator que explica esse crescimento, visto que alguns e-books chegam a custar o mesmo valor de um livro físico. No começo, quando os livros digitais estavam disponíveis exclusivamente em PDF na internet, se lia na tela do computador. As queixas do desconforto eram frequentes. Há alguns anos surgiram os e-readers, como Kindle e Kobo, revolucionando a maneira de se interagir com o livro virtual. Outro atrativo desses aparelhos é a interatividade com redes sociais online. Em alguns casos é possível avaliar e comentar livros, debatendo com outros leitores que também fazem o uso de e-readers. Os catálogos de livros digitais, que a princípio eram bem reduzidos, se ampliaram com o passar do tempo.
Milena Ducttiade, gerente da Leonardo da Vinci, aposta no futuro do papel
Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro Faturamento
Número de títulos lançados
O lado de quem escreve
A facilidade fornecida pelos livros virtuais também favorece o outro lado das páginas: o de quem escreve. Autores podem dispensar o contrato com uma editora, que não é algo fácil de conseguir, e se lançar de maneira independente. Barbara Herdy, aluna de Letras da UFF e autora de “Apenas Respire – Um Conto Quase de
Fonte: Pesquisa do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e Câmara Brasileira do Livro (CBL)
Fada”, conta que chegou a procurar seis editoras antes de recorrer às plataformas digitais: “Como eu vou me transformar numa autora ‘conhecida’ se não existe uma chance igualitária? Eles preferem perder milhões em propaganda para um livro erótico que fez sucesso lá fora do que tentar lançar um livro nacional, que pode ser uma revelação?”, questiona Bárbara. Vanessa Bossa também é autora independente. Os 13 livros que lançou pela Amazon já venderam mais de seis mil exemplares. Ela ressalta que em uma editora tradicional receberia apenas 10% do percentual de venda, contra os 70% que o site oferece. Mas, segundo a escritora, nem tudo é vantajoso para quem publica de forma alternativa: “Como não passou por um editor e não possui logomarca de uma editora na capa, os leitores tendem a duvidar da qualidade do livro”. Se o consumo de livros digitais superar o dos tradicionais, muitos destes espaços provavelmente fecharão as portas. E os e-books não serão os únicos culpados, já que até mesmo os livros físicos estão sendo comprados em grande escala pela internet. Mauricio Gouveia é dono de um sebo que explora as múltiplas possibilidades que o local pode oferecer. O “Baratos da Ribeiro”, localizado em Copacabana, além de abrigar livros antigos e raros, promove rodas de leitura e shows de bandas underground. “As pessoas têm que escolher: se querem ter um lugar chamado livraria, com gente que entende de livro, ou se preferem pagar o mais barato possível. Se as pessoas não fizerem a opção por pagar um pouco mais, esses lugares vão morrer”, pondera Maurício. O escritor e filósofo Umberto Eco há muito se opõe ao discurso de que o surgimento de um novo meio de comunicação substitui os antigos. O cinema, por exemplo, não conseguiu silenciar as estações de rádio. A história comprova que a introdução de inovações pulveriza as audiências, mas também cria novos públicos com diferentes perfis. Por mais ousada e completa que seja, a proposta dos e-books substitui o gosto de ter um livro nas mãos, na bolsa ou na estante da sala? “Se o mundo acabar e sobrar uma biblioteca, a gente vai conseguir reconstruir o mundo”. A frase de Milena Ducttiade, gerente da Leonardo da Vinci, contém o cerne do significado dos livros (digitais ou não) e das livrarias para a nossa sociedade: fonte de conhecimento, base e estrutura do nosso modo de vida.
8
no. sete - maio 2014
E lá vinham eles
Limoeiro
Por Bernardo Oliveira
Por Luís Pedro Rodrigues
E O CIRCO FOI PRA RUA Nesse verão, o circo decidiu ir pra rua. Combinando o calor do sol com o calor do público, artistas circenses vão às ruas do Rio se apresentar. Entre buzinas, fumaça, pessoas apressadas e prédios, colorem a cidade e trazem o som dos risos. Entre uma praça e outra, mostram sua arte versátil e cativante. Entre um chapéu e outro, conseguem pagar suas contas. Juntos da lei 5429, de 5 de junho de 2012, que autoriza manifestações culturais no espaço público aberto independente de prévia autorização dos órgãos públicos municipais, os artistas testam suas habilidades e sua capacidade de chamar a atenção. O ambiente urbano com toda a sua espontaneidade desafia-os. Ora é uma manga que cai, ora é um bêbado que aparece. Tudo, no fim, acaba fazendo parte da intervenção.
O Teatro de Anônimo e o “Rio é Rua”
Encabeçando esse movimento, está o Teatro de Anônimo, que, desde 1986, realiza o “Anjos do Picadeiro – Encontro Internacional de Palhaços”. O tema do evento de 2013 foi o “Rio é Rua”, que propunha reunir palhaços do mundo todo em intervenções pelas ruas do Rio. Em 2014, com um desdobramento, o “Rio é Rua” tornou-se um coletivo independente de artistas que tem como essência a escolha de fazer sua arte na rua. É uma opção. Suas apresentações são divulgadas previamente no facebook e toda terça-feira reúnem-se para debaterem sobre os resultados. A princípio, suas apresentações acontecem em quatro praças da Zona Sul e do Centro: Parque das Ruínas, em Santa Tereza; Largo do Machado e Museu da República, no Catete e Parque dos Patins, na Lagoa. Essa escolha se deve tanto a rentabilidade das praças quanto a locomoção dos artistas e seus equipamentos. Mas o coletivo tem pretensão de se expandir. O palhaço João Carlos Artigos, participante do “Rio é Rua”, admite: “é importante que a gente saia desse ‘centrinho’, porque existe muito mais coisas ao redor”, mas simplifica dizendo que “tem que procurar onde tem demanda... onde tem gente, e gente disponível pra ouvir o que a gen-
te vai dividir ali”.
O chapéu, o financiamento e o trabalho Experimentando novas formas de gestão e financiamento, o coletivo busca autonomia. Por opção, não tem financiamento. A ideia é que cada espectador, enquanto cidadão, garanta a manutenção do espetáculo, pagando o quanto acham que ele vale. Para isso, dependem do chapéu. João, afirma que, na aliança entre arte e cidadania, buscam dividir a responsabilidade com os cidadãos: “Você topa fazer a sua parte, se for importante ter na praça perto da sua casa esse espaço pra arte, que pode te levar a outras dimensões de compreensão da vida?”, provoca ele. João afirma que o coletivo não exclui a possibilidade do financiamento privado, mas conta que, pelo Teatro de Anônimo, já tiveram esse tipo de financiamento, mas logo desfizeram, pois, ironicamente, era caro demais atender às exigências do patrocínio. “O patrocínio te garante chegar até ali, apenas. Não garante a sua continuidade. Se o público entendesse isso, ele poderia ser o responsável pela continuação do espetáculo”. O palhaço malabarista Guga Morales, que também faz parte do grupo, afirma que dá para viver do financiamento direto (o chapéu), mas “o artista tem que se comprometer por inteiro, tem que ser bom; e ser bom é difícil”. E afirma que “trabalhar na rua é difícil, mas você sobrevive sim. Tanto do apoio, patrocínios, quanto de chapéu. Se o espetáculo é bom, tem dinheiro”. Guga, entrevistado após uma das apresentações do circuito “Rio é Rua”, no Museu da República, também confirma a importância social de se intervir num cenário com tanta pressa e dificuldades. “O circo, teatro, cultura, lazer, música quebra um pouco da estética da rua, que é acinzentada”. Precede também o aspecto social da iniciativa e a arte, o fato de ser um trabalho. Não é uma doação. “O que me motiva, primeiramente, a ir pra rua, é a minha necessidade de comer e os meus sonhos. Quem vai determinar o que é e o que não
é importante para o publico é o próprio publico”, revela João.
O inimigo número um: a chuva
Mas tanto o barulho dos carros quanto a pressa das pessoas não são nada, quando comparados a um inimigo maior; impossível de combater: a chuva. Até um céu nublado cancela as apresentações. Foi o que aconteceu no primeiro domingo de abril. Após divulgarem no facebook, algumas pessoas foram até a praça marcada. A manhã estava nublada, mas não chovia. Mesmo assim, os artistas, que chegaram a ir, guardaram seus equipamentos e cancelaram a apresentação. Quem foi assistir, teve que voltar sem nenhum sorriso no rosto.
“As crianças são só um pretexto pra vir”
Luís Guilherme levou a filha, a sobrinha, a esposa, o irmão, a cunhada e amigos ao Museu da República, na manhã ensolarada do domingo seguinte (16). Depois de verem a apresentação do Guga com o grupo latino Circo da Silva, Guilherme revelou que as crianças são só um pretexto pra eles, adultos, irem ver a atração circense. “(o circo na rua) É importante não só para as crianças, como, e principalmente, para os adultos que ainda mantém aquela criança dentro de si. E eu só lamento que a prefeitura não esteja bancando esse evento. Ela está apenas autorizando”. Ele termina a entrevista lembrando: “Circo e pão todos nós precisamos.
Uma pequena multidão. Os menores, de olhos curiosos, bem abertos. E os maiores, sorridentes, tranquilos. Todos encantados pela música, e todos miravam aquelas quatro criaturas. Não eram dali, diriam. E de que mundo viriam os palhaços? Nascidos de pele pálida, pés gigantescos, narizes vermelhos, coloridos dos sapatos aos cabelos. Eles não sorriam e não olhavam para trás. Vinham andando, certos de que eram seguidos. Chegaram ao pequeno picadeiro. Imaginando o que aconteceria no tapete redondo, amarelo e preto, uma menina atirava dois chinelos ao ar, um depois do outro, para pegá-los depois. Outra, de braços abertos, equilibrava as sandálias na cabeça. Os quatro palhaços se posicionaram, três atrás, empunhando instrumentos musicais, e um à frente - o mais alto e menos colorido. De olhar cansado, melancólico; lábios enegrecidos. Ele olhou inexpressivo para a plateia por alguns segundos, até que ela se silenciou. E teve início o movimento. A criatura acinzentada, de uniforme azul e vermelho, começou a atirar bolas e argolas para cima e a equilibrá-las em sua cabeça. Sua expressão era de deslumbramento, assim como a do público. Ele parecia encantado com o que estava acontecendo. Mesmo assim, ao final de sua apresentação, um desapontamento ainda marcava o seu rosto. E o palhaço foi se esconder. Uma segunda criatura apareceu. Falava à plateia em um sotaque castelhano, com jeito cigano. Acompanhada por uma música misteriosa, a palhaça causava algum receio. O suspense foi quebrado momentos depois, quando se descobriu que tudo o que aquele ser queria era que todos rebolassem juntos, seguindo as suas ordens. E, ainda rebolando, a palhaça se foi. No mesmo momento o outro - o cinzento - reapareceu. “Vocês gostam de mágica?”, perguntou, olhando para o chão. “Sim!”, ouviu o palhaço. E voltando o olhar para frente sentenciou: “Eu sou malabarista”. Em seguida, a criatura se colocou, sem esforço, num monociclo a quase dois metros do chão. A física não autorizou o movimento e ambos caíram – palhaço e monociclo. Pareciam tão seguros em seu fracasso que não seria estranho suspeitar de um acordo prévio entre os dois e a gravidade. Aterrisaram a alguns centímetros de uma menina de não mais que oito anos. A menina se assustou e começou a lutar, desesperadamente, contra um choro quase incontrolável. “Não, não chora!”, gritava o palhaço, entrando, imediatamente, na luta junto à pequena. Ali ele não podia falhar. E depois de algumas bexigas coloridas e um colo de mãe, o choro desistiu e foi engolido. Os palhaços se revezaram mais algumas vezes. Dois tocando instrumentos atrás, a cigana rebolando e caindo ao chão e o cinzento, brincando de equilibrar as coisas e a si mesmo. A menina tapava os olhos com as mãos, deixando apenas uma fresta entre os dedos para ver. Desta vez ele não caiu. Então as quatro criaturas se voltaram a um objeto. Um aparato tecnológico, diriam. Algo que permitia que aqueles seres se transportassem de onde quer que seja que os palhaços vêm para o nosso universo. E o palhaço cinzento, de sobrancelhas tristes, ergueu do chão o objeto e o mostrou ao público. A última tecnologia na invocação de palhaços: um chapéu.