nยบ seis - MAR / ABR 2014
no. seis - marรงo/abril 2014
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no. seis - março/abril 2014
Editorial
Perfil
Transforme-se
Texto e foto por Gabriel Vasconcelos
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s portas e janelas estão se abrindo mais uma vez. Nesta edição, vamos propor leituras que transformam não o corpo, mas a alma. Caro leitor, desejamos provocar reflexões que contribuam para a aceitação das diferenças. Sabemos das preferências e ideias distintas de nossos leitores e, por isso, nossa intenção é promover um debate sobre as consequências do preconceito com aquilo que fere a heteronormatividade. Começaremos a nossa conversa tratando do que é inerente a todos nós: o corpo. Para muitos um templo a ser cultuado, amado e contemplado. Mas há quem não se sinta representado pelo que lhe é imposto. Trataremos aqui sobre a busca de retomar o controle sobre a sua própria identidade, tanto civil quanto pessoal, e passar a se (re)conhecer no corpo em que habita. Vamos ouvir a voz d@s discriminad@s que encontram cada vez menos espaço na sociedade para viver. Ainda falando de relações corporais e psíquicas, visitamos uma reunião dos narcóticos anônimos em busca de depoimentos. Conheça mais desse mundo nas próximas páginas. Além disso, você também saberá um pouco mais sobre uma personalidade curiosa do futebol carioca, cujo trabalho não se deu na disputa pela bola, e sim no auxílio aos médicos do gramado. Para fechar, traremos um bate-papo com um baianinho arretado, visto como um dos maiores fotojornalistas brasileiros. Nosso casarão está com o foco numa conversa descontraída com Evandro Teixeira. O fotógrafo conta um pouquinho da sua história e expectativas sobre o futuro. Evandro mostra também uma humildade diametralmente oposta ao seu prestígio.
O CASARÃO
Texto e Arte: Ana Carolina Assayag, Ana Carolina Paradas, André Borba, Augusto Mendes, Camilla Shaw, Carolina Cantreva, Cindy Borges, Daniela Reis, Daniela Tupinambá, Daniele Barbosa, Débora Diettrich, Elena Wesley, Gabriel Vasconcelos, Gabriela Vasconcellos, Gustavo Cunha, Igor Pinheiro, Isabella de Oliveira, Isabelle Cantanhede, Joana Jorge, Juliana Pimenta, Liliana Silva, Livia Alves, Lucas Bastos, Marcela Macêdo, Marcela Arcoverde, Mariana Penna, Mariana Pitasse, Marina Riker, Mirian Sampaio, Rodrigo Rocha, Samantha Su, Thaianne Coelho e Thiago Medeiros Capa: Mariana Baptista Mídias Sociais: Talita Alves
ocasarao12@gmail.com fb.com/jornalocasarao @jornalocasarao
www.jornalocasarao.com Agradecemos a orientação dos professores Carla Baiense e Rômulo Normand APOIO
MARACA VIVO
O lendário Mike Tyson, ou Seu Enéas, em sua casa, em Brás de Pina
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o dia anterior, saí do jornal em que trabalho e, por força do hábito, fui ter com alguns amigos na mesa de bar. Sabia que não devia beber muito porque no dia seguinte, bem cedo, entrevistaria uma das figuras mais marcantes da minha infância: o histórico maqueiro do Maracanã Mike Tyson ou, para os mais íntimos, Seu Enéas. Ao soar do despertador de corda, acordei com o estômago revirado, talvez pela bebida, talvez pela azeitona do pastel, quem vai saber? O fato é que me levantei na hora e não aceitaria remediar. Fiz uma hora em casa, mas a ressaca – ou, para a mãe, o mal estar – não dava trégua. Com receio de pegar no volante ou passar mal no calor do ônibus, pedi a meu pai que me levasse e, para minha surpresa, ele topou. A mística daquele simpático aposentado do subúrbio de Brás de Pina era tamanha que até mesmo o mais ranzinza dos homens que torcem por futebol seria seduzido por cinco minutos de conversa. Quando saltei do carro, encontrei Mateus, o amigo, que esperava embaixo de uma árvore solitária já havia uma hora. A casa era ali mesmo, na esquina, e os vizinhos se preparavam para o churrasco na calçada. Ao segundo toque na campainha, uma voz rouca pediu que aguardássemos. Era ele, mas não era. De óculos escuros e com um sorriso que lembra Stevie Wonder, ele abriu o portão. Não era mais o negão “quatro por quatro” que víamos disparar pelo gramado sempre que um ou outro jogador caía. Aquele, que outrora fora a cara do vigor físico, hoje está magro, anda e enxerga com dificuldade. Ele próprio estranha: “não faz muito tempo que eu parei, era muito forte, mas hoje, às vezes, me olho no espelho e não me reconheço, fico meio puto, mas é a vida”, diz. Aos 73 anos, Enéas se recupera de uma operação nos olhos que não sabe especificar. Antes disso, operou a tireoide no Hospital dos Servidores, na Gamboa, de cujo atendimento reclamou muito. Mesmo assim, o prazer em nos receber e a altivez com a qual fala do maior do mundo e suas histórias não deixa dúvidas: é ele, o homem que tanto xinguei quando acudia o adversário, o mesmo para quem eu pedia para demo-
rar quando o Botafogo vencia o jogo. A casa era humilde, mas aconchegante: dois quartos, sala e uma pequena cozinha com área de serviço. Ficamos na sala, escurecida para não afetar a vista do nosso personagem. Na expectativa de escutar apenas alguns bons causos, ouvimos mais do que esperávamos. Foi ligar o gravador para ele dizer, sem rodeios: “Não gostei muito desse Maracanã não, preferia o antigo, com aquela geral bacana, ingresso e comida barata. Mas é a tal da Fifa. Por causa de dinheiro, eles esculhambaram o Maracanã”, reclamou. E Seu Enéas tem cabedal para falar, afinal, foram 38 anos lá dentro.
“Eles quebraram o Maracanã. Acabaram com o principal, que era a geral”
A história começou em 1975, quando foi convidado para fazer a segurança de um show de Gilberto Gil no estádio. “Eu fiquei em um dos portões com um coroa da Suderj. Perguntei como fazia para trabalhar lá, mas ele disse que era difícil porque era do governo”, conta, ao dizer que admirava o Maracanã todos os dias quando, ainda jovem, passava de trem em frente ao estádio no caminho para o trabalho. “No final, ele me apontou o tal do superintendente Pedro Hipólito que, todo estúpido, me perguntou o que eu queria. Eu disse que queria varrer a arquibancada e ele disse que não tinha vaga, mas acabou dizendo que ia me colocar na maca. Eu nem sabia o que era maca. Ele me explicou que era para carregar jogador. Achei aquilo uma beleza. No outro domingo, me apresentei em um Flamengo x América”, lembra.
O apelido e a fama Não demorou muito para Enéas ser efetivado no quadro móvel da Suderj, formando a famosa dupla Mike Tyson e Ananias - apelido dado pelo jornalista esportivo Gilson Ricardo – com o outro maqueiro de nome Geraldo. “Lembro que tinha um locutor da TVE que dizia assim: está lá um corpo estendido no chão, é o primeiro caído da tarde para Enéas e Geraldo”, se recorda na tentativa de justificar a popularidade. “Ficamos muito famosos. Tirávamos fotos com a
torcida, aparecíamos na TV e não tinha um que entrasse naquele campo e não falasse com a gente. Eu tinha uma moral tremenda com os jogadores”, conta. Mas todo esse sucesso não chegava ao bolso. Seu Enéas recebia por jogo e, segundo ele, a remuneração não era lá grande coisa. Por isso, continuou a fazer segurança particular, trabalho que dava envergadura ao orçamento familiar. E os contatos ajudaram. Ele trabalhou como segurança em Quintino, na casa da família de Zico, de quem se lembra com carinho, além de outros lugares como bancos e clubes. Na lista de famosos que escoltou, figuram Claudia Raia, Angélica e o ex-Ministro da Fazenda Mario Henrique Simonsen. Mas o que Enéas gostava mesmo era passar o tempo no Maracanã. “Aquela galera da geral me sacaneava, jogava copo de mijo em mim. Eles me xingavam e depois gritavam meu nome”, lembra indo da euforia à tristeza ao completar: “Eles quebraram o Maracanã. Acabaram com o principal, que era a geral. O Maracanã era bonito, dava gosto de ir. Agora não sinto mais vontade”. Orgulhoso por não ter faltado a nenhum jogo nessas quase quatro décadas de Maracanã, Enéas viu de tudo. O jogo mais importante que fez, na sua opinião, foi de Brasil x Paraguai, pela Copa América de 1989 e os melhores jogos que diz ter visto foram os clássicos entre Vasco e Flamengo na década de 1980, Roberto Dinamite de um lado e Zico do outro, o melhor jogador que diz ter visto jogar foi o próprio Zico, seguido de Maradona. “O Maradona pediu para tirar foto comigo, me chamava de negrito, mas depois não quis me dar a camisa. Os argentinos não me davam camisa. Batistuta, Riquelme, eram cheios de merda”, conta.
Os causos “Lembro que o Sávio tomava muito cacete e o Bebeto era chorão. Já o Romário era manhoso, caía de sacanagem e eu tinha que carregar ele mesmo sabendo que não era nada. Quem me sacaneava muito era o Junior Baiano, ele e Serginho Chulapa não cabiam na maca. Teve um jogo em que o Flamengo tinha acabado de entrar em campo e o Baiano caiu. Eu disse ‘porra, pera aí, que é que é isso’, mas era distensão na coxa direita. Quando ele subiu na maca, a coisa envergou. Teve um Brasil x Chile em que aquele goleiro Rojas caiu e não deixaram eu pegar nele. Colocaram mercúrio para fingir sangue e tentar acabar com o jogo, aproveitando que um rojão tinha caído no campo. Depois, quando ele foi para o São Paulo, reclamei sobre isso, mas ele começou a rir”, lembra. Casado há 51 anos e pai de um único filho, o contato do vascaíno Enéas com o futebol hoje se dá pela memória, puxada por fãs que, não raro, o abordam nas ruas, ou pelo rádio, já que a televisão é contraindicada no pós-operatório dos olhos. Saudoso, ele diz sentir falta dos tempos de maca, mas se diz satisfeito com a vida. “Se eu morrer agora, estou satisfeito, eu curti. Passeei, trabalhei muito e me tornei famoso”, diz antes de nos ver sair pelo portão como criança com doce nas mãos. Só quem frequentou aquele Maracanã sabe o que significa.
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Ágora Por Débora Diettrich, Liliana Silva e Marcela Arcoverde
Os caminhos possíveis na luta contra o vício
Três homens arrumam a sala. Aos poucos, o local vai enchendo. Rostos familiares trocam sorrisos e as pessoas se abraçam. Há gente nova na sala. Essas são recebidas com explicações, algumas perguntas e mensagens positivas: “Você está no lugar certo!”. Dadas 20h, é feita uma apresentação rápida do que é e como funciona o Narcóticos Anônimos. A reunião começa com a oração do adicto, entoada pelas 25 pessoas presentes: “Deus, conceda-me Serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, Coragem para modificar aquelas que posso e Sabedoria para reconhecer a diferença. Só por Hoje, Funciona” As reuniões do Narcóticos Anônimos (N.A.) de Icaraí ocorrem toda segunda, quarta e sexta das 20h às 22h, na Igreja Santuário das Almas. Após um minuto de silêncio pelos adictos que ainda sofrem, a palavra é compartilhada:
Anônimo I
Anônimo II
Anônimo III
Jovem de 20 anos, adicto em recuperação, limpo há 1 ano
Mulher de 32 anos, adicta em recuperação, limpa há 2 anos e 8 meses
Homem de 40 anos, adicto em recuperação, limpo há 2 anos
Minha relação com as drogas começou na minha pré-adolescência, aos 12 anos. Aquela mesma história de sempre. Eu ia para a praia e me ofereciam um baseado. Eu aceitava. No início, era só de vez em quando. Aí começaram as festas, boates. Conheci novas pessoas e novas drogas. Usei de todos os tipos. Quando marcava alguma coisa com amigos para o final de semana, já ficava ansioso pensando em como arrumar o bagulho. Após quatro anos de uso contínuo, tive minha primeira internação. Passei por três clínicas de reabilitação. As duas primeiras não tiveram efeito nenhum. Sempre que era liberado, já estava na “boca” de novo. Na última clínica, conheci o Narcóticos e aqui estou até hoje.
Eu sempre tive uma vida organizada e nunca tinha usado uma droga sequer até os 30 anos. Um dia, numa festa, resolvi tentar. A gente sempre pensa que tem o controle. Tinha o hábito de beber toda a noite e usar só depois do jantar. Depois, passei a beber e a consumir droga no almoço, e até no café da manhã também. Cheguei até a me demitir de um emprego. Dizia que era para estudar, mas o vício me tornou uma pessoa acomodada. Precisava de uma droga para desligar e apagar. Resolvi entrar no grupo sozinha, mas ainda não acreditava ser uma adicta. Cheguei a trazer droga para cá e assistir a reuniões drogada. Um dia caí na real.
Muitos aqui sabem como é difícil estar aqui, limpo há tanto tempo. Eu levo a sério isso do “só por hoje”. É uma batalha por dia! Eu cheguei até a fracionar o meu dia em 20 minutos, pois pensar em um dia inteiro era impossível. Fui usuário de drogas durante 12 anos da minha vida. Menti, roubei, e até bati em minha mãe deficiente. Fui internado 12 vezes, já recaí várias. Só a gente sabe da nossa dor. Hoje tive um problema no trabalho, descontei na minha mãe, que faz tudo por mim. São desculpas para voltar a usar. Já roubei o ar-condicionado de casa para vender por R$100. Minha mãe teve de passar a trancar os cômodos com coisas de valor para eu não roubar. Estou limpo hoje e só por hoje.
todos eles têm contato quando quiserem, a hora que quiserem, normalmente essa é a realidade. Eles vêm do mesmo bairro, então não é aqui que vai fazer diferença. Na verdade, é o contrário. Eles vão até aprender com as experiências dos outros”.
dos utilizados não passam, na maioria dos casos, por medicamentos, mas sim por uma perspectiva histórico-cultural. “É uma metodologia em que o eixo central é o processo de interação adulto-criança, ou paciente-profissional, ou ainda do adolescente com os profissionais e dos adolescentes e das crianças entre si. O eixo é a interação e, a partir daí, proporcionar essa mediação social. Quando você vai fazer parte da estrutura do outro durante um período para ver, com ele, as necessidades e, principalmente, como ele pode lidar com certas situações”. “Dentro da terapia de família, existem diversos tipos de trabalho. A gente trabalha com a família como um sistema. Em alguns casos, usamos também, dentro de uma visão médico-social, a questão medicamentosa, principalmente quando existem problemas, como depressão, ansiedade, sintomas de abstinência, que podem ser ajudados com a medicação”. A taxa de sucesso do tratamento de cada jovem depende de muitos fatores. Quanto mais cedo for feita a intervenção por parte dos médicos, maior a chance de um bom resultado. No GEAL, a taxa de sucesso é cerca de 70% nos casos em que os profissionais contam com o apoio da Justiça. Por ser um grupo de estudos e pesquisa, não possui grandes possibilidades de acompanhamento dos jovens quando terminam o tratamento. Alguns continuam a ter contato com os profissionais pelo menos uma vez por ano, mas a maioria segue o seu rumo. A maior vitória para Jairo e para o GEAL é o fato de muitos dos atuais conselheiros terem sido jovens em tratamento um dia. Hoje são eles que ajudam outros a encontrar um rumo.
Alternativas Jairo Werner, médico especialista em psiquiatria da infância e da adolescência, é professor de Medicina na UFF e assessor do Ministério Público Estadual na área de Direitos Humanos. Ele é também coordenador do GEAL, Grupo Transdisciplinar de Estudos e Tratamento do Alcoolismo e Outras Dependências. “Aqui, o atendimento é prioritário a crianças e adolescentes entre os 6 e os 18 anos. Nós temos um tratamento preventivo para crianças que apresentam problemas na escola ou problemas de comportamento, porque isso pode ser um fator que vai levar essa criança a sair da escola ou a se ligar a condutas inapropriadas, como o próprio uso de drogas. Nós temos também o trabalho terapêutico com grupos de adolescentes, o tratamento médico e a terapia de família. Fazemos um tripé de trabalho: em grupo, individual e familiar”.
“Eles têm contato (com a droga) quando quiserem, a hora que quiserem, normalmente essa é a realidade”
Grande parte dos jovens que estão inseridos no GEAL chega do juizado, ou do conselho tutelar, e a maioria pertence a famílias com histórico de consumo e tráfico de drogas. O projeto tem como objetivo principal tratar cada criança com naturalidade. Jairo admite que a mistura de experiências possa incentivar o consumo de outras substâncias. “Nós já não temos tanto medo dessa contaminação, porque
“Quanto mais cedo for feita a intervenção por parte dos médicos, maior a chance de um bom resultado” Quando chegam ao GEAL, os jovens passam por uma avaliação, social e médica, e são inseridos em diferentes grupos. “No grupo, ele é acompanhado por um médico que fica com eles e depois faz os atendimentos individuais. Então, a gente trabalha sempre em um triângulo: o médico, o psicólogo e o educador, que é o professor. Também tem os conselheiros, que são ex-usuários. Nós, profissionais, às vezes somos vistos como caretas, como pessoas que não usam ou que nunca usaram e, por isso, não sabem bem o que é. Então, a gente tenta manter esse tipo de multidisciplinaridade. Mas não é assim, passa por um, passa por outro. É todo mundo atuando junto. Eu sei que isso é um pouco difícil na nossa realidade, mas essa é a nossa tônica”. Os profissionais do GEAL tentam ao máximo que as famílias dos jovens se envolvam no processo de recuperação, o que nem sempre é fácil. São poucas as famílias que acompanham até o fim. Aqui, os metó-
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Capa Por Gabriela Vasconcellos, Marcela Macêdo e Mariana Penna
É preciso se (re)conhecer A busca pela verdadeira identidade que permita o autoconhecimento e a aceitação social
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Eu nunca brinquei de boneca, menstruei com dez anos e não entendi nada. Começaram a nascer seios e eu não queria usar sutiã”. Foi dessa maneira que Marcos Vinícius Belarmino, aos poucos, descobriu sua verdadeira identidade. Hoje, aos 22 anos, o jovem conta que teve uma infância difícil, pois os pais, os únicos que pareciam aceitar sua essência, morreram durante a adolescência do rapaz. Órfão, Marcos se mudou para a casa de seus tios. Discriminado e obrigado a assumir uma identidade que não lhe pertencia, o garoto conta que precisou insistir nos padrões femininos impostos pela família. “Tive que me tornar uma menininha, andar que nem uma princesa. Emagreci, alisei meu cabelo, e o deixei comprido”, conta. Agindo sob pressão, ele ainda
precisou lutar contra a própria sexualidade. Contudo, após constatar que o namoro com um homem jamais daria certo, Marcos optou por sair da casa dos tios. Depois de conhecer um rapaz transexual, o jovem decidiu mudar de aparência. Corte de cabelo, tentativa de esconder os seios e novas roupas foram suas primeiras transformações. O segundo passo foi se relacionar com uma mulher virtualmente. No entanto, o namoro frustrou o rapaz, que ao encontrar a moça, sofreu novamente discriminação. Segundo ele, a garota afirmou preferir namorar um homem de verdade a uma mulher que parecesse um homem. Assim, a vontade de se masculinizar aflorou ainda mais. Atualmente, Marcos toca em uma banda e cursa faculdade de Letras, mas tem dificuldades para seguir uma vida normal. O medo da discriminação o Fotos de Arquivo pessoal impede de sair de casa com frequência. O rapaz ressalta que o preconceito é fruto da ignorância da sociedade ao lidar com a questão. A falta de entendimento fez também com que perdesse o contato com os familiares. Ainda de acordo com ele, muitas pessoas confundem transexualidade com homossexualidade. O transexual recorda um caso em que foi agredido verbalmente. “Um namorado de uma amiga minha falou: ‘É homem que nem você ou homem que nem eu, com bolas?’. Meu sangue subiu na hora”, admite. Os próximos passos de Marcos ainda giram em torno de sua aparência. O jovem junta dinheiMarcos já traçou o novo rumo de sua vida ro para realizar a cirurgia de retirada dos seios e se prepara para o início
Glossario:
Transexual - Quem possui uma identidade de gênero diferente da que foi designada no nascimento. Muitos acreditam que @ transexual rejeita a sua genitália, mas nem sempre isso acontece. Algumas pessoas trans optam pela cirurgia de adequação de sexo, mas outras não. Transgênero - Quem transitou de gênero, independente de ser fixo ou fluido.
de um tratamento hormonal, que deve acontecer em breve. “Vou ter mais pelos, minha voz vai engrossar, meus seios começarão a atrofiar e meu corpo vai ficar mais masculino. Vai mudar tudo, não vejo a hora!”, relata, entusiasmado. Ele conta também com o auxílio de uma psicóloga para lidar com os problemas que aparecem pelo caminho. Entretanto, já possui suas escolhas futuras bem definidas. Marcos quer ser pai, seguir a carreira de professor e construir uma nova família. O jovem confessa ainda que não se sente representado. Segundo ele, muitos esquecem dos transexuais no movimento LGBT, que agrega lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. Marcos diz que gostaria que o movimento ajudasse a divulgar mais informações sobre a classe, para que esta conseguisse mais respeito. Uma questão muito discutida, e que representa grande barreira para pessoas trans, é o fato de a transexualidade ainda ser considerada uma doença da ordem da psicose. Para muitos especialistas, o que caracteriza essa patologia é uma pessoa se propor a viver outra realidade, neste caso, mutilar-se a fim de transformar o próprio corpo em algo que ele não é.
Um olhar científico De acordo com a psicanálise, a psicose corresponde a um funcionamento psíquico que obedece a um princípio de rejeição primordial, que consiste na expulsão de ideias ou pensamentos próprios, os quais passam a ser tratados como estranhos ou não acontecidos. Como um efeito, pode ocorrer a cisão do eu em duas partes, uma que é e outra que não é reconhecida como própria. E quando os pensamentos não reconhecidos são localizados em
Travesti - Trata-se de quem se veste e se comporta como, o que é socialmente considerado, o gênero oposto ao qual lhe foi designado.
Identidade de Gênero - Como você se considera. Do gênero feminino, masculino, trans, ou como quiser.
Expressão de Gênero - Forma como demonstra o gênero (baseado nos papéis tradicionais de cada gênero),
outras pessoas, é caracterizada a psicose como paranoia. As principais características clínicas de uma psicose são delírios, alucinações e alterações da consciência do eu. A memória e o nível de consciência não são prejudicados. Se isto acontece é devido a outras alterações clínicas, bem como a substâncias psicoativas. Para o psicólogo Júlio D’Amato, existem dois caminhos para pessoas que rompem com o padrão de gênero já instituído. Primeiro, considera-se a hipótese já levantada da psicose, quando a pessoa se vê como outro tipo de ser que não é e altera seu corpo para que pertença a outro sexo. Por outro lado, podemos encará-los como pessoas que verdadeiramente bancam uma realidade, uma condição muito corajosa. “Alguém que se flagela, se mutila na defesa de uma sexualidade merece uma atenção, seja na ordem de uma psicose ou de uma valentia sem precedentes”, declara. Para Júlio, a discussão do assunto é importante para que possamos superar preconceitos e consigamos aceitar as diferenças na sociedade. Por mais que exista uma grande sensação de inutilidade nos debates deste assunto, muito já foi conquistado, visto que qualquer mudança social demanda bastante tempo. Hoje é possível conversar sobre transgênero de uma maneira menos traumática do que há cinco anos. As crianças, por exemplo, já lidam com essas situações de maneira muito melhor do que as outras gerações. Pois não conseguem ver preconceito, a não ser que sejam influenciadas.
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El@s precisam ser mostrad@s para acabar com o sentimento de aberração. Só o que a gente desconhece nos espanta” Júlio D’amato, psicólogo Um grande passo para administrar esta situação é dar direito de trabalho a essas pessoas, e impedir que a sociedade os deixe no desvio, como aleijados do mundo do trabalho. “Não se entende o direito que alguns acham ter de colocar os diferentes em um armário escondido. Eles precisam ser mostrados para acabar com o sentimento de aberração. Só o que a gente desconhece nos espanta. Quem sabe um dia possamos ver essas pessoas como alguém que precisou de uma mudança pra se encaixar”, diz o especialista. A contradição é que os transexuais submetem-se a tantas mudanças porque se sentem fora de contexto, acreditando que desta forma vão se encaixar melhor na sociedade. Com essa tentativa, acabam sendo colocados à margem social, excluídos pelo preconceito que ainda predomina.
através das formas que age, se comporta e interage.
Sexo Biológico - Como as ciências biológicas consideram os sexos. Mulher = vagina, ovários, cromossomos XX. Homem = pênis, testículos, XY. Orientação sexual - Reflete por quem você se atrai, física e emocionalmente, baseado no sexo/gênero da pessoa em relação a você.
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“Quem não é visto não é lembrado. E quem não é lembrado não existe”
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aminhava segura de si, alguns passos a minha frente. Poderia até passar por arrogante, mas quem a enxergasse a fundo conseguiria perceber que estava concentrada. Com medo de cair, talvez. E nem usava salto alto. Era provável que fosse para não reparar nos olhares. Olhares assustados, curiosos, pessoas cochichando. Outros observavam, passavam, voltavam para ver novamente. Outros olhavam como olhavam para mim. E Bruna continuava andando. Volta e meia, desacelerava o passo para comentarmos alguma coisa. Mas não se prendia aos olhares, deixava que passassem. Deixava ir embora junto com os donos deles. E ela seguia. Bruna Marx Benevides é transgênero, ou, como ela se identifica e apresenta, transexual. A complicação de nomes deve-se a uma questão simples em teoria: de acordo com a legislação vigente, só pode ser considerad@ transexual quem é operad@, ou está em vias de operar. O que não é o caso de Bruna. Bem resolvida com seu órgão sexual, mas não só com isso, ela conta que se identificou como menina a partir do que define como um processo de autoconhecimento, que nada mais é do que sua vida. “Meu lado feminino sempre foi muito forte, muito presente. Com cinco anos de idade eu já era discriminada, era excluída dos grupos, por apresentar comportamento diferente do esperado para um menino. Então eu digo que a Bruna sempre existiu, ela só não tinha esse nome.”
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Infelizmente, não é uma questão de ceder, mas de se inserir na sociedade”
Com uma infância difícil, no Ceará, foi expulsa de casa aos 15 anos, mas pôde contar com uma tia. “Minha mãe é fanática religiosa, então é impossível ela aceitar. Mas eu me pergunto por que é tão difícil respeitar. A minha família foi ignorante, no sentido de ignorar mesmo a situação. Eles me jogaram no mundo, me deixaram a esmo”. A relação com a mãe hoje é superficial. Se falam apenas pelo telefone, sobre os mais diversos assuntos, mas nunca aqueles que podem ser incômodos para os pais. Ela ainda não contou sobre a decisão de fazer sua transição. Apesar de ter nítida experiência de vida, a contradição é que agora Bruna se prepara para entrar na puberdade. As principais mudanças que notou com o tratamento hormonal foram na pele,
Bruna não se incomoda com olhares curiosos
além da redistribuição da gordura para partes que são notoriamente femininas, como o quadril e seios. Isso no que toca os aspectos físicos. Nos emocionais, Bruna diz que seu endocrinologista brinca que em breve vai ter TPM. Ela conta que anda mais irritada, com um pouco mais de stress. Hoje, ela tem o acompanhamento de um endocrinologista particular, mas começou como a maioria, sem acompanhamento especializado e pegando conselhos com amigas e fazendo o que chama de “coquetel maluco”. Ela diz que o que a desmotivou foi a exposição, além da grande dificuldade de se encontrar um endocrinologista que especializou-se no atendimento de transexuais. Ainda não existem, por exemplo, estudos concretos que definam como o estrogênio vai, ao longo da vida de uma pessoa, modificar o físico e o emocional. A decisão final pela mudança é recente e segundo ela, costuma ser considerada tardia pela maioria das transexuais: há cerca de três meses, com 33 anos. “Pode parecer covarde, mas eu acho que fui muito sensata. Porque primeiro eu me estabilizei emocionalmente, financeiramente, e, a partir daí eu decidi que era isso que eu queria. Infelizmente, não é uma questão de ceder, mas de se inserir na sociedade. Você vai cavando seu espaço, e aí diz: ‘agora eu posso ser quem eu sou, posso decidir os rumos que vou tomar’. Por isso que eu decidi fazer a minha transição agora. Grande parte das pessoas trans quer fazer tudo muito cedo e, às vezes, até de forma inconsequente, talvez pela ansiedade: ‘eu quero peito, eu quero cabelo comprido’. Como se isso fosse de-
terminante para a felicidade. Felicidade pra mim não é isso, é mais além”. Para conseguir estabilidade, leva uma ‘‘vida dupla’’: desde os 17 anos, trabalha “vestida de menino”, para se sustentar. Ela conta que viu pessoas ao seu lado fazerem a transição muito cedo, e foram fadadas a uma vida de prostituição. No Brasil, as transexuais enfrentam muitas dificuldades de inserção na sociedade e, consequentemente, no mercado de trabalho. Muitas vezes, a única opção que sobra é a prostituição. Outros fatores determinantes são a renda e o fato de se sentir acolhida, por ver outras pessoas na mesma condição. Pode parecer assustadora a questão da vida dupla, mas é apenas mais uma das coisas que Bruna encara relativamente bem. Cheia de comparações, faz mais uma durante a conversa: “Você não vai trabalhar de decote e shortinho, vai? Então, se o meu trabalho exige que eu me apresente da forma como eu fui contratada, eu vou”. Isso só se tornou um problema quando ela decidiu, de vez, fazer a transição. Pelo estatuto interno do órgão que trabalha, só podem trabalhar pessoas do sexo feminino e pessoas do sexo masculino. Por não se encaixar totalmente em nenhum dos dois, Bruna vai ser aposentada compulsoriamente – de forma obrigatória, quando completar sua transição, o que deve acontecer até junho de 2014. No entanto, faz questão de deixar claro que não vê como discriminação, mas uma consequência de não existir uma legislação específica que aborde o assunto, frisando a necessidade de que se analise caso a caso. “No meu caso, não há o que fazer. Isso é uma ordem normal, hierárquica, que tem que ter em qualquer empresa. Vou tentar recorrer na Justiça para ter direito a uma aposentadoria integral. Porque eu não estou sendo aposentada por ser transexual, mas porque minha condição, no momento, é incompatível com o efetivo do órgão. Então minha luta não é para ser reintegrada. Como eu posso exigir que eles me mantenham no cargo, se eu vou sofrer bullying e discriminação por todos? Do momento que eu entrar no trabalho até a hora de sair, vou sofrer discriminação, olhares maldosos, assédio moral e sexual, talvez retaliações e inclusive ser preterida para cargos maiores, simplesmente por ser trans. Um simples almoço vai ser muito difícil, porque eu vou ser a única em um universo extremamente masculino, incluso de algumas mulheres com pensamentos sexistas e machistas”. Bruna se refere justamente ao fato da dificuldade de pessoas trans se inserirem no mercado de trabalho. Mas não focou apenas na discriminação. Polêmica, afirma que “quem não é visto não é lembrado, e quem não é lembrado não existe”. Diz que, se quer provar para as pessoas que a situação que vive é normal, precisa acreditar e viver isso de forma natural. “Como vai haver demanda pras transexu-
ais se elas não tão aí batendo na porta? A maioria está simplesmente se deixando levar por essa situação de exclusão. Talvez por ser mais cômodo. Porque não quer se indispor, não quer levar ‘um tapa’ na cara da sociedade”. E completa dizendo que é fundamental que as pessoas trans parem de se esconder, até mesmo para acelerar o processo de garantia de direitos: “As leis, inevitavelmente, vão ser criadas, vistas, e pensadas de acordo com o momento que se está vivendo. As coisas vão mudando ao passo que as pessoas vão se abrindo ao entendimento. Então essa questão de lei está ai, é uma realidade. Agora eu acho que o que falta é as pessoas se permitirem. E saberem como vão administrar essas leis pras suas vidas”, diz.
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A maioria está se deixando levar por essa situação de exclusão. Talvez por ser mais cômodo” E como você faz pra ser tão segura, Bruna? Apesar de esperar uma fórmula mágica, ela logo revelou que não tem. “Eu fiz um caminho inverso. Ao longo da minha vida, eu me preparei para viver esse momento. Então, hoje me sinto mais segura pra enfrentar as mudanças de cabeça erguida”.
O casal planeja o futuro juntos
Cabeça erguida e companheiro ao lado, segurando sua mão, atento a cada palavra que saía de sua boca. Volta e meia concordava com a cabeça, vez ou outra fazia piada, como quando Bruna falou em TPM. Gustavo Benevides, de 20 anos, é seu companheiro, com quem vive junto há dois anos. Com apenas três semanas de relacionamento, os pais de Gustavo descobriram que Bruna é trans e o expulsaram de casa. Com a mochila nas costas e três mudas de roupa, bateu na porta de Bruna. Quase um pedido de casamento. Este, de papel passado, deve sair logo depois da aposentadoria. Falando dos planos para o futuro, uma cena marcante: se olharam nos olhos, sorrindo e falaram quase em uníssono: “o lema da nossa casa é trabalhar, para ganhar, para gastar”.
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Identidades
Alhos & Bugalhos
Por Ana Carolina Assayag, Ana Carolina Paradas, Daniela Tupinambá e Marina Riker
Por Lucas Bastos
A fascinante vida de Ninguém
` procura de um estAgio ` A
Fotos de Arquivo Pessoal
O desafio de ingressar em uma universidade é cada vez maior para os jovens que saem do Ensino Médio. A graduação exige dedicação do aluno, mas a experiência que o mercado deseja só vem mesmo a partir do estágio, onde começa um novo desafio. Atualmente, apenas 10,51% de estudantes do Ensino Superior estão estagiando. Segundo a Associação Brasileira de Estágios, fatores como falta de bom domínio da língua portuguesa e de outros idiomas, postura adequada e conhecimento dos programas de informática dificultam o acesso dos candidatos às oportunidades, produzindo um excedente de vagas, uma vez que não há mão-de-obra qualificada para preenchê-las. Pesquisa da ABRAES (Associação Brasileira de Estágios), realizada após a implementação da Nova Lei de Estágio, revela que existe, hoje, um milhão de vagas para os estudantes que queiram estagiar, dentre elas, 740 mil para alunos do Ensino Superior e 260 mil para os de Ensino Médio e Técnico. A média dos salários é de R$ 777,82, um aumento de 6,5% em relação a 2011. No entanto, as vagas são distribuídas de forma desigual pelas regiões do Brasil. A maior parte está concentrada no Sudeste (59,5%). Nas outras regiões, as oportunidades são bem menores: 2,3% no Norte, 8,5% no Nordeste, 6,2% no Centro Oeste e 23,5% no Sul. Em relação aos cursos, os que oferecem mais vagas são Administração, Comunicação Social e Informática. E qual é o perfil dos estudantes que estão procurando estágio? Segundo Carolina Cantreva, estudante do 8º período de Comunicação Social, a especialização através de cursos extra-curriculares dá mais suporte ao estudante na hora de conseguir uma vaga.
vos: “Não desistam ou se desestimulem diante de obstáculos e não aprovações que possam ocorrer no percurso. Por último, procurem mostrar sua verdadeira personalidade não o que acreditam que o avaliador gostaria que fossem”.
Amanda Martins estagia na Ambev no setor de Apuração de Resultados
Ela também ressalta a importância de conhecer a empresa e a vaga oferecida antes de ir para a entrevista. Amanda Martins, estudante de Economia da UFRRJ e estagiária da Ambev, acredita que entre os maiores desafios dos estagiários estão a necessidade de aprender a lidar com uma realidade completamente diferente da faculdade e conciliar os horários de aulas e estágio. Assim como muitos estagiários, Amanda também espera ser efetivada após o período de estágio, o que é bem visto e considerado por muitas empresas. De acordo com a SAEE Talentos, consultoria do mercado de recrutamento, atualmente as empresas que mais contratam os estagiários são as de pequeno porte, com 55% das contratações. As maiores ficam apenas com 35%.
De acordo com o Censo de 2011, cerca 63,5% dos alunos estudam em período noturno e trabalham durante o dia para bancar seus estudos
Fernanda Albino, psicóloga e responsável pelos processos seletivos da TIM, diz que na hora da dinâmica o que mais é observado é o comportamento dos candidatos, sendo fator determiCarolina Cantre- nante para a aprovação para a próxiva, do 8º período ma etapa. Em relação às competências, de Comunicação buscam-se candidatos com iniciativa, Social da UFF. capacidade de trabalhar em equipe, procura uma oportunidade energia realizadora e inovação. A espeno mercado de cialista deixa uma dica para os que estrabalho tão participando dos processos seleti-
Fernanda coordena processos seletivos
Lei do estágio Além de procurar o perfil adequado, as empresas precisam seguir algumas normas para contratar estagiários. Em setembro de 2008 foi instituída a Nova Lei do Estágio (nº 11.788), que regulariza as formas de contratação e auxílio aos estagiários. Condições como período máximo de contratação de dois anos e bolsa-auxílio para os estudantes passaram a ser obrigatórios.
Há vagas Catho www.catho.com.br Manager www.manager.com.br Indeed www.indeed.com.br Fundação Mudes www.mudes.org.br CIEE www.ciee.com.br Vagas.com www.vagas.com
No mais imponente arranha-céu da cidade, milhares de homens e mulheres trabalhavam todos os dias. Advogados, médicos, publicitários, bancários, consultores e, claro, ascensoristas. O prédio possuía seis elevadores, cada um com um funcionário especialmente treinado para exercer sua função. Um desses homens era Ninguém. Ninguém passou por uma entrevista rígida, testes psiquiátricos e dinâmicas de grupo. Todo esse esforço para adquirir o privilégio de trabalhar nesse emprego. Ninguém conseguiu vencer todo mundo e agora era o orgulhoso ascensorista do elevador número 3. O trabalho não era difícil. Escritório de Advocacia Silva e Costa? 30º andar. Clínica Saúde Perfeita? 16º. Consultoria Negócio Certo? 42º. Aperta, aperta, aperta botões. Ninguém se esforçava muito para fazer seu trabalho. Ninguém valorizava o que fazia todos os dias. Mas, lá no fundo, uma voz lhe dizia “será que realmente ninguém sabe fazer isso aí?”. Durante anos, Ninguém fez parte da vida de várias pessoas, mas só por alguns minutos. Ninguém prestava atenção na conversa dos outros e ouvia fragmentos de histórias. Duas mulheres discutiam a infidelidade dos maridos. Três homens conversavam sobre um jogo de videogame. Todos compartilhavam sua vida abertamente, afinal, Ninguém estava ali. Após uma década, Ninguém passou a ver o seu trabalho com outros olhos. Ele começou a se perguntar se as pessoas o reconheciam. Claro que elas diziam “obrigado” ou “o décimo oitavo andar, por favor”, mas será que se não tivessem sido ensinadas a dizer “batatas com molho” elas só falariam “batatas com molho” e pronto? Decidiu tirar a prova. Certa vez, duas senhoras de meia idade discutiam sobre para onde viajariam no fim do ano. Ninguém indicou um bom destino. As duas mulheres interromperam a conversa e um silêncio constrangedor tomou conta do elevador. Em outro dia ele tentou dar palpite em uma discussão esportiva de dois rapazes. Mesmo resultado, e depois disso, Ninguém preferiu não tocar mais no assunto. Depois de perceber que seu papel no elevador era muito limitado, Ninguém decidiu mudar essa história. Ele decidiu faltar uma semana inteira. Quando voltou, Ninguém sofreu sanções administrativas, mas tudo continuou como era. Nenhum visitante sentiu sua falta. Isso continuou durante 35 anos. Ninguém era o dono do elevador. Ninguém conhecia aquelas paredes mais do que... ninguém. As pessoas nunca falavam com Ninguém. Para elas, ele era... ninguém. Mas ninguém se importa com isso, não é? Até que houve um dia em que o elevador número 3 despencou do décimo andar. Foi um acidente terrível, que chocou a todos os funcionários e visitantes. Mas, felizmente, ninguém morreu. Só o ascensorista.
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no. seis - março/abril 2014
Limoeiro Por Isabella de Oliveira, Isabelle Cantanhede, Lívia Alves e Samantha Su
Em terra de cego... Proposta de inserção de alunos com deficiência visual na rede regular de ensino gera polêmica entre professores e alunos Segundo o último Censo do IBGE, o Brasil tinha, em 2010, 45,6 milhões de deficientes, 35,7 milhões deles com deficiência visual. Naquele mesmo ano, o MEC apresentou sua proposta de inclusão - dentro da Meta 4 do Plano Nacional de Educação (PNE) - que visava a dar preferência ao ensino regular para alunos deficientes de 4 a 17 anos e a repassar para a rede de ensino básica os recursos do Fundeb (Fundo de Manu¬tenção e Desenvolvimento da Educação Básica) das escolas especiais, até 2017. A proposta gerou controvérsias e continua em tramitação no Senado. No Instituto Benjamin Constant (IBC), os alunos e os funcionários têm apenas uma certeza: a instituição não pode acabar.
“O Instituto não é segregador como muita gente fala”
Maria Isabel, funcionária do IBC
Para Maria Isabel da Silva Oliveira, técnica em assuntos educacionais e funcionária da biblioteca Louis Braile do Instituto, é preciso atenção sobre a política inclusiva: “Fala-se muito em inclusão, mas a escola regular, por enquanto, não tem condições de atender. Pode até existir um professor muito dedicado, que se interessa, fez cursos de braile, libras. Mas aquela escola teve a sorte de ter uma pessoa assim”. E completa: “O Instituto não é segregador como muita gente fala”. Ainda assim, a técnica não defende a criação de outras unidades como o Benjamin Constant. Mas defende sua manutenção enquanto não houver uma mudança drástica no ensino para atender aos alunos e suas demandas. “O governo não quer inclusão? O prefeito, então, tem que arrumar um jeito para
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Lívia Alves
Localizado no bairro carioca da Urca, o IBC é referência para os deficientes visuais
que esses professores sejam liberados para aprender, porque aqui nós temos cursos, podemos oferecer em outros lugares fora daqui, mas é preciso que se interessem, que se façam projetos para ampliar isso”. Cesarino Rodrigues da Silva, ex-aluno e frequentador do IBC, acredita que o Instituto tem papel fundamental na educação das pessoas com deficiência visual. Ele não concorda com o fim das escolas especiais, principalmente na educação básica - também critica a proposta de inclusão do MEC. “Eu acho isso errado. Acho que você tem de tratar os desiguais na medida da sua desigualdade”, disse. Frequentador assíduo dos cursos oferecidos no Benjamin, Cesarino - ou Seu Cesário, como é conhecido - tem um currículo extenso: fez datilografia, telemarketing, massoterapia, braile e, agora, aprende computação, que auxilia bastante na vida dos deficientes visuais do Instituto, principalmente na área de pesquisa - antes feita por ledores voluntários e funcionários. Aos 34 anos, depois de uma batida de carro que o deixou cego, Seu Cesário terminou o primeiro grau através do programa Tele-
Isabella de Oliveira
itor Alberto da Silva Marques nasceu em 1944, em Portugal e aos oito anos ingressou em uma escola para cegos. Aos 14 anos, veio para o Brasil e descobriu o IBC, onde cursou o Ensino Fundamental. Vivendo no internato do colégio, pôde se envolver em diversas atividades, como a biblioteca, a rádio e o teatro. Aos 19 anos, recebeu uma bolsa de estudos e ingressou em um colégio particular de
Vitor Alberto: de aluno a professor no IBC
ensino regular. Vitor sentiu-se segregado na nova escola. Muitos colegas
curso, exibido dentro do IBC e se formou em Direito pela UniverCidade. Para ele, o Instituto foi importante por lhe dar oportunidade de conhecer pessoas com o mesmo problema e superar a depressão advinda da perda da visão. “Imagina perder a visão. Você fica sem perspectiva nenhuma, está se sentindo inútil. De repente, eu me descobri um atleta aos 35 anos de idade. Então foi legal porque comecei a viajar, conhecer pessoas diferentes e até culturas diferentes. Participei de um Pan-Americano em 1995, em que ganhei quatro medalhas, três de prata e uma de ouro (duas individuais e duas no revezamento)”. E acrescenta: “Senti orgulho quando defendi o nome do Brasil”. Criado ainda na época do Império, em 1854, o IBC, que antes se chamava Instituto dos Meninos Cegos, passou por muitos obstáculos até adquirir o status que tem hoje. Apenas em 1945, por exemplo, inaugurou o seu curso ginasial, que possibilitou o ingresso dos cegos nas escolas secundárias e nas universidades. Além do colégio e dos cursos profissionalizantes, o IBC oferece atividades como reabilitação, prática de esportes, apontavam outros cegos e diziam “tem um amigo seu ali”, como se a mesma deficiência determinasse a afinidade. Fez vestibular com metade da prova em braile e outra metade ditada e conseguiu passar para História na UFF. Hoje é professor do Instituto Benjamin Constant, após passar em primeiro lugar no concurso. Com turmas do Ensino Médio, o professor se preocupa em dinamizar as aulas para facilitar a compreensão.
passeios e assistência médica, que possibilitam ao cego a reinserção de forma autônoma na sociedade. Mas o próprio Instituto precisa, hoje, de algumas adaptações. A principal delas diz respeito à acessibilidade. Por ter sido construído na época do Império, o prédio que abriga a instituição ainda possui muitas escadas e poucos pisos táteis. Para Carlos Alberto da Costa, que está na reabilitação há três anos, o Instituto é tudo: foi onde encontrou amigos e conseguiu reajustar a vida quando começou a perder a visão, aos 38 anos, por causa de uma retinopatia diabética. Apesar do carinho pelo lugar, ele reconhece os problemas: “Você vem lá de Magé buscar um laudo no Benjamin, chega aqui às 12h e não pode mais pegar, sendo que o horário de funcionamento é das 08 às 17h”. Ex-aluno e hoje professor do Instituto, Vitor Alberto da Silva Marques vê diferenças positivas e negativas entre a sua época a de seus alunos. “Antigamente, as crianças cegas começavam o ensino muito mais tarde. Hoje, boa parte delas entra na escola com a mesma idade que alunos do ensino regular”, afirma.
“Eu me soltei mais, tive mais coragem para andar na rua, (o IBC) me ajudou a conviver com a deficiência”
Vítor Alberto, ex-aluno e professor
Ele acredita que atualmente as crianças cegas tenham menos autonomia ou independência do que tinham em sua época, fato que atribui à diferença das gerações e à falta de decisão nas atividades no próprio Benjamin, como o grêmio estudantil, do qual participou e não existe mais. Além disso, o Instituto Benjamin Constant não funciona mais em regime de internato. A oportunidade de independência e de autonomia para os cegos dada pelo Instituto constitui o principal orgulho e motivação dos alunos. Para além das questões de inclusão no sistema de ensino regular, a manutenção do IBC é vista por seus alunos, professores e funcionários como necessária para a inserção social da pessoa com deficiência. Carlos Alberto demonstra a importância do lugar para ele: “Eu desenvolvi habilidades básicas e atividades de convívio diário, que me deixaram mais livre para fazer atividades dentro de casa, como cozinhar, passar roupa... eu me soltei mais, tive mais coragem para andar na rua, fiquei mais desenvolvido, me ajudou muito a conviver com a deficiência”.
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Entrevista Por Camilla Shaw e Samantha Su Fotos de Evandro Teixeira
Entre Olhares
Ditadura no Brasil, Rio, 1968
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ochete na cintura, camisa branca, óculos de sol e um boné preto com uma câmera fotográfica bordada em amarelo. Assim chegou Evandro Teixeira. A simplicidade não para apenas na aparência. Um jeitinho baiano risonho que logo, ouvindo as primeiras palavras paulistanas, já reconhece o sotaque, caçoa e quebra o gelo. Um dos maiores fotojornalistas do mundo é mais do que brasileiro. Evandro Teixeira é um menino do Brasil, como tantos outros. Aos 78 anos, seu tempo é preenchido com muitas viagens e palestras. O menino que um dia sonhou em conhecer Zé Medeiros, ex-fotógrafo da revista O Cruzeiro, hoje adora dividir conhecimento e afirma que continua aprendendo. Prestes a lançar sua primeira biografia, escrita por Silvana Costa Moreira em parceria com o escritor Marcos Eduardo Neves, concede algumas
horas de seu dia para uma boa conversa.
Evandro, com uma carreira tão extensa, se não fosse fotógrafo, o que faria? Eu fiz Belas Artes, mas fiz pela fotografia. Acho que a minha vida é a fotografia, eu não saberia fazer outra coisa além do que faço. É a minha paixão.
Por que o nordeste é tão celebrado nas suas fotos? Não sei. Talvez porque eu seja baiano, mas acho que no nordeste você tem mais brasilidade. Eu vou para o Rio Grande do Sul, mas não me comove, é como se estivesse na Europa. No nordeste você tem aquelas figuras típicas, a missa do vaqueiro, por exemplo. Para você ter ideia, quando fui para Canudos em 1990, eu fiquei tão ligado à historia de lá que volto religiosamente, todo ano. É uma gratificação. O JB fez um caderno especial com os velhinhos de mais de cem anos. Fui para o sertão fotografar a velharia toda. Tinha um velhinho que era sanfoneiro e eu resolvi fazer a foto dele com o instrumento. Para quê fui fazer essa foto?! Peguei uma sanfona emprestada, mas e para devolver? Só consegui três dias depois. Ele não parava de tocar. A filha dele só pôde pegá-la enquanto ele dormia! Quase que eu tive que pagar uma sanfona nova para o dono! Você pensa em voltar para a Bahia? Não, não. Nunca mais voltaria. Eu vou lá e não me adapto mais. Quando a gente foi filmar no vilarejo em que nasci, foi vergonhoso para mim. Eu fiquei triste porque eu não conhecia mais ninguém, não lembrava. Fui ao meu antigo colégio que era deste “tamaninho” e hoje é enorme.
Favela da Catacumba, Rio, 1970
Quais as diferenças entre o menino do interior da Bahia e o grande fotojornalista que você é hoje? Às vezes eu fico me perguntando:
como isso aconteceu? Eu nasci no interior, meu vilarejo não tinha porra nenhuma. A primeira vez que eu vi um carro, eu e os moleques saímos gritando “é lobisomem”. Eu fico me questionando. Sei lá. Na minha família ninguém era ligado à arte. Meus pais eram fazendeiros. Só eu que quis me meter nessa maluquice. Comecei porque o pai de um amigo trazia para nós pedacinhos de filme enguiçados do cinema de Salvador. A gente colocava numa caixa de madeira que eu fiz com uma vela e uma lente. A gente botava uma fita, projetava na parede, era um filme parado, mas era o nosso cinema.
era tudo no olhômetro. Flash só se estivesse um breu, se tivesse um ponto de luz você não podia usar. A gente ganhava mais que o próprio repórter de texto no jornal. Era o sonho de todo mundo trabalhar lá. O JB foi, no Rio e no Brasil, o mais importante jornal, o mais criativo e mais moderno graficamente. Ele fez uma reforma em 1959 e se tornou o mais moderno do mundo.
“Sonhei em aprender e em a fotografar como ele (Zé Medeiros). E aprendi” Carlos Drummond de Andrade escreveu um poema sobre você. Sebastião Salgado afirmou que não há nada de mais brasileiro do que a sua fotografia. Como você lida com essa fama? É Tranquilo. Eu gosto de fotografar o mundo, o Brasil. Para mim é normal, eu não tenho minhoca na cabeça. Eu detesto essa coisa de metido à besta. Uma vez, no Carnaval, tinha um garoto aprendendo e pediu ajuda para um fotógrafo. E eu fiquei puto com o cara, ele ensinou tudo errado para o garoto! Vai ensinar errado para o garoto?! É sacanagem. Mostrei para o menino as configurações da minha câmera depois. Eu gosto da felicidade de falar com todo mundo. Sou tão importante quanto você, quanto aquele que está aprendendo hoje. Um dia eu sonhei em aprender fotografia. Sonhei em ser como o Zé Medeiros. Sonhei em aprender e em fotografar como ele. E aprendi. Estou aprendendo sempre.
Antes de ser fotojornalista, quem te Missa do Vaqueiro. Acari, RN, 2010 inspirava? O Zé Medeiros. O Eugene Smith também, o americano, que tem Você já perdeu alguma imagem? uma iluminação linda, a luz dele é im- Uma coisa que eu gostaria de ter fotograpressionante. Você não pode falar que o fado foi a queda do Muro de Berlim. LaCartier Bresson não influenciou ninguém mentavelmente, não estava lá. Mas foi um no mundo, mas não era meu sonho me trabalho lindo, com uma história linda. tornar um Cartier Bresson. Meu sonho era um Zé Medeiros que foi o meu maior. Ele era um fotógrafo de rua, de brasilidade. É como é meu estilo, eu adoro rua. A luz dele era maravilhosa, linda como a do Eugene Smith. Então eu admirava o Zé e passei a admirar o Eugene Smith.
Você passou quase toda a sua carreira trabalhando no Jornal do Brasil, como era lá? Naquela época nós tínhamos a melhor equipe de fotógrafos do Brasil. O jornal destacava a imagem. Nós não podíamos usar flash, não podíamos usar fotômetro,
Qual é o seu livro de cabeceira? Os Sertões e Vidas Secas, que é uma desgraça de ler! Eu tenho todos os livros de Canudos, novo e velho. Eu tinha a primeira edição de Canudos, emprestei e me levaram. Tenho a segunda edição agora. Livro e mulher são duas coisas que não se emprestam. Depois de tudo que fez, tem algum sonho que você ainda queira realizar? Quem gosta do que faz tem que sonhar sempre. Meu sonho não acabou ainda. Eu estou sempre sonhando em fotografar alguma coisa.