O Casarão nº quatro

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Editorial

Perfil

Junto e misturado

Por Gustavo Cunha e Mariana Pitasse

“Ele não esbanja, ele tuíta Ele é pop, até dá entrevista Ele é da paz O ‘hermano’ tá com tudo Anda de carro aberto Apesar de ser inseguro”

Misturar funk e religião nem sempre é patético como nessa paródia macarrônica. Esta edição do CASARÃO, por exemplo, tem como uma das propostas estimular a reflexão sobre esses dois assuntos, que fazem parte do cotidiano de milhões de brasileiros. Oxigenar a Igreja é promover a sua sobrevivência e a JMJ deu provas de renovação da fé dos jovens católicos. O vento sopra a favor da caravela de Francisco. Oxalá fosse possível dizer o mesmo das outras religiões no Brasil. O mau agouro da intolerância, o sacrilégio do preconceito, o encosto do desrespeito e o carma dos estereótipos fustigam aqueles que querem exercer sua fé com alegria e liberdade. E os que não querem crer em nada também. A situação da música dos morros cariocas também desaponta muita gente. Clipes bem produzidos, agenda lotada, mídia, holofotes, fama... Será que isso tudo realmente faz bem ao funk? Ou melhor: será que isso ainda é funk? A música que sempre foi conhecida como “som de preto, de favelado”, já desceu para o asfalto há algum tempo, mas acabou sacrificando seu poder de crítica e contestação. O funk já não incomoda mais. Agora é “melody”, uma espécie de pop à brasileira. E são justamente essas transformações e o lado B dessa história que discutimos na matéria de capa dessa quarta edição. O CASARÃO aborda ainda a resistência dos veganos à farra da carne, os problemas envolvidos na tão propalada revitalização do centro de Niterói, além de resgatar a página literária, com o conto de Gabriel Vasconcelos. Abram portas e janelas! O CASARÃO Reportagem: Camila Vianna, Cesar Menéndez, Charles Mattos, Daniele Barbosa, Débora Diettrich, Elena Wesley, Fernanda Costantino, Gabriel Vasconcelos, Gabriela Donza, Gustavo Cunha, Iara Simas, Iran Maia, Jéssica Alves, Jéssica Monteiro, Julianna Herrera, Lara de Faria, Letícia Castro, Luísa Mello, Luiza Cunha, Mariana Pitasse, Mário Cajé, Rebeca Letieri, Roberta Thomaz e Thaianne Coelho. Diagramação e Layout: André Borba, Isabela Rangel e Luma Coutinho Capa: Igor Marinho Ilustrações: Arthur Figueiredo Fotografia: Luís Pedro Rodrigues e Mariana Pimenta

ocasarao12@gmail.com fb.me/jornalocasarao twitter.com/jornalocasarao

www.jornalocasarao.com Agradecemos a orientação dos professores Carla Baiense e Romulo Normand. APOIO

PARCERIA

neGÓCio fAmília Com uma mochila pesada nas costas, depois de cutucar um pouco o aparelho smartphone, a menina interrogou, apontando o dedo sobre o vidro quente e curvo que exibia algumas dezenas de salgados: “É de quê, moça?”. Minutos seguintes, outra estudante faria a mesma pergunta. Do outro lado do balcão, Danielle da Silva responderia com o igual sorriso de antes, elencando em tons pausados, enquanto adivinhava: “xisbúrguer, pão de batata com frango, croassan, frango com palmito, queijo com presunto, peito de peru com ricota, só queijo, tomate seco com berinjela”. Há cerca de 21 anos que a mulher de cabelos curtos e enrolados sacia a fome de alunos do Instituto de Arte e Comunicação Social, o IACS, em Niterói, ao lado dos irmãos Anderson e Adelson. Tudo começou em meados de 1992, quando a matriarca Penha Aparecida, conhecida como Tia Cida, decidiu montar uma barraquinha de salgados caseiros na porta do instituto. “Fazíamos os quitutes em casa porque vendíamos em menor quantidade. Era de tudo um pouco: coxinhas, tortas e doces... A maioria era eu quem fazia. Na época, eu tinha uns 13 anos. Comecei cedo na cozinha”, lembra, com os olhos no passado. Desde então, a história do IACS e de sua família estão interligadas. Recheado de muitas mudanças, o longo período é definido de forma carinhosa: “Isso aqui é a história da nossa vida”, diz a mulher, apontando para o trailer amarelo. Caçula da família, Anderson da Silva, hoje com 31 anos, tinha apenas dez quando a mãe resolveu montar a barraquinha - “cresci junto com a venda”, afirma. A comida caseira de tia Cida não demorou muito para fazer sucesso. Em pouco tempo, cruzou a fronteira estabelecida pelo portão da faculdade, a partir de um convite dos professores. Daí para frente, a parceria só aumentou, e logo veio a conquista do termo de utilização do espaço - autorização necessária para a construção da cantina ao lado da praia - que todo o estudante do IACS conhece bem. Com o trailer montado, tia Cida começou a servir almoços, além dos salgados e bolos. Anderson destaca que apesar da menor quantidade de alunos, os clientes eram fiéis. “Mais gente comia aqui, porque o bandejão era bem pior e os alunos tinham uma relação mais próxima. Erámos como uma grande família, já que todos passavam o dia inteiro aqui dentro”. O trailer chegou a vender 200 pratos de almoço por dia, hoje reduzidos a uma média de 60. Anderson garante que o público está mais dividido entre a universidade e a vida profissional, traduzida em estágios precoces. “As pessoas estão mais estressadas, e com isso, a educação fica meio de lado. Mas isso infelizmente está se tornando normal em todo o tipo de relação”, analisa. Atarefada com a gastronomia universitária, Dona Aparecida nunca deixou de zelar pela educação dos filhos.

Luís Pedro Rodrigues

Funcionária contratada para ajudar no trailer, Joyce posa com o filho Junior e Anderson André Borba

Para Danielle, o trailer é motivo de orgulho: “Isso aqui é a história da nossa vida”

Todos completaram o Ensino Médio. Anderson chegou a cursar três semestres do curso de Economia no Centro Universitário Augusto Motta, a Unisuam, em Bonsucesso, no Rio. Há cinco anos, quando a mãe faleceu, o estímulo para completar a graduação esmoreceu. Mas a labuta de dona Cida acabou deixando como legado perspectivas prósperas para as novas gerações da família. Danielle garante que a escola particular dos filhos é paga com os rendimentos do trailer. “Quero que cada um deles faça faculdade, siga o caminho dos estudos. O sonho do Lucas, de 12 anos, é ser astronauta ou biólogo. A Lara tem apenas dois anos, mas já tento estimulá-la”, diz, referindo-se aos filhos, que têm presença constante na universidade. As lembranças duradouras e a intimidade com alguns alunos arrancam sorrisos largos da família. “Muitos foram na festa de um ano do meu filho”, recordou, com orgulho, Danielle. A mulher não titubeia quando questionada sobre alguma história inesquecível, guardada com detalhes na memória. “Ah, as festas...!”, exclama, deixando no ar uma longa pausa para

reviver o passado na mente. “Eram umas melhores que a outras. Lembro-me bem de uma arraiá que teve aqui uma vez. Vestimos o traje típico, dançamos quadrilha com os alunos e ainda aproveitamos para também vender comidas e bebidas”, recorda. Hoje, as festas do instituto não contam mais com parceria dos quitutes da família. Em julho, a quantidade de pessoas reunidas no IACS para uma festa junina impressionou alunos e professores, desacostumados com tamanha movimentação. Entre sorrisos embriagados e acordes da banda de forró, o alumínio arranhado do trailer servia de apoio a corpos cansados. “Os tempos parecem ter mudado”, reflete a jovem, com alguma dose de nostálgia. As mudanças certamente vão continuar. A luta agora é pelo possível novo endereço do espaço. Desta vez, o caminho do IACS ao Gragoatá parece mais distante do que a mera passagem pelo portão com a barraquinha. As dúvidas sobre o local cativo acompanham a construção de um novo instituto do Gragoatá. “Continuar é muito relativo. Nós queremos ir para onde os alunos forem, se tiver espaço queremos estar lá”.


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Limoeiro Por Julianna Herrera e Rebeca Letieri

Niterói vai virar Barcelona Novo projeto pretende erguer prédios de até 40 andares e duplicar o número de moradores no local: de 40 mil para 80 mil pessoas

Já faz algum tempo que, aproximadamente, meio milhão de pessoas, número que corresponde à população de Niterói, aguarda por melhorias nas áreas da educação, saúde, transporte e moradia. Percebendo essa carência, a Prefeitura da cidade, por intermédio da Secretaria Municipal de Urbanismo e Mobilidade, apresentou em março deste ano o projeto Operação Urbana Consorciada (UOC), que, por meio de uma Parceria Público-Privada (PPP), pretende revitalizar sete bairros do Centro da cidade. A partir do argumento da necessidade de revitalização dessa região, o Projeto de Lei nº 143/2013 foi criado para alavancar novos investimentos e desafogar a pressão imobiliária em Icaraí. Mas para Entre as mudanças planejadas para a revitalização: veículo leve sobre trilhos e estacionamento subterrâneo alguns especialistas, essas alterações não respeitam o Plano Diretor da Cidade, o uma maneira de não mexer nos cofres Após a suspensão da audiência públi- rói é de 1992 e deveria ser revisto a cada Plano Urbanístico Regional (PUR) e o Es- públicos. A concessionária que vencer a ca, uma nova sessão aconteceu em 9 de dez anos. O Plano nunca foi revisto e, sim, tatuto das Cidades. Uma das propostas, licitação do projeto fará as interdições e julho, na Câmara de Vereadores de Nite- adaptado em 2004. por exemplo, permite a construção de terá a responsabilidade de, por 20 anos, rói. No púlpito, a professora de ArquiteO Estudo de Impacto de Vizinhança prédios de até 40 andares na região entre prover a região de serviços públicos. tura da UFF e coordenadora do Núcleo (EIV), feito pela Prefeitura, constatou que o Shopping Bay Market e a Praça JusceAinda assim, o argumento de que o de Estudos e Projetos Habitacionais e as pessoas de quatro dos sete bairros afelino Kubitschek, por meio da venda dos Centro de Niterói precisa de uma revita- Urbanos (Nephu), Regina Bienenstein, tados recebem, em média, dois salários Certificados de Potencial Adicional de lização não foi suficiente para convencer expôs dúvidas da população. “Queremos mínimos. É o caso de 90% da população Construção (Cepacs), que serão emitidos moradores da cidade e a comunidade um debate claro para saber por que três do Morro do Estado, por exemplo. pela própria Prefeitura. acadêmica. De acordo com o professor empresas do setor imobiliário (OAS, AnOutra questão é que o projeto não inInspirada no projeto de Barcelona, na de Direito da UFF e ex-presidente do drade Gutierrez e Odebrecht) oferecem clui a criação de um mercado popular diEspanha, a Secretaria responsável pelo Conselho Municipal de Políticas Urbanas seus serviços apresentando-os como recionado aos trabalhadores ambulantes projeto alega que as obras têm como ob- (Compur) Wilson Madeira, o projeto é uma janela de oportunidades”, disse. De que ficam em ruas como Conceição e Visjetivos gerar empregos e investimentos, inconstitucional. Segundo ele, para fazer acordo com a professora, o conteúdo da conde do Uruguai, uma das promessas proporcionar uma malha cicloviária in- um Plano Diretor são exigidos estudos proposta é genérico, sem consistência, e do prefeito Rodrigo Neves (PT) quando termodal, recuperar o patrimônio histó- técnicos que levem em consideração a faltam espaços de debates. disputava as eleições. rico e permitir a construção de novas edi- opinião da comunidade. Carlos David Silva, vendedor ambuficações. As transformações devem afetar Remoção Compulsória “Não é uma lei comum. Pelo contrário, lante há 13 anos, ainda acredita na consos bairros da Boa Viagem, Fátima, Grago- exige que cada etapa seja apresentada Como aconteceu no bairro de Pinhei- trução de um mercado popular: “Estamos atá, São Domingos, Centro, São Lourenço em uma audiência pública. No mínimo, ros, em São Paulo, em 2011, Niterói tam- aguardando. A proposta já foi aprovada, e Ponta D’Areia, além dos Morros do Es- tem que se respeitar o Plano Diretor. Isso bém enfrenta dilemas com o Projeto de só não tem terreno pra colocar a gente. tado, Arroz, Chácara e a Favela do Sabão. não foi feito. O projeto altera todos os pa- Lei que pode acarretar um efeito conhe- Não me imagino saindo daqui”, afirmou. A secretária de Urbanismo e Mobilida- râmetros desses sete bairros”, explica. cido como gentrificação, o enobrecimenMarta da Silva, de 60 anos, é outra de, Verena Andreatta, garante que, apeDiante das irregularidades, o Fórum to de uma área que antes era precária. das vendedoras ambulantes do Centro sar das alterações previstas na paisagem UFF Cidades conseguiu, através do Minis- Por causa de novos empreendimentos que sonham com uma solução. “Estamos local, a trama urbana não será alterada. tério Público (MP), adiar a audiência pú- e do ingresso de moradores com mais esperando por esse mercado popular há “Estamos oferecendo um espaço ur- blica que havia sido marcada para o dia renda, há um aumento do custo de vida, mil anos! Ele (Rodrigo Neves) fez essa bano valorizado, que não será mexido. 21 de junho, na mesma semana em que o fazendo com que a população local deixe promessa quando era candidato a prefeiNosso projeto de mobilidade não parte programa foi apresentado. os bairros e ocupe áreas mais acessíveis to”, conta. da demanda de casas desejadas pelo mer“É impossível que, num prazo tão cur- financeiramente. Esse é um dos efeitos Porém, para o ex-ambulante, D., 53 cado imobiliário. Se fosse o caso, eu teria to, se realize uma audiência satisfatória. esperados com a proposta de duplicar o anos, o problema não é a falta de espaque demolir todo o centro para construir Dessa forma, ninguém terá condições de número de moradores no Centro de Nite- ço. O camelô denuncia suborno por parte estacionamentos”, afirma Andreatta. discutir e, aí, se consegue a aprovação do rói, passando de 40 mil para 80 mil. de alguns trabalhadores na tentativa de A Parceria Público-Privada (PPP) será projeto”, acrescenta Madeira. Além disso, o Plano Diretor de Nite- manter o comércio na região. “Eu perdi a minha barraca justamente porque não chegava junto com eles (pagava propina), Onde estarão os superprédios era caçado”, contou.

de 40 andares?

Valorização Imobiliária: “remoção branda”

Arthur Figueiredo

Um dos dilemas do Projeto de Lei 143 são as conseqüências da valorização imobiliária na região. A chegada dos empreendimentos deve atrair novos moradores, o que aumentaria o custo de vida, obrigando parte da população mais humilde a deixar os bairros afetados. O Projeto de Lei menciona ainda interdições urbanísticas que poderão atingir diretamente a população de baixa renda desses morros, mas não especifica de quais interdições se tratam.


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Capa

Por Fernanda Costantino, Letícia Castro, Luiza Cunha e Luísa Mello

De MC Bob Rum a Anitta, as mudanças e os reveses que o funk sofreu nos últimos anos

“Era só mais um Silva que a estrela não brilha, ele era funkeiro, mas era pai de família”

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a década de 90, era essa a realidade da favela que fazia parte das principais letras de funk. Vinte anos depois, a linguagem é outra: balada, bebidas e sexo. De MC Bob Rum a Anitta e Naldo, as mudanças foram muitas e agora o Rap do Silva, quando toca, deixa nostalgia entre os fãs. Para Mano Teko, um dos integrantes do Apafunk (Associação dos Profissionais e Amigos do Funk), o gênero vive o seu pior momento. “Eu escuto várias pessoas falarem que o funk está no seu auge porque está na novela, está no Faustão. O MC Coringa está nesse processo e me deixa feliz, porque eu sei como ele chegou lá. O Sapão e a Anitta também, espero que as carreiras deles continuem assim, só que eu não posso me prender a carreira de alguns. A galera foi sim pra televisão, o que é muito positivo, mas é altamente negativo saber que um jovem não pode ouvir funk dentro da favela.” entados no tradicional Bar do Amarelinho, na Cinelândia, os funkeiros Teko, Pingo e Play se revezavam entre cumprimentar os amigos que passavam e a entrevista. De antropólogos a MCs, todos conheciam os membros do movimento. “Funk é cultura e ponto. A gente conseguiu avançar e aprovar a lei 5534/2009, que reconhece o gênero como cultura.” Apesar da legislação voltar os olhos da população para o mundo do funk, muitos que começam sua carrei-

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Fotos: Thiago Firmino

ra nesta área, ao alcançarem a fama, terminam por se distanciar mais do que contribuir para a propagação do movimento. “O meu questionamento não é a qualidade do trabalho da Anitta ou do Naldo, o problema é que as pessoas consideram esses artistas o ‘lado do bem’ do funk. Eles preferiram se afastar do movimento, que sempre foi considerado ‘submundo’, para serem vistos pelos grandes empresários. Esses artistas ganharam espaço e podiam debater a questão da criminalização do ritmo, dizer ‘isso que eu faço é funk’, e não renegar o movimento. Parece que eles passaram do limite, ganharam ‘qualidade’ e já não fazem mais parte do funk.”, conclui Teko. nitta e Naldo podem dizer que tiveram muita sorte de chegar ao topo. Teko destaca que um fator determinante para alcançar a fama é contar com o apoio de um empresário ligado ao ramo. Porém, a maioria dos funkeiros iniciantes não tem essa oportunidade e acaba sem espaço para divulgar seu trabalho. Na década de 90, muitos recebiam o auxílio da Furacão 2000, que surgiu para lançar no mercado esses novos cantores. “Hoje, para entrar em um DVD da Furacão, o artista tem que pagar R$ 10 mil por uma das 70 fai- Baile funk: música para ver xas do disco. É claro que ninguém que assiste ao DVD aguenta ouvir todas. A Furacão não trabalha mais as carreiras dos iniciantes, só os lança no mercado”, res- bém deu uma banalizada. Tem muita gente jogando salta Mc Pingo. as coisas sem informação, sem procurar se aprimoAs rádios também deixaram de tocar as músicas rar, sem ligação nenhuma com o movimento. Muitas daqueles que estão começando. “Na década de 90, eu vezes, uma parada tosca é o que tem mais visualizachegava na rádio, com o vinil ainda, e eles tocavam. ção”, lembra Teko. Ele só perguntava se a música era boa e pronto. Com om reconhecimento desde 1999, o site a entrada dos direitos autorais, a coisa mudou. Cada Funk Neurótico continua sendo uma porartista começou a montar a própria produtora, como ta de entrada mais fácil para os que estão o DJ Marlboro e o Dennis DJ. Mudou a lógica de mer- começando. Celso Junior, fundador do site, conta que cado. Para difundir uma música você tem que pagar criou o endereço depois que tentou divulgar sem suum jabá às rádios, mais ou menos uns R$ 30 mil para cesso uma música não muito conhecida em um outro que ela toque quatro vezes por dia na FM O Dia ou na portal. A ideia então foi criar uma página própria para Beat 98. O funkeiro precisa, ainda, assinar um docu- dar visibilidade aos trabalhos de quem está começanmento no qual ele passa praticamente todos os direi- do. Há critérios: músicas com palavrão, apologia às tos para essa emissora, sem nem saber a implicação drogas e conteúdo pornográfico não entram. Como o de tudo isso”. site é colaborativo, o artista precisa ainda pagar uma m jeito alternativo de divulgar o trabalho é taxa para a música ir ao ar, mas Junior garante que o pela internet, como por meio do portal You- Funk Neurótico pode trazer resultado. “Antes, o funk tube. Alguns vídeos ganham milhões de vi- era praticamente restrito ao Rio, e à baixada Santista. sualizações, mas não há um critério de seleção. “Ao A página ajudou a propagar praticamente por todo o mesmo tempo que facilita a divulgação, a web tam- Brasil.”

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Thiago Firmino e seu baile na laje: o fim da resolução 013 pode significar maior liberdade aos moradores para ouvir funk e realizar eventos sem intervenção policial

Funk em tempos de UPP

pesquisa para descobrir a origem da resolução, já que ela precisa estar baseada em uma lei. Nesse contexto, descobriram que a lei que origina essas resoluções é da ditadura militar, ou seja, a 013 é inconstitucional.” Em 13 de agosto, o governador Sérgio Cabral anunciou o fim do decreto e admitiu que os tempos são outros. Apesar do anúncio, a resolução 013 ainda não foi revogada no papel e os moradores das favelas continuam sofrendo com os abusos. ”Se 10% da comunidade do funk se mobilizar, a gente consegue derrubar essa medida. Se houver pressão popular nas ruas, principalmente nessa época de atos e manifestações, a gente chega lá”, previu Teko.

Desde a primeira instalação da Unidade de Polícia Pacificadora, em 2008, na comunidade do Santa Marta, o cenário das festas na favela mudou. “A primeira coisa que a UPP faz é proibir os bailes funk. O secretário de segurança Beltrame dizia pra gente que era só uma transição entre policiais ‘maus’ por agentes ‘bonzinhos’. Só que essa mudança nunca acaba”, ressaltou Teko. O MC destaca que ainda são realizados bailes funk nos morros, mas que eles não são voltadas para os moradores locais. “Muita gente produz festas na favela e cobra R$ 50 por ingresso. Claramente, esses eventos não são para galera que vive lá.” O DJ Thiago Firmino, nascido e criado na comunidade do Santa Marta, reforça que a entrada dos policiais nas favelas aumentou a discriminação e tirou a liberdade dos moradores. “A gente luta para fazer o óbvio. Quando somos nós que organizamos um baile, os PMs podem até proibir o evento. Agora, quando são eles que decidem fazer um ‘baile da paz’, os caras tocam funk e não são impedidos de nada. Quer dizer, os próprios moradores são discriminados e os policias, que estão no comando, conseguem fazer a festa deles sem problema nenhum.” ara Teko, é preciso que haja um diálogo entre moradores e policias. “Não tem como a favela seguir as mesmas regras do asfalto. Nós não somos coitadinhos nem queremos ser privilegiados. Queremos é dialogar. Como faz para o morador ter o seu Longe dos morros, o funk ganha a cena cultural lazer? A gente não quer impor que as festas aconteçam até às 12h do dia seguinte, mas queremos mais flexibilidade. Hoje, o policial, por lei, pode proibir até que um morador escute funk em uma festa de aniversário na própria casa”, aponta o integrante do Apafunk. Quase dois anos antes da instauração das UPPs, um decreto já afastava o funk dos moradores da favela: a resolução da Secretaria Estadual de Segurança (Seseg) n° 013. Aprovada em 23 de janeiro de 2007, a medida dá liberdade para que os policiais tenham o poder de decisão sobre qualquer evento ou atividade cultural, sem aviso prévio. “O morador que sempre promoveu a cultura da favela não pode mais fazer sua festa. Estou falando do funk, mas a gente tem vários casos, por exemplo, de bares no Cantagalo, onde foi proibido o uso de televisão por conta da 013”, relata Teko. Para ele, a resolução confere ao policial uma autoridade exagerada, já que o agente pode criar ou abolir novas regras de acordo com seu próprio critério. tualmente, a revogação do decreto da Seseg está entre as prioridades da Apafunk. Teko esclarece que a resolução 013 é um resquício da ditadura: “A Fundação Getúlio Vargas fez uma

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Na Academia da Popozuda

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uem vê o rosto da Valesca estampado na capa do projeto “Experiência Popozuda”, não imagina que um dos objetivos do trabalho dos alunos de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense é filmar um curta metragem que relacione a polêmica figura do funk com a famosa personagem de Gustave Flaubert, Madame Bovary. Considerada pelo grupo a “nova figura popular feminista”, Valesca usa sua sensualidade como forma de expressão e as letras de suas músicas para retratar o cotidiano da mulher do morro, rompendo o costume da sociedade, como fazia a personagem de Flaubert. A ideia do curta-metragem é que Valesca viva uma saga erótica e amorosa de sua personagem através de narrações inspiradas em algumas de suas músicas. Confira a entrevista com Hiran Matheus, diretor do projeto “Experiência Popozuda” e não deixe de conferir o trabalho dos alunos da UFF em fb.com/experienciapopozuda

Porque vocês escolheram a Valesca como tema do projeto? A Valesca foi escolhida como alma do projeto, pois ela carrega a essência do funk feminino moderno, as músicas dela têm um ar de liderança. O filme quer representar essa alma feminina presente nos morros, mas diferente do samba. O Rio de hoje é um Rio moderno, conectado com todo o mundo através de redes invisíveis, como a da internet. As comunidades sempre lutaram pela sua visibilidade e dessa luta surgem as experiências culturais mais incríveis. Como você encara essa alma feminina no funk? A alma feminina é o reflexo do Rio moderno e suas redes invisíveis. Se o samba é protegido por um senhor do morro, o funk é protegido pela senhora do morro. De que forma a alma feminina no funk está relacionada ao movimento feminista? Não dá pra exigir que uma mulher nascida no coração de uma comunidade tenha acesso às maiores figuras feministas. Tem gente que cobra um conhecimento acadêmico dessas mulheres, mas se esquece que tem forças maiores que impedem que a Academia chegue até a favela. Não é culpa do morador. Nossa vida é uma luta constante para conseguir fazer as conexões mais improváveis, unir o sagrado e o profano. Tomara que um dia todas as mulheres da favela tenham acesso ao ambiente acadêmico. Mas, até lá, tem que ser uma luta constante dos dois lados: de quem está dentro da Academia e tem uma visão carinhosa com essa causa e de quem está do lado de fora sedento por cultura. É uma guerrilha onde o sangue não precisa ser derramado.


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Hiperlink Por Charles Mattos

4G pra quê? Nova rede de telefonia e internet móvel chega ao Brasil e divide opiniões sobre utilidade e infraestrutura para recebê-la

Item indispensável para a sobrevivência ou mais um fetiche dos cyber compulsivos? A conexão com internet é fundamental para os 70 milhões de brasileiros usuários de smartphones. As aplicações mais populares, como o facebook versão móbile, whatsapp, e-mail e até os joguinhos requerem uma boa conexão de rede. Grande parte dos usuários utiliza a conexão 3G a partir de planos pré-pagos, cujos valores variam, entre as quatro maiores operadoras, de R$ 10 a R$ 15 por mês. Apesar de suprir boa parte dos recursos utilizados, como aplicativos de mensagens e redes sociais, muitos usuários reclamam do serviço, principalmente da velocidade, mesmo sem entender muito bem o tipo de plano contratado. Inaugurada às pressas para a Copa das Confederações da FIFA, em junho deste ano, a rede 4G seria mais um recurso para a comunicação pessoal. Mesmo sendo uma transmissão móvel, assim como o atual 3G, a nova tecnologia consegue atingir grandes velocidades. Mas ainda há restrições para popularizar a tecnologia no Brasil. Professor e coordenador do curso de Engenharia de Telecomunicações da UFF, Luiz Fernando Taboada afirma que eventos como a Copa das Confederações não têm a necessidade de uma conexão 4G. “Eu não imagino que alguém vá a al-

gum estádio e dependa de uma conexão 4G. Existem outros recursos mais adequados a essa demanda. Nas Olimpíadas de Londres, essa questão foi resolvida com pontos de acesso de Wi-Fi”, afirmou. O preço do 4G, que junto com a velocidade da conexão é o fator que mais pesa na escolha dos usuários, ainda é salgado nas maiores operadoras de telefonia móvel. Ainda não existem planos de internet 4G pré-pagos e todas as ofertas disponíveis hoje no mercado prometem uma velocidade de conexão cinco vezes mais rápida que a do 3G. A nova tecnologia varia em relação à franquia contratada, que é o volume de dados utilizado pelos clientes. Entre as operadoras, a quantidade de dados máxima utilizada por um usuário de smartphone varia entre 300MB por R$ 30, e 5 GB por R$100. Já o preço dos planos exclusivos para notebooks e tablets giram em torno de R$ 100 e R$ 200, na franquia de 10 GB. Um vídeo no youtube, visto em um celular ou tablet através da internet móvel, usa aproximadamente 4 MBs por minuto. Isso significa que uma conexão 4G permite assistir até quarenta horas de vídeos no youtube ou no vimeo, dependendo do plano. Nos planos de 3G, a franquia tem uma limitação proporcional, mas o diferencial é a velocidade. Enquanto para baixar uma música na rede atual o usuário leva até cinco minutos, a nova conexão permite fazer o mesmo processo em menos de um.

Cabe ressaltar que a finalidade de uma conexão móvel não é exatamente a de ver vídeos ou fazer downloads. A internet móvel é muito mais voltada para a comunicação, diferente das conexões residências, quase todas fixas, como ressaltou o professor Taboada. “O 4G possibilita uma melhor condição de trabalho se você estiver em outro lugar. Mas se você estiver em casa, por exemplo, provavelmente você vai usar o fixo. Num lugar distante até teria utilidade, mas o móvel serve, na verdade, como complementar onde o fixo não chega”, considera. A falta de cobertura, em virtude da pressa do lançamento, os preços elevados e a própria falta de utilidade prática, podem levar o 4G a demorar a emplacar. Taboada explica que os consumidores é que irão decidir o seu futuro. “O 4G é um processo de evolução. Quanto mais velocidade você tiver, maior o acesso a alguns serviços. O mercado vai decidir, já que a tecnologia é inocente. Ou terá sucesso pela identificação dos usuários ou quando o preço diminuir”. Para os usuários de smartphone que já pagam por um serviço pós-pago de internet móvel, a conexão 4G pode ser um atrativo. Um dos planos mais populares de rede móvel, com pacotes de voz, custa R$ 130 com 3G; no 4G, o mesmo plano sai por R$ 150.

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25s postar uma foto no facebook

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3min carregar um vídeo

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5min baixar uma música

Identidades Por Danielle Barbosa

A carne é fraca

Para médicos, os adeptos da dieta ecologicamente correta devem redobrar atenção com a saúde

Arquivo pessoal

Quase dois terços do desmatamento da Amazônia Legal está ligado à pastagem de animais, segundo estudo da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e do Instituto Nacional de

Fernanda Mayrinck: ativista da causa animal e vegana

Pesquisas Espaciais (INPE). De acordo com Ibope, 8% dos brasileiros se declaram vegetarianos, porém uma ala mais radical defende o veganismo, uma dieta sem nenhum tipo de alimento ou produto que contenha substancias de origem animal. A filosofia é baseada numa consciência ecológica mais ampliada, mas pode trazer implicações à saúde. Vegetariana há 15 anos e vegana há três, a produtora de cinema Fernanda Mayrinck acredita que a humanidade precisa se tornar inofensiva e isso envolve, também, hábitos alimentares. “A indústria de laticínios mata tanto quanto a de carnes. As galinhas são mantidas a base de hormônios. Mas não é só uma questão de saúde. A indústria que mata os animais é cruel e existe uma engrenagem política por trás que precisa ser desmascarada”, defende a produtora. Para Sérgio Venuto, a opção pelo veganismo se deu por não encontrar leite e ovos produzidos com base no respeito ao animal. “Por um ano não comi ovo nem derivados de leite, pois não encontrava galinhas e vacas felizes. Quando achei produtores que criavam

galinhas soltas, passei a comer ovo. O mesmo aconteceu com as vacas. O grande detalhe era resolver a questão da vitamina B12 [essencial para as funções cognitivas e encontrada em alimentos de origem animal]. Eu não queria tomar comprimido da vitamina para repor algo que encontro na natureza”, argumenta. De acordo com o médico ortomolecular Ícaro Alcântara, especialista em homeopatia pela Associação Médico Homeopática Brasileira, a preocupação dos veganos com a saúde deve ir muito além da reposição de vitamina B12. Embora a pessoa fique livre de algumas toxinas geradas pelo consumo da carne, Alcântara ressalta que as proteínas animais possuem uma rica variedade de aminoácidos e o vegano deve ter um acompanhamento nutricional rigoroso para não se prejudicar. Dentre os perigos, o médico ressalta anemia e dificuldades maiores com o controle da glicose. Para Eduardo Almeida, PhD em Saúde Coletiva e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF), o discurso do vegano é politicamente correto, porém ado-

tar a dieta e ter uma alimentação 80% baseada em trigo e outros carboidratos é arriscado. Além disso, o médico explica que, por consumir mais vegetais, o vegano precisa estar mais atento à questão do agrotóxico. “Para se ter um aporte grande de aminoácidos sulfurosos, encontrados principalmente na proteína animal, tem que ser praticado um veganismo de alta qualidade, que significa a ingestão alta de alimentos fermentados, germinados, crus, e tudo orgânico”, explica o médico. Ele ressalta ainda que há pessoas que, mesmo tomando todo cuidado, não se adaptam. O médico sugere para quem quiser tentar o veganismo observar com atenção os sinais do corpo. Sintomas como perda de massa magra, cansaço, irritabilidade, má digestão e perda do brilho da pele e dos olhos, segundo Almeida, apontam para um sinal amarelo e podem indicar a hora de rever a opção. Só para o especialista em Nutrologia Eric Slywitch, o veganismo não apresenta maiores riscos para a saúde e seus adpetos não precisam procurar um médico com mais frequência que carnívoros.


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no. quatro - setembro/outubro 2013

Ágora Por Camila Vianna, Jéssica Alves, Jéssica Monteiro, Roberta Thomaz e Thaianne Coelho

Intolerância, fanatismo, discriminação: velhos dogmas invadem a política e tensionam a agenda pública

Divulgação

Em tempos de visitas sagradas ao país, em que a pregação religiosa mistura-se ao discurso político, ficam ainda mais claras as relações entre Igreja e Estado. E se há uma pressão cada vez maior de grupos religiosos sobre as decisões políticas, afirmar a espiritualidade também tornou-se mais que uma questão de fé. Em 2008 a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), foi formada por representantes de diversas religiões para lutar pela liberdade religiosa. Desde o seu início, a comissão não mede esforços para estimular o diálogo e a paz entre as religiões. Para o interlocutor da CCIR, babalawo Ivanir dos Santos, o preconceito religioso ainda é forte e não se limita à crença. “Ele se estende pra cultura, pra questão racial. Porque o africano não é cartesiano, ele é integral. Então, costumes, cultura e religiosidade estão juntos. Você nasceu branca, dos olhos azuis, mas se botar um fio de contas, roupa branca e não sei o quê, alguém encontra na rua e diz ‘tá amarrado!’. Porque na verdade ela assume uma identidade negra, que é africana, querendo ou não”. O reverendo Marcos Amaral é pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, uma das denominações que mais sofreram perseguições e, hoje, é tida como uma das mais intolerantes. Para ele, o preconceito também vai além da religião, mas se configura como dominação de uma maioria sobre uma minoria. Além disso, ainda hoje, o que não for visto como catequizador foge do interesse da igreja. “A igreja evangélica é intolerante porque hoje é maioria, e o sistema de maioria reprime as minorias. A igreja possui um viés missionário muito

Caminhada contra a intolerância em 2012

Luís Pedro Rodrigues

Ifá Israel: Caminhada pode ser ineficaz

forte, quase alheio às questões políticas, ecológicas, o que ‘faz a cidade’. E se não é para esse fim, não vale.” Para o ateu, Pedro Martinho - aquele que estaria fora da discussão sobre religião por não ter uma -, a sociedade na qual todas as religiões viveriam em paz é quase tão sem sentido quanto a existência de um Deus. “Não acredito em sociedade ideal. A convivência pacífica entre todas as religiões e o ateísmo, que não é uma religião mas que, no caso, entra na roda, só vai ser possível no dia em que a religião for uma questão de âmbito essencialmente privado. Só que eu não sei se, sem os “fanáticos”, “fundamentalistas” religiosos para sustentar as bases e fundamentos das religiões, elas sobreviveriam por muito tempo”, acredita. Segundo a antropóloga Ana Paula Miranda, a solução para o dilema ainda está longe do fim, já que se trata de opiniões e visões diferentes. Mas ainda vale a reflexão. E se existe uma maneira de começar a romper com esse panorama conflituoso, a resposta é enfática e sem uma posição definida, como a discussão. “Sim e não. Sim, porque as pessoas que participam desse grupo vão sendo socializadas a entender quais são seus direitos e buscar cada vez mais, legalmente, a garantia desses direitos. E não porque isso é um processo político que pode acontecer em qualquer espaço, na medida em que esse grupo se posiciona, os grupos que são contrários ficam mais acirrados no enfrentamento. Não tem uma solução que não tenha uma reação”.

Como não pregar o preconceito Das brincadeiras de infância ao amadurecimento religioso na vida adulta, o Ifá Israel Oliveira passou a vida muito próximo ao tema da religião. O menino, nascido em Rio do Pires, interior da Bahia, sempre escolhia ser o padre das historinhas dos colegas de infância. Passou pelo Seminário, conheceu o Candomblé, e hoje, aos 40 anos e morando no Rio de Janeiro, caminha apenas pelo mundo dos orixás da cultura africana Yorubá, no culto específico do Ifá. Israel joga seus opelés para qualquer pessoa. Se um católico for se consultar, verá as imagens de São Rafael e São Miguel em uma espécie de aparador. “São meus anjos protetores”, ele diz. Se for um budista, verá a imagem do buda e outros objetos que ganha de presente dos amigos. E verá, logo ao lado, a imagem do Ifá, abaixo de uma foto emoldurada que ele próprio tirou do palácio de Osun, na Nigéria, considerado o local onde Oxum apareceu pela primeira vez. A iniciação na doutrina, em 2009, o fez conhecer a cultura nigeriana durante 21 dias e entrar de vez nessa sociedade que, segundo Israel, é voltada ao culto à Ori, que significa um culto à sabedoria. E, para ele, nesse culto não há espaço para preconceitos e intolerâncias. Mas não é assim com todas as sociedades e todos os cultos. “O que se vê hoje é disputa de dinheiro”, afirma.

“ Acredito que da maneira

como essas passeatas são feitas hoje, elas não funcionam efetivamente. São muito mais um desfile de egos do que um meio para discutir a superação dos problemas religiosos

Israel Oliveira

O comportamento individual e coletivo da religião, que começa a partir da melhora de si mesmo e depois do ambiente de moradia, juntamente com uma educação religiosa não dogmática, mas sim voltada para a diversidade e aceitação das diferenças, são mais significativos que passeatas e marchas, segundo Israel.

“Nós do axé temos que dizer a que viemos e temos que mudar comportamentos. Para isso, temos que dar exemplos. Acredito que da maneira como essas passeatas e organizações são feitas hoje, elas não funcionam efetivamente. São muito mais um desfile de egos do que um meio para discutir e apresentar propostas para a superação dos problemas religiosos. Enquanto nós não tivermos instrumentos adequados para oferecer boa educação religiosa para as crianças, temos que recuperar os adultos. E isso tem que ser feito por comportamentos e exemplos positivos que começam dentro de nós mesmos e depois partem para a sociedade”.

Entrevista com o Babalawo Ivanir dos Santos:

Por que você começou sua militância? Houve um caso em 2008... justamente uma matéria que saiu no jornal que falava da perseguição da Umbanda e do Candomblé na Ilha do Governador, por traficantes que se diziam evangélicos. Estavam expulsando a religião das áreas populares, aí nós começamos a organizar a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa. e a primeira Caminhada. Por que existe a dificuldade de entrar nos presídios? Sempre tivemos. Muitos adeptos da religião quando são presos acabam se convertendo. Como se “essa religião é do mal... então se você é mal é porque você é dessa religião”. No panorama do diálogo inter-religioso no Brasil e no mundo, você acha que estamos bem colocados? Eu acho que no Brasil a gente construiu uma semente. Quando você consegue fazer vários segmentos religiosos dialogarem a partir de um dado religioso, mas com uma agenda civil de respeito à democracia e à diversidade religiosa, isso é novo. É inédito. Como você enxerga as lideranças religiosas dentro do âmbito político? O Estado é laico. Quando eu me torno um homem público, tenho que defender aquilo que é de interesse público e levar em conta que a sociedade é diversa e tem vários interesses. Do contrário, é desrespeitar e a diversidade e a democracia.


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no. quatro - setembro/outubro 2013

Alhos e Bugalhos Por Gabriel Vasconcelos

Cinco da manhã. Sob o céu ainda escuro, o velho italiano acomodava os pesados bolos de jornal na banca. Nada se podia ouvir além das ondas, que quebravam a uma ou duas quadras dali. O movimento já aumentava. O velho dava meia hora para os primeiros surgirem ávidos pelo papel pintado, mas, antes mesmo, passou o importado preto, um porsche dos mais caros que foi ter a uns cem metros dali, bem perto da boca do morro. Dele saiu um homem, uma criatura gorda com cabelos grandes e de um amarelado fraco, quase branco. Os óculos escuros escondiam o olhar, mas a postura entregava a impaciência. Os trabalhadores que desciam a favela para mais um dia útil ignoravam o homem e admiravam o carro, cuja lataria brilhava impecável ao contato dos primeiros raios de sol. Inédita, a cena despertava a curiosidade dos transeuntes, miseráveis ou abastados. Os olhares não eram poucos, mas com certeza o do italiano era o mais interessado. Ali desde cedo, o velho já estava bem acordado e ativo. Poucas vezes viu tamanha irresponsabilidade. Experiente, sabia que o ponto era perigoso. Balançava a cabeça em sinal negativo ao lembrar dos furtos diários, da entrega do arrego policial, das ordens esporádicas de não se sabe quem para fechar todo o comércio. Não se sabia se o gordo era da terra. O jeitão de turista contrastava com a naturalidade das expressões. Olhava repetidas vezes o digital e, apoiado na porta entreaberta do porsche cayenne, mantinha os olhos fixos na ladeira da favela. Esperava alguma coisa, e a aflição fazia correr gotas de suor pelas têmporas. O jornaleiro não via no homem um italiano - estes, quando irritados ou ansiosos, urram e gesticulam. Para o velho aquele era um alemão. Os suspensórios, grosseiramente esticados, marcavam a banha e alcançavam a bermuda cáqui. Sim, aquele podia ser um alemão, quem sabe um austríaco, com certeza um saxão. Só não era daqui. Porque se fosse, teria comprado o noticiário para se distrair. Mas era aquilo, a origem era apenas um acessório, um traço pouco decisivo para os atenciosos de plantão. O real interesse era descobrir pelo quê o gordo tanto ansiava. Duas horas se passaram e o homem nada fazia além de bater as pernas em prova de impaciência. Suava como um porco e o calor nem era o de sempre. Na banca, a cada jornal que saía, a mesma pergunta: “O que é isso? Como pode, aqui com um carrão desses?!” e o velho acompanhava: “Sì, molto strano questo uomo...”. E assim foi até que o suposto alemão resolveu andar. Bateu a porta do carro e acionou as trancas de longe. Veio na direção do velho que, claramente excitado, ignorou a senhora que pedia a Marie-Claire. Nada poderia desviar a atenção do jornaleiro, que até saiu do banquinho para assistir à aproximação da figura extraterrena. Molhado de suor, o gordo vinha desajeitado e, com dificuldade, amarrou a cabeleira. Já dentro da

banca, ameaçou falar, mas apenas olhou a estante improvisada de cigarros e gomas de mascar. Pegou o cigarro de canela e, antes de ensaiar qualquer palavra, olhou a marca com desgosto. O italiano se irritou com a reprovação, mas logo voltou as atenções para natureza do homem, ainda calado. Finalmente, falou em bom português claro: “Aqui está!”, e entregou a nota de vinte ao velho que, surpreso, esqueceu o troco. O homem não fez questão e foi logo saindo, de volta ao carro. Parado e pensativo, o velho recolheu as suposições infelizes. As hipóteses eram convincentes, pensou. O tipo não era comum e, quando aparecia, era turista. Com ânimo renovado, o italiano pôs-se de novo a mirabolar sobre o que o gordo, agora brasileiro, queria. O que quer que fosse, estava no morro, mas de lá ninguém quer nada ou, pelo menos, nada de bom. Do morro, todos sabem, só as vadias do puteirinho ou os papelotes de cocaína que descem numa surdina declarada. Na mente do velho, estava quase

tudo amarrado. Seria ver para crer. Nove da manhã e nada. O velho não sairia dali por nada, não antes de saciar a curiosidade. Quanto ao homem, este parecia menos aperreado, mas fumava sem parar. O suor deu lugar a espessas baforadas que o envolviam e acalmavam. Com os olhos ainda vidrados na favela, nem os óculos podiam disfarçar toda aquela atenção a um mundo tão feio e distinto do seu. Os moradores, há muito desconfiados, pareciam se acostumar com a presença do homem e do carro, que figuravam ali quase como um obelisco. Mais de quatro horas de espera e nem sinal de declínio. O homem não deixaria o lugar de mãos abanando. Tão decidido quanto estava o jornaleiro. Como em qualquer outro dia, estaria ali até o cair da noite, mas, desta vez, abandonou a cruzadinha para acompanhar o acontecimento. Consumido quase todo o maço de cigarros, o homem voltava a suar e sacolejar as pernas mórbidas. Virou-se e passou a olhar o movimento da rua e

de um condomínio do asfalto. O porteiro conversava com o zelador que há muito custo lustrava o portão prateado, fazendo nele refletir, como num espelho, a boca do morro em frente. O homem riu das contradições e espreguiçou com as costas na porta do carro. Quando guardava os braços à posição original, um moleque preto, cutucou-lhe a cintura e entregou um embrulho pequeno envolto em papel laminado. Agitado, o jornaleiro cerrou os olhos como se tentando ver melhor. Supôs que o pivete abordaria o homem, fosse para pedir ou para tomar-lhe um trocado. Mas a recepção amigável do sujeito surpreendeu mais uma vez o italiano. O homem tirou uma nota azul da carteira e deu ao menino que, abismado, lançou-a ao sol para conferir a beleza, como se não acreditasse. O gordo cheirou o embrulho e riu por uma segunda vez. O moleque correu e adentrou um barraco jeitoso, ali mesmo, próximo ao asfalto. Na porta, uma preta velha acenava. A cocada era branca e ainda estava quente.


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