sonata
cartesiana
Nina Sirota von Oettingen Gaul OESTUDIO速
Nina Sirota von Oettingen Gaul
Sonata Cartesiana 1ª edição
Rio de Janeiro edição do autor 2015
Sonata Cartesiana Gaul, Nina: 2015 projeto gráfico e capa: Thiago Rocha editoração: Guilherme Schwenck revisão: Guilherme Gama e Thiago Rocha
Para o meu filho Haru, que me contou de dois mistĂŠrios do mundo.
Os artigos desse volume foram escritos durante os cursos listados a seguir: s o b r e a s m e d i ta ç õ e s m e ta f í s i c a s d e r e n é d e s c a rt e s
• Março, 2014 • Departamento de Filosofia – p uc- rj • Esp. Filosofia Contemporânea (Pós-graduação Lato Sensu) • professor: Tito Marques Palmeiro a v e r da d e e n t r e t e r r a s e m u n d o s e m a o r i g e m d a o b r a d e a r t e d e m a rt i n h e i d e g g e r
• Janeiro, 2014 • Departamento de Filosofia – p uc- rj • Esp. Filosofia Contemporânea (Pós-graduação Lato Sensu) • professora: Lygia Saramago o a r t i s ta e o a r t e s ã o : o r e v e r e n c i a d o r e o reverenciado, em mário de andrade
• Janeiro, 2013 • Departamento de Filosofia – puc-rj • Especialização em Arte e Filosofia (Pós-graduação Lato Sensu) • Monografia apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em Arte e Filosofia. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. • orientador: Pedro Duarte de Andrade o exercício dos discursos moralizantes
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l i t e r at u r a , a rt e e p e n s a m e n t o c o n t e m p o r â n e o
• Julho, 2013 • Departamento de Letras – puc-rj • Esp. Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo (Pós-graduação Lato Sensu) • professor: Elizabeth Muylaert Duque-Estrada
Agradecimentos gerais Ao meu amor Thiago Rocha pela revisão e seu saber de escriba de música e texto, que, com o seu olhar de toda nota importa, fez essa belíssima edição; e também aos seus companheiros de trabalho, Guilherme Schwenck e Guilherme Gama. Ao meu amigo Marcos Dana, a quem dedico este trabalho por ter me sugerido o pensamento da arte através da filosofia. À minha família – Anne, Peter, Nobu, minha mãe, pai e Su, pelo amor e paciência. Ao Paulo Rabello de Castro pela presença crítica, inspiradora. Ao amigo Marcelo Frota pela poesia. Ao psiquiatra e mestre Marco Antônio Figueiredo pela coragem e afeto. À professora Elizabeth Muylaert Duque Estrada, que nos trouxe para o curso Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo do departamento de Letras da PUC-RJ o pensamento da filosofia, em especial do franco-argelino Jacques Derrida. Ao professor Tito Marques Palmeiro, pela cuidadosa e gentil revisão e correção do trabalho sobre as Meditações Metafísicas. Aos professores Paulo Cesar Duque-Estrada e Lygia Saramago, pelas delicadas aulas sobre A Origem da Obra de Arte.
Agradecimentos da monografia Ao professor Pedro Duarte de Andrade, pela orientação e pela força das suas aulas. A todos os professores do curso de Especialização em Arte e Filosofia e em especial a Ethel Rocha do IFCS-UFRJ, Edgard Lyra, Danilo Marcondes, Marieta Dantas e Paulo Cesar Duque-Estrada. Ao querido Renan Ji, pela sua atenciosa revisão.
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Apresentação Os gregos chamavam de thauma o espanto, a admiração e a perplexidade, tal como é a própria filosofia. Fui tomada por esses afetos no contato com as Meditações Metafísicas de René Descartes, em meio ao curso de Arte e Filosofia da puc-rj, durante as calorosas aulas da Profª. Drª. Cristina Ribas, em 2011. Naquela ocasião, pensava sobre o misterioso e inteligível envenenamento que beira as causas da morte de Descartes. Para uma mãe recente, as experiências solipsistas eram chocantes. É um tanto dramático considerar a ontologia do pensar moderno por meio das fundamentações científicas de René Descartes. A revolução copernicana abalou profundamente as noções da época, inaugurando de vez o modelo do “papel em branco” para as livres experimentações e suas morais provisórias. O processo do solipsismo crônico escorria em cada página das experiências cartesianas. Se olharmos com cuidado o curso do pensamento moderno até essa “suposta pós-modernidade”, poderemos observar o “desespero humano” em não abarcar o outro. É uma eterna busca pela alteridade, e esse problema moderno pode ser visto das Meditações Metafísicas até a “escrita-phármakon” de Jacques Derrida, que acaba optando pela suspensão do juízo, uma questão a saber.
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O primeiro texto dessa coleção, Sobre as Meditações Metafísicas” de René Descartes, faz uma espécie de “denúncia” do pensar moderno, em que podemos observar – no passo-a-passo das meditações ao encontro da “verdade”– momentos decisórios e perigosos, principalmente para as ações e práxis humanas. O risco de prejuízo sensível e corpóreo é muito presente, e mesmo com o fechamento da sexta meditação, em que Descartes volta a pactuar com os citados compostos, a descoberta do ponto-fixo, da verdade, teve que passar por cisões para se constituírem como tal. Esse breve artigo que abre a “Sonata Cartesiana” fez-se apenas o início de uma densa pesquisa a seguir. É importante frisar que os fundamentos modernos e as experiências cartesianas estão presentes em todos os artigos dessa coleção; eles são peças-chaves para seu entendimento. O leitor irá (re)ler algumas partes das meditações – em especial a experiência com o “pedaço de cera e os homens verdadeiros” – em todos os textos. Parece-me penoso compreender o pensamento moderno sem passar por essas iluminações. O segundo texto da coleção trará alguns pensamentos sobre A Origem da Obra de Arte de Martin Heidegger, que, durante o entreguerras, resgatou a questão do ser que serão desveladas através dos objetos, das coisas e dos materiais no mundo, bem como suas relações com as representações, que para ele, desde Descartes, partem da verdade como certeza, como uma eterna adequação do conhecimento à coisa. O terceiro artigo foi o trabalho de monografia feito para a pós-graduação de Arte e Filosofia da PUC-RJ, em 2011, no qual fui orientada pelo jovem e talentoso Prof. Dr. Pedro Duarte. Esse trabalho foi muito importante por dois motivos: primeiramente pelo contato com a obra de um autor brasileiro, Mário de Andrade, e seu único texto sobre teorias estéticas “O artista e o artesão”; e em segundo, ter como filtro de entendimento as Meditações Metafísicas dentro da problemática de Mário de Andrade, em que suas preocupações sociais eram iminentes.
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Para terminar a coleção, apresento um breve artigo sobre questões discutidas nas esferas da Literatura, fruto de uma passagem rápida pelo departamento de Letras da PUC-RJ e das experiências nas aulas com a professora Prof. Dr. Elizabeth Muylaert Duque-Estrada. Vimos nesses estudos alguns textos críticos-literários que o mesmo “desespero humano” e a eterna busca que encerraria o outro continua premente nos estudos da Literatura Comparada, revisão dos cânones e a nova perspectiva multiculturalista. Os temas giram em torno de uma grande “virada ética”. Agora gostaria de dizer que sou uma iniciante apaixonada pelos estudos filosóficos e que o atrevido Friedrich Nietzsche que, com sua irreverência através dos cursos da querida Viviane Mosé em 2001, destinaram-me a essa densa floresta de lenhador, sem fim. E por fim gostaria de desejar uma boa leitura e agradecer ao meu filho Haru e aos estudos filosóficos a minha ausência de dúvidas em relação ao sentido da vida humana.
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Sonata Cartesiana 13
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A verdade entre Terras e Mundos em A Origem da Obra de Arte de Martin Heidegger
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O artista e o artesão: o reverenciador e o reverenciado em Mário de Andrade
47 O exercício dos discursos moralizantes – literatura, arte e pensamento contemporâneo
Sobre as Meditações Metafísicas de René Descartes René Descartes em Meditações Metafísicas nos revela a verdade do pensamento moderno no processo de ruptura entre o composto espírito-corpo. Não ficaríamos tão espantados caso este composto não se relacionasse com o mundo dos corpos. Veremos nesse breve artigo como se torna imposto o estado de isolamento em que este composto espírito-corpo deveria se forçar em sua existência, caso contrário, poderíamos ter guerra no terreno das naturezas corpóreas.
As verdades Em suas Meditações, Descartes aplicará o método da dúvida para todos os seus pensamentos; o menor motivo de dúvida arruinará todo o edifício desses fundamentos. Descartes inicia suas Meditações dizendo que tudo o que ele recebeu até então como mais verdadeiro e seguro, aprendeu dos sentidos ou por meio deles, e diz que algumas vezes esses sentidos eram enganadores; conclui que lhe é prudente jamais confiar inteiramente naqueles que uma vez já o enganaram (descartes, 2000, p. 31). Mas ainda que os sentidos o enganem, têm algo que Descartes não pode duvidar. Assim inicia a sua busca. Descartes descreve um pensamento no qual estaria sentado perto do fogo, vestido com um roupão, segurando um papel entre as mãos, e se pergunta: “E como é que eu poderia negar que estas mãos e este corpo sejam meus?” (idem, p. 31)
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O autor chega a trazer a possibilidade de uma certa loucura, mas não se considera extravagante o suficiente para tais exemplos, e então conclui que poderia estar vestido de roupão, perto da fogueira, segurando um papel em seu sonho e que não há indícios de que possa distinguir nitidamente seu estado de vigília do sono. Descartes supõe que está adormecido e que todas as suas particularidades, como o remexer da cabeça, dos olhos, o esticar das mãos, são ilusões, e talvez suas mãos e o seu corpo não sejam mais como o vemos, concluindo então que tais imagens são factíveis de quadros e pinturas que só podem ser formados a semelhança de algo real e verdadeiro. (idem, p. 33) Tais pensamentos, para ele, são imaginações formadas, mesmo que algumas verdadeiras e reais, simples e universais, outras fingidas e fantásticas, são imagens formadas. Essas imagens formadas, para Descartes, são da natureza corpórea. A ocupação no espaço, a extensão, a figura, a quantidade, a grandeza, o número, o lugar, o tempo, a duração, são naturezas corpóreas, portanto, inconstantes, duvidosas e incertas. São ficções do seu espírito. Descartes segue em busca de um ponto fixo, seguro e indubitável. Agora pensamos na cena em que Descartes faz uma experiência com o pedaço de cera para provar daquilo que se concebe em seu espírito sobre este corpo. Descartes concluirá que a cera, este corpo externo, submetido a experimentos sensíveis em suas matérias e substâncias – ela mesma, a cera –, continua sendo apenas uma cera. “O pedaço de cera, retirado da colmeia, ainda não perdeu a doçura do mel que continha, ainda retém algo do aroma das flores, sua cor, sua figura, sua grandeza são aparentes, é duro, é frio, se o toca produzirá algum som (...) ao aproximar a mesma cera do fogo, o sabor se exala, o aroma esvanece, sua cor muda, sua figura se perde, sua grandeza aumenta, torna-se líquida, aquece-se de um jeito que mal se pode tocá-la, e não produzirá mais nenhum som”. (idem, p. 49 e 50) Descartes admite que o que restou para ele, em seu espírito, foi a mesma cera:
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“É preciso admitir que permanece, e ninguém o pode negar. Então o que conhecia com tanta distinção nesse pedaço de cera? Por certo não pode ser absolutamente nada de tudo o que nele observei por intermédio dos sentidos, porquanto todas as coisas que caíam sob o paladar, ou o olfato, ou a visão, ou o tato, ou a audição, acham-se mudadas, e no entanto a mesma cera permanece.” (idem, p. 50) Então conclui que seus sentidos perceberam a cera diferentemente, mas tem algo que permanece; no entanto, o que resta daquele corpo é a mesma cera. Ora, o que fica daquele corpo, para Descartes, é a sua concepção do pensamento sobre a cera. Logo após, ponderará se pode conceber aquela cera apenas pela mudança de suas formas, e assim imaginar muitas ceras. Conclui que não: a ilustração da cera não passa pela faculdade de imaginar. Concebe-a apenas pelo espírito ou pelo seu entendimento. Descartes se perguntará: “que cera é esta que eu toco, imagino, que vejo, e que só posso conceber pelo meu espírito e que é a mesma cera desde o começo?” (idem, p. 51) Descartes chega a considerar que seja quase enganado pelos termos da linguagem ordinária, a palavra, e supõe que tenha apenas concebido a cera pela visão dos olhos e não pela inspeção do seu espírito. Após essas indagações, Descartes aplicará o método da dúvida para a cena dos homens e pensará que ao ver homens pela janela, poderia concluir que são chapéus e capotes de homens fictícios se mexendo mediante o uso de molas, mas pela potência de julgar do seu espírito compreende que são homens verdadeiros. (idem, p. 52) Em suas Meditações, o autor repete que sua busca é para uma contribuição científica no sentido do fundamento das ciências. Ele está à procura de um ponto fixo e indubitável. Já colocou em dúvida a existência de todas as substâncias corpóreas e sensíveis no terreno das naturezas corpóreas, inclusive a sua própria, provando que suas alterações, mutações e complexidades não o levam a nenhuma conclusão absoluta, “desviando-o do caminho reto que o poderia conduzir ao
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conhecimento da verdade.” (idem, p. 37) Mas tem algo que Descartes sabe que é diferente das coisas que julgou serem incertas e da qual ele não pode ter a menor dúvida; pergunta-se: “Não há algum Deus, ou alguma outra potência, que me ponha no espírito esses pensamentos?” (idem, p. 42) E conclui que isto não seria necessário, pois talvez ele, Descartes, seria capaz de produzi-los por si mesmo; então volta a se perguntar: “Eu então, pelo menos, não sou algo?” (idem, p. 42) Após ter negado seus sentidos, seu corpo, ter posto tudo em dúvida, ainda tem algo que nele permanece, sob o seu próprio domínio e isso existia de fato, Descartes conclui: “eu sou, eu existo[; esta proposição] é necessariamente verdadeira todas as vezes que a pronuncio ou que a concebo em meu espírito”. (idem, p. 43) A existência ou não de um mundo enquanto Descartes pensava, mesmo colocando tudo em dúvida, era o que pra ele, existia de mais indubitável. Descartes conclui que a física, a astronomia, a medicina e todas as outras ciências que dependem das considerações das coisas compostas são muito duvidosas e incertas, mas que a aritmética a geometria e outras ciências dessa natureza resistem à dúvida no argumento do cogito e, portanto, contêm algo de certo e indubitável. (idem, p. 35) Descartes achou a verdade com características ontológicas e axiomáticas. Ora, a característica axiomática do pensamento de Descartes se dá pelo processo inerente às meditações, em que é imprescindível o descarte dos sentidos e corpos para a sua equação indubitável. A verdade não existe sem esse princípio. E por que esta verdade é ontológica? Esta verdade é ontológica porque ela habita em um ente, na coisa pensante, e ela está sob seu total controle e assim sendo este ente é o responsável pela relação dessas concepções no terreno das naturezas corpóreas. Agora, algumas conclusões sobre esta primeira passagem sobre as duas primeiras meditações de Descartes: 1. Descartes aplicaria a todos os corpos de natureza corpórea do tipo da cera o mesmo entendimento,
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salvando os homens verdadeiros na segunda situação: quando os vê pela janela compreende que são homens verdadeiros somente pela potência de julgar que reside em seu espírito. Podemos concluir que, em relação aos homens verdadeiros e os corpos de natureza corpórea dos tipo da cera, Descartes concebe um julgamento diante do que ele não acredita ver com a visão dos olhos e, como a experiência leva todo o edifício do fundamento, neste caso, Descartes também conceberia um julgamento não considerando nenhum outro sentido, o tato, a audição, o paladar, o olfato, tudo do que pode ser movido de varias formas e não a si mesmo. O único elemento que diferencia o corpo de natureza corpórea do pedaço de cera do corpo de natureza corpórea dos homens verdadeiros, é a potência de julgar do cogito pensante. Para as inspeções de corpos de natureza corpóreas em geral, a potência de julgar se torna o elemento essencial. Pois se caso Descartes tivesse algum problema ou dificuldade em sua potência de julgar, os corpos de natureza corpórea de homens verdadeiros poderiam entrar na categoria de corpos de natureza corpóreas como os do pedaço de cera, e então Descartes poderia também assistir às suas mutações – de sua ocupação no espaço, sua grandeza, seu número, lugar, tempo, sua duração, sua cor, figura, som, aromas, seus sabores – com a mesma inspeção dada pela visão de seus olhos. Descartes achou um ponto fixo e indubitável: o da existência do mundo sob controle do cogito pensante, e este foi estabelecido como uma verdade. Esta verdade tem características axiomáticas. É uma verdade que possui características especialmente axiomáticas, pois esta necessariamente teve que excluir todos os corpos e sentidos para se conceber
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como uma verdade. 7. Existe um passo-a-passo a seguir para a conclusão de uma verdade, onde o primeiro passo é duvidar da existência dos corpos e seus sentidos e só assim consegue-se elaborar este ponto fixo e indubitável. 8. Esta verdade tem características ontológicas, pois esta está sob controle de um ente e este se relaciona no terreno das naturezas corpóreas.
Sobre a potência de julgar e Deus Descartes agora irá aplicar o argumento do cogito para a existência de um Deus enganador. Pensa que se um dia esse Deus empregasse toda a sua indústria em lhe enganar, inclusive nas coisas mais exatas, como por exemplo que dois mais dois são quatro e quando se enumera os lados de um quadrado, Descartes dirá que esse céu, essa terra, essas cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores são ilusões e enganos que servem para surpreender a sua credulidade, e considerará ele mesmo como não tendo mão, nenhum sentido, nem carne, nem sangue; e crendo falsamente nessa conjuntura, Descartes diz que, apegado a este pensamento e se por este meio não está em seu poder alcançar o conhecimento de alguma verdade, pelo menos, está em seu poder suspender os seus juízos diante deste gênio maligno. E diz: “Eis por que me guardarei cuidadosamente de receber em minha crença qualquer falsidade, e preparei tão bem meu espírito para todas as astúcias desse grande enganador que, por mais poderoso e astuto que seja, jamais poderá impor-me nada.” (idem, p. 38) Ora, a suposição de um Deus enganador mostra o embate deste suposto gênio maligno com um Descartes solipsista, que não vê nenhuma outra possibilidade de conhecimento da verdade que não a sua própria. A impossibilidade de uma saída ou diálogo com o gênio maligno coloca Descartes como um homem verdadeiro detentor da própria verdade. A opção de suspensão do juízo muito bem colocada pela experiência
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cartesiana nos convoca para uma atenção especial: ela está sob total controle deste homem verdadeiro e se torna necessária no caso em que não haja concordância com a outra verdade – no caso, a do gênio maligno. Se houvesse alguma dúvida em relação a ela, a outra verdade, neste caso, a suspensão das atividades torna-se decisória. (Só temos a agradecer à suspensão dos juízos em estados solipsitas, pois naquele exato momento em que um gênio maligno tentava adentrar seu espírito, Descartes tenha ficado isolado do mundo para que não houvesse nenhum agir, sendo apenas, apenas um meditar.) (idem, p. 38) Voltando às Meditações, Descartes nos ilumina com a imagem do escravo. “Este escravo que da mesma forma que usufruía no sono uma liberdade imaginária, quando começa a suspeitar que sua liberdade é apenas um sonho, teme ser acordado e conspira com essas ilusões agradáveis para ser mais longamente iludido por elas”. (idem, p. 38 e 39) Nesse momento, Descartes se diz agitado pelas dificuldades das trevas corpóreas e prefere seguir em sua libertina meditação a caminho da verdade. Pois se Descartes resolvesse acordar de seu sonho e sentir aquela escravidão em que se tornaria crucial e decisória suspensão de juízo, caso ele, este escravo, não achasse que suas mãos e seus pés, presos em correntes, e sua cor de pele não fossem falsas ilusões, este escravo poderia conceber uma outra verdade pela sua própria condição corpórea. E o que acontece se este homem verdadeiro conceber sua potência de julgar onde sua verdade se dá pela sua própria condição corpórea? Descartes alerta para sua preguiça em mergulhar na imagem do escravo, que elas voltam novamente às questões que havia descartado, as corpóreas, que este caminho não traz a ele alguma luz no conhecimento da verdade e que elas não são suficientes para aclarar todas as trevas das dificuldades que por ele foram agitadas. (idem, p. 38 e 39) Sobra-nos a possiblidade de este escravo conceber um outro Deus como seu conhecimento da verdade e de este ser
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diferente do Deus do sonho de Descartes, tal qual que este escravo não tivesse dúvida da soberana verdade e bondade do seu próprio Deus, o Deus do escravo. Encontramo-nos então diante de uma incompatibilidade de deuses, onde o conhecimento da verdade de um poderá ser diferente do conhecimento da verdade do outro. Mas o que significa essa incompatibilidade de deuses? Ora, se é o Deus que nos dá o conhecimento da verdade validado pelas potências julgadoras, então temos, no mínimo, neste caso, dois tipos de potências julgadoras e portanto uma incompatibilidade da potência de julgar. E, se por acaso, existir a possibilidade da potência julgadora de um homem verdadeiro ver no Deus do outro um gênio maligno? Ou uma diferença de clarividência entre a distinção das coisas verdadeiras e falsas? Talvez não consigamos chegar tão rápido a esta conclusão, mas, como a faísca da menor dúvida em relação ao conhecimento da verdade por meio de deuses diferentes, tornar-se-á algo necessariamente decisivo a suspensão de juízos. Ora, não precisamos pensar muito em nossa história para lembrarmos que neste caso não houve suspensão de juízos e que há incompatibilidade de deuses com diferentes distinções de verdades, pois de fato parece que estamos diante de uma questão ontológica. Diante da possibilidade da incompatibilidade de deuses ou uma incompatibilidade de conhecimentos verdadeiros, deveria ser obrigatório a suspensão de juízos; e para o agir, assim, tornar-se-ia decisivo o isolamento de cada homem verdadeiro que cogitaria fazer acontecer sua verdade, realizar a ação desta verdade. Neste caso sabe-se que esta suspensão não tenha acontecido e talvez ainda não aconteça no terreno das naturezas corpóreas. A necessidade de pensar sobre questões éticas para as ciências é trazida de uma forma bem presente nas Meditações Metafísicas através do argumento do cogito pensante e sua autoridade diante das questões externas e corpóreas e da existência do gênio maligno, sugerindo que o método
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não seria “congelado” no campo metafísico e que iria haver produção e ação de verdades no terreno das naturezas corpóreas. Poderíamos saber da geometria de uma bomba atômica mas não precisaríamos realizá-la como natureza corpórea, aquela que de princípio essencial, para se chegar nela como verdade. Necessariamente, há de se exterminar o que ela se tornará: um corpo. No momento em que existe uma relação deste corpo de homem verdadeiro que concebe uma verdade sob seu controle individual é que se faz necessária a potência de julgar e a questão que era puramente metafísica entra no terreno de relações das substâncias compostas espírito-corpóreas. Descartes conclui na Quinta Meditação (¶15): “E assim reconheço muito claramente que a certeza e a verdade de toda a ciência depende do só conhecimento do verdadeiro Deus; de sorte que, antes de o conhecer, eu não podia saber perfeitamente nenhuma outra coisa. E agora, que o conheço, tenho o meio de adquirir uma ciência perfeita no tocante a uma infinidade de coisas, não só daquelas que estão nele, mas também daquelas que pertencem à natureza corporal, na medida em que ela pode servir de objeto às demonstrações dos geômetras, os quais não fazem caso de sua existência”. (idem, p. 107) Como a menor das conclusões leva junto todo o edifício de fundamento, podemos concluir: 1. As ciências estão concebendo produtos corpóreos a partir de verdades que necessariamente tiveram que eliminar todas as naturezas corpóreas para serem concebidas como verdadeiras; 2. Todas as vezes que um homem verdadeiro se deparar com um gênio maligno, este deve, necessariamente, todas as vezes, suspender todos os seus juízos; 3. Suspender o juízo é necessariamente ficar isolado e não realizar nenhuma ação no terreno das naturezas corpóreas; 4. Caso haja um homem verdadeiro e que este não con-
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siga distinguir um gênio maligno de um Deus perfeito, temos a possibilidade de um conhecimento da verdade que se dá pela própria condição de natureza corpórea; 5. Caso tenhamos um homem verdadeiro em que o conhecimento verdadeiro de um Deus seja diferente do conhecimento verdadeiro de outro Deus para um outro homem verdadeiro, temos uma relação de incompatibilidades de deuses ou uma incompatibilidade do conhecimento verdadeiro; 6. Existe a possibilidade de não haver suspensão de juízo em casos obrigatórios de incompatibilidade de deuses; 7. Existem várias ações realizadas onde há incompatibilidade de deuses e diferentes conhecimentos da verdade.
Da aplicação das verdades e da ausência de dúvidas de que elas estejam agindo no terreno das naturezas corpóreas Ora, quando a verdade é encontrada sob o controle de um indivíduo e este possui o livre-arbítrio para o agir científico, é-nos possível concluir que existirão inúmeras verdades sendo concebidas e acionadas no terreno das naturezas corpóreas, e sendo assim, obrigatoriamente estarão se relacionando com corpos, sentidos, tamanhos, quantidades, volumes e qualidades – todos aqueles que foram necessários eliminar para se conceber qualquer verdade – e essas ações deveriam ser suspensas como no passo a passo das Meditações Metafísicas. Mas o fato é corpóreo e as ações não são suspensas em casos obrigatórios, as ciências estão produzindo suas verdades que não estão apenas agindo metafisicamente e sim nos terrenos das naturezas corpóreas limitadas pelo conhecimento verdadeiro de cada um e suas diferentes potências julgado-
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ras. Então pela lógica cartesiana podemos pensar que há uma guerra de verdades agindo no campo da natureza corpórea. O fato é que existe a possibilidade de incompatibilidade de deuses que nos trazem diferentes conhecimentos verdadeiros e essas relações estão em ação. Quando não há suspensão de juízo diante de dois conhecimentos verdadeiros diferentes, há uma impossibilidade de convivência entre duas verdades, e uma verdade pode querer impor sua existência e, como consequência, teríamos guerras em ação dessas verdades. Basta olharmos pelas nossas janela e para a nossa história para que possamos antecipar o cenário de hoje através da iluminação cartesiana e a ação libertina das ciências no terreno dos homens verdadeiros. Eis o problema instalado no terreno do planeta Terra e seus homens verdadeiros; então podemos sugerir que entre relações com incompatibilidade de deuses com diferentes conhecimentos da verdade onde não há suspensão de juízo necessariamente alguma ação será realizada e, nada nos garante, neste momento, que não haverá guerra em ação dessas verdades nem que alguma natureza corpórea permanecerá intacta. Há necessariamente risco de eliminação corpórea. De fato há um prejuízo corpóreo e sensível neste mundo e ele se dá pela falta de suspensão dos juízos em casos decisórios, essas guerras das verdades estão agindo no terreno das naturezas corpóreas. Referências Bibliográficas DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2011
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A verdade entre Terras e Mundos em A origem da obra de arte de Martin Heidegger Diante do pensamento cartesiano, em que, na busca pela verdade, foi imprescindível passar pela cisão do composto espírito-corpo, quando corpos e sentidos foram classificados como incertos e duvidosos, Heidegger, em A Origem da Obra de Arte, parece ressuscitar a verdade nos próprios corpos supostamente enterrados e desgastados pelo velamento do projeto moderno, exigindo um olhar ontológico sobre estes no mundo. Heidegger diz que os conceitos críticos de verdade que, desde Descartes, partem da verdade como certeza, são somente variações da determinação da verdade como correção, “uma correção do representar”. Essa é a essência de verdade corriqueira que surge e desaparece frente à verdade como desvelamento do sendo; e assim lança a pergunta: “Porém, por que não nos damos por satisfeitos com a essência da verdade que, entretanto, há séculos nos é familiar? Verdade significa hoje e há muito tempo a adequação do conhecimento à coisa. Contudo, para que o conhecer e a proposição que forma e enuncia o conhecimento possa adequar-se à coisa, e para que, de acordo com isso, a própria coisa possa tornar-se adequada à proposição; a própria coisa precisa mostrar-se como tal. Como ela se deve mostrar, se ela própria não pode
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emergir a partir do velamento? A proposição é verdadeira no que ela se orienta pelo desvelamento, isto é, pelo verdadeiro.” (heidegger, 2010 p. 129). A primeira falência do pensar na modernidade que Heidegger apresentará estão nos conceitos de alegoria e símbolo, que reúnem um “outro”. “Alegoria e símbolo fornecem o enquadramento representacional em cuja perspectiva, desde há muito tempo, se move a caracterização da obra de arte. Mas esta unidade na obra, que revela um outro, esta unidade que reúne a um outro, é o caráter de coisa na obra de arte.” (idem, p. 43). Heidegger quer achar o “caráter vigente da obra de arte”, pois somente assim encontrará nela a verdadeira arte. (idem, p. 45) Seguindo adiante, Heidegger questionará a reunião de propriedades, o que consiste o cerne das coisas, o que os gregos chamavam de hypokeimenon, era fundamento e o já sempre existente; este cerne torna-se o subjectum (modernamente, sujeito). “Esta tradução dos nomes gregos para a língua latina não é de modo algum um fato sem consequências em relação a eles, como hoje ainda é julgado. Por detrás da tradução, aparentemente literal e com isso preservadora, esconde-se muito mais um transpor da experiência grega para um outro modo de pensar. O pensar romano assume as palavras gregas, traduzidas sem a experienciação igualmente originária que corresponda ao que elas dizem, sem a experiencial palavra grega. Com este traduzir começa a carência de chão firme do pensamento ocidental.” (idem, p. 53). E assim Heidegger apresenta o fundamento do pensamento ocidental: a determinação da coisa como substância e acidentes que na estrutura de enunciação vêm a se tornar sujeito e predicado. Não se sabe o que é determinante e primeiro na mecânica do pensar, e ainda sem decisão, se vai da compreensão do enunciado para a estruturação da própria coisa ou ao contrário. Para Heidegger, porém, nem o que se estrutura de coisas (sujeito e predicado), nem o que a coisa apresenta de substância e acidentes dão conta da coisa-em-
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-si. Heidegger está à procura de um campo livre para que a coisa se apresente em seu caráter de coisa, o caráter de coisa da coisa. Precisamos achar o caráter de constância que lhe é próprio. O constante tradicional reúne o material em uma forma, e ainda assim desconfiamos da matéria formada. Matéria e forma não estão na constituição da coisidade da própria coisa, pois elas são naturais da essência do utensílio. Há uma relação de serventia e interesse da forma em relação ao material pelo uso. Heidegger apresenta as três falências do pensamento ocidental: a substancialização, a sensibilização e a materialização ou formatação das coisas. Na substancialização, vê a coisa como suporte de características, um hábito adquirido e imposto, portanto uma violenta redução para o objeto, digno de desconfianças. Na unidade da multiplicidade de sensações, também vê uma ação imposta pela substância, e em matéria e forma, vê a fundação da utilidade ideológica imposta na matéria, o que chama de matéria enformada; ele observa a autoridade da forma na matéria. Este modo de pensar antecipou a reflexão sobre o ser de cada sendo singular; o ser da coisa parece se consistir no que ainda resta. O que Heidegger está buscando é um refletir sobre a coisa e a presumir sem limite, o pensar das coisas em sua aparência de óbvia naturalidade é necessário, mas é preciso manter distância das antecipações e dos abusos do modo de pensar sobre elas; é preciso deixar a coisa repousar em seu ser-coisa, deixar o ser-sendo das coisas repousar em si, em sua essência. Na busca pelo caráter das coisas, o caráter coisal, Heidegger observou: as meras coisas, depois os utensílios e, por último, a obra de arte. Sobre as superfícies, estariam as meras coisas: é coisa e nada mais (um bloco de granito). Nos utensílios e apetrechos, observa vantajosas ferramentas de utilidade instrumental, objetos construídos de interesses que carregam responsabilidades e contratos. E, por fim, na obra de arte achou a verdade, e chamou este momento de uma abertura, uma espécie de clareira, algo como um rasgo, o encontro com
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um novo caminho, uma mudança de rumo inesperada. O utensílio repousa em si assim como bloco de granito, mas ele não tem uma origem própria como ele, no entanto, tem um grau de parentesco com a obra de arte pois os dois são um produto humano. E a obra de arte se assemelha a mera coisa pela sua presença autossuficiente. Coisa e obra de arte repousam em sua origem própria, sem serventia; são autônomas. Heidegger parece encontrar na obra de arte a verdade: a única saída do pensamento tradicional, o lugar do abismo iluminado, do abismo da abertura, da depressão mais verdadeira do ser, um encontro indomável, no qual tudo e nada se desvelam e algo inesperado e chocante dão origem. É no desvelamento do sendo que Heidegger achará a verdade das coisas. Quando compreendemos a verdade como desvelamento, não nos refugiaremos apenas em uma tradução mais literal de uma palavra grega. A proposta segue em refletir sobre que elemento experienciado e não pensado pode subjazer a essa essência da verdade entendida enquanto correção, que nos é tão familiar e, por isso, tão desgastada. O que acontece é que nós, tradicionalmente a fim de provar e conceber a correção (verdade) de uma afirmação, temos que recorrer a algo que já está evidente. Tal pressuposto não pode ser evitado; enquanto falamos e opinamos assim, sempre só entenderemos a verdade como o que é correto e que decerto ainda necessita de um pressuposto que nós fazemos. Mas não somos nós que pressupomos o desvelamento do sendo; é o desvelamento do sendo que nos descola para uma essência tal que, em nosso representar, sempre permanecemos inseridos no interior do desvelamento e proposto por ele. (idem, p. 129 e 131) Heidegger poderia ter composto A Origem da Obra de Arte a partir da sua experiência com o quadro “Sapatos”, de van Gogh, onde se viu diante da verdade. Aquele momento trouxe-lhe a abertura para sua urgente busca pelo sentido do ser no mundo, criou uma narrativa própria para revelar o caráter da obra, mudou a forma e a tonalidade do seu texto
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para definir o perplexo “nada mais” que o atravessou, e dissolveu assim qualquer descrição utilitária ou tradução sobre aquele momento. Apresentou uma história sobre aquela obra de arte que ali repousava sem intenção de satisfação, se velando-se e desvelando em-si, como ele próprio definiu. Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço dos passos do trabalhador. Na gravidade rude e sólida dos sapatos está retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo, sobre o qual sopra um vento agreste. No couro, está a umidade e a fertilidade do solo. Sob as solas, insinua-se a solidão do caminho do campo, pela noite que cai. No apetrecho para calçar impera o apelo calado da terra, a sua muda oferta do trigo que amadurece e a sua inexplicável recusa na desolada improdutividade do campo no Inverno. Por este apetrecho passa o calado temor pela segurança do pão, a silenciosa alegria de vencer uma vez mais a miséria, a angústia do nascimento iminente e o tremor ante a ameaça da morte. (idem, p. 81)
Na obra acontece uma abertura inaugural, o revelar, a verdade do sendo. À terra pertence o sapato-utensílio e no mundo da camponesa ele está abrigado. Mundo e Terra estão no ser-utensílio do sapato da camponesa em um contrato de confiabilidade. A obra abre o mundo em uma permanência vigorante e a Terra reabriga o desabrochar. Na relação de confiabilidade entre Terra e Mundo é que reconhecemos o que o utensílio é em verdade. O repouso em-si do utensílio consiste na confiabilidade. Foi por meio do quadro “Sapatos” que o ser-utensílio pôde estar em outro lugar que não o habitualmente. O ser-utensílio do utensílio veio ao seu aparecer por meio da obra de arte. No mundo está o ambiente de estrutura referencial, a localização mais garantida de ordem incontestável, e nele se abriga a Terra, toda a possibilidade material e permanente. Esse contrato confiável e seguro repousa na íntima relação entre Mundo e Terra dos objetos. A obra é o embate da disputa entre Mundo e Terra onde se conquista o desvelamento do sendo no todo, portanto a verdade. É notável a tardia busca de Heidegger para uma ontolo-
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gia dos objetos-coisa; soa quase um último suspiro de esperança em salvar o olhar objetivante e sintético fundado pela ciência moderna. Desvendar o caráter dos “inanimados” do mundo e localizar no interior da obra de arte o fluxo do movimento, da vida, do sendo e, por fim, da verdade; é a própria origem da obra de arte. Referências bibliográficas HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Trad. Idalina Azevdo da Silva e Manuel António de Castro. São Paulo: Edições 70, 2010. DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
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O artista e o artesão – o reverenciador e o reverenciado em Mário de Andrade O objetivo desta dissertação é pensar a teoria estética proposta por Mário de Andrade no texto O artista e o artesão, de 1938, tratando de questões acerca da preocupação do autor com o resgate da orientação da arte por um critério social, e a crítica ao individualismo e formalismo da arte moderna, tendo como norte uma solução materialista, conceito central para a sua proposta de atitude estética. Na aula inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, no Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal, em 1938, Mário de Andrade revela sua preocupação diante da expressão individual típica do modernismo e sugere um ajuste do artista em relação ao material que se põe em ação nas artes. Traz o fazer do artesão para resgatar o domínio do saber técnico, única manifestação pedagógica, lembrando-nos da missão do artista em relação ao seu ofício, que deveria estar sempre a serviço da obra de arte: O artesanato, os segredos, os caprichos, as exigências do material, isto é assunto ensinável, e de ensinamento por muitas partes dogmático, a que fugir será sempre prejudicial para a obra de arte. Está claro: prejudicial para a obra-de-arte, eu digo, e não para o artista. E si um artista é verdadeiramente artista, quero dizer, está consciente do seu destino e da missão que se deu para cumprir no mundo, ele chegara fatalmente àquela verdade de que, em arte, o que existe de principal é a obra de arte. (andrade, 1938, p. 11)
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O pensamento moderno, com seu subjetivismo, parece ter se distanciado demais da vida e da sociedade. No início do século XX, as preocupações das vanguardas artísticas diante da história da arte eram prementes. Para Mário de Andrade, transportar a autoridade da vontade do artista para as exigências técnicas do material que se põe em ação nas artes parecia ser a solução diante da valorização da figura do gênio, e do inevitável esgotamento da expressão individual do modernismo. Nas palavras de Mário: O artista prescinde das leis técnicas, não em beneficio da obra de arte, mas de si mesmo. É a frase de Beethoven: “não há regra que não possa ser superada em benefício da expressão”. E não virá disto a degringolada da arte, do Romantismo pra cá? Um artista cada vez mais expressivo de si mesmo, e uma obra de arte cada vez mais pessoal e inatingível ao povo? (idem, p. 11)
Mário de Andrade tentava assegurar o reencontro da arte com sua verdadeira vocação social por meio de uma atitude estética. A proposta demandava um compromisso técnico do artista diante da obra de arte, uma espécie de inversão da submissão do objeto em relação ao sujeito. Para Mário de Andrade, as exigências deveriam vir do material, assim como na tradição escolástica, em que “as finalidades, regras e valores, não são os do homem propriamente, mas da obra de arte a ser feita” (idem, p. 12). O que Mário de Andrade parece estar demandando é a reverência às exigências do material a ser trabalhado, ao saber, aos segredos e ao conhecimento de seus processos, os do material (idem, p. 12). Para Mário, não basta ser artista, tem que ser bom artesão.
O indivíduo e o espírito do tempo É uma verdadeira tragédia o percurso do desenvolvimento da técnica pessoal e a sua consequência nas artes contemporâneas, afirma Mário de Andrade em “O artista e o artesão”. Não se trata mais de uma brecha da personalidade, trata-se
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agora de “uma consequência do espírito do tempo, uma necessidade imperiosa e imprescindível do vastíssimo personalismo da arte contemporânea” (idem, p. 24). Mário parece colocar toda a história da arte moderna e os movimentos contemporâneos no mesmo vagão do trem dos “representantes fatais do espírito do tempo”. (idem, p. 24) Vêm os modernos, vêm os modernistas, vêm os futuristas, os cubistas, todos eles de bandeiras novas na mão. Esses ao menos têm a lealdade de se dizerem representantes do espírito do tempo. Mas da outra banda chegam-nos os reacionários, os que se revoltam contra os modernos em nome de não sei que “leis eternas da beleza”; vêm mesmo os que se intitulam “antimodernos”, ingenuamente virtuosísticos, falando em nome do passado, ou da tradição, ou apenas do bom-senso. Ou ainda, mais vaidosamente, em nome apenas do senso-comum! Na verdade não são todos estes, reacionários, tradicionalistas ou antimodernos, senão representantes fatais do mesmo espírito do tempo, e cada um deles traz sua receita, sua solução, sua verdade pessoal. (idem, 1938, p. 24) Contudo, o que é o espírito do tempo para Mário de Andrade? O que é o pensar e o agir do mundo moderno? Voltaremos rapidamente aos fundamentos da era moderna para tentarmos compreender o espírito da modernidade. No final do século XVII e início do XVIII, a ciência moderna rompia com a tradição escolástica e a lógica aristotélica, inaugurando uma nova base científica para o pensamento e, por fim, uma nova ontologia. A descoberta que dirigia os pensamentos humanos perdera o lugar de fundamento – por meio da revolução copernicana –, instalando um novo modo de ser do espírito humano. O humanismo renascentista colocou o homem no centro de suas preocupações éticas, estéticas e políticas. A ética protestante inaugurara a valorização da liberdade individual e sua livre-iniciativa, na medida em que a austeridade racional tomava conta daquele novo cenário. A Revolução científica pode ser considerada uma grande realização do espírito crítico humano que, com formulações
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de hipóteses ousadas e inovadoras, buscava alternativas para uma explicação científica que separou radicalmente a natureza do universo da natureza humana. (marcondes, 1997, p. 158) O modelo moderno parece inverter a antiga relação das ciências e do conhecimento. O que antes, no período clássico, era observado e obtido da natureza como modelo para, a partir daí, construir-se o mundo, num sistema derivativo, passa-se agora a ter origem no pensamento humano. O homem agora opera diretamente sobre a natureza e as coisas, corrigindo-as e tornando-as objeto de pesquisa, experimentação e manipulação. Essa suposta ruptura de ordem cosmológica e estrutural parece culminar no espírito moderno individualista que Mário de Andrade aponta radicalmente em sua teoria estética. Enquanto a estrutura binária da mímesis e sua certeza teórica de reprodução carregavam um caráter objetivo, em que o universal e o imutável, de certa forma, delimitavam o ambiente do fazer artístico enquanto modelo de beleza clássica – um modelo pré-estabelecido em sua forma ideal –, o belo romântico era subjetivo, singular, particular e mutável. A arte como meio de conhecimento do real tornou-se uma experiência primária, monista, sem outro fim além do seu próprio fazer-se, sentir-se, com o olhar de uma realidade interiorizada em que a natureza passou a ser apenas fonte de estímulos que viram sensações e emoções para uma constante busca de um ideal de sentimento. (argan, 1988, p. 11) Veremos como a relação derivada e a monista está em jogo no pensamento de “O Artista e o Artesão”. Mário de Andrade está procurando uma solução que desarme a origem da produção reflexiva das vontades individuais dos artistas, para algo que atenda alguma exigência fora do pensamento de quem o pensa. É importante lembrar que a preocupação de Mário era resgatar a função genuína da arte, que para ele era a função social. Mário parece obrigar o artista a uma relação externa a si, e não somente isso, também uma relação
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de serventia a esse algo fora de si. Esse sistema derivativo podemos encontrar nos exemplos dados em relação à arte egípcia e à arte grega, e também à prática da arquitetura, em que o princípio de utilidade condicionava de tal forma a criação artística que as obras não se destinavam à contemplação humana, sendo utensílios quer de religião, quer de magia, tendo uma utilidade prática (andrade, 1938, p. 20). Mário de Andrade fala da arte egípcia como exemplo de uma arte em que o aspecto da impessoalidade é uma característica admirável, produto de um saber coletivo e eterno que assegurava aos deuses e aos homens uma vida feliz e imortal. E fala também da arquitetura como exemplo de um fazer regido pelo princípio de utilidade, condicionado às exigências da engenharia e à prática da vida, como no caso de construções que serviram muito bem ao propósito social e utilitário. Serve como exemplo a solução do arquiteto Garnier, por seu gesto genial de técnica individual que resolveu o problema do teatro, dividindo o edifício em três corpos funcionais distintos: o foyer, a sala de assistência e o palco. Uma solução como essa se tradicionalizou e foi amplamente usada, e de beleza transformou-se em verdade (idem, p. 17), configurando soluções perduráveis que foram incorporadas pela sociedade, excluída qualquer discussão em relação a uma possibilidade de plágio. Os exemplos da arte egípcia – condicionada ao princípio de utilidade religiosa – e o da arquitetura – condicionada ao princípio de utilidade funcional –, diz Mário de Andrade, são bons argumentos de ordem geral para contradizer a necessidade de uma técnica pessoal. Mário diz que é muito mais difícil ou quase impossível distinguir uma moradia arquitetada por Le Corbusier de outra inventada por Flavio de Carvalho, e é mais difícil ainda observarmos as soluções de técnica pessoal entre duas estátuas da catedral de Burgos ou duas outras de tal dinastia egípcia; ao passo que nos é facílimo, mesmo de longe, distinguir um Rembrandt de um Velásquez; um Donatello de um Bernini, ou Mozart de Haydn. Contu-
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do, isso não quer dizer que Mário de Andrade desconsidere totalmente a técnica pessoal do artista. Ele lembra inclusive das observações de Maspero que, mesmo reconhecendo a impersonalidade da arte egípcia, se viu obrigado a acrescentar que “o temperamento pessoal do indivíduo não se revela senão por detalhes de fatura quase imperceptíveis. Assim, mostra-nos a presença do artista nos pormenores pessoais da fatura, da mão que treme ao fazer, da criatura que sente ao criar” (idem, p. 18–19). Mesmo no aspecto da serventia da arquitetura e da impersonalidade da arte egípcia, ainda assim, é possível observar a mão do artista. Mário, assim, parece buscar um equilíbrio entre as manifestações da obra de arte, admitindo a parcela de talento individual do artista, o virtuosismo, apesar de ser essencialmente a partir da técnica que irá propor sua atitude estética. Se no passado os princípios de utilidade dominavam a criação artística, agora passam a ser os princípios do artista que a dominam. A beleza, como elemento intrínseco da arte, e o individualismo, como elemento intrínseco do artista (idem, p. 19), unem-se no expressionismo insulado do artista que será o resultado da produção moderna, questionada por Mário de Andrade em “O artista e o artesão”. O artista mais expressivo de si, de que fala Mário de Andrade, foi resgatado pelo Romantismo como uma figura capital, o gênio. A tensão da representação dos próprios sentimentos caracterizava a dialética da arte moderna enquanto expressão de si. E não virá disto a degringolada da arte, do Romantismo pra cá? (idem, p. 11) Apenas vejo que, do Renascimento aos nossos dias, há uma como que materialização geral da pesquisa artística, em que o homem, como atitude, menos que erguer-se até a divindade, busca participar da natureza desta mesma divindade. E, com efeito, por milhares de vezes teremos visto nos livros, nos jornais e nos discursos, essa frágil e fácil confusão do artista criador com o Deus criador – mero jogo de atributos parcialmente identificáveis. Pra não dizer, mero jogo de palavras... (idem, p. 23)
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A liberdade e a beleza Nem se pode mais decidir com clareza si, nas artes plásticas pelo menos, o individualismo é consequência da materialização da beleza, ou si esta é uma consequência daquele, de tal forma que ambos se deduzem um do outro (andrade, 1938, p. 22).
Mário diz que somente com o Renascimento, já na era cristã, a beleza principiou se impondo como finalidade nas artes plásticas, sendo anteriormente apenas uma consequência do objeto de arte. A beleza era apenas um meio de encantação aplicado a uma obra que se destinava a fins utilitários muito distantes dela (idem, p. 19). Esse caráter de busca objetiva pela beleza que se instalou no formalismo moderno é o objeto da severa crítica em “O artista e o artesão”. Para pensarmos sobre a mudança da perspectiva clássica para moderna em torno da beleza no fazer artístico, e o que está por trás do pensamento formalista moderno, precisamos passar pelos estudos da Crítica da faculdade de julgar, de 1790, escrita por Immanuel Kant. Kant estudava os pensamentos da razão humana e se deparou com o problema da universalidade e objetividade da experiência do belo. Esta forma reflexiva do pensamento estabelece no receptor um jogo entre a faculdade de imaginar e a faculdade do entendimento, esta imaginação entrando em acordo indeterminado com o entendimento que, com tamanha liberdade, torna-se imaginação produtiva e espontânea. E é na ausência de interesse que a objetividade e universalidade será garantida. Nesta recepção do belo, a liberdade, experimentada dessa forma, parece ser a gênese para uma espécie de autonomia. Autonomia esta que Mário de Andrade está apontando em seu texto, ou seja, a beleza como pesquisada por si mesma, essencialmente objetiva e experimental, materialista por excelência, para não dizer por exclusividade (idem, p. 20). A busca permanente pela liberdade da forma parecia ga-
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rantir a forma da liberdade do artista (figueiredo, 2010, p. 62). Artistas parecem ter feito deste lugar a sua morada, na vastidão da liberdade e do infinito. Para Mário de Andrade foi no romantismo que essa busca parece ter virado uma questão ontológica para a arte. O artista libertava-se a si mesmo buscando objetivamente o modelo ideal de beleza. Na medida em que a figura do artista, entendido como o gênio, passou a ocupar o centro das atenções da estética romântica, a arte, e a música em especial, passou a depender desta individualidade privilegiada, exigindo-se dela que passasse a ser o meio de expressão dos estados anímicos do artista. (jardim, 1999, p. 39)
Os artistas precisariam ser os tais gênios para que suas produções e criações estivessem autorizadas a fornecer o simples efeito da representação desinteressada, espontânea e com característica universal, pois somente eles, dotados de um talento natural, participariam das mesmas regras da natureza. É no mínimo curioso pensar que Mário observa que há uma busca interessada pela beleza, há uma intenção na produção do belo, que de acontecimento natural parece ter virado objeto de desejo, uma produção artística que busca tal efeito, já está partindo interessada em tal efeito, o que no mínimo jogaria o que poderia ser da faculdade superior de sentir diretamente para a faculdade superior ou inferior de desejar (deleuze, 2009, p. 66). E não parece ser isso o que Mário de Andrade está apontando em sua crítica, quando ele atenta para os vaidosos artistas de suas vontadinhas? (andrade, 1938, p. 25) Mário de Andrade diz não saber se o individualismo é consequência da formalização da beleza ou se é ao contrário (idem, p. 22), mas que os dois se deduzem um ao outro. Diante dessas questões, podemos refletir se sobre esse processo há uma espécie de simbiose, em que a relação é mutualmente vantajosa e os dois organismos parecem ser beneficiados; mas o que não podemos negar nessa associação, e é isto que parece ser o cerne do problema, é que é a liberdade
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o elo que garante o estatuto desta associação e está dentro desta conjuntura. Este encontro de acontecimentos parece ser o único lugar da forma da liberdade e da liberdade da forma (figueiredo, 2010, p. 62), onde há uma brecha para os interesses e os deveres da razão. A experiência da forma da liberdade no pensamento parece ter aberto um canal muito propício para o artista e sua produção no período moderno. A beleza insulada no indivíduo, proveniente de um acordo para a universalidade de seu efeito, instalou-se no ambiente de criação na época moderna. E é esta liberdade que une as pontas do individualismo e do formalismo moderno. A possível relação simbiótica observada acima, entre o indivíduo e a experiência da liberdade da forma, como num círculo vicioso, é o ponto de ataque de Mário de Andrade, é o que ele parece estar querendo desarmar, fazendo-o por meio das duas ideias referidas por Eduardo Jardim em Limites do Moderno: Encontram-se definidas as duas ideias centrais de uma teoria da arte – a que diz respeito ao reconhecimento do seu caráter social e a que propõe uma crítica ao formalismo característico da arte moderna. (jardim, 1999, p. 24)
No entanto, o ensaio “O artista e o artesão” parece indicar algo mais, algo por trás do reconhecimento do caráter social da arte e da crítica ao formalismo moderno e suas relações. Eduardo Jardim, nesse sentido, acrescenta: “Mais ainda, e é esta a sua novidade, o texto pretende sublinhar o vínculo necessário que existe entre essas duas ideias, referindo-se a elas como intrinsecamente imbricadas”. (idem, p. 24) Veremos com mais atenção no próximo capítulo como a solução materialista – calcada nesses dois princípios vinculados– de Mário de Andrade poderia conter os formalistas “orgulhosos afirmadores de si mesmos (idem, p. 31)”. É na busca da superação da perspectiva individualista da arte, em que a proposta de uma contenção formal a partir da suspensão do autointeresse do artista conduzirá ao reconhecimento de
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uma mesma origem da arte e do artesanato, terminando por atribuir à arte um caráter comum. A arte concebida como atividade comum, idêntica ao “honesto fazer”. (jardim, 1999, p. 19) “E se o espirito não tem limites na criação, a matéria o limita na criatura”. (andrade,1938, p. 25)
O espírito e o material Mário de Andrade não deixa de levantar a questão da urgência da arte em participar da vida, ao mesmo tempo em que mostra o seu lugar desconexo e fora do eixo em relação aos acontecimentos humanos, os acontecimentos dessa mesma vida. A contenção formal sugerida por Mário de Andrade ou, em outras palavras, uma limitação de conceitos estéticos, é o que poderia dar aos artistas a atitude estética diante da arte, diante da vida. (andrade, 1938, p. 30) O fato da possível ruptura do composto espírito-corpo parece ser o cerne do problema moderno. A proposta de Mário de Andrade de resgatar a relação entre espírito e material poderia garantir esse olhar dividido com o mundo, com as coisas, os outros, a vida. O atendimento do espírito às exigências do material obrigaria este espírito a uma certa reverência, uma espécie de cordialidade ao material, invertendo a hierarquia moderna, centrada numa concepção de mundo dada pelo sujeito. As experiências de Descartes, com o “pedaço de cera” e os “homens verdadeiros”, nos mostram a mais radical possibilidade do não-consentimento do ser humano moderno em relação a qualquer objeto corpóreo e material externo a si. É um espanto se deparar com as construções e o funcionamento do pensamento moderno concretizado nas Meditações Metafísicas (2000) de Descartes. Passemos rapidamente pelas experiências de Descartes: Tomemos como exemplo este pedaço de cera que acaba de ser tirado da colmeia; ainda não perdeu a doçura do mel que continha, ainda retém algo do aroma das flores de que foi
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recolhido; sua cor, sua figura, sua grandeza são aparentes; é duro, é frio, se o toca e, se baterdes nele, produzirá algum som. Enfim, todas as coisas que podem fazer conhecer distintamente um corpo encontram-se neste. Mas eis que, enquanto falo, é aproximado do fogo; o que nele restava de sabor se exala, o aroma esvanece, sua cor muda, sua figura se perde, sua grandeza aumenta, torna-se líquido, aquece-se, mal se pode tocá-lo e, embora se bata nele, não produzirá mais nenhum som. Permanece a mesma cera depois dessa mudança? É preciso admitir que permanece, e ninguém o pode negar. Então, o que se conhecia com tanta distinção nesse pedaço de cera? Por certo não pode ser absolutamente nada de tudo o que nele observei por intermédio dos sentidos, porquanto todas as coisas que caíam sob o paladar, ou o olfato, ou a visão, ou o tato, ou a audição, acham-se mudadas, e no entanto a mesma cera permanece. Talvez fosse o que penso agora, a saber, que a cera não era nem essa doçura do mel, nem esse agradável aroma das flores, nem essa brancura, nem essa figura, nem esse som, mas somente um corpo que um pouco antes me aparecia sob essas formas, e que agora se faz observar sob outras. Mas que é, falando precisamente, que imagino quando a concebo desse modo? Consideremo-lo atentamente e, afastando todas as coisas que não pertencem à cera, vejamos o que resta. Por certo nada mais permanece senão algo de extenso, flexível e mutável. Ora, o que é isso: flexível e mutável? Será que imagino que essa cera, sendo redonda, é capaz de ficar quadrada e de passar do quadrado para uma figura triangular? Não, por certo, não é isso, já que a concebo capaz de receber uma infinidade de mudanças semelhantes, e eu não poderia, entretanto, percorrer essa infinidade com minha imaginação, e, por conseguinte, essa concepção que tenho da cera não se realiza pela faculdade de imaginar. O que é agora essa extensão? Ela também não é desconhecida, já que na cera que se funde ela aumenta e fica ainda maior quando está inteiramente fundida, e muito mais ainda quando o calor aumenta mais? E eu não conceberia claramente e segundo a verdade o que é a cera, se não pensasse que ela é capaz de receber mais variedades segundo a extensão do que jamais imaginei. É preciso então estar de acordo que eu não poderia mesmo conceber pela imaginação o que é essa cera e que apenas o meu só entendimento o concebe. Digo esse pedaço de cera em particular, pois quanto à cera em geral, é ainda mais evidente. Ora, qual é esta cera, que só pode ser concebida pelo entendimento ou pelo espírito? Por certo é a mesma que vejo, que toco, que imagino, e a mesma que eu conhecia desde o começo. Mas o que é de assinalar,
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sua percepção, ou então a ação pela qual se a percebe, não é uma visão, nem um toque, nem uma imaginação, e nunca o foi, conquanto o parecesse anteriormente, mas somente uma inspeção do espírito, a qual pode ser imperfeita e confusa, como era anteriormente, ou então clara e distinta, como é no presente, segundo minha atenção se volte mais ou menos para as coisas que nela estão e de que é composta. No entanto, não deixo de me espantar quando considero o quanto meu espírito tem de fraqueza e de pendor que o leva insensivelmente ao erro. Pois ainda que sem falar eu considere tudo isso em mim mesmo, as palavras todavia me detêm, e sou quase enganado pelos termos da linguagem ordinária; pois dizemos que vemos a mesma cera, se nos é apresentada, e não que julgamos que é a mesma, pelo fato de ter a mesma cor e a mesma figura; daí eu gostaria de quase concluir que se conhece a cera pela visão dos olhos, e não pela só inspeção do espírito, se por acaso eu não olhasse de uma janela homens que passam na rua, à vista dos quais não deixo de dizer que vejo homens, assim como digo que vejo cera; e, no entanto, o que vejo desta janela senão chapéus e capotes, que podem cobrir espectros ou homens fictícios que só mexem mediante molas? Mas julgo que são homens verdadeiros, e assim, compreendo, pela só potência de julgar que reside em meu espírito, o que acreditava ver com meus olhos. Um homem que trata de elevar seu conhecimento para além do comum deve ter vergonha de tirar das ocasiões de duvidar formas e termos de falar do vulgo; prefiro seguir em frente e considerar se eu concebia com mais evidência e perfeição o que era a cera, quando a percebi no início e acreditei conhecê-la por meio dos sentidos exteriores, ou pelo menos do senso comum, assim como é chamado, ou seja, da potência imaginativa, do que a concebo presentemente, depois de ter examinado mais exatamente o que ela é e de que forma pode ser conhecida. Por certo seria ridículo colocar isso em dúvida. Pois, o que havia nessa primeira percepção que fosse distinto e evidente, e que não pudesse cair do mesmo modo sob o sentido do menor dos animais? Mas, quando distingo a cera de suas formas exteriores e que, tal como se eu lhe tivesse tirado as vestes, considero-a toda nua, por certo, embora ainda se possa encontrar algum erro em meu juízo, não a posso conceber desse modo sem um espírito humano. (descartes, 2000, p. 49–52)
As experiências de Descartes com o “pedaço de cera” e os “homens verdadeiros” parecem um tanto decisórias para as relações no terreno das naturezas corpóreas e materiais. O
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que sobra na apreensão do espírito das mutações sofridas pelo pedaço de cera é nada mais que o entendimento e o conhecimento sobre aquele ocorrido. E é na distinção clara e evidente dos fatos que se compraz o espírito. O que parece garantir a existência e permanência daquele corpo externo é a capacidade de julgar do espírito, porque caso este venha a falhar em sua virtude, ficaríamos somente com a visão dos olhos sobre o pedaço de cera e os homens verdadeiros e, neste momento, nada poderia nos garantir a existência de qualquer corpo externo, podendo até haver um prejuízo corpóreo. E é precisamente isso que parece ocorrer, pois se nosso espírito acompanhasse os sentidos do corpo externo, e não apenas concebesse uma síntese sobre a experiência, não conseguiríamos nem comer o menor dos animais... Parece existir um abismo entre o que acontece ao corpo externo e o que se apreende no espírito de quem acompanha essa experiência, e é um tanto dramático pensar na absoluta incorporeidade do espírito humano. Mas é exatamente o corpo, o material, que Mário de Andrade está buscando para se relacionar com o artista, exigindo os limites externos imprescindíveis a relações entre o artista e a obra que demandam comportamentos que tangenciam questões morais. A amarração do artista com sua obra, na qual a autoridade é dada pelas exigências do material que se põe, poderia assegurar o compromisso do olhar em relação às coisas e aos outros, resgatando assim a função social e a estrutura derivada perdida. Ora, o que antes precisava estar a serviço de si, agora passa a estar a serviço das exigências técnicas do material que se põe. Quando o campo de atuação sai de si e começa a dialogar com questões exteriores, o que era subjetivo passa a ser objetivo, e automaticamente os corpos, as coisas, os seres, as matérias e os materiais começam a aparecer, e aí sim o que antes era o abismo da liberdade e do infinito, volta para a esfera de relação com a terra e o mundo, com as pessoas e as coisas, com os limites e a possibilidade
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de finitude, com prejuízos corpóreos e materiais inerentes à esta condição. E é neste contexto que surge a necessidade de questões relacionadas à moralidade. Mário diz que ao artista cabe apenas adquirir uma severa consciência artística que o moralize. Só essa severa atitude, antes de mais nada humana, é que deve na realidade orientar e coordenar a criação (idem, p. 27). Arrancar o olhar de dentro do artista parece ser o que está em jogo no pensamento marioandradino: nada mais que o consentimento da existência de algo externo a si, espécie de alteridade ou “coisidade”, funcionando como um elemento propulsor do caráter social, no sentido da inclusão das coisas e dos outros através de suas autoridades técnicas, não só num olhar comprometido com algo externo a si, com outro corpo, mas também a serviço deste algo. Mário de Andrade, dessa forma, vislumbra uma possível evolução que não ocorreria no domínio do individualismo – culminante no liberto experimentalismo contemporâneo, com o cubismo, o abstracionismo, o subjetivismo, o expressionismo e os super-realistas (idem, p. 23). O compromisso do artesão em relação ao seu ofício exige um contrato de tempo e uma espécie de rotina de atenção, em que a presença diária corpórea se faz obrigatória, aferrada a uma relação de tempo e de comparecimento com o material, forçando uma dinâmica essencialmente simbiótica decisiva que garantiria a autoridade do material em relação ao sujeito que o opera, obrigando-o a ceder lugar para algo que está fora de si. Essa relação entre o espírito e o material, encontrada no artesanato como forma por excelência do fazer artístico, propõe um olhar duplamente comprometido. Parece ser esse olhar a proposta moralizante e humanista defendida por Mário de Andrade.
Conclusão É de se admirar o que está por detrás do pensamento de Má-
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rio de Andrade. Suas preocupações sociais, coletivistas e extremamente humanistas o fizeram pensar sobre uma atitude estética que propusesse tais questões para os novos artistas. As preocupações filosóficas e artísticas do pós-guerra vão de encontro a este resgate materialista e corpóreo. Após as duas grandes guerras mundiais e seus prejuízos corpóreos, acenderam-se os faróis vermelhos que alertam para a falta de atenção às questões da vida nas artes, e assim a urgência ética passa a ser pensada nas obras dos filósofos pós-modernos. O que é a arte e o direito de uma pesquisa meramente estética diante de duas grandes guerras mundiais? O que é o action painting de Pollock diante do vermelho racista e antissemita de Hitler? A vida, naquele momento, colocou abaixo toda uma produção de arte moderna, cujos “ismos” e modas se entorpeciam diante das barbaridades no mundo. É no sentido de um resgate da orientação da arte por um critério social, que havia se perdido na modernidade, que Mário de Andrade proporá sua atitude estética. A proposta conduzirá o artista a esse olhar social, na sugestão de uma contenção formal e na severa crítica ao individualismo da arte moderna. É no arte-fazer, através do atendimento às exigências técnicas do material, que Mário encontrará essa relação do espírito com a matéria. O trabalho procura mostrar uma tentativa de Mário de Andrade em recuperar a estrutura derivada perdida na arte moderna, na qual há uma autoridade externa para limitar o olhar do artista. Essa estrutura dual é trazida por Mário nos exemplos do trabalho do artesão, ou da arquitetura a serviço das práticas da engenharia, ou ainda da arte clássica a serviço de questões religiosas. Mário com isso sugerirá que o artista esteja entregue aos limites do material que se põe nas artes. A autoridade externa para a criação artística poderia garantir um olhar dividido e reverente em relação ao outro, treinando o espírito para uma divisão no fazer artístico. Mário ataca o experimentalismo da arte moderna e coloca em xeque a liberdade tão fortemente conquistada e mate-
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rializada no modernismo. Liberdade esta que parece existir somente no domínio do indivíduo consigo mesmo, pois a partir do momento em que este inicia uma relação com algo externo a si, e está a serviço desse algo, é automaticamente inaugurado um limite de atuação. Parece ser no romantismo que nasce o caos que Mário vê na situação contemporânea das artes. O campo preparado por Kant, em sua Crítica da Faculdade de Julgar, foi o espaço do livre experimentalismo individual, tendo o gênio como figura-modelo do artista. A abertura da infinitude da imaginação insulada no sujeito, mediada pelo conceito de natureza, de belo natural, se instalou naquele momento a ponto de Mário de Andrade dizer não saber se o individualismo é consequência da materialização da beleza, ou seja, a preocupação formalista ou se seria ao contrário, de tal forma que ambos se deduziriam um do outro. Mário parecia acreditar que a beleza era muito mais uma consequência que uma das finalidades da obra de arte; era apenas um meio de encantação aplicado a uma obra que se destinava a fins utilitários muito distantes delas (idem, p. 19). Mário parece trazer uma solução materialista para os artistas, como se afirmasse que é preciso compromisso com as coisas, os materiais, o mundo, as pessoas e a vida. É preciso amarrar tais elementos aos seres humanos para uma possível divisão do espírito, o que nos mostra o quão dramática e problemática é a experiência de Descartes em relação aos corpos externos, que sugeria a distância intransponível do fato externo em relação ao que se apreende no espírito humano. Para terminar, Mário finaliza o seu texto assim: Faz-se necessário urgentemente que a arte retorne às suas fontes legítimas. Faz-se imprescindível que adquiramos uma perfeita consciência, direi mais, um perfeito comportamento artístico diante da vida, uma atitude estética disciplinada, apaixonadamente insubversível, livre mas legítima, severa apesar de insubmissa, disciplina de todo o ser, para que alcancemos realmente a arte. Só então o indivíduo retornará
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ao humano. Porque na arte verdadeira o humano é fatalidade (idem, 1938, p. 33)
Referências Bibliográficas ANDRADE, Mário de. “O artista e o artesão”. In: _____. O baile das quatro artes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Trad. Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. DELEUZE, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Trad. Germiniano Franco. Lisboa: Edições 70, 2009. DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2011. FIGUEIREDO, Virginia. “Kant: liberdade da forma e forma da liberdade”. In: HADDOCK-LOBO, Rafael (org.). Os filósofos e a arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. MORAES, Eduardo Jardim de. Limites do moderno: o pensamento estético de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.
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O exercício dos discursos moralizantes – literatura, arte e pensamento contemporâneo Parece-me um tanto complicado o funcionamento do pensamento moderno. Voltemos rapidamente a Descartes para uma breve reflexão filosófica sobre o pensar na modernidade. Poderia ser o pensamento solipsista, com seu isolamento, o que mais assombra os estudos literários? Será preciso abater o sujeito para que o olhar encerre o outro? Será preciso a suspensão do juízo para que o pensamento não se faça excludente? Descartes não deixa de fazer um passo a passo do caminho ao conhecimento e acaba por revelar o dramático funcionamento sintético do pensar na modernidade. É curioso pensarmos nas experiências de Descartes com o “pedaço de cera” e os “homens verdadeiros” em suas Meditações Metafísicas, e observarmos o que pode restar no entendimento do acontecimento externo ao composto espírito-corpo. Tomemos como exemplo este pedaço de cera que acaba de ser tirado da colmeia; ainda não perdeu a doçura do mel que continha, ainda retém algo do aroma das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura, sua grandeza são aparentes; é duro, é frio, se o toca e, se baterdes nele, produzirá algum som. Enfim, todas as coisas que podem fazer conhecer distintamente um corpo encontram-se neste.
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Mas eis que, enquanto falo, é aproximado do fogo; o que nele restava de sabor se exala, o aroma esvanece, sua cor muda, sua figura se perde, sua grandeza aumenta, torna-se líquido, aquece-se, mal se pode tocá-lo e, embora se bata nele, não produzirá mais nenhum som. Permanece a mesma cera depois dessa mudança? É preciso admitir que permanece, e ninguém o pode negar. Então, o que se conhecia com tanta distinção nesse pedaço de cera? Por certo não pode ser absolutamente nada de tudo o que nele observei por intermédio dos sentidos, porquanto todas as coisas que caíam sob o paladar, ou o olfato, ou a visão, ou o tato, ou a audição, acham-se mudadas, e no entanto a mesma cera permanece. Talvez fosse o que penso agora, a saber, que a cera não era nem essa doçura do mel, nem esse agradável aroma das flores, nem essa brancura, nem essa figura, nem esse som, mas somente um corpo que um pouco antes me aparecia sob essas formas, e que agora se faz observar sob outras. Mas que é, falando precisamente, que imagino quando a concebo desse modo? Consideremo-lo atentamente e, afastando todas as coisas que não pertencem à cera, vejamos o que resta. Por certo nada mais permanece senão algo de extenso, flexível e mutável. Ora, o que é isso: flexível e mutável? Será que imagino que essa cera, sendo redonda, é capaz de ficar quadrada e de passar do quadrado para uma figura triangular? Não, por certo, não é isso, já que a concebo capaz de receber uma infinidade de mudanças semelhantes, e eu não poderia, entretanto, percorrer essa infinidade com minha imaginação, e, por conseguinte, essa concepção que tenho da cera não se realiza pela faculdade de imaginar. O que é agora essa extensão? Ela também não é desconhecida, já que na cera que se funde ela aumenta e fica ainda maior quando está inteiramente fundida, e muito mais ainda quando o calor aumenta mais? E eu não conceberia claramente e segundo a verdade o que é a cera, se não pensasse que ela é capaz de receber mais variedades segundo a extensão do que jamais imaginei. É preciso então estar de acordo que eu não poderia mesmo conceber pela imaginação o que é essa cera e que apenas o meu só entendimento o concebe. Digo esse pedaço de cera em particular, pois quanto à cera em geral, é ainda mais evidente. Ora, qual é esta cera, que só pode ser concebida pelo entendimento ou pelo espírito? Por certo é a mesma que vejo, que toco, que imagino, e a mesma que eu conhecia desde o começo. Mas o que é de assinalar, sua percepção, ou então a ação pela qual se a percebe, não é uma visão, nem um toque, nem uma imaginação, e nunca o foi, conquanto o parecesse anteriormente, mas somente uma inspeção do espírito, a qual pode ser imperfeita e confusa,
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como era anteriormente, ou então clara e distinta, como é no presente, segundo minha atenção se volte mais ou menos para as coisas que nela estão e de que é composta. No entanto, não deixo de me espantar quando considero o quanto meu espírito tem de fraqueza e de pendor que o leva insensivelmente ao erro. Pois ainda que sem falar eu considere tudo isso em mim mesmo, as palavras todavia me detêm, e sou quase enganado pelos termos da linguagem ordinária; pois dizemos que vemos a mesma cera, se nos é apresentada, e não que julgamos que é a mesma, pelo fato de ter a mesma cor e a mesma figura; daí eu gostaria de quase concluir que se conhece a cera pela visão dos olhos, e não pela só inspeção do espírito, se por acaso eu não olhasse de uma janela homens que passam na rua, à vista dos quais não deixo de dizer que vejo homens, assim como digo que vejo cera; e, no entanto, o que vejo desta janela senão chapéus e capotes, que podem cobrir espectros ou homens fictícios que só mexem mediante molas? Mas julgo que são homens verdadeiros, e assim, compreendo, pela só potência de julgar que reside em meu espírito, o que acreditava ver com meus olhos. Um homem que trata de elevar seu conhecimento para além do comum deve ter vergonha de tirar das ocasiões de duvidar formas e termos de falar do vulgo; prefiro seguir em frente e considerar se eu concebia com mais evidência e perfeição o que era a cera, quando a percebi no início e acreditei conhecê-la por meio dos sentidos exteriores, ou pelo menos do senso comum, assim como é chamado, ou seja, da potência imaginativa, do que a concebo presentemente, depois de ter examinado mais exatamente o que ela é e de que forma pode ser conhecida. Por certo seria ridículo colocar isso em dúvida. Pois, o que havia nessa primeira percepção que fosse distinto e evidente, e que não pudesse cair do mesmo modo sob o sentido do menor dos animais? Mas, quando distingo a cera de suas formas exteriores e que, tal como se eu lhe tivesse tirado as vestes, considero-a toda nua, por certo, embora ainda se possa encontrar algum erro em meu juízo, não a posso conceber desse modo sem um espírito humano (descartes, 2000, p. 49–52).
A passagem de Descartes não deixa de questionar a síntese concebida pelo entendimento diante dos corpos e sentidos, e o que garantiria a sobrevivência dos corpos alheios parece ser a potência de julgar ou a inspeção do espírito. Caso a fraqueza e o pendor do erro persistissem, poderíamos ficar apenas com a visão dos olhos ou com o engano da linguagem
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ordinária... Após as duas grandes guerras mundiais com seus prejuízos corpóreos, parece haver uma revisão das esferas de criação, e na literatura não poderia ter sido diferente. Duas correntes de pensamento tencionam a visão tradicional dos estudos literários e a nova perspectiva multiculturalista. Como conviveria, o precursor do pensamento ocidental, podendo ser, ele mesmo, o próprio autor dos horrores das grandes guerras? Nesse contexto, parecem obrigatórias uma revisão do pensamento literário e uma virada moralizante, uma “virada ética”1 o curso daquela história. [1 Ecos da Desconstrução – Entrevista da Editora PUC-Rio/Edições Loyola – Paulo Cesar Duque-Estrada]
Para Eduardo F. Coutinho, “poderíamos sintetizar sem riscos de reducionismo, na passagem de um discurso coeso e unânime, com forte propensão universalizante, para outro plural e descentrado, situado historicamente, e consciente das diferenças que identificam cada corpus literário envolvido no processo de comparação. (...) A Literatura Comparada atravessou seu primeiro século de existência em meio a intensos debates, mas apoiada em certos pilares, de tintas nitidamente etnocêntricas, que pouco se moveram ao largo de todo esse tempo”. (coutinho, Literatura comparada, literaturas nacionais e o questionamento do cânone). As questões culturais, geográficas, para além da pura e exclusiva ótica estética, deram espaço a novas categorias como Literatura Chicana, Literatura Afro-Americana, Literatura Feminina e outras localizadas às margens da cultura, tornando-se fundamentais para o debate internacional. A dimensão política alcançada pelos novos estudos culturais e pós-coloniais vem abalando as estruturas de poder e mudando dramaticamente as relações entre colonizador e colonizado (idem, “Literatura comparada...”), mas existe igualmente uma preocupação com uma possível inversão do poder, no sentido do que fala Leyla Perrone-Moisés, em “Vire e mexe, nacionalismo – Paradoxos do Nacionalismo
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Literário”, e Roland Barthes em sua “Aula Inaugural do Collège de France”: o fato de a defesa de causas minoritárias e revolucionárias se transformarem facilmente em novos discursos de poder, que, sob o pretexto de resgatar “aquilo que foi esmagado”, não percebem o que “estão esmagando alhures”. O que Barthes parece alertar é para a ocorrência de uma substituição do poder de um discurso pelo outro, a mera troca de centro, ou a substituição de uma verdade pela outra, permuta essa que também teria o mesmo caráter excludente. É nesse sentido que Leyla Perrone-Moisés irá trazer as propostas teóricas do filósofo franco-argelino Jacques Derrida sobre o pensamento da desconstrução. “A desconstrução derridiana é uma leitura fina e minuciosa de textos da tradição ocidental, visando mostrar seus pressupostos idealistas e metafísicos. Derrida aponta e questiona, nesses textos, os dualismos hierárquicos em que o primeiro termo tem sido historicamente privilegiado: ser/não ser, fala/escrita, realidade/aparência, masculino/feminino etc. Por não imobilizar jamais numa afirmação plena, a desconstrução leva frequentemente a aporias. ‘Nem isso, nem aquilo’, ‘por um lado, por outro’, são formulações frequentes no discurso de Derrida. A aporia é o limite da desconstrução, que visa o deslocamento do sentido numa atitude crítica permanente” (perrone-moisés, Vira e mexe nacionalismo). Nessa situação de indecisão, o pensamento da desconstrução de Derrida, está a suspensão proposta pela autora. Leyla então conclui que “(...) a desconstrução é uma crítica infinita, um deslocamento, uma abertura de horizonte, um adiamento constante da conclusão, da Verdade” (idem, Vira e mexe nacionalismo). Em “A Morte do Autor”, de Roland Barthes, poderíamos observar uma tentativa de “inclusão” através da ideia da dissolução do autor, na qual Barthes começa por dizer que não saberemos quem era o castrado disfarçado de Balzac em sua novela Sarrasine, pela boa razão de que a escrita é a destruição de toda a voz, de toda a origem. “A escrita é esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito,
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o preto-e-branco aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve” (barthes, A morte do autor). Barthes diz que na escrita para fins intransitivos, no exercício do símbolo, o autor entra na sua própria morte. Lembra-nos de Mallarmé como o primeiro a colocar a linguagem no lugar do autor: “é a linguagem que fala, não é o autor... toda a poética de Mallarmé consiste em suprimir o autor em proveito da escrita (o que é, como veremos, restituir o seu lugar ao leitor)” (idem, A morte do autor). Barthes ainda diz que o surrealismo contribuiu para dessacralizar a imagem do autor, configurando o famoso “safanão” surrealista, que recomendava sem cessar o choque dos sentidos esperados. Barthes afirma que, uma vez o autor afastado, a pretensão de “decifrar” um texto torna-se totalmente inútil, atingindo-se algo como um fechamento da escrita. Barthes então vê o leitor como o ser total da escrita, é nele que as escritas se tornam múltiplas, as fugas e os diálogos se dando entre as várias culturas, em paródia, em contestação. É, portanto, no leitor que essa multiplicidade se reúne: “... é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita, a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino” (idem, A morte do autor) Se olharmos o pensamento moderno tendo como base as experiências cartesianas com suas possibilidades excludentes, as guerras, o nazismo, como fatos que impossibilitariam o curso natural da literatura, podemos observar um esforço para a não-exclusão ou inclusão tanto nas perspectivas multiculturalistas como nas propostas poéticas e literárias, puramente formalistas e supostamente autônomas, tentando de alguma forma “recompensar” o problema que parece no fundamento do pensar moderno para a vida em sociedade. Há de se pensar nas preocupações do campo literário, se elas vão ao encontro de uma possível virada moralizante, seja por questões internas ou por pressões externas a ela própria, ou uma combinação desses dois fluxos.
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Por ora, no campo suspenso de Derrida, onde todas as verdades e ficções são verdades, encontramo-nos em alerta, em exercício constante dos discursos moralizantes neste infinito espaço livre da criação.
Referências Bibliográficas DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2011. COUTINHO, Eduardo. Literatura comparada, literaturas nacionais e o questionamento do cânone. Revista Brasileira de literatura comparada nº 3. Rio de Janeiro: abralic, 1996. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vire e mexe, nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. BARTHES, Roland. Leçon. Aula Inaugural do Collège de France. França, 1977. BARTHES, Roland. A Morte do Autor. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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Sobre a autora Nina Gaul (1976) é designer, pintora e sócia-fundadora da agência de design e moda Oestudio, que iniciou suas atividades no Rio de Janeiro em 2001.
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Oestudio compôs este livro, no outono de 2015, com o tipo Sabon, de Jan Tschichold (1902 – 1974), que o criou entre os anos 1964 e 1967. Registramos aqui nossa admiração e gratidão pelo legado do tipógrafo alemão.
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